Texto 1 - A constituição do pensamento cristão: ‘o cristianismo como filosofia revelada’ “.....Visto que a filosofia continua a ser considerada, então, como uma realidade distinta da fé cristã, é possível escrever a sua história, isto é, a história do que os primeiros cristãos pensaram a respeito dela” (E. Gilson) Desde o século II d.C., os escritores cristãos, denominados apologistas porque se esforçaram para apresentar o cristianismo sob uma forma compreensível ao mundo grecoromano, utilizaram a noção de Lógos para definir o cristianismo com filosofia. Os filósofos gregos, dizem eles, até aqui possuíram apenas frações do Lógos1, isto é, elementos do Discurso verdadeiro e da Razão perfeita, mas os cristãos estão na posse do Lógos, isto é, do Discurso verdadeiro e da Razão perfeita encarnada em Jesus Cristo. Se filosofar é viver conforme a Razão, os cristãos são filósofos, já que vivem conforme o Lógos divino2. Essa transformação do cristianismo em filosofia há de acentuar-se ainda em Alexandria, no século III, com Clemente de Alexandria3, para quem o cristianismo, revelação completa do Lógos, é a verdadeira filosofia, aquela que “nos ensina a conduzir-nos de modo a nos assemelhar a Deus e a aceitar o plano divino como princípio diretor de toda nossa educação”. Assim como a grega, a filosofia cristã há de apresentar-se a um só tempo como discurso e como modo de vida. Na época do nascimento do cristianismo, nos séculos I e II, o discurso filosófico, de maneira preponderante, tomara nas várias escolas, como vimos, a forma de uma exegese dos textos dos fundadores. O discurso da filosofia cristã será, também e muito naturalmente, exegética, e as escolas de exegese do Antigo e do Novo Testamento, como as que o mestre de Clemente de Alexandria ou ainda o próprio Orígenes tinham aberto em Alexandria, oferecerão um tipo de ensinamento igualmente análogo ao das escolas filosóficas contemporâneas. Do mesmo modo que os platônicos propunham um curso de leitura dos diálogos de Platão que corresponderia às etapas do progresso espiritual, os cristãos, como Orígenes, farão seus discípulos lerem na ordem o livro bíblico de Provérbios, o 1 Justino, Apologia, II, 8, 1 e 13, 3 (cf. ª Wartelle, Saint Justin, Apologies. Intr., texte, trad. e comm. Paris, 1987) Id., ibid., I, 46, 3-4. 3 Clemente, Stromáteis, I, 11, 52, 3 (trad. Mondésert, Cerf, collection Sources chrétiennes, abreviado SC na notas seguintes). Veja-se também o interessante texto de Gregório Taumaturgo, Agradecimento a Orígenes, que descreve a escola de Orígenes como uma escola filosófica tradicional, com o amor entre mestre e discípulo, os exercícios dialéticos, mas também a submissão da filosofia à teologia cristã. 1 2 Eclesiastes4 e depois o Cântico dos Cânticos, que correspondem respectivamente, segundo Orígenes, à ética, que proporciona uma purificação prévia, à física, que ensina a desvencilharse das coisas sensíveis, e à epóptica ou teologia, que leva à união com Deus 5. Vislumbra-se aqui que a leitura “espiritual” em estreita relação com o progresso da alma. A noção filosófica de progresso constitui o arcabouço da formação e do ensinamento cristãos. Como o discurso filosófico antigo para o modo de vida filosófico, o discurso filosófico cristão é um meio de realizar o modo de vida cristão. Leituras complementares CHÂTELET, François. A Filosofia Medieval. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. p.15-55: Helenismo e Cristianismo GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.XV-XXII. HADOT, Pierre. O cristianismo como filosofia revelada. In: ____. O que é a filosofia antiga?. São Paulo: Loyola, 1999, p.333-354. LARA, Tiago Adão. A Patrística. In: _____. A Filosofia nos tempos e contratempos da cristandade. Petrópolis: Vozes, 1999. p.17-30 LOYN, H.R.(org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. p.V-VIII. REALE, G. e ANTISERI, D. História da Filosofia; Patrística e Escolástica. São Paulo: Paulus, 2003.cap. 1. p.3-24 SPANNEUT, Michael. Os padres da Igreja. São Paulo: Loyola, 2002, 2v. 4 Qohélet/O-que-sabe. Eclesiastes, poema sapiencial, transcriação de Haroldo de Campos, São Paulo, Perspectiva, 1991 (Signos, 13). 5 Orígenes, Commentaire sur lê Cantique des Cantiques, Prologue, 3, 1-23. Ed. Et trad. L. Brézard, H. Crouzet et M. Borret. Paris, SC, 1991, t. I, pp. 128-143; cf. I. Hafot, “Intoduction” a Simplício. Commentaire ser les Catégories. Fasc. I. Leyde, 1990, pp. 36-44. 2