Mitos: Pilares que sustentam o patriarcado, na perspectiva de Simone de Beauvoir Ivonete Pinheiro* Maria Luzia Miranda Álvares** RESUMO Este estudo se alinha ao exposto por Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo) tendo como principal objetivo identificar os mitos que estruturam e fomentam até nossos dias as bases do patriarcado, colaborando para construir a representação das mulheres como sujeito social secundário nos vários âmbitos da sociedade. A autora identifica o motivo pelos quais os homens julgaram útil estabelecer seus códigos e suas leis sobre este gênero, mantendo-o sob sua dependência. Evidencia-se ainda o modo como os mitos justificam as desigualdades entre os sexos e como se fundamentam para manter o modelo patriarcal dinâmico, se utilizando do imaginário social para se afirmar como categoria dominante. Afirmando que os mitos sobrevivem ao tempo e se perpetuam sofrendo lentas modificações. Através deles e de forma sutil os homens estabeleceram suas leis e costumes criando imagens que se insinuam em cada consciência. Este trabalho trata-se de uma análise dos dois volumes da obra “O segundo sexo”, trazendo à tona sua importância para os estudos de gênero, após publicação da obra o feminismo garantiu muitas conquistas para as mulheres, entretanto muito do que Beauvoir escreveu permanece vivo. Palavras-chave: Gênero, Simone de Beauvoir, Mitos, Mulher, Patriarcado. INTRODUÇÃO O livro “O segundo sexo” de Simone de Beauvoir surge num contexto inesperado, pós-segunda guerra mundial quando, com diz ela mesma, praticamente ninguém comentava sobre o assunto, a filósofa ousou tocar em uma questão que as pessoas preferiam acreditar já estar resolvido, tanto pela temática ser nova quanto por ser desenvolvida por uma mulher que ousava escrever polemicamente. Suas ideias tratam de questões ligadas à independência feminina e o papel da mulher na sociedade. Sua obra se tornou um dos pilares da luta feminista, questionando o casamento como instituição, a maternidade com destino obrigatório, atacando a opressão feminina. Simone sofreu preconceitos, teve seu nome difamado, mas 1357 ainda assim deu prosseguimento a seus estudos. Foi tachada de não ter ideias próprias e copiar os pensamentos de Sartre1. Cada página dos dois volumes de “O segundo sexo” a autora dedica para mostrar as imagens que se construíram em torno da mulher ao longo dos séculos como o símbolo de beleza, de pureza, de perfeição, do bem, da virtude, do amor maternal, da “natureza” acolhedora e benévola, que segundo ela, não passam de construções sociais. É com esses conceitos que se estabelecem as estratégias de dominação: transformar a mulher em algo diferente do humano mantendo-a na condição de Outro, convencê-la de que esse é seu destino aprisionando-a na posição de passividade para evitar sua resistência contra quem a oprime. Diz Ana Alice Costa sobre isso: ...”não se nasce, se torna mulher”. Exatamente a palavra "tomar" que, no primeiro momento de formação do pensamento feminista, representou um marco, com a construção do conceito de gênero, passou a ser esse o ponto crítico do pensamento de Beauvoir. A palavra "tornar", na forma como a trata essa autora, significa, de fato, urna mudança do corpo biológico ao corpo cultural, isto é: do sexo ao gênero, de uma existência a outra. Para Beauvoir, as estruturas simbólicas definem o masculino e o feminino dentro de padrões universais, dialeticamente opostos, não detectando assim, o caráter de relação de gênero (COSTA, 1998, p.42-43). Este artigo é uma contribuição para os estudos de gênero no sentido de evidenciar em que se sustentam as diferenças entre os sexos e em que estas se apoiam para justificar as diferenças nas relações de gênero, como as relações se sustentam e de que modo a sociedade masculina se beneficia e a mulher em muitos casos não se inteira de sua situação, sendo assim construída como Outro. Assim, analisa-se a posição social da mulher nessas construções sociais reproduzidas no decorrer da história com ênfase nos mitos que se construíram em torno do sexo feminino, e como estes estão presentes de forma marcante nas sociedades desde os registros mais remotos, como continua se perpetuando em nossos dias e como estes mudam lentamente aparentando serem estáticos. 1. Apreensão do conceito de mito 1 Refiro-me ao seu companheiro, o filósofo Jean Paul Sartre, um dos pioneiros nos estudos sobre o existencialismo, com quem manteve relação por mais de 40 anos. 1358 Simone de Beauvoir considera difícil conceituar mito: “[...] Ele não se deixa apanhar nem cercar, habita as consciências sem nunca prostrar-se diante delas como um objeto imóvel [...]” (Beauvoir, 1949, p.183). Os mitos ultrapassam os limites do tempo e do espaço e se manifestam de maneira singular na mente individual de cada pessoa de acordo com um contexto histórico e social que a comunidade a qual está inserida vivencia. Estes aparentam muitas vezes inércia, pois se alteram tão lentamente que as mudanças são praticamente imperceptíveis, o que os torna ainda mais complexos quando se leva em consideração que sua transmissão ocorre de forma oral de uma geração para outra, atua no cotidiano de forma sutil e aparentemente agradável, influenciando diretamente na construção individual de cada sujeito. Mircea Eliade (1972) acredita que os mitos são um ingrediente vital para civilização humana, longe de ser uma fabulação é ao contrário uma realidade viva e abstrata que faz parte do processo de socialização do sujeito. É ao mesmo tempo tão fluído e tão contraditório ao ponto de confundirse, é ao mesmo tempo a luz e as trevas, a salvadora da humanidade e a mesma que a arrasta para perdição. O historiador Mircea Eliade descreve a função do mito do seguinte modo: “A principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto da alimentação ou casamento, quanto o trabalho, a educação a arte ou a sabedoria [...]”. (ELIADE, 1972, p.13). 2. Eva, maldição que se perpetua. Este mito constrói em torno da mulher uma imagem negativa, define-a como traiçoeira e mentirosa, permanece vivo porque o cristianismo trata de não permitir que morra ou enfraqueça. A bíblia explica a submissão da mulher como um dos castigos consequentes do pecado que ela cometeu. “[...] Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás a luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará [...]”. (BÍBLIA, cap. 3,) Eva foi criada porque Adão se sentia só, então seu destino se resume a salvar o homem da solidão e nele tem seus início e seu fim, diferente do de Adão que era servir a Deus. Sendo assim, no mito da criação, a mulher 1359 apresenta-se como presa privilegiada. Deve ocupar seu lugar de esposa submissa que busca adequar-se a seu destino inevitável, Eva símbolo da traição e do pecado responsável pela expulsão do casal do Éden, mulher falsa e traiçoeira, traiu a Deus e induziu seu esposo ao mesmo, representando uma das faces que o cristianismo atribuiu à mulher e que persegue há séculos, criado pela igreja e reforçado pela família. Esse mito foi utilizado para impedir a mulher de realizar seu crescimento pessoal serviu também de justificativa para o processo que impediu o sexo feminino de desempenhar cargos sacerdotais dentro da igreja, na visão religiosa judaicocristã sobre a mulher. Representa o lado mais obscuro, a tentação, os desejos da carne, o pecado, o desejo de sexo, o motivo pelo qual os homens devem mantê-las afastadas das possibilidades de progresso pessoal. 2.1 O mito de Maria Maria, a mulher que aceitou sua sorte sem contestação, representa o mais elevado desenho do que este gênero deve ser, é a idealização do sexo feminino, exemplo da salvação (se tratando do outro plano) terá que se submeter à excelência na sua vivência como mãe, esposa e filha, basicamente três papéis que a acompanham durante toda a vida, tendo apenas a função de procriar. Este mito ganhou força e perdura até nossos dias. Para Ana Alice Costa: A literatura católica estabelece deveres religiosos ligados diretamente à sua condição de mulheres. Suavidade, compaixão, amor maternal' formam parte das virtudes inatas do seu sexo. Às mulheres correspondem às obras de misericórdia e caridade, o cuidado dos doentes, dos pobres, dos velhos... (COSTA, 1998, p.42-43). O lugar mítico de Maria encerra a mulher na maternidade construindo o consenso de instinto maternal, é a maternidade imaculada ou a des-sexualização do sexo feminino elevada a um estatuto de perfeição inatingível. Diz Beauvoir: Como as representações coletivas e, entre outros, os tipos sociais definem-se geralmente por pares de termos opostos, a ambivalência parecerá uma propriedade intrínseca do Eterno Feminino. A mãe santa tem como correlativo a madrasta cruel; a moça angélica, a virgem perversa: por isso ora se dirá que a Mãe é igual à Vida, ora que é igual à Morte, que toda virgem é puro espírito ou carne votada ao diabo [...]. (BEUAVOIR, 1949, p.343). Os mitos de Maria e de Eva exemplificam a ambivalência que cerca o sexo feminino durante toda sua trajetória, eles moldam a percepção social que se construiu em torno do sexo feminino, e fazem parte de uma prática religiosa de 1360 tradição antagônica. Isso porque a mesma religião que rebaixa a mulher ao nível mais desprezível e a mesma que a coloca no mais alto nível de pureza e santidade que ora a apresenta como luz a outra é a mais temível treva. Através de Maria a igreja explora a possibilidade de a mulher sair da sua condição pecaminosa descendente de Eva. Vejamos o que diz Santo Irineu2 sobre as duas personagens: A desobediência de Eva foi causa da morte para ela própria e para toda a humanidade. Apesar de Maria também ter tido um marido escolhido para si, sendo apesar disso virgem, pela sua obediência ela foi a causa da salvação para si própria e para toda humanidade (...) o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria. (apud MONTEIRO et ali, 2013, p.1). Esta possibilidade é dada através de um modelo idealizado (e pelo que se observa, desde um tempo histórico antes de Cristo) em que figura a mulher como mãe, esposa, virgem, enfatizando a maternidade e a virgindade, discurso determinante de quais os seus papeis socialmente desejáveis. A pregação da virgindade como fator atributo essencial na figura feminina não consiste somente no ato sexual em si, ou nos órgãos sexuais, se dá no campo do desejo, pensamentos e aparência. A mulher deve esconder qualquer sentimento em relação a sexualidade privando-se do prazer, pois, senti-lo pode ser vergonhoso já que sua função é satisfazer seu esposo, vinculando-a não só à pureza espiritual feminina, mas à visibilidade dessa pureza. Se o papel social da mulher está ligado à maternidade o que remete ao domínio do lar, na esfera privada, o que desvalorizou a mulher como sujeito histórico e como operadora de mudanças, enquanto o homem constitui-se enquanto sujeito atuando na esfera pública. Os mitos se construíram de forma negativa em torno da mulher. Ela aparece como submissa, traidora, maliciosa, a que leva o homem -ou a humanidade- para a perdição do tipo Eva, Pandora. Em algumas narrações míticas a mulher surge como detentora do mal, seu corpo é cercado de tabus. Todos delineiam seu destino sendo estes símbolos culturalmente disponíveis e que evocam representações múltiplas e frequentemente contraditórias que podem servir à mesma mulher: puta e santa (COSTA, 1998). 3. O mito da feminilidade 2 Ireneu de Lyon (130-202 A.C) bispo grego, teólogo e escritor cristão. 1361 ...em troca de sua liberdade, presentearam-na com os tesouros falazes de sua ‘feminilidade’. Balzac descreveu muito bem essa manobra quando aconselhou ao homem que a tratasse como escrava, persuadindo-a de que é rainha... (BEAUVOIR, 1949, p.287). A feminilidade começa a aparecer cedo na vida da menina a partir do momento em que ela passa a levar certa vantagem no que diz respeito à atenção dos pais em relação aos filhos, como ser mais paparicada, acariciada, permissão ao coquetismo. Já ao menino é imposta uma independência prematura, ele não pode solicitar carinho ou ser mimado. Esse é o único momento em que o sexo masculino sente-se desprivilegiado em relação ao feminino, mas logo é superado, pois os adultos o convencem que é por causa da sua superioridade que é submetido a isso.“[...] Nós somos homens, deixemos isso para as mulheres [...].” (BEAUVOIR, 1949, p.13). Outra característica que ocorre ainda na infância quando sua vocação lhe é imperiosamente ditada, é a integração da menina no “mundo feminino”. Assim, desde muito cedo lhe ensinam as tarefas de casa, a cuidar dos irmãos mais novos, entregam-na nas mãos de outras mulheres, ensinam-lhe arte de seduzir e o recato, colocando a todo o momento regras de comportamento. Beauvoir chega a dizer que algumas mães fazem isso para descontar na filha a raiva do destino a que foi obrigada, por isso impõe à criança seu próprio destino, uma maneira de reivindicar sua própria feminilidade. Simone afirma3 que a moça é ensinada a esperar pelo casamento e para isso é preparada, pois ele resumirá seu destino. A mãe se incube de instruí-la a desempenhar as atividades que serão “suas” no futuro próximo. Deve saber se pentear, se vestir com roupas incomodas, mesmo que essa não seja sua vontade, dominara arte de seduzir sutilmente, não lhe é permitido transparecer, esse é papel ao homem. Nesse tempo ela assimilará, incentivada pela mãe principalmente, que para ser socialmente aceita deve ser dócil e passiva, saber se portar e usar de moderação acima de tudo compreender que seu destino está inseparavelmente ligado ao sexo masculino. Beauvoir afirma que casamento não é apenas uma carreira menos honrosa e cansativa do que as tantas outras, é através dele que a mulher busca elevação social e realização sexual. Deve aguardar passivamente ser encontrada e cortejada, já que deve se privar de tomar atitude, pois os homens não gostam de mulheres com grande capital 3 Vol. 2, de “O Segundo Sexo”, p. 66 1362 social, cultas e aptas para se colocar em par de igualdade com ele. Por mais que seja dotada desses atributos deve transparecer o contrário para que agrade ao homem e faça sentir um ser superior, assim, ser feminina é mostra-se impotente, passiva, fútil e dócil. Beauvoir afirma ainda que não há mito mais enraizado no coração masculino do que o do mistério feminino, e que o homem enxerga numerosas vantagens neste aspecto na mulher. Ao invés de admitir sua ignorância em relação a ela, ele acolhe um mistério, algo fora de seu domínio e do dela, haja vista que admitir que o mistério envolve a mulher é dizer que sua linguagem existe porém não é compreendida. É negando-a que ele se afirma como transcendente, a enxergando como ser “complicado”, e ele sutilmente a impele para o mito da feminilidade. O mito da feminilidade é usado na tentativa de estereotipar o comportamento da mulher. Na primeira parte do vol. 2 de “O Segundo Sexo”, Simone dedica uma área considerável para discutir como se inicia essa construção, o que, segundo ela, começa a ocorrer ainda na infância. Enquanto ao menino é dada a liberdade de usar o próprio corpo para descobrir o mundo, a menina é confinada nos limites do possível. A passividade, traço que caracterizará a mulher “feminina” se estabelecerá nela desde os primeiros anos, entretanto é um erro acreditar que se trata de um dado biológico sendo esse um destino que lhe é imposto pelos seus educadores e reforçado pela sociedade que reflete os valores dos homens. No primeiro momento, o mito da feminilidade aparece de forma sutil e silenciosa através das regras a serem seguidas e das atividades lúdicas, desde os primeiros anos de vida mesmo não havendo nenhuma rivalidade entre os dois, por incentivo dos adultos a situação passa a ocorrer. Ao menino é dada a liberdade de brincar, correr, usar da violência para enfrentar outros meninos, enquanto a menina é confinada aos brinquedos como uma boneca, espelhando sua própria passividade. Enquanto é ensinada a desempenhar o ofício que exercerá no futuro, incorpora a noção de bonito e feio e entende que para agradar é preciso ser bonita, assemelharse a uma boneca. 4. Os mitos são fortes o suficiente para vencer o tempo. Inseparavelmente ligado à história das sociedades humanas os mitos fazem parte da essência da cultura de cada povo e é utilizado sempre com um objetivo 1363 específico, que varia desde explicar um acontecimento sobrenatural, até justificar a condição da posição secundária da mulher. No caso das relações de gênero eles foram utilizados ora para diviniza-la ora para demoniza-la, o certo é que de qualquer maneira ela é impelida para o “seu destino”. Entretanto quando se trata do sexo masculino as coisas mudam de figura, porque foram os próprios homens que criaram os mitos, logo, eles são os maiores beneficiados, aparecem como heróis, príncipes, deuses... Exalam transcendência. Deve-se concordar que hoje ainda existem mais do que vestígios desses mitos em relação à mulher, permanecem vivos e não é surpreendente dizer que em pleno século XXI ainda servem de justificativa e empecilho para o acesso das mulheres a muitas áreas da sociedade, apesar de hoje se apresentarem de maneira diferente, eles ainda estão vivos no comportamento dos indivíduos homens e mulheres independente de classe social se manifestando de forma singular em cada povo, sofrendo mutações de acordo com tempo e o espaço em que se delineiam. Acham-se no significado da menstruação, da virgindade, da masturbação, em outras palavras, na maneira como a mulher deve enxergar seu próprio corpo e na representação social que este desempenha. A modificação dos costumes não se dá de forma imediata e nem simples, pois estes se encontram implantados fortemente no íntimo de cada sujeito. A luta do feminismo em relação à ruptura a esses mitos se apresenta como resistência aos costumes e ao modelo clássico. Baseia-se no princípio de que homens e mulheres são dotados de igual capacidade, por isso são dignos dos mesmos direitos, é a resistência de mulheres que reconhecem sua situação de desfavorecimento, entretanto, não a aceitam. Sobre a teoria feminista, há muitas asserções. Tomo a de Cisne (2008:70) para evidenciar essa corrente de pensamento: O feminismo vem se reafirmando como um dos movimentos sociais que se situam no campo emancipatório desde sua primeira expressão, na França, em 1789, quando as mulheres organizadas em praça pública queimaram seus reclames e denunciaram a história e a si próprias ao questionamento à ordem estabelecida reivindicando a igualdade e ao a firmarem a liberdade [...]. (CISNE. 2008.p.70) Apesar das conquistas que o feminismo garantiu às mulheres, estas ainda encontram muitas dificuldades de se realizar enquanto sujeito autônomo. Isso porque os costumes se apresentam como um empecilho para seu crescimento 1364 pessoal e profissional, na medida em que suas tarefas “naturais” se somam às atividades escolares e/ ou ao trabalho externo, ou seja, a condição para mulher sair do ambiente caseiro e aumentar seu valor humano tem que estar inserido à sua condição de ser mãe, esposa, dona de casa e ainda dispor de tempo para desempenharas atribuições da esfera pública. As restrições colocadas ao sexo feminino a partir da recorrência ancestral aos mitos na perspectiva de gênero serviram de suporte para reforçar o sistema patriarcal e mantê-lo na esfera privada da sociedade. “Essa dupla função somente tem servido para reforçar a situação de dominação a que está submetida a partir de uma existência de um a organização sexual da sociedade (o patriarcado).” (COSTA, 1998, p.48). Aparentemente as mulheres estão mais preocupadas em seguir um padrão de beleza para se tornarem socialmente aceitas do que lutar em prol de sua própria emancipação criando-se, em torno da opressão feminina uma aparência de “estabilidade” como se seus direitos já estivessem todos garantidos não sendo necessário prosseguir na luta. Apesar disso, a opressão existe ainda, possuindo várias faces e se manifestando de diversas formas na sociedade atual, caracterizando o que a antropóloga Lia Zanotta denominou como “patriarcado contemporâneo” 4. Atualmente, o conceito de patriarcado é muito questionado devido sua inflexibilidade se comparado ao conceito de relações de gênero. Lia Zanotta trata dessa questão: Porque o uso exclusivo de ‘patriarcado’ parece conter já, de uma só vez, todo conjunto de relações: como são é porque são. Trata-se de um sistema ou forma de dominação que, ao ser (re) conhecido já (tudo) explica: a desigualdade de gêneros (ZANOTTA, 2000, p.3). O grande problema do termo patriarcado consiste também na não inclusão das outras relações além da heterossexual. Apesar do termo patriarcado se apresentar como restritivo não mais satisfazendo as necessidades no que diz respeito ao estudo das relações entre os sexos, pode-se afirmar que existe um “patriarcado contemporâneo” e que este se apresenta imerso nas mudanças que foram possíveis ao longo desses anos de luta pela libertação do sexo feminino e também pelo reconhecimento de outras formas de relacionamento. Os mitos se apresentam como um empecilho que insistem em trazer para o presente, obstáculos que já deveriam ter sido superados. 4 Lia Zanotta traz o debate no seu artigo: “Perspectivas em confronto: Relações de gênero ou patriarcado contemporâneo”?“(2000), sobre a utilização do conceito de gênero. 1365 Movimentos articulados na área da antropologia preferem usar o conceito de relações de gênero já ele se apresenta como mais abrangente, se afastando do conceito de patriarcado: ...gênero é uma categoria engendrada para se referir ao caráter fundante da construção cultural das diferenças sexuais, a tal ponto de que as definições sociais das diferenças sexuais é que são interpretadas a partir das definições culturais de gênero (ZANOTTA. 2000.p.62). No dizer de Álvares (2014) ...no mesmo ritmo da escrita dessa autora que aponta “fatos e mitos” subjugando as mulheres e, ao mesmo tempo, interroga estes pontos construídos num processo de representação da tradição escrita (áreas de conhecimento, histórias etc.), e mostra a dinâmica das ações femininas dentro da “experiência vivida”, a provocação “desalinha” a perspectiva do status quo, mas se fortaleceu nas redes do conceito de gênero enquanto pauta de estudos das relações sociais hierarquizadas...(ÁLAVRES. 2010. p.85). Conceito defendido por outra teórica, Joan Scott (1986) Que circunstancia a seguinte definição: Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder (Scott, 1986, p. 21). Assim a asserção de Zanota caracteriza-se pela perspectiva de Joan Scott ao tratar das definições culturais de gênero. Segundo essa autora, as relações patriarcais nas suas diversas formas e novas características encontram-se presentes na sociedade contemporânea, permanecendo vivas porque são alimentadas pelos mitos, que por sua vez se mantém vivos devido ao espaço que lhes é dado nas perspectivas e consciências individuais. Considerações Finais O patriarcado configurou a visão sobre o sexo feminino de forma violenta, desde os aprendizados da infância, onde este começa a se instalar na consciência de ambos os sexos para delinear seu futuro, moldando a mente dos indivíduos de tal forma que a desconstrução do modelo assimilado torna-se difícil de ser adquirido já que este passa a ser um traço cultural da sociedade na qual se insere. É através dos educadores, da família e da sociedade em geral que ele se instala de forma sutil1366 outras abertamente -tornando-se elemento “essencial” no processo de socialização de ambos os sexos, principalmente do sexo feminino. A noção de liberdade e independência passa a ser diferenciada, não sendo um processo biológico, mas cultural em que, na realidade, o menino é convencido que é um ser superior, com a sociedade prestigiando hierarquicamente valores como o orgulho e a virilidade. O sistema patriarcal busca meios de se justificar no meio social e se utiliza dos mitos para se auto afirmar e garantir sua continuidade, sendo a maneira mais eficaz de justificar a ideologia que se alimenta desses valores, com os mitos contribuindo de forma forte e decisiva para a construção da noção do que é ser homem ou ser mulher. O homem de qualquer maneira não deixa também de ser vítima do processo, pois eles são ensinados a seguir o modelo, às vezes contra sua vontade- outras não. Foi se utilizando de mitos como o de Maria, Eva, da feminilidade atribuindo várias faces à mulher. O patriarcado se instalou com o advento da propriedade privada5 e acercando-se e se apropriando dos mitos que o mantiveram até hoje. A subjetividade feminina não se tornou um evento singular devido à hierarquia pautada pela condição masculina construída na afirmação de que este sexo era o dominante. E as mulheres foram convencidas de que seu lugar social era de subordinação sendo fortalecida pelas instituições, a religião, a família e o próprio estado que serviram de apoio para sua expansão. Torna-se difícil analisara libertação do sexo feminino sem avaliar a dimensão dos mitos, que em grande parte moldaram as relações de gênero. Não há a possibilidade de superar o sistema patriarcal sem desmistificar a imagem da mulher, e esse é um processo demorado, pois se trata de costumes que venceram o tempo, atravessaram gerações e se manifestam de forma singular em cada sujeito. Buscar igualdade social é antes de tudo compreender a situação do oprimido e também do opressor, e quando de fato conhecermos os atores do processo saindo da superficialidade entenderemos que em muitos casos os dois são produto de um processo histórico que os levou a desempenhar tal papel. Apesar do tempo que nos separa da época em que Simone de Beauvoir apresentou suas ideias em torno do formato da condição feminina e sua instalação na sociedade, estas ainda se mantém vivas na sociedade contemporânea. A 5 Abordado pelo teórico Friedrich Engels em: “A origem da propriedade privada da família e do Estado”, de 1884. 1367 situação da mulher tornou-se um traço cultural em muitas sociedades, e em se tratando de cultura a desconstrução é muito mais difícil. A mudança é possível, prova disso é a evolução da situação social feminina que hoje mostra as conquistas sociais para superar as violências e a falta de direitos que as atingia. Entretanto, não basta a criação de leis que legitimem o ingresso das mulheres às esferas que até pouco tempo não eram permitidas a esse gênero. E necessário trabalhar para mudar a mentalidade das pessoas, só assim a liberdade tomará seu lugar e haverá de fato justiça social. REFERENCIAS ALVARES, M.L.M. Competição Eleitoral e o Processo de Representação Feminina No Brasil: Candidatura e Votos nas Eleições Proporcionais de 2010. AT - GÊNERO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS, SAT 65 | Mulher, poder e representação política, IX ENCONTRO DA ABCP, Brasília, 2014. BEAUVOIR, de Simone. O segundo sexo: a experiência vivida; tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 1980. BEAUVOIR, de Simone. O segundo sexo: fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 1980. CISNE, Mirla; GURGEL, Telma. Feminismo, Estado e políticas publicas: desafios em tempos neoliberais para a autonomia das mulheres. Brasília. 2008. COSTA, Alcantara Ana Alice. As donas do poder: mulher e política na Bahia. Bahia. 1998. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo. Editora Perspectiva. 1972 ENGELLS, Frederich. A origem da família, da sociedade privada, e do Estado. São Paulo. Editora Escala. 2ª Ed. 2002. MONTEIRO A., et ali. 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