"As alterações hidroeletrolíticas são muito comuns e, apesar de na maioria dos casos serem secundárias a moléstias subjacentes, desempenham um papel importante no tratamento de diversos distúrbios". Introdução Os distúrbios hidroeletrolíticos distribuem-se em dois grupos principais: as variações de volume (hipo e hipervolemia) e as variações de concentração (hiper e hipoosmolaridade). Para compreender esses distúrbios, são necessárias algumas noções básicas sobre a distribuição da água corporal e fundamentos do metabolismo hidroeletrolítico. A água corporal total (ACT) corresponde a aproximadamente 60% do peso corporal e relaciona-se inversamente à quantidade de gordura, devido às propriedades hidrófobas do tecido adiposo. Conseqüentemente, ela encontra-se em menor volume nas mulheres, nos indivíduos obesos e na senectude. A ACT encontra-se distribuída, principalmente, nos compartimentos Intracelular (IC) e extracelular (EC). Este último, por sua vez, subdivide-se nos compartimentos intersticial e intravascular. Do ponto de vista de importância clinica, são considerados apenas estes dois compartimentos (IC e EC). Um terceiro compartimento, chamado de Transcelular, é representado pelo trato gastrintestinal, pelas serosidades (p.ex.: pleura, peritônio) e pelo líquido cefalorraquidiano. Este “Terceiro Espaço” não possui relevância na reserva líquida, mas torna-se importante nos casos de seqüestro hídrico, acumulando líquidos, eletrólitos e proteínas, situação que pode ser observada nos pacientes com obstrução intestinal, peritonite, queimaduras e traumas de partes moles. Apesar da neutralidade entre os diversos compartimentos, no IC predominam os cátions potássio e magnésio e os ânions fosfato, sulfato e proteínas, enquanto que no EC o cátion predominante é o sódio e os ânions são representados principalmente pelo cloreto e bicarbonato. Tabela 01 - Eletrólitos do Espaço Extracelular (EC) Eletrólitos Valores Normais Sódio 135 –145 Potássio 3.5 – 4.5 Cloro 100 –106 Bicarbonato 22-26 Cálcio 4.5-5.5 Magnésio 1.5-2.5 Fósforo 2.5-4.0 O número de partículas osmoticamente ativas em cada compartimento determina sua osmolalidade. Uma vez que o sódio é o principal cátion no EC, ele é utilizado como referência para determinar a Osmolalidade plasmática (Osm): a Osm normal varia de 280 a 300 mOsm/L, o que equivale ao dobro da concentração plasmática de sódio acrescida de 6 a 8 mOsm. A Osm também pode ser determinada pela fórmula: Osm = (2 x Na) + (1/2,8 x Uréia Plasmática) + (1/18 x glicose plasmática) O organismo está permanentemente em busca da Homeostase Hidroeletrolítica. O Balanço Hídrico corporal representa esta tentativa em se manter o equilíbrio entre a água ingerida e a eliminada. A água livre na dieta e aquela presente nos alimentos sólidos representam cerca de 90% do aporte hídrico diário do organismo. Por outro lado, a Água Endógena corresponde àquela produzida pela combustão dos alimentos e responde por apenas 10% do aporte hídrico, mas, nos estados hipercatabólicos, pode chegar a 1.200 mL por dia. A eliminação da água é controlada principalmente pelo hormônio antidiurético (ADH) e este, por sua vez, é estimulado pela hiperosmolaridade. O controle da natremia é feito pelos rins, via aldosterona – que se encontra aumentada nas situações de hipovolemia. Tabela 02 - Balanço Hídrico Diário Ganhos Água endógena Perdas 300 mL Urina 1.500 mL Líquidos livres na dieta 1.200 mL Fezes 100 mL Líquidos em alimentos 1.000 mL sólidos Perdas insensíveis 900 mL Hipovolemia Este é o distúrbio hidroeletrolítico mais comum e caracteriza-se por um estado de hipovolemia e normoosmolaridade decorrente da perda de sangue ou secreções corporais isotônicas. O paciente hipovolêmico apresenta-se adinâmico, com hipotonia muscular, hiporreflexia, Pressão Venosa Central (PVC) baixa, taquicardia e hipotensão postural ou de decúbito. Os sinais periféricos de desidratação tendem a se instalar apenas tardiamente, mas pode-se observar oligúria mesmo nos casos mais brandos. O nível de torpor varia de acordo com a intensidade da hipovolemia e o Choque instala-se quando as perdas alcançam 30-40% da volemia. Laboratorialmente, observas-se aumento do hematócrito, hipocalemia e aumento da relação uréia / creatinina (valor normal = 10:1). Tabela 03 - Causas de Hipovolemia Vômitos Diarréia Fístulas digestivas Aspiração contínua por sonda nasogástrica (SNG) Peritonite Obstrução intestinal Hemorragias agudas Uso de diuréticos Diabetes Melito Queimaduras extensas No tratamento do paciente hipovolêmico, recomenda-se iniciar a reposição com sangue caso o hematócrito seja inferior a 32%. Nas demais situações, podem ser utilizados solução salina a 0,9% ou ringer lactato. Existem diversas fórmulas para calcular o volume hídrico necessário, mas sem dúvida alguma o dado mais seguro para orientar o volume e a velocidade da reposição é o exame freqüente do paciente. A diurese é um dos melhores parâmetros clínicos para avaliar o andamento da reposição, mas não é útil nos casos de choque hiperdinâmico (nestes pacientes, a hiperosmolaridade provoca vasodilatação renal com oligúria tardia). Nos pacientes mais graves, recomenda-se monitorização invasiva por cateter de Swan-Ganz. Obviamente, assim como nos demais distúrbios hidroeletrolíticos discutidos adiante, corrigir a alteração de base (p.ex.: controle do foco hemorrágico ou tratamento da obstrução intestinal nos casos de hipovolemia) é fundamental. O tratamento do choque hipovolêmico foge ao escopo deste artigo. Hipervolemia Em geral, a hipervolemia é iatrogênica (super-hidratação), mas pode ocorrer em pacientes submetidos à reposição volêmica porém com dificuldade para eliminar a sobrecarga hídrica. Tabela 04 - Causas de Hipervolemia Infusão excessiva de líquidos Insuficiência renal Insuficiência cardíaca Insuficiência hepática Insuficiência pulmonar Desnutrição O ganho ponderal é a manifestação clínica mais precoce. Também podem ser observados alterações cardiopulmonares, taquicardia com tendência à hipotensão arterial, aumento da PVC, queda do hematócrito e hipoproteinemia. A natremia em geral encontra-se dentro da normalidade. A abordagem terapêutica da Hipervolemia baseia-se na correção do distúrbio de base (p.ex.: suspender a infusão de soluções endovenosas, corrigir a insuficiência cardíaca congestiva, etc). Hiperosmolaridade Este estado também costuma ser denominado Hipertonicidade ou Hipernatremia e decorre (a) da perda excessiva de água em relação à perda de sódio, (b) do aumento de solutos em relação ao ganho de água ou (c) do aumento de solutos associado à perda de água. O cenário clínico mais comum da Hiperosmolaridade é a Desidratação Verdadeira, mas esta alteração hidroeletrolítica também pode ser encontrada em paciente com diabetes insipidus ou sobrecarga de solutos. Tabela 05 - Causas de Hiperosmolaridade Privação hídrica Febre alta e prolongada Outros estados de sudorese profusa Diabetes melito Diabetes insípido Outros estados de diminuição dos níveis de ADH Reposição hídrica insuficiente Superdosagem de diurético osmótico Nutrição parenteral total Hiperfunção da adrenal Síndrome de Cushing Hiperaldosteronismo Taquipnéia As manifestações mais freqüentes da hiperosmolaridade são sede intensa, febre, confusão mental (podendo evoluir para coma), perda ponderal, pele seca e quente, língua geográfica, densidade urinária reduzida e hemoconcentração. O tratamento é feito com solução glicosada a 5%. Nos pacientes com hiperglicemia, recomenda-se solução salina a 0,45%. O volume a ser reposto pode ser definido por diversas fórmulas (TABELA 6). Deve-se infundir metade do valor encontrado nas primeiras 24h e o restante nas 48h seguintes, sempre respeitando o limite de 100 ml/Kg/dia. Havendo hipernatremia sem sinais de desidratação, deve-se diminuir a oferta de sódio por via oral ou parenteral. Pacientes com Diabetes Insipidus devem receber reposição de ADH (p.ex: 01 a 02 gotas instiladas por via nasal de 8/8h). Tabela 06 - Fórmulas para Cálculo do Déficit de Volume no Estado Hiperosmolar a) Déficit de volume = (0,6 x peso corporal em Kg) x (1 – 140/natremia) b) Déficit de volume = 84 x peso corporal em Kg / natremia Hipoosmolaridade Este estado também costuma ser denominado Hipotonicidade ou Hiponatremia e, na maioria dos casos, resulta de uma sobrecarga hídrica associada a um distúrbio de excreção. Boa parte dos pacientes com hiponatremia (sódio plasmático abaixo de 134 mmol/L) não possui deficiência de sódio, mas excesso de líquidos (hiponatremia dilucional). Tabela 07 - Causas de Hipoosmolaridade Hiponatremia dilucional (é a mais comum) Insuficiência hepática Insuficiência cardíaca Insuficiência renal Desnutrição Síndrome de secreção inapropriada do ADH Pneumopatia aguda Hemorragias graves Uso de diuréticos sem restrição hídrica Cirrose Hepática Neoplasias Hiperglicemia Diarréia Uso de drogas que aumentam a excreção de ADH (p.ex.: meperidina, indometacina, ciclofosfamida, carbamazepina) A Hipoosmolaridade costuma ser oligo ou mesmo assintomática, com manifestações clínicas ocorrendo apenas nos casos de hiponatremia severa de instalação abrupta. Mesmo assim este é um diagnóstico difícil e exige um alto índice de suspeição por parte do médico assistente. Podem ser observados cefaléia, irritabilidade, distúrbios da personalidade, delírios, alucinações, ataxia, hipo/hiperrreflexia, afasia, midríase paralítica, convulsões, vômitos, bradicardia, apnéia, edema, oligúria e aumento do peso corporal. A presença de insuficiência renal sugere um prognóstico sombrio. As manifestações neurológicas são as mais importantes e, em alguns casos agudos e severos, pode ocorrer uma complicação grave denominada Mielinólise Pontina Central (MPC). Pacientes com MPC apresentam perda seletiva da bainha de mielina nos neurônios localizados na porção mais central da ponte. Este evento é mais comum em alcoólatras e manifesta-se com ausência de resposta ao estímulo doloroso, incapacidade de falar ou deglutir apesar do estado alerta, flutuações do nível de consciência, convulsão, hipotensão, paralisia pseudo-bulbar ou mesmo quadriplegia flácida. A MPC também pode decorrer da correção excessivamente rápida de um estado hiponatrêmico crônico. A abordagem terapêutica da Hipoosmolaridade deve ser iniciada descartando-se a pseudohiponatremia e isto pode ser feito utilizando-se a determinação da osmolaridade plasmática. Pacientes com hiponatremia e hiperosmolaridade apresentam pseudo-hiponatremia por aumento dos níveis circulantes de glicose. A hiponatremia associada a osmolaridade normal decorre do excesso de lipídios ou proteínas. Na maioria dos casos de hiponatremia, porém, a osmolaridade encontra-se diminuída. Nos pacientes com Hiponatremia Hipoosmolar deve-se inicialmente procurar corrigir o distúrbio de base (p.ex.: ressuscitação volêmica com soluções salinas isotônicas para o choque hipovolêmico, tratamento da diarréia, etc). Nos casos suspeitos de SIADH, indica-se reposição de sódio via SNG em doses fracionadas – a infusão endovenosa pode acentuar a poliúria e agravar o quadro. A tetraciclina pode ser empregada para bloquear o ADH. Sendo necessário repor sódio, o déficit deve ser calculado segundo a fórmula abaixo. Repõe-se metade e então se repete o ionograma. Muitos autores recomendam iniciar imediatamente a reposição nos casos de natremia < 118 mEq/L, mas esta reposição deve ser igualmente cautelosa, lenta e parcial. Déficit de Sódio = (Na normal – Na do paciente) x (0,6 x peso corporal) Conclusão A abordagem dos distúrbios hidroeletrolíticos pode ser feita a partir de alguns passos elementares: anamnese e exame físico detalhados e direcionados para avaliação da volemia e análise laboratorial incluindo ionograma, osmolaridade plasmática e osmolaridade urinária. Os resultados advindos destes passos freqüentemente bastam para guiar o tratamento. Palavras-Chave: hidroeletrolítico; hipovolemia; hipervolemia; osmolaridade; hiponatremia; hipernatremia Referências Bibliográficas 1. Abraham A, Jacob CK. Severe hyponatraemia: current concepts on pathogenesis and treatment. Natl Med J India 2001 Sep-Oct;14(5):277-83 2. Fall PJ. Hyponatremia and hypernatremia. A systematic approach to causes and their correction. 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