Síndrome de Klippel-Feil - Dr. Alexandre Sadao Iutaka

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Síndrome de Klippel-Feil
Alexandre Sadao Iutaka
Guilherme Pereira Corrêa Meyer
Marcelo Loquette Damasceno
sumário
Introdução
Apresentação clínica
Alterações radiográficas
Condições associadas
Escoliose
Malformações do trato geniturinário
Malformação cardiovascular
Surdez
Movimentos em espelho (sincinesia)
Tratamento
Conduta no DOT/FMUSP
Referências bibliográficas
Introdução
Em 1912, Klippel e Feil publicaram a primeira descrição clínica e os aspectos patológicos da síndrome que
leva seu nome1. Foram observadas 3 características clínicas: pescoço curto, implantação baixa da linha capilar
e restrição da mobilidade cervical. Em um exame post
mortem, foi observada fusão de corpos vertebrais.
Atualmente, a síndrome de Klippel-Feil refere-se a
todos os pacientes que possuem algum tipo de fusão de
vértebras cervicais, desde fusões de duas vértebras a fusões
de toda a coluna cervical. Apenas as malformações da junção craniocervical são consideradas separadamente.
Durante a gestação, entre o 20o e o 30o dia, ocorre a
divisão do mesoderma em somitos. Com a maturação
dos somitos, existe uma divisão em esclerótomos, miótomos e dermátomos. Os esclerótomos são os precursores
do corpo vertebral, que sofrem uma ressegmentação com
fusão da porção caudal com a porção cefálica para formar
o corpo vertebral. A falha da segmentação dos somitos,
que ocorre entre a 3a e a 8a semanas, é responsável pela
fusão dos corpos vertebrais2.
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Pacientes com síndrome de Klippel-Feil, mesmo
que brandamente afetados, têm chance aumentada de
apresentar outras malformações congênitas. Defeitos
do trato geniturinário, nervoso, cardiopulmonar e auditivo podem ser encontrados nesses pacientes. Tais
alterações podem ter apresentações bastante distintas,
variando desde alterações imperceptíveis a alterações
com significado muito maior que a própria alteração
cervical. Sendo assim, todos os pacientes com síndrome
de Klippel-Feil devem ser investigados quanto à presença
de outras doenças congênitas.
Apresentação clínica
A apresentação clínica clássica corresponde à tríade
de pescoço curto, implantação baixa do cabelo e restrição
da movimentação cervical. No entanto, menos da metade
dos pacientes apresentam essas 3 características3,4. A apresentação clínica depende da quantidade de níveis comprometidos. Pacientes com fusão de toda a coluna cervical são muito diferentes dos pacientes com apenas um
nível fundido. O achado mais consistente é a limitação
da amplitude de movimento cervical5, mas os pacientes
que possuem menos de 3 níveis fundidos não apresentam
limitação clinicamente detectável5. Além disso, a falta de
mobilidade dos segmentos fundidos pode ser compensada por hipermobilidade nos segmentos não afetados3. Em
geral, a flexoextensão é mais preservada que a rotação.
Encurtamento do pescoço, exceto em casos graves, é
um achado sutil, semelhante à baixa implantação do cabelo. Assimetria facial, torcicolo e pescoço alado são encontrados em menos de 20% dos casos3,5. A deformidade
de Sprengel está associada em 25 a 35% dos casos3,5-7. Na
3a semana de gestação, a escápula se desenvolve a partir
do mesoderma no nível de C4. Ela desce para posição
torácica por volta da 8a semana, quando ocorrem as lesões da síndrome de Klippel-Feil5,6. Dessa forma, é lógico
pensar em uma associação entre essas duas patologias.
Ocasionalmente, pode-se encontrar uma ponte óssea
entre a coluna cervical e a escápula, o osso omovertebral
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(Figura 1). Pela mesma razão embriológica, podem ser
encontradas outras doenças (Tabela I). Anormalidades
dos membros inferiores são infrequentes.
A maioria da sintomatologia clínica está relacionada
aos segmentos não fundidos, exceto quando as malformações acometem a junção atlantoaxial. Os segmentos fundidos são assintomáticos e a hipermobilidade nos segmentos
não fundidos origina os sintomas4,8. A hi-permobilidade
pode gerar instabilidade e degeneração acelerada das articulações e dos discos4,8. Os sintomas podem ser de 2
tipos: sintomas mecânicos, pela irritação de articulações
degeneradas, e sintomas radiculares pela compressão de
alguma raiz. Pacientes com poucos níveis fundidos têm
menor chance de desenvolver sintomas, uma vez que a
compensação é distribuída por vários segmentos. Fusões
distais também tendem a ser menos sintomáticas que as
fusões mais proximais. A maior parte dos pacientes que
apresenta sintomas está entre a 2a e a 3a décadas de vida,
sugerindo que a instabilidade é uma resultante do aumento da frouxidão ligamentar, decorrente da sobrecarga que
ocorre nos níveis móveis com o passar do tempo5,7,9.
Os sintomas radiculares ocorrem por compressão de
determinada raiz e variam conforme a raiz comprimida. Dor occipital, cervical e cervicobraquialgia podem
ser encontradas. Dependendo do grau de instabilidade
ou quando há um trauma associado, é possível observar
compressões centrais e sinais de mielopatia, como hiperreflexia, alteração da marcha, espasticidade e fraqueza
muscular5,7,9.
Alterações radiográficas
A radiografia é o exame clássico para o diagnóstico
e a imagem em perfil, a de maior utilidade. Nas crianças
gravemente comprometidas, é difícil obter radiografias de
qualidade. Existe sobreposição de imagem da mandíbula,
do forame magno e do occipício, e não é possível obter
um bom posicionamento da cabeça. Radiografias em flexão e extensão são mais úteis para avaliar estabilidade.
Outro exame que tem se mostrado de grande utilidade é
a tomografia, que também pode ser executada em flexão
e extensão4,10. Esse exame também auxilia no diagnóstico
de compressões das estruturas neurológicas. A avaliação
dessas estruturas é ainda melhor com a adição de contras-
te ou com o uso da ressonância, que é o padrão-ouro para
a avaliação de compressões neurológicas, principalmente
quando realizada também em flexão e em extensão11,12.
Conhecer as variações normais da movimentação
cervical em uma criança é fundamental na avaliação de
um paciente com síndrome de Klippel-Feil. A pseudossubluxação de C2 sobre C3, observada nas crianças com
menos de 8 anos, tem uma frequência elevada, ocorrendo
em 45% das crianças normais13. Uma angulação aguda
em um determinado nível em vez de uma curva suave e
gradual dividida entre os diversos níveis é observada em
16% das crianças normais e pode ser interpretada incorretamente como uma fusão no segmento inferior14.
A alteração-chave para o diagnóstico de Klippel-Feil é
a fusão de corpos vertebrais cervicais (Figura 2). Podem ser
a simples fusão de 2 corpos vertebrais ou fusões maciças
como as descritas no primeiro paciente de Klippel e Feil.
Além da fusão, também é possível observar o achatamento e o alargamento dos corpos vertebrais e a ausência de
discos intervertebrais. Nas crianças menores, é difícil observar o estreitamento do espaço discal, pois a ossificação
do corpo não está completa. Os platôs ainda não ossificados podem dar a falsa impressão da presença de um disco
normal. Com o crescimento do paciente e a ossificação dos
platôs, a fusão passa a ser evidente. Radiografias dinâmicas
podem auxiliar o diagnóstico ao demonstrar ausência de
movimento no segmento.
Artrite reumatoide, espondilite anquilosante e infecção podem se assemelhar radiograficamente, mas a
história clínica é bastante diferente.
Fusões posteriores geralmente ocorrem em paralelo
com a fusão dos corpos. Esse é um dado que pode auxiliar bastante na análise da radiografia de uma criança.
As fusões posteriores, particularmente da lâmina, podem
ser mais bem vistas que as anteriores3.
O diâmetro do canal é normal, mas pode estar diminuído por alterações degenerativas que ocorrem nos
segmentos móveis nos pacientes adultos13,15-17. O alargamento do canal está associado a outras malformações,
como siringomielia, Arnold-Chiari e hidromielia. Espinha bífida é comum e ausência completa dos elementos
posteriores é rara, estando associada a anencefalia com
alargamento do forame magno e postura em hiperextensão fixa18.
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Figura 1. Síndrome de Klippel-Feil associada a Sprengel com presença de osso omovertebral.
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Tabela I. A
normalidades mais frequentes associadas a síndrome
de Klippel-Feil
Anormalidades associadas %
Escoliose 60
Anormalidades renais 35
Sprengel 30
Anormalidade auditiva 30
Sincinesia 20
Cardiopatia congênita 14
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Clínica ortopédica g ORTOPEDIA PEDIÁTRICA
As alterações cervicais podem se estender à região
torácica proximal, sobretudo nos pacientes gravemente
acometidos. Pacientes com escoliose congênita torácica
alta devem passar por uma investigação radiográfica da
coluna cervical.
Condições associadas
Escoliose
É a anormalidade mais frequente associada a essa
síndrome3,19,20. Cerca de 60% dos pacientes possuem uma
curva com pelo menos 15 graus3,21. Grande parte requer
tratamento e deve ser acompanhada durante os anos de
crescimento. A avaliação das escolioses deve também incluir
imagens em perfil para descartar cifose. Convém salientar
que é comum o retardo no diagnóstico das es­colioses, tornando o tratamento cirúrgico bastante frequente3,19,22.
Dois tipos de escoliose são reconhecidos: a congênita,
mais comum3, e a compensatória abaixo do segmento
comprometido. Curvas progressivas são frequentemente
associadas aos pacientes com fusões extensas21.
Malformações do trato geniturinário
Até 1/3 dos pacientes possui alterações anatômicas
do trato geniturinário. Essas alterações geralmente são
assintomáticas nos pacientes jovens, devendo-se utilizar o
exame de ultrassonografia na avaliação desses pacientes14.
Assim como a escápula na doença de Sprengel, os rins
têm uma origem embriológica semelhante. A alteração
mais frequente é a ausência de um rim.
Malformação cardiovascular
A associação de Klippel-Feil com alterações cardíacas
tem incidência de 4,2 a 14%3,9,23. A comunicação interventicular é a malformação mais frequente.
Surdez
A associação de problemas de audição e até mesmo de surdez é relatada na literatura em até 30% dos
pacientes16,24,25. O retardo no diagnóstico da perda auditiva pode dificultar o aprendizado da fala.
Movimentos em espelho (sincinesia)
A sincinesia consiste em movimentos involuntários
pareados das mãos ou dos braços. O paciente não consegue mover uma mão sem mover a outra de forma involuntária. Essa entidade é mais pronunciada nas crianças
e tende a melhorar com a idade. Um estudo com eletroneuromiografia demonstrou 10 pacientes em 13 com
indícios de sincinesia26. Clinicamente, a incidência chega
a 20%3. A etiologia é incerta, mas parece se tratar de um
defeito neurológico congênito envolvendo a decussação
das pirâmides27,28.
Tratamento
Os pacientes com mínimo envolvimento têm vida
normal, sem restrições ou sintomas. Pacientes com envolvimento significativo também podem ter um bom
prognóstico se for feito diagnóstico precoce e instituído
tratamento quando necessário, sobretudo em relação às
doenças associadas. O tratamento para as deformidades
cervicais e para a falta de movimento é muito limitado.
Os pacientes com grandes áreas de fusão, nos quais
o movimento fica concentrado em poucos segmentos,
devem ser aconselhados a evitar atividades que coloquem
a coluna cervical sob estresse mecânico, como esportes
de contato. Eles têm capacidade de proteção menor e podem sofrer graves lesões com traumas menores5,29. Não
existe consenso sobre fazer ou não a artrodese de articulações hipermóveis, uma vez que o paciente já apresenta
restrição da movimentação cervical. Alterações neurológicas devem ser avaliadas com muita atenção, pois os
pacientes podem ter alterações anatômicas do sistema
nervoso. Osteotomias para correção das deformidades
não são recomendadas e o tratamento cosmético é muito
limitado.
O tratamento da síndrome de Klippel-Feil baseia-se
principalmente no diagnóstico e no tratamento das doenças associadas, pois elas podem comprometer a qualidade
de vida e a sobrevida dos pacientes.
Conduta no dot/fmusp
A maioria dos casos de síndrome de Klippel-Feil não
necessita de tratamento para as patologias ortopédicas,
pois é normalmente assintomática. O mais importante
é saber que lesões de outros órgãos e sistemas podem
estar associadas e merecem investigação.
Quando o tratamento cirúrgico ortopédico é necessário, normalmente envolve deformidades na coluna
e a indicação do tratamento não segue padrões, por isso
a cirurgia deve ser indicada dependendo do caso, com
ajuda de uma equipe multidisciplinar.
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Figura 2. Radiografia em perfil mostrando a fusão de C4, C5 e C6.
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