Mitos: Pilares que sustentam o patriarcado, na perspectiva

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Mitos: Pilares que sustentam o patriarcado, na perspectiva de
Simone de Beauvoir
Ivonete Pinheiro*
Maria Luzia Miranda Álvares**
RESUMO
Este estudo se alinha ao exposto por Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo) tendo
como principal objetivo identificar os mitos que estruturam e fomentam até nossos
dias as bases do patriarcado, colaborando para construir a representação das
mulheres como sujeito social secundário nos vários âmbitos da sociedade. A autora
identifica o motivo pelos quais os homens julgaram útil estabelecer seus códigos e
suas leis sobre este gênero, mantendo-o sob sua dependência. Evidencia-se ainda o
modo como os mitos justificam as desigualdades entre os sexos e como se
fundamentam para manter o modelo patriarcal dinâmico, se utilizando do imaginário
social para se afirmar como categoria dominante. Afirmando que os mitos
sobrevivem ao tempo e se perpetuam sofrendo lentas modificações. Através deles e
de forma sutil os homens estabeleceram suas leis e costumes criando imagens que
se insinuam em cada consciência. Este trabalho trata-se de uma análise dos dois
volumes da obra “O segundo sexo”, trazendo à tona sua importância para os
estudos de gênero, após publicação da obra o feminismo garantiu muitas conquistas
para as mulheres, entretanto muito do que Beauvoir escreveu permanece vivo.
Palavras-chave: Gênero, Simone de Beauvoir, Mitos, Mulher, Patriarcado.
INTRODUÇÃO
O livro “O segundo sexo” de Simone de Beauvoir surge num contexto
inesperado, pós-segunda guerra mundial quando, com diz ela mesma, praticamente
ninguém comentava sobre o assunto, a filósofa ousou tocar em uma questão que as
pessoas preferiam acreditar já estar resolvido, tanto pela temática ser nova quanto
por ser desenvolvida por uma mulher que ousava escrever polemicamente. Suas
ideias tratam de questões ligadas à independência feminina e o papel da mulher na
sociedade. Sua obra se tornou um dos pilares da luta feminista, questionando o
casamento como instituição, a maternidade com destino obrigatório, atacando a
opressão feminina. Simone sofreu preconceitos, teve seu nome difamado, mas
1357
ainda assim deu prosseguimento a seus estudos. Foi tachada de não ter ideias
próprias e copiar os pensamentos de Sartre1.
Cada página dos dois volumes de “O segundo sexo” a autora dedica
para mostrar as imagens que se construíram em torno da mulher ao longo dos
séculos como o símbolo de beleza, de pureza, de perfeição, do bem, da virtude, do
amor maternal, da “natureza” acolhedora e benévola, que segundo ela, não passam
de construções sociais. É com esses conceitos que se estabelecem as estratégias
de dominação: transformar a mulher em algo diferente do humano mantendo-a na
condição de Outro, convencê-la de que esse é seu destino aprisionando-a na
posição de passividade para evitar sua resistência contra quem a oprime. Diz Ana
Alice Costa sobre isso:
...”não se nasce, se torna mulher”. Exatamente a palavra "tomar" que, no
primeiro momento de formação do pensamento feminista, representou um
marco, com a construção do conceito de gênero, passou a ser esse o ponto
crítico do pensamento de Beauvoir. A palavra "tornar", na forma como a
trata essa autora, significa, de fato, urna mudança do corpo biológico ao
corpo cultural, isto é: do sexo ao gênero, de uma existência a outra. Para
Beauvoir, as estruturas simbólicas definem o masculino e o feminino dentro
de padrões universais, dialeticamente opostos, não detectando assim, o
caráter de relação de gênero (COSTA, 1998, p.42-43).
Este artigo é uma contribuição para os estudos de gênero no sentido de
evidenciar em que se sustentam as diferenças entre os sexos e em que estas se
apoiam para justificar as diferenças nas relações de gênero, como as relações se
sustentam e de que modo a sociedade masculina se beneficia e a mulher em muitos
casos não se inteira de sua situação, sendo assim construída como Outro. Assim,
analisa-se a posição social da mulher nessas construções sociais reproduzidas no
decorrer da história com ênfase nos mitos que se construíram em torno do sexo
feminino, e como estes estão presentes de forma marcante nas sociedades desde
os registros mais remotos, como continua se perpetuando em nossos dias e como
estes mudam lentamente aparentando serem estáticos.
1. Apreensão do conceito de mito
1
Refiro-me ao seu companheiro, o filósofo Jean Paul Sartre, um dos pioneiros nos estudos sobre o
existencialismo, com quem manteve relação por mais de 40 anos.
1358
Simone de Beauvoir considera difícil conceituar mito: “[...] Ele não se
deixa apanhar nem cercar, habita as consciências sem nunca prostrar-se
diante delas como um objeto imóvel [...]” (Beauvoir, 1949, p.183).
Os mitos ultrapassam os limites do tempo e do espaço e se
manifestam de maneira singular na mente individual de cada pessoa de
acordo com um contexto histórico e social que a comunidade a qual está
inserida vivencia. Estes aparentam muitas vezes inércia, pois se alteram tão
lentamente que as mudanças são praticamente imperceptíveis, o que os torna
ainda mais complexos quando se leva em consideração que sua transmissão
ocorre de forma oral de uma geração para outra, atua no cotidiano de forma
sutil e aparentemente agradável, influenciando diretamente na construção
individual de cada sujeito. Mircea Eliade (1972) acredita que os mitos são um
ingrediente vital para civilização humana, longe de ser uma fabulação é ao
contrário uma realidade viva e abstrata que faz parte do processo de
socialização do sujeito.
É ao mesmo tempo tão fluído e tão contraditório ao ponto de confundirse, é ao mesmo tempo a luz e as trevas, a salvadora da humanidade e a
mesma que a arrasta para perdição. O historiador Mircea Eliade descreve a
função do mito do seguinte modo: “A principal função do mito consiste em
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas
significativas: tanto da alimentação ou casamento, quanto o trabalho, a
educação a arte ou a sabedoria [...]”. (ELIADE, 1972, p.13).
2. Eva, maldição que se perpetua.
Este mito constrói em torno da mulher uma imagem negativa, define-a
como traiçoeira e mentirosa, permanece vivo porque o cristianismo trata de
não permitir que morra ou enfraqueça. A bíblia explica a submissão da mulher
como um dos castigos consequentes do pecado que ela cometeu. “[...]
Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás a luz filhos; e
o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará [...]”. (BÍBLIA, cap. 3,)
Eva foi criada porque Adão se sentia só, então seu destino se resume
a salvar o homem da solidão e nele tem seus início e seu fim, diferente do de
Adão que era servir a Deus. Sendo assim, no mito da criação, a mulher
1359
apresenta-se como presa privilegiada. Deve ocupar seu lugar de esposa submissa
que busca adequar-se a seu destino inevitável, Eva símbolo da traição e do pecado
responsável pela expulsão do casal do Éden, mulher falsa e traiçoeira, traiu a Deus
e induziu seu esposo ao mesmo, representando uma das faces que o cristianismo
atribuiu à mulher e que persegue há séculos, criado pela igreja e reforçado pela
família. Esse mito foi utilizado para impedir a mulher de realizar seu crescimento
pessoal serviu também de justificativa para o processo que impediu o sexo feminino
de desempenhar cargos sacerdotais dentro da igreja, na visão religiosa judaicocristã sobre a mulher. Representa o lado mais obscuro, a tentação, os desejos da
carne, o pecado, o desejo de sexo, o motivo pelo qual os homens devem mantê-las
afastadas das possibilidades de progresso pessoal.
2.1 O mito de Maria
Maria, a mulher que aceitou sua sorte sem contestação, representa o mais
elevado desenho do que este gênero deve ser, é a idealização do sexo feminino,
exemplo da salvação (se tratando do outro plano) terá que se submeter à excelência
na sua vivência como mãe, esposa e filha, basicamente três papéis que a
acompanham durante toda a vida, tendo apenas a função de procriar. Este mito
ganhou força e perdura até nossos dias. Para Ana Alice Costa:
A literatura católica estabelece deveres religiosos ligados diretamente
à sua condição de mulheres. Suavidade, compaixão, amor maternal'
formam parte das virtudes inatas do seu sexo. Às mulheres correspondem
às obras de misericórdia e caridade, o cuidado dos doentes, dos pobres,
dos velhos... (COSTA, 1998, p.42-43).
O lugar mítico de Maria encerra a mulher na maternidade construindo o consenso de
instinto maternal, é a maternidade imaculada ou a des-sexualização do sexo feminino
elevada a um estatuto de perfeição inatingível. Diz Beauvoir:
Como as representações coletivas e, entre outros, os tipos sociais
definem-se geralmente por pares de termos opostos, a ambivalência
parecerá uma propriedade intrínseca do Eterno Feminino. A mãe santa
tem como correlativo a madrasta cruel; a moça angélica, a virgem
perversa: por isso ora se dirá que a Mãe é igual à Vida, ora que é igual à
Morte, que toda virgem é puro espírito ou carne votada ao diabo [...].
(BEUAVOIR, 1949, p.343).
Os mitos de Maria e de Eva exemplificam a ambivalência que cerca o sexo
feminino durante toda sua trajetória, eles moldam a percepção social que se
construiu em torno do sexo feminino, e fazem parte de uma prática religiosa de
1360
tradição antagônica. Isso porque a mesma religião que rebaixa a mulher ao
nível mais desprezível e a mesma que a coloca no mais alto nível de pureza
e santidade que ora a apresenta como luz a outra é a mais temível treva.
Através de Maria a igreja explora a possibilidade de a mulher sair da sua
condição pecaminosa descendente de Eva. Vejamos o que diz Santo Irineu2
sobre as duas personagens:
A desobediência de Eva foi causa da morte para ela própria e para toda a
humanidade. Apesar de Maria também ter tido um marido escolhido para
si, sendo apesar disso virgem, pela sua obediência ela foi a causa da
salvação para si própria e para toda humanidade (...) o nó da
desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria. (apud
MONTEIRO et ali, 2013, p.1).
Esta possibilidade é dada através de um modelo idealizado (e pelo que se
observa, desde um tempo histórico antes de Cristo) em que figura a mulher como
mãe, esposa, virgem, enfatizando a maternidade e a virgindade, discurso
determinante de quais os seus papeis socialmente desejáveis.
A pregação da
virgindade como fator atributo essencial na figura feminina não consiste somente no
ato sexual em si, ou nos órgãos sexuais, se dá no campo do desejo, pensamentos e
aparência. A mulher deve esconder qualquer sentimento em relação a sexualidade
privando-se do prazer, pois, senti-lo pode ser vergonhoso já que sua função é
satisfazer seu esposo, vinculando-a não só à pureza espiritual feminina, mas à
visibilidade dessa pureza. Se o papel social da mulher está ligado à maternidade o
que remete ao domínio do lar, na esfera privada, o que desvalorizou a mulher como
sujeito histórico e como operadora de mudanças, enquanto o homem constitui-se
enquanto sujeito atuando na esfera pública.
Os mitos se construíram de forma negativa em torno da mulher. Ela aparece
como submissa, traidora, maliciosa, a que leva o homem -ou a humanidade- para a
perdição do tipo Eva, Pandora. Em algumas narrações míticas a mulher surge como
detentora do mal, seu corpo é cercado de tabus. Todos delineiam seu destino sendo
estes símbolos culturalmente disponíveis e que evocam representações múltiplas e
frequentemente contraditórias que podem servir à mesma mulher: puta e santa
(COSTA, 1998).
3. O mito da feminilidade
2
Ireneu de Lyon (130-202 A.C) bispo grego, teólogo e escritor cristão.
1361
...em troca de sua liberdade, presentearam-na com os tesouros falazes de
sua ‘feminilidade’. Balzac descreveu muito bem essa manobra quando
aconselhou ao homem que a tratasse como escrava, persuadindo-a de que
é rainha... (BEAUVOIR, 1949, p.287).
A feminilidade começa a aparecer cedo na vida da menina a partir do
momento em que ela passa a levar certa vantagem no que diz respeito à atenção
dos pais em relação aos filhos, como ser mais paparicada, acariciada, permissão ao
coquetismo. Já ao menino é imposta uma independência prematura, ele não pode
solicitar carinho ou ser mimado. Esse é o único momento em que o sexo masculino
sente-se desprivilegiado em relação ao feminino, mas logo é superado, pois os
adultos o convencem que é por causa da sua superioridade que é submetido a
isso.“[...] Nós somos homens, deixemos isso para as mulheres [...].” (BEAUVOIR,
1949, p.13).
Outra característica que ocorre ainda na infância quando sua vocação lhe é
imperiosamente ditada, é a integração da menina no “mundo feminino”. Assim,
desde muito cedo lhe ensinam as tarefas de casa, a cuidar dos irmãos mais novos,
entregam-na nas mãos de outras mulheres, ensinam-lhe arte de seduzir e o recato,
colocando a todo o momento regras de comportamento. Beauvoir chega a dizer que
algumas mães fazem isso para descontar na filha a raiva do destino a que foi
obrigada, por isso impõe à criança seu próprio destino, uma maneira de reivindicar
sua própria feminilidade.
Simone afirma3 que a moça é ensinada a esperar pelo casamento e para isso
é preparada, pois ele resumirá seu destino. A mãe se incube de instruí-la a
desempenhar as atividades que serão “suas” no futuro próximo. Deve saber se
pentear, se vestir com roupas incomodas, mesmo que essa não seja sua vontade,
dominara arte de seduzir sutilmente, não lhe é permitido transparecer, esse é papel
ao homem. Nesse tempo ela assimilará, incentivada pela mãe principalmente, que
para ser socialmente aceita deve ser dócil e passiva, saber se portar e usar de
moderação acima de tudo compreender que seu destino está inseparavelmente
ligado ao sexo masculino. Beauvoir afirma que casamento não é apenas uma
carreira menos honrosa e cansativa do que as tantas outras, é através dele que a
mulher busca elevação social e realização sexual.
Deve aguardar passivamente ser encontrada e cortejada, já que deve se
privar de tomar atitude, pois os homens não gostam de mulheres com grande capital
3
Vol. 2, de “O Segundo Sexo”, p. 66
1362
social, cultas e aptas para se colocar em par de igualdade com ele. Por mais que
seja dotada desses atributos deve transparecer o contrário para que agrade ao
homem e faça sentir um ser superior, assim, ser feminina é mostra-se impotente,
passiva, fútil e dócil.
Beauvoir afirma ainda que não há mito mais enraizado no coração masculino
do que o do mistério feminino, e que o homem enxerga numerosas vantagens neste
aspecto na mulher. Ao invés de admitir sua ignorância em relação a ela, ele acolhe
um mistério, algo fora de seu domínio e do dela, haja vista que admitir que o mistério
envolve a mulher é dizer que sua linguagem existe porém não é compreendida. É
negando-a que ele se afirma como transcendente, a enxergando como ser
“complicado”, e ele sutilmente a impele para o mito da feminilidade.
O mito da feminilidade é usado na tentativa de estereotipar o comportamento
da mulher. Na primeira parte do vol. 2 de “O Segundo Sexo”, Simone dedica uma
área considerável para discutir como se inicia essa construção, o que, segundo ela,
começa a ocorrer ainda na infância. Enquanto ao menino é dada a liberdade de usar
o próprio corpo para descobrir o mundo, a menina é confinada nos limites do
possível. A passividade, traço que caracterizará a mulher “feminina” se estabelecerá
nela desde os primeiros anos, entretanto é um erro acreditar que se trata de um
dado biológico sendo esse um destino que lhe é imposto pelos seus educadores e
reforçado pela sociedade que reflete os valores dos homens.
No primeiro momento, o mito da feminilidade aparece de forma sutil e
silenciosa através das regras a serem seguidas e das atividades lúdicas, desde os
primeiros anos de vida mesmo não havendo nenhuma rivalidade entre os dois, por
incentivo dos adultos a situação passa a ocorrer. Ao menino é dada a liberdade de
brincar, correr, usar da violência para enfrentar outros meninos, enquanto a menina
é confinada aos brinquedos como uma boneca, espelhando sua própria passividade.
Enquanto é ensinada a desempenhar o ofício que exercerá no futuro, incorpora a
noção de bonito e feio e entende que para agradar é preciso ser bonita, assemelharse a uma boneca.
4. Os mitos são fortes o suficiente para vencer o tempo.
Inseparavelmente ligado à história das sociedades humanas os mitos fazem
parte da essência da cultura de cada povo e é utilizado sempre com um objetivo
1363
específico, que varia desde explicar um acontecimento sobrenatural, até justificar a
condição da posição secundária da mulher. No caso das relações de gênero eles
foram utilizados ora para diviniza-la ora para demoniza-la, o certo é que de qualquer
maneira ela é impelida para o “seu destino”. Entretanto quando se trata do sexo
masculino as coisas mudam de figura, porque foram os próprios homens que
criaram os mitos, logo, eles são os maiores beneficiados, aparecem como heróis,
príncipes, deuses... Exalam transcendência.
Deve-se concordar que hoje ainda existem mais do que vestígios desses
mitos em relação à mulher, permanecem vivos e não é surpreendente dizer que em
pleno século XXI ainda servem de justificativa e empecilho para o acesso das
mulheres a muitas áreas da sociedade, apesar de hoje se apresentarem de maneira
diferente, eles ainda estão vivos no comportamento dos indivíduos homens e
mulheres independente de classe social se manifestando de forma singular em cada
povo, sofrendo mutações de acordo com tempo e o espaço em que se delineiam.
Acham-se no significado da menstruação, da virgindade, da masturbação, em outras
palavras, na maneira como a mulher deve enxergar seu próprio corpo e na
representação social que este desempenha. A modificação dos costumes não se dá
de forma imediata e nem simples, pois estes se encontram implantados fortemente
no íntimo de cada sujeito.
A luta do feminismo em relação à ruptura a esses mitos se apresenta como
resistência aos costumes e ao modelo clássico. Baseia-se no princípio de que
homens e mulheres são dotados de igual capacidade, por isso são dignos dos
mesmos direitos, é a resistência de mulheres que reconhecem sua situação de
desfavorecimento, entretanto, não a aceitam.
Sobre a teoria feminista, há muitas asserções. Tomo a de Cisne (2008:70)
para evidenciar essa corrente de pensamento:
O feminismo vem se reafirmando como um dos movimentos sociais que se
situam no campo emancipatório desde sua primeira expressão, na França,
em 1789, quando as mulheres organizadas em praça pública queimaram
seus reclames e denunciaram a história e a si próprias ao questionamento à
ordem estabelecida reivindicando a igualdade e ao a firmarem a liberdade
[...]. (CISNE. 2008.p.70)
Apesar das conquistas que o feminismo garantiu às mulheres, estas ainda
encontram muitas dificuldades de se realizar enquanto sujeito autônomo. Isso
porque os costumes se apresentam como um empecilho para seu crescimento
1364
pessoal e profissional, na medida em que suas tarefas “naturais” se somam às
atividades escolares e/ ou ao trabalho externo, ou seja, a condição para mulher sair
do ambiente caseiro e aumentar seu valor humano tem que estar inserido à sua
condição de ser mãe, esposa, dona de casa e ainda dispor de tempo para
desempenharas atribuições da esfera pública. As restrições colocadas ao sexo
feminino a partir da recorrência ancestral aos mitos na perspectiva de gênero
serviram de suporte para reforçar o sistema patriarcal e mantê-lo na esfera privada
da sociedade. “Essa dupla função somente tem servido para reforçar a situação de
dominação a que está submetida a partir de uma existência de um a organização
sexual da sociedade (o patriarcado).” (COSTA, 1998, p.48).
Aparentemente as mulheres estão mais preocupadas em seguir um padrão
de beleza para se tornarem socialmente aceitas do que lutar em prol de sua própria
emancipação criando-se, em torno da opressão feminina uma aparência de
“estabilidade” como se seus direitos já estivessem todos garantidos não sendo
necessário prosseguir na luta. Apesar disso, a opressão existe ainda, possuindo
várias faces e se manifestando de diversas formas na sociedade atual,
caracterizando o que a antropóloga Lia Zanotta denominou como “patriarcado
contemporâneo” 4. Atualmente, o conceito de patriarcado é muito questionado
devido sua inflexibilidade se comparado ao conceito de relações de gênero. Lia
Zanotta trata dessa questão:
Porque o uso exclusivo de ‘patriarcado’ parece conter já, de uma só
vez, todo conjunto de relações: como são é porque são. Trata-se de um
sistema ou forma de dominação que, ao ser (re) conhecido já (tudo) explica:
a desigualdade de gêneros (ZANOTTA, 2000, p.3).
O grande problema do termo patriarcado consiste também na não inclusão
das outras relações além da heterossexual. Apesar do termo patriarcado se
apresentar como restritivo não mais satisfazendo as necessidades no que diz
respeito ao estudo das relações entre os sexos, pode-se afirmar que existe um
“patriarcado contemporâneo” e que este se apresenta imerso nas mudanças que
foram possíveis ao longo desses anos de luta pela libertação do sexo feminino e
também pelo reconhecimento de outras formas de relacionamento. Os mitos se
apresentam como um empecilho que insistem em trazer para o presente, obstáculos
que já deveriam ter sido superados.
4
Lia Zanotta traz o debate no seu artigo: “Perspectivas em confronto: Relações de gênero ou
patriarcado contemporâneo”?“(2000), sobre a utilização do conceito de gênero.
1365
Movimentos articulados na área da antropologia preferem usar o conceito de
relações de gênero já ele se apresenta como mais abrangente, se afastando do
conceito de patriarcado:
...gênero é uma categoria engendrada para se referir ao caráter
fundante da construção cultural das diferenças sexuais, a tal ponto de que
as definições sociais das diferenças sexuais é que são interpretadas a partir
das definições culturais de gênero (ZANOTTA. 2000.p.62).
No dizer de Álvares (2014)
...no mesmo ritmo da escrita dessa autora que aponta “fatos e mitos”
subjugando as mulheres e, ao mesmo tempo, interroga estes pontos
construídos num processo de representação da tradição escrita (áreas de
conhecimento, histórias etc.), e mostra a dinâmica das ações femininas
dentro da “experiência vivida”, a provocação “desalinha” a perspectiva do
status quo, mas se fortaleceu nas redes do conceito de gênero enquanto
pauta de estudos das relações sociais hierarquizadas...(ÁLAVRES. 2010.
p.85).
Conceito defendido por outra teórica, Joan Scott (1986) Que circunstancia a
seguinte definição:
Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas
são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo
essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas
proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder (Scott, 1986, p. 21).
Assim a asserção de Zanota caracteriza-se pela perspectiva de Joan Scott ao
tratar das definições culturais de gênero. Segundo essa autora, as relações
patriarcais nas suas diversas formas e novas características encontram-se presentes
na sociedade contemporânea, permanecendo vivas porque são alimentadas pelos
mitos, que por sua vez se mantém vivos devido ao espaço que lhes é dado nas
perspectivas e consciências individuais.
Considerações Finais
O patriarcado configurou a visão sobre o sexo feminino de forma violenta,
desde os aprendizados da infância, onde este começa a se instalar na consciência
de ambos os sexos para delinear seu futuro, moldando a mente dos indivíduos de tal
forma que a desconstrução do modelo assimilado torna-se difícil de ser adquirido já
que este passa a ser um traço cultural da sociedade na qual se insere. É através dos
educadores, da família e da sociedade em geral que ele se instala de forma sutil1366
outras abertamente -tornando-se elemento “essencial” no processo de socialização
de ambos os sexos, principalmente do sexo feminino. A noção de liberdade e
independência passa a ser diferenciada, não sendo um processo biológico, mas
cultural em que, na realidade, o menino é convencido que é um ser superior, com a
sociedade prestigiando hierarquicamente valores como o orgulho e a virilidade.
O sistema patriarcal busca meios de se justificar no meio social e se utiliza
dos mitos para se auto afirmar e garantir sua continuidade, sendo a maneira mais
eficaz de justificar a ideologia que se alimenta desses valores, com os mitos
contribuindo de forma forte e decisiva para a construção da noção do que é ser
homem ou ser mulher. O homem de qualquer maneira não deixa também de ser
vítima do processo, pois eles são ensinados a seguir o modelo, às vezes contra sua
vontade- outras não. Foi se utilizando de mitos como o de Maria, Eva, da
feminilidade atribuindo várias faces à mulher.
O patriarcado se instalou com o advento da propriedade privada5 e
acercando-se e se apropriando dos mitos que o mantiveram até hoje. A
subjetividade feminina não se tornou um evento singular devido à hierarquia pautada
pela condição masculina construída na afirmação de que este sexo era o dominante.
E as mulheres foram convencidas de que seu lugar social era de subordinação
sendo fortalecida pelas instituições, a religião, a família e o próprio estado que
serviram de apoio para sua expansão.
Torna-se difícil analisara libertação do sexo feminino sem avaliar a dimensão
dos mitos, que em grande parte moldaram as relações de gênero. Não há a
possibilidade de superar o sistema patriarcal sem desmistificar a imagem da mulher,
e esse é um processo demorado, pois se trata de costumes que venceram o tempo,
atravessaram gerações e se manifestam de forma singular em cada sujeito. Buscar
igualdade social é antes de tudo compreender a situação do oprimido e também do
opressor, e quando de fato conhecermos os atores do processo saindo da
superficialidade entenderemos que em muitos casos os dois são produto de um
processo histórico que os levou a desempenhar tal papel.
Apesar do tempo que nos separa da época em que Simone de Beauvoir
apresentou suas ideias em torno do formato da condição feminina e sua instalação
na sociedade, estas ainda se mantém vivas na sociedade contemporânea. A
5
Abordado pelo teórico Friedrich Engels em: “A origem da propriedade privada da família e do
Estado”, de 1884.
1367
situação da mulher tornou-se um traço cultural em muitas sociedades, e em se
tratando de cultura a desconstrução é muito mais difícil. A mudança é possível,
prova disso é a evolução da situação social feminina que hoje mostra as conquistas
sociais para superar as violências e a falta de direitos que as atingia. Entretanto, não
basta a criação de leis que legitimem o ingresso das mulheres às esferas que até
pouco tempo não eram permitidas a esse gênero. E necessário trabalhar para mudar
a mentalidade das pessoas, só assim a liberdade tomará seu lugar e haverá de fato
justiça social.
REFERENCIAS
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1369
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