Elizabeth Tabak de Bianchedi Elizabeth Tabak de Bianchedi Neste trabalho, vou considerar o conceito de evolução na obra de Bion, além de me ocupar de sua evolução pessoal como pensador e do que esta pode significar para nós, como aspiração/inspiração da nossa evolução. Não é a primeira vez que escrevo sobre esse tema, porém insisto em fazê-lo porque o considero de grande importância para a discussão e para a análise (tanto conceitual quanto terapêutica). A palavra evolução tem múltiplas definições. Bion utiliza o termo muitas vezes e em distintos sentidos: fala-nos da evolução de um enunciado e de sua não-evolução, da evolução da situação analítica, da evolução da realidade última, por ele chamada O, assim como dos as- pectos evoluídos e não-evoluídos de O, etc. Aparentemente esse termo aparece em sua obra, pela primeira vez, em Experiencias en Grupo (1948), no capítulo 4. Lá, usa-o no sentido de que um grupo de terapia não inicia nem termina em determinada hora, mas as questões do grupo que lhe interessam continuam e evoluem. (Aqui, o sentido do termo parece ser de desenvolvimento.) Depois, menciona-o em Transformaciones (1965), basicamente referido às evoluções das potencialidades de O, e também às evoluções de um enunciado, e de sua leitura na Grade. Menciona-o em muitos de seus comentários de 1967a sobre seus artigos republicados em Volviendo a Pensar, especialmente nos parágrafos de El Mellizo Imaginário (1950), Sobre la Alucinación (1958), Arrogancia (1957) e Ataques al Vincular (1959); depois, em seu texto Notas sobre la Memoria y el Deseo e suas respostas aos comentários sobre esse artigo (1967b); também se encontra, muitíssimas vezes, em Atención e Interpretación (1970), assim como em alguns de seus trabalhos posteriores. Em quase todas essas citações, o sentido do termo é o do surgimento ou da emergência de aspectos de O na sessão analítica e a capacidade do analista de captá-los e transformá-los. Como parte desta introdução, agora incluirei definições de diversos dicionários do que se pode entender pelo termo evolução, para logo após tratar de analisar o sentido de hipótese definitória usado por Bion. Entre os vários significados do termo evolução, encontram-se: 1) ação e efeito de evoluir; 2) desenvolvimentos das coisas ou dos organismos, por meio dos quais passam gradualmente de um estado geralmente mais simples a um outro mais complexo; 3) movimento ou manobra que fazem as tropas, ou os navios, passando de umas formações a outras, para atacar ou se defender do inimigo; 4) (fig.) mudança de conduta, de propósitos, ou de atitude; 5) (fig.) desenvolvimento ou transformação das idéias ou das teorias; 6) transformação; 7) (Filos.) hipótese que pretende explicar todos os fenômenos cósmicos, físicos e mentais, por transformações sucessivas de uma só realidade primei- No dicionário de Filosofia de Ferrater Mora (1958), consta que evolução equivale a desenvolvimento, isto é, des-envolvimento do que estava envolto, um des-cobrir o que estava coberto. Nesse sentido se fala de evolução para significar o desenvolvimento ou o crescimento gradual, ou contínuo, de algo que estava em gérmen; a manifestação e realização completa do oculto e latente – o que também pode configurar um incessante devir. E isso, tanto se o gérmen é concebido como algo no qual já se encontra o que tem que se desenvolver quanto se é suposto que o desenvolvimento implica uma contínua e crescente novidade. Há duas posturas distintas a respeito disso: uma com um fundamento de base biológica, outra relacionada aos conceitos, às imagens mentais ou às idéias a partir de um conceito que os contém em potência1. Qual é, ou quais são as posições de Bion com relação à evolução de O? Provavelmente todas elas, com relação ao descobrimento, ao devir do oculto ou latente, às pré-concepções e aos conceitos. Com relação ao formal, o termo alude ao caráter explícito ou implícito de uma noção ou de um conceito. Com relação ao biológico, é somente a partir do final do século XVIII que se começa a usar o termo evolução em um sentido que, partindo do orgânico, é pouco a pouco aplicado ao universo inteiro. Diga-se de passagem que, em seu sentido filosófico mais original, o conceito de evolução é, em realidade, aristotélico, formulado por ele como um progresso em direção ao supremo bem, embora não pareça que Bion o estivesse utilizando nesse sentido. C. Darwin (1809-1882), autor da Teoria de la Evolución (1859), com 1. No original en potencia, que pode ser traduzido por em potencial; mas também pode significar em potência, na filosofia aristotélica, que é a potencialidade existente em uma coisa de passar a outro estado. (Nota do Tradutor = NT) Elizabeth Tabak de Bianchedi ra, submetida a perpétuo movimento intrínseco, em cuja virtude se passa do simples e homogêneo ao composto e heterogêneo; 8) (Biol.) a) doutrina que sustenta que todas as formas de vida se originaram de formas preexistentes mais rudimentares e b) série de mudanças pelas quais um organismo adquiriu suas características fisiológicas e estruturais. suas hipóteses sobre a seleção natural, a sobrevivência do mais apto, etc., fez formulações que penetraram na filosofia, na moral e no mundo social e histórico. Todavia, independentemente de Darwin, e com antecedência a ele, Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês, pensava que a mudança da homogeneidade em heterogeneidade era o mais importante, acrescentando a lei da multiplicação dos efeitos como chave da compreensão de todas as evoluções – cósmicas, físicas e também biológicas (por exemplo, os gases se combinam para formar planetas, a terra dá nascimento a animais simples como as amebas, o homem evolui de espécies menos complexas e vive primeiro em hordas indiferenciadas, desenvolvendo posteriormente diversas funções sociais, de modo a haver sacerdotes, reis, trabalhadores, etc.; a poesia se cinde da música e a pintura do drama, de sorte que surgem diversas artes; o próprio conhecimento se diferencia em diversas ciências). Foi (de acordo com o comentário que a Encyclopaedia Britannica [1963] faz sobre sua obra) o profeta da evolução e do progresso, aplicando também o conceito biológico de evolução a suas teorias sociológicas. Deve-se assinalar que Spencer, ainda que tenha nascido um pouco mais tarde, publicou suas idéias sobre a evolução biológica antes de Darwin. No entanto, sua postura é pouco otimista: depois de chegar a estágios finais de integração sobrevém, segundo Spencer, a dissolução; posteriormente, talvez comece uma nova forma de integração. Podemos indagar-nos se a complexa idéia de evolução de Bion não está bastante próxima dessa conceituação dialética. Aparentemente Bion nunca cita Spencer, mas sim Darwin. Recordemos que para Darwin a evolução biológica é aleatória e se produz por mudanças/saltos bruscos no indivíduo, e não por processos de multiplicação e depois divisão dos efeitos, como sugere Spencer. No entanto, tenho a impressão de que Bion é mais otimista do que Spencer, porque supõe que nós, seres humanos, progredimos em nosso conhecimento e manejo do infinito ou ilimitado universo (interno e externo), sempre que conseguirmos (conseguiremos?) sobreviver aos nossos ataques ao mundo externo e interno. Agora, quero que sigamos perguntando-nos o que Bion quer dizer com 2. No programa do evento “Bion 2004”, meu trabalho apareceu denominado como Evolução em Y de Bion, erro tipográfico que me permitiu, na apresentação, falar das evoluções com maior ou menor crescimento mental. Elizabeth Tabak de Bianchedi evolução de O – a saber, a evolução da realidade última, primeira, fundamental, elementar ou essencial, a verdade absoluta, a divindade, a coisa em si mesma (distintas formas de se referir a O) – que pode chegar à nossa mente pensante, intersectando-se e gerando transformações. Aparentemente, como nos diz em Atención e Interpretación (cap.11, p.103, da versão inglesa), surge da geração em O, que está diante do pensador em um estado de evolução e que, desde a perspectiva do mesmo, é um domínio ou sistema não-humano – de pensamentos ainda sem pensador. O impacto do domínio O em evolução está sinalizado por sentimentos persecutórios, no domínio do pensador; esse poderá hospedá-los/alojá-los/ contê-los (se tiver suficiente paciência), e dessas vicissitudes dependerá a saúde e o crescimento mental, ou os seus transtornos, se não as suportar. Como comentário ao tema do crescimento mental que aparece na fórmula do objeto psicanalítico como (+ -)Y2, creio que é, ao meu entender, um fator fundamental para uma avaliação das evoluções de O. Bion pensa que em todo objeto (material ou imaterial) reside a realidade incognoscível, a coisa em si mesma, o númeno. Deles emanam qualidades emergentes ou características em evolução que causam impacto na personalidade humana, como fenômenos, qualidades das quais o sujeito pode dar-se conta, consciente ou inconscientemente. Shermer (1998), em seu trabalho Building on O, Bion and Epistemology, publicado em Building on Bion: roots and branches, sugere que os elementos beta são mensageiros de O (das coisas em si mesmas), em forma ainda não metabolizada pelo continente da função alfa. Para Grotstein (1981), essas emanações de O, e seu devir em nós, estão em relação direta com o registro do real (Lacan) e o Dasein e a aletheia formulados por Heidegger. Creio ser importante diferenciar (como o faz Bion no capítulo 9 de “Atención e Interpretación”) O (realidade psíquica, não sensorial...) e O R (realidade externa, captada sensorialmente). O que nos interessa, como psicanalistas, é a evolução de O . Ambos O são infinitos e incognoscíveis. O evolui em pensamentos ainda sem pensador, pensamentos selvagens, idéias flutuantes, as quais podemos/devemos tornar sensoriais (pensamentos pensados e formulações verbais, matemáticas, ou artísticas, publicáveis e tornadas públicas mediante representações e linguagens) quando entram em intersecção com nossa mente pensante. No entanto, não são racionais. Quase ao contrário, são loucos, vazios e infinitos... e geralmente os rechaçamos como se não fossem nossos, os evacuamos projetivamente ou os reprimimos. Como diz Bion, faz falta um gênio, um indivíduo excepcional, para manejar os conteúdos psicóticos ou primitivos que nos chegam desde O e promover o crescimento e a vida. A evolução de O porém existe, e a atitude mental de sem memória, sem desejo, sem compreensão, pode favorecer, através da intuição, a tolerância dessa evolução e sua posterior transformação em algo novo e criativo. Evidentemente, com respeito a O, é necessário cotejar, diferenciar ou correlacionar o problema ontológico e o epistemológico. O problema ontológico se refere à essência ou à realidade, e o epistemológico à nossa possibilidade de conhecimento da mesma. Bion parece estar tratando de ambos, sem diferenciá-los: fala de O como a realidade última, incognoscível (ponto de vista ontológico), porém também fala de uma evolução de O que, ao se intersectar com a mente do ser humano, gera algum tipo de conhecimento (ponto de vista epistemológico) transitório e não determinado. A revelação, o des–cobrimento em at-one-ment (comunhão), a transformação de K em O, parece, então, ser um encontro com a coisa em si; porém não podemos, por definição, saber a respeito dela. E toda formulação que dela façamos será falsa (isto é, limitada, transitória, diferente dessa coisa em si), ainda que, desejavelmente, não seja uma mentira. A idéia messiânica formulada por Bion é um termo que representa O no ponto em que sua evolução e a evolução do pensador se intersectam. Essa intersecção implica sempre uma encruzilhada para o sujeito, uma decisão – não necessariamente consciente – sobre o vínculo predominante (L, H ou K, ou os negativos desses). Elizabeth Tabak de Bianchedi Agora falemos da evolução na e da sessão analítica. A intuição pode permitir que subitamente se precipite, como se fosse um sonho repentinamente sonhado, uma massa de fenômenos aparentemente não relacionados, e incoerentes, dando-lhes significação e coerência. Obviamente, a mente aberta do analista, livre de recordações e desejos, pode estar em condições de captar isso, que sendo obscuro e sem forma, originalmente sem realização sensorial, pode agora publicar – pôr em palavras. São casos de evolução de O e podem permitir, ao analista que as suporta, intuir as alucinações e os fenômenos primitivos ou psicóticos que emocionalmente estão presentes e fazer a transformação de O em K. Bion postula, com insistência, sua crescente capacidade de observar a evolução da situação analítica e nos convida a tentar fazer o mesmo. A evolução de Bion e de suas idéias dá um salto importante quando ele começa a formular a idéia de O e sua evolução (da última parte de seu livro Transformaciones em diante e provavelmente já antes, em seu artigo “Cambio catastrófico”, de 1966, nunca publicado como tal e que aparece como capítulo 12, com alguns acréscimos, como Continente y Contenido Transformados, na obra Atención e Interpretación”). Bion deixou para trás o positivismo lógico para embarcar em uma viagem que se poderia chamar de mística, viagem que continuará em toda a última parte de sua obra, culminando em Una Memoria del Futuro (1979b). Essa evolução epistemológica está também correlacionada a uma importante evolução técnica – relacionada ao descobrimento e à insistência de que a memória, o desejo, e a tendência à compreensão interferem nas transformações em O, na evolução de O e no crescimento mental. Também podemos registrar um desenvolvimento-evolução em algumas de suas teorias, com a idéia da cesura e a conjetura da presença de vestígios de processos mentais fetais em nosso funcionamento mental. Essas novas idéias substituem o que ele antes teorizava como parte psicótica da personalidade. Seu estilo de comunicação escrita e verbal (os muitos seminários que deu nos últimos anos de sua vida) se fez menos crítico, ainda que persistam a ambigüidade e a tendência a fazer o leitor ou ouvinte pensar e descobrir em si mesmo e na própria prática. O uso de uma linguagem de alcance e a capacidade negativa podem registrar-se ao máximo em Una Memoria del Futuro. Penso que sua própria evolução é ao infinito, sem limite... E encontros como este a favorecem e a estimulam também em nós. Neste trabalho, são nomeadas e discutidas diferentes definições do termo “evolução”, incluindo as posições de Darwin e Spencer. Bion utiliza o termo muitas vezes, especialmente quando se refere à evolução de O (sua designação para realidade última, para verdade absoluta, para a coisa-em-si, etc.). O R (realidade externa) e O psi (realidade psíquica) são diferenciados e também o impacto dessa evolução na mente do pensador. A intersecção dessas realidades pode gerar crescimento mental ou o oposto. Ao final do trabalho, é comentada a evolução das idéias e teorias de Bion. Evolução de O. Realidade Externa. Realidade Psíquica. Crescimento. Mente. Evolution on and of Bion In this paper different definitions of the term “evolution” are mentioned and discussed, including Darwin’s and Spencer’s positions. Bion uses this word often, especially referring it to the evolution of O (his name for ultimate reality, absolute truth, the thing-in-itself, etc.). O R (external reality) and O psi (psychic reality) are discriminated, and the impact of this evolution in the thinkers mind. Their intersection can generate mental growth or its opposite. At the end of the paper, the evolution of Bion’s ideas and theories is comented on. Evolution of O. External Reality. Psychic Reality. Growth. Mind. Evolución de O. Realidad Externa. Realidad Psíquica. Crecimiento. Mente. BION, W. (1948). Experiencias en Grupo. Buenos Aires: Páidos, 1972. ______. (1962). Aprendiendo de la Experiencia. Buenos Aires: Páidos, 1966. ______. (1963). Elementos del Psicoanálisis. Buenos Aires: Hormé, 1966. ______. (1965). Transformaciones. Buenos Aires: CEDAL, 1972. ______. (1967a). Volviendo a Pensar. Buenos Aires: Hormé, 1977. ______. (1967b). Notas sobre la Memoria y el Deseo. 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Bion utiliza el término en muchas oportunidades, sobre todo para referirse a la evolución de O (su nombre para la realidad esencial, la verdad absoluta, la cosa en sí misma, etc.). Se discrimina O R (realidad externa) de O psi (realidad psíquica) y el impacto de esta evolución en la mente del pensador. Su intersección puede generar crecimiento mental o su contrario. En la última parte del trabajo, se comentan las evoluciones de las ideas y teorías de Bion. Real Academia Española, 1956. SHERMER, V. (1998). Building on O, Bion and Epistemology. In: LIPGAR, R.M.; PINES, M. (Ed.) Building on Bion: roots and branches. London: Kingsley, 2003.