A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega Rationalizing the Faith: A Historical Approach of Patristic Greek Aguimaran das Neves Costa1 Ricardo Niehues Buss2 Resumo O presente trabalho é uma revisão histórica da Patrística, filosofia cristã do primeiro século, que foi dividida em três períodos, compreendendo a etapa do século segundo ao século oitavo, cada qual com seu autor que, de forma inteligente, usaram a filosofia grega na tentativa de provar que a fé é racional. Com o avanço do cristianismo que acabara de sair dos limites territoriais da Judéia rumo a novas terras e a novos povos, consequentemente nesse caminho, foi se encontrando um público cada vez mais instruído para o qual foi necessário provar que a doutrina transmitida pelos cristãos é uma doutrina racional e, para esta finalidade foi de grande importância a filosofia grega. Palavras-Chaves: Patrística, Fé, Razão, Gnose. Abstract This work is a historical review of the Patristics,what is the Christian philosophy of the first century and was divided into three periods, ranging from these cond century to the eighth century, each with its author, who cleverly used the greek philosophyin an attempt to proveth at faith is rational. With the advance of Christian it which had just left the territorial limits of Judea into new land sand new people, hence this path, was meeting an increasingly educated publicin whi1 Graduado em filosofia pela SMAB - Seminário Maior Arquidiocesano de Brasília. E-mail: [email protected] 2 Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor da UFTUniversidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected] 11 Aguimaran das Neves Costa, Ricardo Niehues Buss chit was necessary to prove that the traditional doctrine by Christians is a rational doctrine and for this purpose was of great importance to Greek philosophy. Key-Words: Patristic, Faith, Reason, Gnosis. Introdução Patrística é a filosofia cristã dos primeiros séculos e é dividida em Patrística Grega e Latina, que consiste na elaboração doutrinal das crenças religiosas do cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e suas heresias. Embora haja a Patrística latina que também contribui para a racionalização da fé, será abordado neste trabalho apenas a Patrística Grega e seus autores. A filosofia, segundo alguns autores, nasce em Mileto, colônia grega, com Tales, é a Patrística com autores cristãos dos primeiros séculos. O trabalho desses homens, que se empenharam em racionalizar a fé, foi de grande valia na construção de bases sólidas da doutrina cristã. No período Patrístico, além da temática de racionalizar a fé, tinha-se também o compromisso de combater de forma racional doutrinas heréticas, muita das quais, nascidas dentro da própria Igreja, por cristãos que analisavam as Sagradas Escrituras não no espírito apostólicos ou na tradição eclesiástica, mas como bem entendessem. Discute-se neste trabalho apenas o movimento gnóstico, não por falta de outros, mas porque foi ele um dos primeiros a ser combatido pelos padres do primeiro período Patrístico. De cada um desses períodos apresentar-se-á os autores que mais se destacaram. No primeiro período, destaca-se Justino, por ser considerado o primeiro a trabalhar a temática fé – razão; no segundo período, além de Orígenes e Clemente, discute-se sobre a origem do Credo, que é um dos pilares da fé cristã. Por último, no terceiro período, destaca-se João Damasceno, por apresentar Aristóteles em seus escritos. A Patrística finda com a morte de João Damasceno. Este estudo bibliográfico descritivo tem por finalidade entender o processo da racionalização da fé no período Patrístico, bem como 12 Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega conhecer os principais autores que contribuíram para essa finalidade. Patrística A filosofia cristã do primeiro século recebe o nome de Patrística, e consiste na elaboração doutrinal das crenças religiosas do cristianismo e na sua defesa contra os ataques dos pagãos e suas heresias. A patrística caracteriza-se pela indistinção entre religião (fé) e filosofia (razão). (MARÍAS, 2004, p.123) Para os Padres da Igreja nascente, a religião cristã é a expressão íntegra e definitiva da verdade; verdade que a filosofia grega atingira imperfeita e parcialmente, ou seja, de forma forçada ou não esses padres identificaram nos conceitos gregos usados na filosofia termos bíblicos, dentre os quais o mais usado foi ode LOGOS. Com efeito, a Razão que se tornou Logos, que se tornou carne em Cristo e se revelou plenamente aos homens na sua palavra é a mesma que inspirara os filósofos gregos (pagãos) em suas especulações. São Justino (apud LECIONÁRIO MONÁSTICO, 2002, p.831), mártir do segundo século cristão afirma que: Não que a doutrina de Platão seja incompatível com a de Cristo, mas não é semelhante a ela em tudo, assim como as dos outros Estóicos Poetas e Escritores. Cada um deles, com efeito, viu do Verbo Divino disseminado no mundo o que estava de acordo com sua natureza e, pode expressar assim uma verdade parcial: mas como se contradizem em pontos essenciais, mostram que não possuem uma ciência infalível e um conhecimento irrefutável. A Patrística costuma ser dividida em três períodos. O primeiro período vai, mais ou menos, até o século terceiro e é dedicado à defesa do cristianismo contra seus adversários pagãos e gnósticos. Neste primeiro período destacam-se Justino, Taciano, Atenágoras, Teófilo, Irineu, Tertuliano, Minúcio, Félix, Cipriano, Lactâncio. O segundo período, inicia-se no século terceiro até aproximadamente a metade do século quarto e se caracteriza pela formulação doutrinal das crenças cristãs, sendo o período dos grandes sistemas Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 13 Aguimaran das Neves Costa, Ricardo Niehues Buss de filosofia cristã. Neste grupo, destacam-se: Clemente de Alexandria, Orígenes, Basílio, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa, Agostinho. O terceiro período, que vai da metade do século quarto até o fim do século oitavo, é caracterizado pela reelaboração e pela sistematização das doutrinas já formuladas, bem como pela ausência formulações doutrinais originais. Deste período destacam-se Nemésio, Pseudo-Dionísio, Máximo Confessor, João Damasceno, Marciano Capela, Boécio, Isidoro de Servilha e Beda o Venerável. A herança da Patrística foi recolhida, pela Escolástica. O nome patrística deriva do termo latino Patris (pai), de onde se deriva também a palavra portuguesa padree, foi assim chamado em seu primeiro período (foram três os períodos em que se dividiu este movimento) de Período dos Padres Apostólicos, padres estes que estão ligados aos apóstolos e a seu espírito. Foram períodos de grande florescimento cultural na tentativa de racionalizar a fé cristã, que vai do século primeiro até o fim do século oitavo. No primeiro século cristão não temos a construção de um sistema filosófico propriamente dito, limitando- se a temática Moral e Ascética da nova religião. Crê-se que não havia a necessidade de um sistema filosófico, pois nesse primeiro século o evangelho era direcionado ao público menos instruído, aos pobres e, estes por possuírem pouca ou nenhuma instrução (no campo filosófico), não se davam ao luxo de questionar aquilo que era repassado para eles, apenas aceitavam, não como uma forma de imposição, mas, como algo inquestionável, como algo dado. O cristianismo poderia ter se mantidoexclusivamente no terreno da fé. Ao contrario da razão que exige provas e demonstrações, a fé basta a si mesma. Crê-se, e é o suficiente. O cristianismo porem não se satisfez com o credo. Entrou no terreno da filosofia. Emcontrapartida o cristianismo assimilou procedimentos racionais. Esse encontro, marcado por tensões, iniciou-se no Império Romano, que propiciava a mescla de diversos valores culturais, e prolongou-se por toda a Idade Média, quando a Igreja se tornaria preponderante. (ABRÃO, 2004, p.93) 14 Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega Historicamente, o cristianismo origina-se das pregações de Jesus de Nazaré pela Judéia, então dominada pelo Império Romano. Sua mensagem era simples, amar ao próximo, praticar a bondade e desprezar os valores deste mundo, pois a verdadeira morada do homem é o reino dos céus. Isto se confirma segundo Lucas 12, 33-34 “Vendei vossos bens e dais esmolas. Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro inesgotável nos céus, onde o ladrão não chega nem a traça rói, pois onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Jesus se declarava filho de Deus, enviado ao mundo para redimir o homem dos pecados. [...] levantando então o Sumo Sacerdote no meio deles, interrogou Jesus dizendo: Nada respondes? Que testemunham estes contra ti? Ele porém ficou calado e nada respondeu. O sumo sacerdote o interrogou de novo: tu és o messias, o filho do Deus bendito? Jesus respondeu: Eu sou. E, vereis o filho do homem sentado a direita do Poderoso e, vindo com as nuvens do céu. (MARCOS 14, 60-62) Sua crucificação seria, nessa medida, o sacrifício do próprio Deus encarnado para salvar os homens. Após a morte de Jesus (e sua ressurreição, de acordo com o novo testamento), essas ideias conquistaram inúmeros adeptos em várias regiões do império. Nessa difusão para a qual concorreu o infatigável trabalho dos Apóstolos, a mensagem de Jesus passou a se expressar em vários idiomas, como o grego e, mais tarde, o latim; e, nessa difusão, foi se encontrando públicos mais instruídos no qual a fé por si não bastava, surgindo a necessidade de racionalizar a fé para conquistar maior número de seguidores. 2. Primeiro Período da Patrística Grega (início) Segundo Abbagnano (2007, p.122) “a verdadeira atividade filosófica cristã começa com os Padres Apologetas no segundo século. Esses Padres escreviam em defesa (apologia) do cristianismo contra os ataques e perseguições que lhe eram dirigidos”. Antes dos Padres Apologetas houve os Padres Apostólicos, es- Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 15 Aguimaran das Neves Costa, Ricardo Niehues Buss tes eram autores de cartas que ilustravam alguns pontos da doutrina cristã e regulavam questão de ordem prática e religiosa, mas não encaravam ainda problemas filosóficos. Nesta fase, os cristãos começam a sofrer hostilidades dos Hebreus que não aceitam que o Cristo (termo grego que significa ungido) seja o Messias esperado há muito por eles. São perseguidos pelos pagãos na pessoa do Estado Romano por não reconhecerem no Imperador a pessoa de um Deus e por não quererem queimar incenso para os deuses protetores do Estado. As obras literárias dos padres apologistas não foram direcionadas somente para os pagãos, judeus (inimigos externos), mas também aos inimigos internos, contra suas tendências que, na tentativa de interpretarem a mensagem autêntica do cristianismo, falseavam seu espírito. Nos primeiros séculos de cristianismo, o maior perigo contra a sua unidade foi o movimento gnóstico que surgiu no seio da própria Igreja, se difundiu amplamente no oriente e no ocidente especialmente na esfera dos doutos. Das literaturas gnósticas, poucas são conhecidas atualmente, apenas aquelas citadas pelos padres apologetas que as refutaram. Segundo Abbagnano (1969, p.130): A importância da tentativa dos gnósticos reside no fato de que é a primeira investigação de uma filosofia do cristianismo. Mas esta investigação foi conduzida sem rigor sistemático, misturando juntamente elementos cristãos, míticos, neoplatónicos e orientais num conjunto que nada tem de filosófico. A palavra gnosis, como forma de conhecimento religioso, distinto da pura fé, foi tirada da tradição grega do pitagorismo no qual significava o conhecimento do divino, próprio dos iniciados. (ABBAGNANO, 1969, p.130). Na tentativa de combater o movimento gnóstico, foi necessário que o cristianismo fizesse uma elaboração doutrinal mais rigorosa e, neste sentido, foi necessário individualizar e defender as fontes genuinas da tradição cristã, e fixar o significado autêntico desta tradição contra os erros que pretendiam disputá-la e exprimir o seu verdadeiro significado. 16 Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega 2.1 Justino O primeiro padre apologeta de que se tem notícia é Justino. Conforme Abbagnano (1969), Justino nasceu, provavelmente, no primeiro decênio do século II em Flávia Neápolis, a antiga Siquem, agora Nablus na Palestina. Era filho de pais pagãos e demostrou desde cedo interesse por várias escolas filosóficas de sua época; sendo elas os Estóicos, Peripatéticos e Pitagóricos e, ainda, professou por muito tempo da doutrina Platônica. Por fim, encontrou no cristianismo aquilo que tanto procurava e, passa a defendê-la como a única verdadeira filosofia e isto é perseptível no diálogo com Trifão: Disse-me todas essas coisas (Trifão) e partiu, recomendando-me que meditasse sobre elas. Nao tornei a vê-lo, mas subtamente um fogo iluminou-me a alma e fui tomado de amor pelos profetas, e por esses homens amigos de Cristo. Repassei comigo mesmo todas essas palavras. Reconheci que era a unica filosofia segura e proveitosa.(LECIONARIO MONASTICO, 2002, p. 828). Justino viveu muitos anos em Roma e ali fundou uma escola e foi martirizado entre 163 a 167, também em Roma. Das obras de Justino que chegaram até nós apenas três são consideradas como autênticas, sendo elas o Diálogo com o judeu Trifão e duas Apologias. A primeira, e a mais importante, é dirigida ao imperador Antonino Pio, e deve ter sido composta nos anos 150-155. A segunda, que é um suplemento ou um apêndice da primeira, foi motivada pela condenação de três cristãos, réus apenas por se terem confessado como tais. O Diálogo com o judeu Trifon refere-se a uma discussão que ocorreu em Éfeso entre Justino e Trifon e visa, em substância, demonstrar que a pregação de Cristo realiza e completa os ensinamentos do Velho Testamento. Se é possível sintetizar o pensamento de Justino, poderíamos dizer que: Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 17 Aguimaran das Neves Costa, Ricardo Niehues Buss “é o cristianismo a única filosofia útil.” (Dial., 8) e que está é o resultado último e definitivo que a razão pode alcançar na sua pesquisa, uma vez que a razão não é mais do que o Verbo de Deus, ou seja, Cristo, do qual participa todo o género humano. (ABBAGNANO, 1969, p.124) Para Justino, aqueles que viveram segundo a razão são cristãos, ainda que tenham nascidos antes mesmo do surgimento do cristianismo, muitos dos quais considerados ateus como, entre os Gregos, Sócrates, Heraclito e outros; e entre os judeus, Abraão, Ananias, Azarias, Misael, Elias. (ABBAGNANO, 1969, p.124). Alguns padres apologetas, tais como Taciano o Assírio discípulo de Justino, Teófilo de Antioquia, dentre outros mais que, de forma eficiente, tentaram provar racionalmente, que é o cristianismo, o coroamento da filosofia grega. 2.2 Irineu Irineu nasceu cerca de 140 anos d.C. na Ásia Menor, provavelmente em Esmirna; era padre da igreja de Lyon. Irineu escreveu numerosas obras contra o movimento Gnóstico dentre as quais a mais importante é a refutação e desmascaramento da falsa gnose intitulada de adversus haereses no qual defende que: A verdadeira gnose é aquela que foi transmitida pelos apóstolos da Igreja. Mas esta gnose não tem a pretensão de superar os limites do homem, como a falsa gnose dos heréticos. Deus é incompreensível e impensável. Todos os nossos conceitos são para ele inadequados. Ele é intelecto, mas não é semelhante ao nosso intelecto. “É luz, mas não é semelhante à nossa luz. “É melhor não saber nada, mas crer em Deus e permanecer no amor de Deus, do que arriscar-se a perdê-lo com investigações subtis”. (Adv. Haer apud ABBAGNANO, 1969, p.134). Para Irineu só podemos saber de Deus aquilo que nos foi revelado pelas Escrituras e a revelação de Deus também se manifesta no mundo que é obra dele. 18 Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega Segundo Irineu (apud ABBAGNANO, 1969, p.134), o mais grave erro do movimento gnóstico foi o de defenderem a tese de que o mundo não foi criado por Deus, mas que o mundo é fruto de sua emanação, ou seja, que houve seres intermediários na criação do mundo, isso implica, logicamente que se assim fosse, que Deus não teria a capacidade de levar a efeito aquilo que tinha projetado. 2.3 Tertuliano Quinto Septimio Fiorente Tertuliano, nasceu cerca de 160 anos d. C. Em Cartago, de pais pagãos. Entre 193 e 197 d.C. converteu-se ao cristianismo e recebeu a ordenação sacerdotal. A partir de então desenvolveu uma intensa atividade polêmica em favor de sua nova fé. O ponto de partida de Tertuliano é justamente a condenação da filosofia. Para Tertuliano a verdadeira religião funda-se na tradição eclesiástica e, que da filosofia só nascem heresias. Não existe nada de comum entre o filósofo e o Cristo, entre o discípulo da Grécia e o dos céus. Os filósofos são “os patriarcas dos heréticos”. A raiz de todas as heresias está nos filósofos gregos. Valentino, o gnóstico, era discípulo de Platão; Marción, dos Estóicos. Para negar a imortalidade da alma recorre-se aos Epicuristas; para negar a ressurreição da carne, ao acordo unânime dos filósofos. Quando se fala de um Deus-fogo recorre-se a Heráclito. E a coisa mais inútil de todas é a dialética de Aristóteles que serve tanto para edificar como para destruir, e que se adapta a todas as opiniões. (ABBAGNANO, 1969). Em síntese, sua doutrina pode ser resumida em que a verdade do cristianismo funda-se apenas no testemunho da tradição. 3.Segundo Período da Patrística GREGA (APOGEU) A elaboração de uma doutrina sólida sobre o cristianismo e, na defesa da comunidade cristã contra as falsas ideologias heréticas foi continuada e aprofundada nos séculos posteriores. Nesta nova elaboração levam-se em conta não mais os motivos polêmicos, mas a necessidade de construir uma doutrina eclesiástica coerente fundada em Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 19 Aguimaran das Neves Costa, Ricardo Niehues Buss sólida base lógica. E, neste sentido, a filosofia tornou-se ferramenta fundamental. Conforme Abbagnano (1969, p. 156) “o cristianismo apresenta-se como a autêntica filosofia que absorve e leva à verdade o saber antigo, do qual pode e deve servir-se para trazer elementos e motivos para a sua própria justificação”. Este período vai de 200 a cerca de 450 anos d.C., e é primordial para a construção de todo o corpo doutrinal do cristianismo. As esperanças escatológicas das numerosas seitas cristãs que dominava o período precedente veem-se frustradas. Frente ao iminente regresso de Cristo, o trabalho longo e paciente da investigação doutrinal parecia quase inútil e os ritos preparatórios e propiciatórios estavam em primeiro lugar; uma vez esmorecida a esperança da volta de Cristo, a investigação doutrinal torna-se a primeira e fundamental exigência da Igreja no caminho de sua solidez na história. O primeiro impulso da elabopração das bases deste período foi dado pela escola catequística de Alexandria que já existia há muito tempo, mas foi Panteno que em 180d.C. lhe deu características de uma academia cristã, na qual a filosofia grega foi usada para fins apologéticos do cristianismo. Esta escola alcançou o seu apogeu com Clemente e Origenes. (ABBAGNANO, 1969). 3.1 Tito Flávio Clemente Tito Flávio Clemente nasceu por volta do ano 150, em Atenas, e falecido em 215, foi um dos primeiros Padres da Igreja. Apologista, ele se dedicou a esclarecer os pontos de consenso e de dúvida entre a filosofia grega e o nascente cristianismo. Em Alexandria, por volta do ano 180, torna-se discípulo de Panteno e posteriormente padre daquela igreja. Foi colaborador e ajudante de ensino de Patene e, em 203, após a morte deste, passa a substituí-lo na escola catequética. Sua obra literária, encadeada em fases progressivas, pretendia conduzir o leitor do paganismo à religião cristã, da adesão ao cristianismo à disciplina e da disciplina à gnose, fases que correspondiam aos três graus do neoplatonismo: a purificação, a iniciação e a visão. 20 Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega Para Frangiotti (1992, p.36): seu plano apologético pode ser compreendido dessa maneira: primeira etapa: a protrépitca (ou preparação) ou exortação aos gregos, que abre os espíritos à verdade revelada. segunda etapa: a pedagógica (pedagogo), que fornece ao neófito os elementos da verdadeira fé. por fim, a didascália que conduz o crente à verdade perfeita. Na Protrépitca, ou exortação aos pagãos, Clemente, ao mesmo tempo em que apresenta Cristo como arauto e mestre de um novo reino, refuta os cultos pagãos e a imoralidade reinante. Depois, expõe a doutrina cristã da salvação. A segunda etapa, a Pedagógica, compreende três livros e se dirige aos que atenderam à sua exortação e se converteram ao cristianismo. Na terceira etapa, a Didascália, não chegou a ser composta, mas em seu lugar, um conjunto de oito livros, a Stromata conduz o cristão a uma espécie de ciência superior. Boehner e Gilson (1995, p. 34) complementam referenciando que o plano de Clemente é expor as etapas sucessivas pelas quais o Logos deseja conduzir as almas à perfeição. Após uma exortação inicial (Cohortatio), o Logos assume o papel de educador (Paedagogus) para a vida virtuosa; finalmente, Ele nos inicia numa espécie de ciência superior, contida nos “Stromata”. Estas três obras principais formam uma espécie de trilogia. Na concepção de Clemente, a filosofia teve para os gregos o mesmo valor que a lei do Velho Testamento para os hebreus: conduziu-os a Cristo. Ele admite, como Justino, que em todos os homens está presente um “eflúvio divino”, uma “centelha do Logos divino” que lhes faz descobrir uma parte da verdade, ainda que não os tornem capazes de alcançar toda a verdade que só é revelada por Cristo. “Por certo, os filósofos misturaram o verdadeiro e o falso; trata-se agora de escolher entre as suas doutrinas aquilo que é verdadeiro, abandonando o falso, e a fé fornece o critério desta escolha”. (STROMATA apud ABBAGNANO, 1969, p.159). A filosofia deve ser, neste sentido, a serva da fé. Ainda Abagnano (1969, p.159), referenciando-se a Clemente afirma que: Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 21 Aguimaran das Neves Costa, Ricardo Niehues Buss A subordinação da filosofia à fé reside o carácter da gnose cristã. A gnose dos Gnósticos é a falsa gnose porque estabelece entre a filosofia e a fé a relação inversa: se ao gnóstico fosse dado escolher entre a gnose e a salvação eterna, ele escolheria a gnose porque a julga superior a todas as coisas. 3.2 Origenes Origenes nasceu de pais cristãos no ano de 185 em Alexandria. Segundo Marías (2004, p. 121) Origenes era discípulo de Clemente e assim como o mestre, está permeado de influências gregas; reune todo o mundo de ideias que fermentavam no século III em Alexandria. Aristóteles, Platão e os Estóicos, transmitidos, sobretudo, por Filon e os neoplatônicos, são suas fontes. Para Origenes a doutrina da criação tem um significado diverso dos oferecidos pela filosofia grega e pela corrente gnóstica e, dessa forma, marca nitidamente a separação entre o pensamento grego e cristão, pois ele afirma que Deus criou o mundo do nada por um ato de livre vontade.“Assim a criação se opõe claramente a qualquer geração ou emanação”. (MARÍAS, 2004, p.121). Esse foi o período áureo da patrística porque nele houve uma das formulações mais importante do cristianismo, o Credo. Segundo o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica (2005, p.33), o Credo também é conhecido como Símbolo Apostólico e ainda como Símbolo Niceno – constantinipolitano, recebeeste nome porque é fruto dos dois primeiros concílios ecumênicos de Nicéia em 325 e o de Constantinopla em 381d.C. Ainda no Concílio de Nicéia, foi determinado o dia que as igrejas celebrariam a Páscoa, dentre outro assuntos importantes do ponto de vista da elaboração doutrinal dos cristãos. O Catecismo da Igreja Católica (2005) afirma que a síntese da fé conhecida como (Credo) não foi elaborada segundo as convenções humanas, mas extraída da própria Escritura e nela recolheu-se o que existe de mais fundamental para ser, na sua totalidade, a única doutrina da fé. E assim como uma pequenina semente produz abundantes ramos, da mesma forma, este resumo da fé encerra em algumas pala- 22 Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega vras todo o conhecimento da verdadeira piedade contida no Antigo e no Novo Testamento. Eis os pontos centrais do Símbolo de Nicéia: Cremos em um só Deus onipotente (pantokrator= omnipotens), criador (boiete’s= factor) de todas as coisas visíveis e invisíveis. Em um só Senhor, e Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado(genetheis=natus) do Pai, ou seja, da substância (ousia= substantia) do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro: gerado (ghenetos= genitus) e não criado (poiethe’is= factus), consubstancial (homoozisios= consubstantialis) ao Pai, pelo qual todas as coisas foram criadas (eghe’neto= facta sunt), as que existe nos céus e as que estão na terra; por nós e para nossa salvação, ele desceu, se encarnou por obra do Espírito Santo [...] e ao terceiro dia ressuscitou, subiu ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos [...] Creio no Espírito Santo.(CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 2005). No passar do tempo, foi-se incorporando novos termos ao credo; um exemplo disso é o termo Pessoa e o aprofundamento das relações entre as três pessoas (hypostaseis,personae), que só chegariam posteriormente. 4. Fim da Patrística Grega Ao findar a Patrística encontramos uma série de homens, todos importantes, de certo modo, para a escolástica, conforme apresentados por Hirschberger (2011): • Próspero: fiel discípulo de Agostinho, coletor de 392 sentenças do seu mestre; e assim, fundador do gênero literário dos livros das Sentenças; • Cassiodoro: discípulo de Boécio, Cassiodoro, o Senador. Escreveu, além da sua célebre obra histórica e exegética, um compêndio das sete artes liberais (artes liberales), muito usado na Idade Média; • Máximo, o Confessor: com os seus comentários aos tratados pseudo-areopagíticos, abriu caminho para as correntes neoplatônicas; • Isidoro: o trabalho literário de Isidoro de Sevilha foi importante fundo de doutrinas para a Idade Média. Grande influência exerceram as suas Etimologias, uma espécie de enciclopédia que trans- Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 23 Aguimaran das Neves Costa, Ricardo Niehues Buss mite tudo quanto ainda era aproveitável, da antiguidade e da patrística; • Beda: para o mundo anglo-saxônico foi de particular importância, Beda o Venerável, que fecundou a Idade Média, sobretudo com ensinamentos sobre a Natureza. João Damasceno, segundo Abbagano (1969, p.62) desenvolveu suas atividades na primeira metade do século VIII,onde se encerra o período da Patrística Grega. Ao contrário da maioria dos padre gregos que tiraram seus instrumentos conceituais da filosofia de Platão ou dos Platônicos, João Damasceno tira os seus conceitos da filosofia de Aristóteles, por isso gozou de autoridade no oriente quase igual a Tomás de Aquino no Ocidente. Damasceno foi um grande sistematizador; escreveu uma obra que por muito tempo foi referência em sua época na qual contava com três partes, uma era filosófica, outra uma história sobre as heresias e a terceira de cunho teológico doutrinário. Conclusão Após concluir esta pesquisa histórica, percebemos que a fé e a razão tem sua gênese nos primeiros séculos do cristianismo, quando os padres perceberam que havia muita similaridade entre a filosofia grega e o cristianismo. O logos da filosofia grega poderia muito bem ser identificado com o Verbo (logos) de Deus que se fez carne na pessoa de Cristo. Foram três períodos em que se dividiu a Patrística Grega, cada período com suas problemáticas doutrinárias, mas também com o autor, ou autores que mais se destacaram na tentativa de solucionar aqueles problemas. Destacou-se no primeiro período Patrístico o padre Justino que é considerado um dos primeiros padres apologetas de que se têm notícias, também foi ele que iniciou a racionalização da fé, usando para esta finalidade a rica tradição filosófica grega. No segundo período, que é considerado o período áureo da Patrística, observa-se o surgimento de elaborações doutrinais como o “Credo” cristão que doravante passa a ser artigo de fé que deverá ser 24 Revista São Luis Orione - v.1 - n. 4 - p. 11-26 - jan./dez. 2010 A Racionalização da Fé: Uma Abordagem Histórica da Patrística Grega seguido à risca por todo aquele que se afirma cristão. Neste período acontece também dois grandes concílios, um em Constantinopla e outro em Nicéia, que tinham por finalidade ditar doutrinas cristãs sólidas que deveriam ser as bases da igreja, mas também condenar heresias; algumas das quais surgidas no próprio seio da Igreja. Foram autores deste período dentre outros, Tito Flávio Clemente, mais conhecido por Clemente de Alexandria e Orígenes de Alexandria. O terceito e último período é caracterizado pela ausência de novas formulações, pois o poder de criação diminuiu embora ainda sobreviva a atividade erudita que se reduz a complicação de comentários de obras originais onde não há qualquer investigação original. Destaca-se nesse período João Damasceno, que com sua morte finda a Patrística grega. Desse modo, pode-se pereceber claramente que a fé Católica não é uma fé estéril, fruto do imaginário mítico ou de conveções irracionais, mas a fé cristã, desde seus primeiros séculos de existência, foi embasada de forma sólida sendo de fundamental importância o trabalho dos primeiros padres cristãos, que viram na filosofia um poderoso instrumento para esta finalidade. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa: Presença, 1969. V.2 ABBAGNANO, Nicolas. Dicionário de Filosofia. 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