— dezembro 2013 QUALIDADE DO LEITE marcos Veiga dos santos Professor Associado da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia Universidade de São Paulo Coordenador do Qualileite-FMVZ-USP – Laboratório de Pesquisa em Qualidade do Leite www.qualileite.org CCS muito baixa: problema ou solução? Há indícios de que uma CCS mínima poderia ser benéfica para a resposta imune da vaca. Nesse sentido, técnicos e produtores têm questionado se haveria um limite mínimo de CCS a ser considerado normal para vacas leiteiras sadias. A questão é: vacas ou rebanhos com baixa CCS apresentam maior risco de novos casos de mastite clínica em razão de menor nível de imunidade da glândula mamária? » 24 — dezembro 2013 E stima-se que cerca de 25 a 30% dos rebanhos brasileiros produzam leite com contagem de células somáticas (CCS) do tanque acima de 600 mil células/ml. Esta realidade evidencia o grande desafio que é a redução da mastite subclínica e da CCS. Por outro lado, por meio da implantação de medidas eficientes para controle de mastite, uma parcela significativa das fazendas leiteiras tem conseguido reduzir a CCS ao longo do tempo, atingindo valores < 200 mil células/ml. Para efeitos de comparação, em 2012 a média de CCS ponderada por volume de leite nos rebanhos leiteiros dos EUA foi de 194 mil células/ml, o que indica que uma grande parte destes rebanhos apresentou média de CCS abaixo de 100 mil células/ml. Paralelamente à redução da CCS do tanque abaixo de 200 mil células/ml, tem ocorrido também aumento do risco de mastite clínica de origem ambiental, o que poderia indicar que uma CCS mínima poderia ser benéfica para a resposta imune da vaca. Esta aparente desvantagem de redução de CCS dos rebanhos tem levado a questionamentos de muito técnicos e produtores se haveria um limite mínimo de CCS, que poderia ser considerado normal para vacas leiteiras sadias ou se valores muito baixos de CCS poderiam se tornar um potencial problema. Sendo assim, um dos questionamentos frequentemente levantados é se as vacas ou rebanhos com baixa CCS apresentam maior risco de novos casos de mastite clínica em razão de menor nível de imunidade da glândula mamária. O que são e quais as funções das células somáticas? O esfíncter e o canal do teto compõem a primeira linha de defesa da glândula mamária, funcionando como uma barreira mecânica contra a invasão de microrganismos patogênicos e oportunistas. Da mesma forma, a queratina presente no canal do teto atua como barreira física e química, de forma a reduzir as novas infecções. No entanto, em algumas situações, algumas bactérias podem escapar dos mecanismos naturais de defesa primária e invadir a glândula mamária, tanto por colonização do canal dos tetos quanto por flutuações de vácuo durante a ordenha. Se as bactérias invasoras não forem eliminadas pela resposta imune da vaca, a infecção bacteriana pode causar lesões do tecido mamário, o que afeta negativamente a produção e qualidade do leite. Assim, a detecção da mastite subclínica deve ser feita de forma precoce, por meio de cultura microbiológica e da CCS individual. As células somáticas são compostas por leucócitos (células de defesa de origem sanguínea) e células epiteliais secretoras de leite. Na glândula mamária, o número e tipo de leucócitos são fatores importantes para o sucesso da resposta imune contra agentes patogênicos invasores. A distribuição dos tipos de células de defesa está relacionada com a gravidade da mastite e do tipo de patógeno causador de infecção. Sendo assim, a quantidade de células epiteliais presentes no leite não está relacionada somente à diminuição de células secretoras viáveis durante a lactação, mas também ao processo de renovação celular, que ocorre ao longo da lactação. Na glândula mamária sadia, os macrófagos predominam e atuam como sentinelas para combater os patógenos invasores. Estas células são capazes de ingerir bactérias, células mortas e componentes do leite. Além disso, reconhecem a presença do patógeno invasor e iniciam uma resposta imune, liberando substâncias que induzem o recrutamento rápido de neutrófilos polimorfonucleares (PMN). Assim, durante uma infecção, os neutrófilos passam a ser as células mais predominantes, representando até 90% da população total de leucócitos mamários. Os neutrófilos polimorfonucleares (PMN) e os macrófagos constituem as células fagocíticas primárias, os quais são a primeira linha celular de resposta imune contra a invasão de microrganismos. Os neutrófilos são as células predominantes quando se inicia o processo de migração das células do sangue para a glândula mamária, durante as fases iniciais de inflamação. No início da resposta imune, os neutrófilos primeiramente se movem para próximo das margens dos capilares sanguíneos e, em seguida, aderem-se aos capilares próximos ao local da infecção e migram para estes locais. A migração dos neutrófilos pode ocorrer de forma rápida A capacidade de recrutar leucócitos para a glândula mamária é considerada o fator imunológico mais importante associado com a resistência à mastite, e não a contagem total de células dentro dos tecidos infectados, ocorrendo em até 30 a 60 minutos após a lesão. Ambas as populações de macrófagos e neutrófilos, ativados durante a resposta imune não específica, são capazes de fagocitar e eliminar os microrganismos invasores. O processo de fagocitose envolve a internalização de bactérias dentro de organelas celulares, as quais contêm compostos bactericidas e enzimas hidrolíticas. Portanto, o objetivo das células somáticas é proporcionar defesa da glândula mamária contra infecções. É consenso entre os especialistas que na glândula mamária de vacas adultas sadias a CCS encontra-se abaixo de 200 mil células/ml. Deste forma, quando a CCS individual estiver acima deste limite, a vaca tem alta chance de estar infectada. No entanto, pode-se considerar que uma CCS mínima é benéfica para a saúde da glândula mamária, pois assim a vaca pode responder de forma mais rápida e eficiente quando ocorrer invasão bacteriana. Existe um limite mínimo para a CCS? Com o objetivo de responder esta questão, diversos estudos experimentais foram desenvolvidos. Por exemplo, alguns pesquisadores desenvolveram estudos com infecção experimental de agentes causadores de mastite em vacas com CCS pré-existentes entre 200-350 mil células/mL, o que conferiu maior proteção contra a inoculação realizada do que em vacas com baixa CCS. Em outros estudos para estimular este mesmo nível de contagem de células no leite foram administradas substâncias que estimulavam a resposta imune do úbere, mas que não causavam infecção. Em termos gerais, o grau de resistência à mastite não foi simplesmente associado a uma população residente de células de defesa presentes no leite, mas sim a capacidade de mobi» 25 — dezembro 2013 QUALIDADE DO LEITE VOCÊ SABIA? A diminuição de mastite por patógenos contagiosos pode resultar em maior predisposição do rebanho a mastite clínica causada por patógenos ambientais lizar leucócitos do sangue para o leite. Considerando os resultados de estudos prévios, a diferença na susceptibilidade das vacas à infecções intramamárias está associada à capacidade e eficiência de mobilização das células de defesa, os quais são fatores inerentes a defesa imunológica da glândula mamária. Desta forma, a capacidade de recrutar leucócitos para a glândula mamária é considerada o fator imunológico mais importante associado com a resistência à mastite, e não a contagem total de células. Estudos sobre fatores de risco da ocorrência de mastite clínica indicam que rebanhos com baixa CCS do tanque têm maior risco de mastite clínica e mastite tóxica grave. Quartos mamários com baixa CCS (<20 mil células/mL) apresentaram maior risco de mastite clínica do que quartos com CCS entre 21 e 200 mil células/mL. Uma possível explicação está relacionada à redução da mastite contagiosa, o que como consequência direta causa diminuição da CCS dos rebanhos. Desta forma, a diminuição de mastite por 90% das infecções intramamárias podem ser controladas empregando estratégias de prevenção à doença » 26 patógenos contagiosos pode resultar em maior predisposição do rebanho a mastite clínica causada por patógenos ambientais. Parte desta preocupação com a CCS muito baixa em alguns rebanhos se soma aos programas de melhoramento genético, nos quais são utilizados touros com capacidade de transmissão de características de menor CCS. Os genes relacionados à resistência a mastite em vacas leiteiras, geralmente estão correlacionados de forma negativa com a produção de leite e outras variáveis como o escore de condição corporal, a fertilidade e a CCS. As estimativas de herdabilidade de incidência de mastite clínica tendem a ser menores do que a herdabilidade de CCS. Assim, pequenos avanços relacionados aos ganhos na redução de CCS podem ser alcançados por meio de seleção genética. Todavia, 90% das infecções intramamárias podem ser controladas empregando estratégias de prevenção à doença, e não apenas utilizando a seleção de genes de resistência à mastite. Respostas de defesa Com base nos estudos disponíveis, os principais fatores associados à prevenção de mastite não dependem somente do número de células de defesa presentes na glândula antes da entrada do patógeno, mas sim da velocidade e do número que estas células podem ser mobilizadas para a glândula mamária. Além disso, as É consenso entre os especialistas que na glândula mamária de vacas adultas sadias a CCS encontra-se abaixo de 200 mil células/ml. Desta forma, quando a CCS individual estiver acima deste limite, a vaca tem alta chance de estar infectada. No entanto, pode-se considerar que uma CCS mínima é benéfica para a saúde da glândula mamária, pois assim a vaca pode responder de forma mais rápida e eficiente quando ocorrer invasão bacteriana. características de resistência à mastite também dependem da capacidade da resposta imune específica de produzir anticorpos específicos contra os agentes patogênicos. O número de células somáticas presentes no leite antes de uma nova infecção pode garantir algum efeito de proteção contra casos de mastite clínica, entretanto não se conhece como este menor risco ocorre. Por outro lado, os efeitos negativos de altas CCS sobre a qualidade do leite e produção de leite são bem conhecidos, o que indica que existem vantagens de redução da CCS dos rebanhos. Finalmente, algumas questões ainda não foram completamente respondidas pelos estudos. Por exemplo: qual seria a contagem ideal de células “vigilantesde-defesa” antes de uma nova infecção intramamária, com objetivo de tornar a resposta mais eficaz? Além disso, como seria possível manter este nível de células “vigilantes” sem que ocorressem efeitos indesejáveis sobre a produção e qualidade do leite? Estas informações ajudariam no desenvolvimento de medidas de manejo e técnicas voltadas a prevenção de mastite bovina. *Artigo elaborado com a colaboração de Juliano Leonel Gonçalves, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Produção Animal, FMVZ-USP.