REFLEXÕES ACERCA DA CONTRATRANSFERÊNCIA NA COORDENAÇÃO DE GRUPOS EM INSTITUIÇÃO DE SAÚDE MENTAL Carolina Mendes Cruz Ferreira1 Manoel Antônio dos Santos2 INTRODUÇÃO Com o advento da Reforma Psiquiátrica brasileira surgiu a necessidade de reestruturação do modelo assistencial em saúde mental. Nesse contexto de mudança, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) assumiram papel estratégico no cuidado com indivíduos com transtornos mentais graves e persistentes, em uma tentativa de diminuir a lacuna de serviços extra-hospitalares existente (Campos, 1997; Amarante, 2001; Delgado, Gomes, & Coutinho, 2001). Nesse sentido, busca-se construir um espaço terapêutico promotor de desenvolvimento humano e facilitador do processo de reabilitação psicossocial. Orientações do Ministério da Saúde (Portaria 224/92, de 2001; Portaria nº 336/GM, de 2004) e tendências mundiais das reformas psiquiátricas preconizam a utilização da modalidade de atendimento grupal. Essa, se configura como estratégia valiosa em tais serviços, por sua eficácia comprovada na produção de novos modos de vinculação (Osório, 2007). Apesar da origem relativamente recente, sua inserção no trabalho em saúde mental, especialmente nas instituições públicas, tem se expandido em ritmo acelerado (Guanaes & Japur, 2001; Bechelli & Santos, 2004). Bion (1970) trouxe contribuições fundamentais para a grupoterapia. De acordo com o autor, o grupo funcionaria em dois níveis: um, consciente e outro, insconsciente, que oscilam 1 Aluna do curso de graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da FFCLRP-USP (CNPq). Estagiária do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) de Ribeirão Preto. 2 Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da FFCLRP-USP (CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. 1 no decorrer do acontecer grupal. Enunciou a função continente do grupo, aludindo a um processo ativo a partir do qual cria-se um campo propício para emergirem as projeções de conteúdos conflituosos. As interações nesse quadro desvelam-se sob um intenso clima emocional, por vezes caótico, do qual o terapeuta é parte indissociável (Grinberg, Sor, & Bianchedi, 1973). Nesse complexo enquadre grupal atuam os fenômenos transferênciais e contratransferenciais, que aparecem entrecruzados. Há uma farta discussão na literatura acerca desse par dialético e seu papel na prática grupal de fundamentação psicanalítica. Os termos passaram por marcada evolução conceitual, transformando-se de falha a ser resolvida pelo terapeuta (Freud, 1915) em indispensável ferramenta terapêutica (Smith, 2000; Luz, Keidann, & Dal Zot, 2006). Money-Kyrle (1996) considera que o terapeuta se envolve emocionalmente com os conflitos de seus pacientes em razão de dois impulsos básicos: o reparativo e o parental, ligados aos aspectos do self primitivo do paciente. O parental ganha destaque, pois permite ao terapeuta identificar aspectos primitivos de seu próprio self, ao assumir a posição de figura parental no grupo. Dessa identificação parcial surge a possibilidade de empatia, isto é, o afloramento da sensibilidade ao outro que é estreitamente vinculado às manifestações contratransferenciais. Contudo, há períodos de não-compreensão nessa situação ideal, já que o terapeuta não é onisciente e está sujeito a falhar. Em tais momentos de tensão é comum a irrupção do medo de resvalar na loucura ou no descontrole sobre os pensamentos e fantasias, sobretudo quando se trabalha com pacientes portadores de transtornos mentais graves. Porém, são justamente a fantasia – e sua irmã gêmea, a imaginação – os embriões do pensamento criador (Bleger, 1993). Uma detida reflexão e análise das manifestações desencadeadas no campo grupal são fundamentais para que a capacidade terapêutica não fique bloqueada e o processo de tratamento paralisado. 2 Feitas tais considerações, o presente estudo teve como objetivo refletir sobre a função de coordenação de grupo terapêutico no âmbito de um CAPS, elegendo como foco fenômenos contratransferenciais suscitados no contato com o sofrimento psíquico. CASO CLÍNICO Para alcançar o objetivo proposto, adotou-se o referencial metodológico de estudo de caso que, de acordo com Yin (2005), é uma estratégia de pesquisa que permite investigar eventos a partir de intervenções no contexto de vida real em que os fatos ocorrem. Os dados coligidos foram sistematizados e analisados a partir do princípio da livre inspeção (Trinca, 1984). O material apresentado é proveniente de um grupo realizado no âmbito do CAPS II de Ribeirão Preto, aqui tomado como o caso a ser investigado. Trata-se de um grupo aberto e de composição mista, do qual fazem parte nove pacientes com idades entre 37 e 60 anos. Três terapeutas trabalham em esquema de cocoordenação. Ocorreram sessões semanais, com duração de 60 minutos. Apesar de terem diagnósticos nosológicos distintos, os pacientes compartilham os efeitos do estigma proveniente do rótulo de “doentes mentais” que carregam. Esse fato consolida o sentimento de pertencimento ao grupo e intensifica o oferecimento de apoio mútuo, que funciona como pilar de sustentação do campo grupal. A fala de M. corrobora essa afirmação “Essa aqui é a minha turma. Isso é que importa.” Os conteúdos emergentes no acontecer grupal, por vezes desconexos e sempre carregados emocionalmente, suscitaram intensas manifestações contratransferenciais na terapeuta. Nessas ocasiões, o não-saber adquiriu caráter angustiante, bloqueando as capacidades de pensar e agir terapeuticamente. Frente a essa nova e complexa tela desconhecida, o medo de cair na loucura tornou-se paralisante, sobretudo ao identificar nos relatos angústias humanas básicas, permitindo a identificação com sofrimentos basais dos 3 pacientes. Ao medo da solidão, inerente à incomunicabilidade, é dada aqui destacada relevância. O distanciamento do outro faz do transtorno mental refúgio contra a solidão absoluta. Nas palavras de S.: “Eu não tenho mais amigos, só tenho as vozes”. Esse isolamento aparece como couraça invisível que aprisiona e, ao mesmo tempo, impermeabiliza contra a dor. A ambivalência na relação com a condição de ser diferente é envolta por sofrimento, amplificado pela incompreensão alheia. Como mostra a fala de M.: “A gente não pode nada. Não posso nem conversar com a minha maritaca quando estou feliz, já acham que estou louca.” Buscando alívio para a dor da condição de existir e almejando a cura, chama a atenção o olhar nostálgico dirigido ao passado. A “vida de antes” é idealizada como boa e sem problemas e há o desejo de retomá-la. Como coloca R.: “Minha vida era boa. Dos 15 aos 22 anos eu não mudaria nada.” Não raro, as falas despertavam na terapeuta o desejo de cessar a desmedida dor dos pacientes, curando-os e lhes devolvendo a suposta vida boa de outrora. Desse lugar nostálgico, o grupo evoluiu para uma posição de reconhecer que o condão da cura não reside nos profissionais, e que nem sempre é um desfecho garantido. Nesse momento, o abandono da atitude onipotente e a redução do narcisismo foram fundamentais para que as manifestações contratransferenciais pudessem ser utilizadas como ferramenta auxiliar na compreensão dos fenômenos grupais. As recomendações de Bion tomaram novo sentido, no que se refere à atuação sem desejo e sem memória. Tal recomendação carrega em si um inquietante desafio. Indica, em última instância, que o terapeuta não é portador das diretrizes e verdades que guiam o paciente à cura. Sem essa reflexão é impossível estabelecer um campo eficiente de ação que promova o crescimento emocional. Nesse contexto, o paciente pode assumir o lugar de agente de sua própria mudança (Bechelli, & Santos, 2002). A interação e apoio recíproco entre os membros do grupo 4 consolidam a união em torno de um objetivo comum: aprender a conviver com o que não se conhece em si mesmo. Desse modo, os próprios pacientes contribuem para que o arraigado modelo biomédico seja rompido e novos paradigmas possam ser estabelecidos. CONSIDERAÇÕES FINAIS As reflexões tecidas nesse estudo apontam para a importância do manejo das manifestações constratransferenciais no trabalho com grupos. Com pacientes em intenso sofrimento psíquico, tal fenômeno adquire caráter peculiar, fazendo emergir o receio da perda de controle sobre pensamentos e fantasias próprios. Dessa forma, é imprescindível empreender uma análise capaz de delimitar conteúdos fundamentais para apropriação da contratransferência enquanto ferramenta de atuação do terapeuta. É necessário elaborar sólidas reflexões quanto aos limites pessoais e profissionais do trabalho na saúde mental. Tal movimento desvela um rico campo potencial, intermediário entre a onipotência de curar e a impotência suscitada pela frustração desse desejo, o que pode paralisar a capacidade de trabalho nesses contextos ou convocar o coordenador a reinventar sua prática. REFERÊNCIAS Amarante, P. (2001). Loucos pela vida: A trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz. Bechelli, L. P. de C., & Santos, M. A. (2002). Psicoterapias de grupo e considerações sobre o paciente como agente da própria mudança. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 10(3), 383-391. Bechelli, L. P. de C., & Santos, M. A. (2004). Psicoterapia de grupo: como surgiu e evoluiu. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 12(2), 242-249. 5 Bion, W. R. (1970). Experiência com grupos: Os fundamentos da psicoterapia de grupo (W. I. de Oliveira, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. Bleger, J (1993). Temas em Psicologia: entrevista e grupos (R. M. M. de Morais, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. Brasil. 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