PARTE II – TEORIA, EPISTEMOLOGIA E MÉTODOS: CAMINOS DO PENSAMENTO “Antes de tratar do tema específico da Metodologia da Pesquisa social, é importante discutir o legado das Ciências Sociais [...].” P. 77 “Sem querer estabelecer etapas estanques, Nunes mostra que, na década de1950, as pesquisas estiveram marcadas pelas teorias funcionalistas e culturalistas, servindo à implementação de desenvolvimento e organização de comunidade. Nas décadas de 1960 e 1970, as abordagens fenomenológicas influenciaram efetivamente o pensamento e as práticas de saúde coletiva. Elas questionaram a onipotência e onipresença do Estado sobre os indivíduos e sobre os grupos de referência e a arbitrariedade impositiva das classes dominantes por meio de sistemas de saúde. Sua emergência fez eclodir uma reação de negação dos princípios positivistas e funcionalistas mais voltados para o todo e para as massas, em favor de uma afirmação dos direitos individuais , do princípio da autonomia das pessoas e da construção de grupos mediadores ante o Estado e as grandes instituições médicas e sanitárias.” P. 79 “A partir dos anos 1970, houve grande incremento da produção intelectual na área de saúde, dentro do enfoque marxista histórico-estrutural. A presença do marxismo no ambiente acadêmico da saúde coincidiu com a resistência cidadã ao autoritarismo e à violência política vigente no período da ditadura militar. Esse movimento, que arregimentava uma organização denominada informalmente “partido sanitário”, contribuiu para a produção de uma crítica teórico-prática sobre a fragilidade e a fragmentação das análises fenomenológicas (Nunes, 1985), propondo mudanças estruturais na distribuição da saúde, como bem social e do acesso aos serviços de saúde, no Brasil e na América Latina.” P.79 “Em 1983, García já advertia que nenhuma das correntes de pensamento desconhece a vinculação da medicina com a estrutura social, no entanto, suas diferenciações se explicam na interpretação de como se dá essa vinculação e em que grau de autonomia ou dependência se situa o fenômeno saúde-doença como manifestação biológico-social. As diferentes visões de mundo presentes nas interpretações da realidade refletem a dificuldade do pensamento de apreender e compreender o objeto “social” e, em conseqüência, a “saúde” em toda sua complexidade e articulações. Esta parte contém dois capítulos fundamentais. O primeiro se compões da introdução às primeiras correntes de pensamento sociológico que têm influência na teoria e na prática da saúde: o positivismo, o compreensivismo, o marxismo e o pensamento sistêmico. No segundo, apresento algumas abordagens compreensivas com suas potencialidades de aplicação para estudos e investigações do setor.” P. 80 CAP 4 – CORRENTES DE PENSAMENTO Positivismo Sociológico “O positivismo constitui a corrente filosófica que mantém o domínio intelectual no seio das Ciências Sociais, Medicina e Saúde. As teses básicas do positivismo podem ser assim resumidas: (1) a realidade se constitui essencialmente naquilo que os sentidos podem perceber; (2) as Ciências Sociais e as Ciências Naturais compartilham de um mesmo fundamento lógico e metodológico: elas se distinguem apenas no objeto de estudo; (3) existe uma distinção fundamental entre o fato e valor: a ciência se ocupa do fato e deve buscar livrar-se do valor.” P. 81 “[...] a sociedade humana é regulada por leis naturais que atingem o funcionamento da vida social, econômica, política e cultural de seus membros. Portanto, os cientistas sociais quando analisam determinado grupo ou comunidade têm de descobrir as leis invariáveis e independentes de seu funcionamento.” P. 81 “Noutras palavras, dentro da filosofia positivista, o cientista social deve comportar-se ante seu objeto de estudo – a sociedade, qualquer segmento ou setor dela – livre de juízo de valor, tentando neutralizar qualquer interveniência que possa lesar a sua objetividade na explicação dos fenômenos.” P. 82 “A ciência positivista tem raízes na filosofia das luzes no século XVIII (Lowy, 1986). Para Lowy, o pai do positivismo é Condorcet, um enciclopedista que formulou de forma clara e precisa a idéia de que a ciência da sociedade deveria ser uma Matemática Social baseada em estudos quantitativos rigorosos e probabilísticos.” P. 82 “Saint-Simon [discípulo de Condorcet] ressalva que, em sua época, havia duas classes parasitas do organismo social: o clero e a aristocracia. E, portanto, seria preciso que essas fossilizações dessem lugar a uma nova forma de organização do corpo social. Para isso apresentava um projeto novo de sociedade, baseado não na igualdade, mas numa pirâmide de classes, visando a elevar a capacidade produtiva das pessoas a uma grau máximo de desenvolvimento.” P. 83 “Até o início do século XIX, o positivismo desenhado por esses precursores constitui uma visão social-utópica-crítica do mundo de seu tempo.” P. 83 “Para Comte o pensamento teria de ser totalmente positivo. Isto é, dele deveria ser eliminado todo o conteúdo crítico para que os cientistas descobrissem as leis da sociedade. Seu “método positivo”, propunha que o cientista social se consagrasse teórica e praticamente à defesa da ordem e fosse contrário ao que considerava “negativismo perigoso das doutrinas críticas, destrutivas, subversivas e revolucionárias da Revolução Francesa e do Socialismo”.” P. 84 “Dizia Comte que há uma ordem interna que rege a sociedade da mesma forma que essa ordem existe na natureza. Toda sociedade caminharia para a harmonia, o desenvolvimento e a prosperidade. Ao cientista social caberia descobrir essa ordem e explicitá-la aos leitores para que, com base em sua compreensão, a estabilidade social fosse mantida. Comte considerava importante que os sociólogos explicassem aos proletários a lei que rege a distribuição de riquezas, a concentração de poder econômico e o seu lugar na sociedade. Ao fazê-lo estariam cumprindo o papel pedagógico de ensinar que os lugares que os trabalhadores ocupam são resultantes da própria natureza da organização social que tem suas leis invariantes. Segundo esse pensador, graças ao positivismo, os trabalhadores reconheceriam as vantagens da submissão e do fato de que não teriam de se preocupar com o governo da sociedade e, sim, entregá-lo a outras mãos mais sábias e mais poderosas. Dessa forma, o positivismo como “ciência livre de juízo de valor e neutra” se propunha a não amaldiçoar os fatos políticos [...].” P. 85 “Não há dúvidas de que o positivismo clássico combina com todo o conservadorismo político e legitimador de situações vigentes e o fundamenta. Não é ocioso lembrar que o lema da bandeira nacional republicana brasileira “Ordem e Progresso” tem sua inspiração na doutrina positivista, em sua filosofia social e em sua ideologia política. No campo das ciências sociais propriamente ditas, foi Durkheim quem primeiro fundamentou teórica e metodologicamente o positivismo que existia como doutrina, trazendo-o para a compreensão da sociedade. Esse autor seminal, para divulgar a nova ciência a que denominou “sociologia” e classificou como disciplina científica, criou a mais antiga revista da área denominada L’Année Sociologique, cujo centenário se comemorou em 1998 e reuniu em torno de si um grupo importante e influente de pensadores. Reconhecendo-se discípulo de Comte, Durkheim se aplicou a pensar a especificidade do objeto da sociologia, relacioná-la com as outras ciências e lançar os fundamentos de um método para pesquisa social.” P. 86 “Em seu método, Durkheim distingue a categoria “senso comum”, como uma criação cultural dos membros de uma sociedade para explicar e descrever o mundo em que vivem, dos “conceitos científicos”, que constituem elaborações teóricas que permitem descrever, classificar, explicar, organizar e correlacionar os “fatos sociais” de forma “objetiva”.” P. 87 “Uma das principais influências do positivismo nas ciências sociais é a prática da pesquisa empírica. Metodologicamente, até hoje, sob a ótica positivista, isso significa a descoberta das características de regularidades e invariâncias nos fatos sociais, entendidos por Durkheim como “toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior” ou ainda “o que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das manifestações individuais” (1978, p.92).” P. 88 “Embora o positivismo sociológico domine nas Ciências Sociais, ainda hoje é alvo de muitas críticas. A mais forte restrição a essa corrente vem da constatação de que os seres humanos não são simples forma, tamanho e movimentos: possuem uma vida interior que escapa à observação primária e que, em si, constitui uma realidade passível de análise. Daí derivam várias controvérsias. A primeira diz respeito à questão da “neutralidade” e da “objetividade” que, segundo Durkheim, poderiam ser mantidas, uma vez que ao cientista social caberia observar manifestações comportamentais exteriores a ele próprio.” P. 88 “A história do positivismo revela que a concepção de objetividade e de neutralidade se confunde com a execução de estudos de cunho quantitativo. Hoje há um desenvolvimento extremamente rápido de métodos de pesquisa de base estatística, reproduzindo não só um método científico mas, com certeza, uma doutrina que tem, em sua base, idéias bem estabelecidas e conservadoras. Muitas pesquisas (não todas) eximem-se até de análise contextual, temendo contaminar a pureza dos “dados” e exalar algum juízo de valor.” P. 88 “O problema apresentado pela crítica teórica é a produção de uma verdadeira reitificação do método que precisa ser criticada pelo menos em dois pontos: o primeiro é epistemológico e diz respeito à pretensão de os dados observáveis explicar a realidade, restringindo-a ao quantificável.” P. 89 “Sua crítica centrou-se, sobretudo, na falta de perspectiva epistemológica dos que se empenhavam escrupulosamente na construção de modelos matemáticos para seus dados e que se mostravam totalmente incapazes de fazer uma análise sociológica dos indicadores que geravam, deixando, aos demandantes das pesquisas, total liberdade para usá-los de acordo com interpretações que passam por interesses econômicos e políticos.” P. 90 Funcionalismo como derivação do positivismo “Uma das variantes do positivismo sociológico é o funcionalismo, cujos representantes clássicos são, na antropologia inglesa, Malinowski, e Radcliffe-Brown (1973) e, na sociologia americana, Merton (1970) e Parsons (1951).” P. 91 “Os funcionalistas diferenciam-se de Comte (1978) e Durkheim (1978) na medida em que negam as leis gerais que regem o funcionamento da sociedade como um todo. Também não reduzem a ciência do social à descrição de acontecimentos ou de fator observáveis. Desenvolvem um tipo de teoria especialmente aplicável à compreensão da estrutura social e da diversidade cultural.” P. 91 “A tarefa principal do investigador, dentro deste esquema, é reproduzir as condições globais da existência social de um grupo, descrevendo-as em sua complexidade, diversidade e movimento integrativo de tal forma que possam ser comparadas.” P. 92 Positivismo e Funcionalismo nos estudos em saúde “A doença é, para Parsons, “uma conduta desviada” e o doente é um personagem social que se reconhece na forma como a sociedade institucionaliza o desvio e assim o assimila e o integra.” P.93 “Juan César García (1983), em seu estudo sobre as correntes de pensamento na medicina, faz uma crítica contundente ao funcionalismo de Parsons quando analisa o sistema médico. Ao definir a prática da medicina pela finalidade de curar e prevenir as doenças, diz ele, Parsons se limita a descrever como essa instituição funciona e se transforma em fenômeno observável, desconhecendo as condições de sua produção e reprodução. Reduz a concepção de doença à noção de “desvio” pondo-a no âmbito exclusivo do paciente e do médico. Enfatiza seus respectivos papéis como atores sociais no conjunto da sociedade como se essa fosse harmônica e equilibrada.” P.93 “Em resumo, se conclui que o positivismo e sua forma mais utilizada que é o funcionalismo sociológico têm sido as correntes de pensamento com maior influência e vigor na produção intelectual referente às análises de saúde. Isso não é estranho, uma vez que essas teorias se prestam para conservar e justificar a prática médica hegemônica e os enfoques práticos no tratamento dos doentes e das doenças. Ninguém duvida que a instituição da medicina e a área da saúde pública são profundamente autoritárias e impositivas.” P. 94 Teorias Compreensivas “Como o próprio nome indica, a sociologia compreensiva privilegia a compreensão e a inteligibilidade como propriedades específicas dos fenômenos sociais, mostrando que os conceitos de significado e de intencionalidade os separam dos fenômenos naturais.” P.95 “É uma ciência que se preocupa com a compreensão interpretativa da ação social, para chegar à explicação causal de seu curso e de seus efeitos. Em “ação” está incluído todo o comportamento humano quando e até onde a ação individual lhe atribui um significado subjetivo. A “ação” neste sentido pode ser tanto aberta quanto subjetiva. [...] A “ação” é social quando, em virtude do significado subjetivo atribuído a ela pelos indivíduos, leva em conta o comportamento dos outro e é orientada por ele na sua realização (Weber, 1964, p. 33).” P. 96 “[...] para Weber, a sociologia requer uma abordagem diferente das ciências da natureza dentro dos seguintes parâmetros: (a) realização de pesquisas empíricas a fim de se construírem dados que dêem conta das formulações teóricas; (b) os dados devem derivar do modo de vida dos atores sociais; (c) os agentes sociais dão significados a seus ambientes, relações e eventos de forma extremamente variada; (d) e os mesmos agentes podem também descrever, explicar e justificar suas ações, motivadas por causas tradicionais, sentimentos afetivos ou por elementos racionais; (e) as realidades sociais só podem ser identificadas na linguagem significativa da interação social. Por isso, a linguagem, as práticas, as coisas e os acontecimentos São inseparáveis.” P. 97 “Por isso propõe, para conseguir compreender a realidade social, dois princípios metodológicos: (a) a neutralidade de valor e (b) a construção do tipo-social.” P. 97 “Weber sugere aos estudiosos esse artefato que ele próprio utiliza, indicando que existe um sistema de “tipos-ideais”, entre os quais os de lei, de autoridade e de legitimidade, de democracia, de capitalismo, de feudalismo, de sociedade, de burocracia e de patrimonialismo.” P.98 Abordagens compreensivas nas pesquisas em saúde “[...] (a) seu foco é a experiência vivencial e o reconhecimento de que as realidade humanas são complexas; (b) o contato com as pessoas se realiza nos próprios contextos sociais; (c) a relação entre o investigador e os sujeitos investigados enfatiza o encontro intersubjetivo, face a face e a empatia entre ambos; (d) os resultados buscam explicitar a racionalidade dos contextos e a lógica interna dos diversos atores e grupos que estão sendo estudados; (e) os textos provenientes de análises compreensivas apresentam a realidade de forma dinâmica e evidenciam o ponto de vista dos vários atores ante um projeto social sempre em construção e em projeção para o futuro e (f) suas conclusões não são universalizáveis, embora a compreensão de contextos peculiares permita inferências mais abrangentes que a análise das microrrealidades e comparações.” P. 100 “A onda desenvolvimentista, cujos rumos do progresso não significam a socialização do bemestar; a constatação do aprofundamento das desigualdades entre ricos e pobres, entre países centrais e países periféricos; o caos ecológico e social dos grandes centros urbanos e a corrida armamentista, tudo isso fez crescer um movimento oposicionista na sociedade civil e um questionamento profundo da ciência como verdade incontestável.” P. 101 “Não faltaram críticas dos fenomenologistas [são compreensivistas] ao positivismo quanto a vários aspectos de sua influência na instituição médica, na prática médica, na ética médica, no sistema público de saúde e na concepção biomédica de saúde e doença.” P. 102 “O foco de sua crítica se debruça sobre a hipertrofia das grandes instituições voltadas para a assistência à saúde, o que, a seu ver, as tornou o maior obstáculo à realização dos objetivos a que o setor saúde se propõe. Illich (1975) fala do “crescimento mórbido da medicina” que conduz: (a) à ineficácia global do sistema; (b) à perda da capacidade da população de se adaptar ao meio social, de aceitar a dor e o sofrimento, por causa da medicalização da vida; (c) à idéia mítica de que a medicina seja capaz de acabar com a dor, o sofrimento e a doença, mito esse que compromete a capacidade cultural dos indivíduos e da sociedade contemporânea de lidar com a vida e com a morte.” P.103 “Os fenomenólogos, sobretudo nos anos 70, defenderam denodadamente a necessidade de se desenvolver uma filosofia da medicina que (a) fundamentasse questões éticas relativas à realização de experimentos e serviços que têm como objeto a vida humana e (b) formulasse a concepção de saúde e doença com relevância antropológica, levando em conta, também, fenômenos como religião e crenças de sociedades e de grupos específicos (Pellegrino, 1976).” P.103 “No Brasil, os comitês de ética para analisar experimentos e investigações com seres humanos se multiplicaram [...].” P. 104 “No programa Saúde da Família, a idéia do pequeno grupo, de células de relações primárias – tão cara às abordagens compreensivas – tornou-se o alvo de uma proposta de mudança do modelo hospitalocêntrico (ainda hegemônico). Esse último em geral se rege por normas institucionais burocráticas e abrange toda a cadeia de atenção à saúde, sendo um modelo extremamente caro, ineficiente e pessoal.” P. 106