ROCK AROUND THE CLOCK: A DIFUSÃO DO ROCK EM TERRITÓRIO BRASILEIRO Pâmela Keiti Baena - UNISO1 1 INTRODUÇÃO Não basta ouvir. É necessário ler sobre música. É necessário ler sobre o rock. Deve-se contextualizar a música, mostrar que o rock e suas vertentes surgiram dentro de um determinado contexto histórico e que apresenta claramente as características desse contexto – aos olhos mais desatentos, talvez não tão claramente, porém isto se torna perceptível após bons momentos de estudo. Tem-se que mostrar que este gênero musical influenciou a sociedade e também sofreu influência. A partir dele, modificou-se e criou-se um determinado contexto histórico que refletiu na sociedade e que teve suas consequências. O contexto em que o rock surgiu também refletiu nas suas músicas, nas suas atitudes e foi fundamental para a sua formação. Deve-se ter consciência de que a História não é formada por uma sucessão de eventos lineares. Da mesma forma, este contexto em que surgiu o rock não foi uma cadeia sequencial de fatos que desaguou em Elvis Presley. O tema aqui proposto é a difusão do gênero musical conhecido como rock em território brasileiro, porém considerando como delimitação o acervo da Biblioteca Nacional Digital, no que concerne às publicações da Revista do Rádio, de circulação nacional, com as edições que compreendem os anos de 1955 a 1960. 2 PROBLEMÁTICAS DA HISTORIOGRAFIA ROCK’N’ROLL Inicialmente, é necessário esclarecer que não existe apenas um tipo de rock. O que se conhece hoje por rock é uma construção histórica. Como gênero musical ou manifestação cultural, não pode ser visto como algo homogêneo. Existem vários rocks, várias vertentes, várias formas de fazer, de ouvir e de assimilar. Mesmo com os primeiros artistas e primeiras bandas, não se pode tomar como algo concreto, único. Deve-se analisar dentro das particularidades de cada grupo musical, de cada música considerada rock, de cada receptor do 1 [email protected] 1 som e das imagens2. O próprio termo “rock” foi construído alguns anos após serem gravadas as primeiras músicas que hoje recebem o termo. Por conta deste caráter polimorfo3, será tratado por rock’n’roll o que se refere às canções deste ritmo durante a década de 1950 e suas outras denominações, se se fizerem indispensáveis. Para tratar dos movimentos musicais em geral e das manifestações culturais relacionadas ao ritmo, será utilizado o termo genérico rock, seguido de suas devidas identificações e características que se fizerem necessárias4. Incontáveis estudos sobre o século XX já foram feitos, sobre os mais diversos aspectos e pelos mais diversos pontos de vista. Por isso, o argumento de Paulo Chacon é de que não é possível ignorar totalmente um aspecto cultural tão abrangente e que esteve presente durante toda a segunda metade do século XX. O rock é o seu público. “Acima de tudo, é preciso estudar o público. Se o Rock é o que o seu público é, então, a ele, público, devemos dirigir nossas questões” (CHACON, 1991, p. 75). Para definir o conceito de rock pretende-se despregar os olhos da linguagem musical técnica e descer do espetáculo do palco para alcançar as plateias. (...) o rock deve ser conceituado a partir do seu mercado consumidor. Eu me refiro ao indivíduo que compra o LP, ouve as FMs, assiste aos shows e, em diferentes níveis e graus, idolatra bandas e solistas. Sim, mas quem é esse consumidor? Majoritariamente, ele é representado pelos jovens no início da adolescência até o momento crítico da entrada nos 2 A década de 1950, contexto em que surge o rock, popularizou outras mídias além do rádio. As revistas em geral, e, neste caso, principalmente sobre os artistas do rádio e posteriormente, sobre a televisão, eram uma forma de o público conhecer os artistas que ouvia. Com o advento da televisão, o público pôde ver seus artistas preferidos de forma cômoda, sem sair de casa. Conforme o aumento dos televisores nas casas, as apresentações musicais ficaram cada vez mais populares nos programas televisivos. No caso do rock em geral, a televisão foi um meio de comunicação de suprema importância de 1950 para os anos posteriores chegando à atualidade, acrescentando às apresentações musicais a ideia do videoclipe. 3 O termo é utilizado pelo historiador Paulo Pan Chacon (1991, p. 18) e, por demonstrar ser o mais propício para definir a multiplicidade do rock cultural e historicamente, será utilizado também neste trabalho, para que haja um esclarecimento sobre a pluralidade anteriormente referida. 4 Paul Friedlander, em seu livro Rock and roll: uma história social, prefere o termo “pop/rock” para se referir ao caráter de produto da indústria cultural ao qual o rock é submetido (FRIEDLANDER, 2013, p. 12). Sob outra perspectiva, Albert Pavão caracteriza o termo de acordo com três divisões, seguindo uma ideia de “evolução” musical, a saber: “os blues ritmados que era música do público negro; depois surgiu o rock and roll pelo descobrimento e utilização dos blues pelos músicos brancos e, finalmente, nos anos 60, a música jovem passou a ser chamada simplesmente de rock, principalmente após a consolidação dos Beatles como grandes intérpretes e compositores.” (PAVÃO, 1989, p. 17). 2 tortuosos caminhos da linha de produção. Isto é, o nosso público é aquele que vai da primeira mesada ao primeiro salário. (...) O rock não é, portanto, apenas um tipo especial de música, de compasso ou de ritmo. Restringi-lo a isso é não reconhecer sua profunda penetração numa parcela (cada vez mais) significativa das sociedades ocidentais. (...) O rock é muito mais do que um tipo de música: ele se tornou uma maneira de ser, uma ótica da realidade, uma forma de comportamento. O rock é e se define pelo seu público. Que, por não ser uniforme, por variar individual e coletivamente, exige do rock a mesma polimorfia para que se adapte no tempo e no espaço em função do processo de fusão (ou choque) com a cultura local e com as mudanças que os anos provocam de geração a geração. Mais polimorfo ainda porque seu mercado básico, o jovem, é dominado pelo sentimento da busca que dificulta o alcance ao porto da definição (e da estagnação...). (CHACON, 1991, p. 16-19). As fontes impressas eram ainda pouco utilizadas na historiografia brasileira até a década de 1970. Daí por diante, tem-se aprimorado as técnicas para se analisar este tipo de material e os trabalhos embasados nestas fontes têm-se multiplicado. Tânia Regina de Luca, em seu texto Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos (LUCA, 2014), traz um apanhado sobre essa discussão. O estudo por um meio de comunicação – a revista – para a compreensão da recepção do público de um objeto musical viabilizado por outro tipo de mídia – o disco Long Play. Encontra-se aqui outro aspecto do caráter polimorfo do rock. O rock é música, mas, ao mesmo tempo, é imagem, cinema, revista, disco físico, modo de se vestir. É o som e seus produtos. Torna-se um comportamento. 3 CONTEXTO HISTÓRICO MUSICAL: A FUSÃO DE RITMOS NOS PRIMÓRDIOS DO ROCK O rock não é um ritmo puro. É uma fusão de diversos ritmos musicais. Sua história é compartilhada com a população marginalizada estadunidense do início do século XX: “As raízes do rock’n’roll estão profundamente ligadas às tradições musicais rurais do sul dos Estados Unidos.” (MAZZOLENI, 2012, p. 11). A sociedade estadunidense iniciou o século XX profundamente dividida. Os Estados Unidos foram uma sociedade escravocrata, cuja mão-de-obra eram os negros africanos. As discordâncias internas sobre a escravidão – dentre outros motivos – gerou conflitos entre as 3 regiões norte e sul, culminando numa guerra civil. As heranças da Guerra da Secessão (18611865) se fizeram presentes no cotidiano desde então, mesmo após a abolição da escravidão, oficializada em 18655. A segregação racial foi uma das consequências mais visíveis. “O blues nasceu com o primeiro escravo negro na América.” (MUGGIATI, 1985a, p. 9). O medo que os brancos sentiam de uma rebelião dos negros era enorme, então faziam de tudo para evitar várias formas de comunicação entre eles, que, suspeitava-se, poderiam ser codificadas. Os instrumentos musicais foram proibidos, e tudo o que os negros possuíam para se expressar era sua voz. Havia duas formas de canções. Os spirituals eram as músicas religiosas inspiradas em temas cristãos, já que os negros foram evangelizados, nos Estados Unidos em sua maioria em igrejas protestantes, e as religiões africanas foram proibidas. As work-songs eram, como diz o nome, as canções de trabalho, em que o feitor controlava o ritmo de trabalho dos escravos, tornando o trabalho regular e produtivo, tranquilizando o proprietário, pois era garantido que seus escravos estavam ocupados. Desta última é que se originou mais provavelmente o blues. Em 1912, foi publicado o considerado como primeiro blues6, “por W. C. Handy, que se intitularia ‘O Pai do Blues’” (MUGGIATI, 1985a, p. 16). Com a difusão de uma nova tecnologia de reprodução sonora – o gramofone –, o desenvolvimento do mercado fonográfico e o surgimento das rádios durante a década de 1920, “O blues tirava o pé da lama do Mississipi e iniciava a sua caminhada para a fama nas grandes cidades da América – e do mundo” (MUGGIATI, 1985a, p. 201). Porém, foi um longo caminho desde os prósperos anos da década de 1920 aos anos rebeldes da década de 1950. Vários estilos musicais surgiram, e vários deles, de alguma forma, influenciaram o rock. Acrescente-se o boogie-woogie à lista de ritmos precursores: “Música dançante, de festa e de celebrações de todo tipo, o boogie-woogie é um dos 5 A decisão de abolir a escravidão já havia sido tomada em 1863, por Abraham Lincoln, no que foi chamada de Proclamação de Emancipação. A 13ª Emenda à Constituição, em 18 de dezembro de 1885, proibiu efetivamente o sistema de produção escravista nos EUA. Para mais informações, ver IZECKSOHN, Vitor. O fim da escravidão nos EUA. Disponível em: <http://goo.gl/OMy6RT>. Acesso em: 29 de maio de 2014. 6 “O termo ‘blues’ vem da expressão blue devils, que significa ‘pensamentos tristes’” “ou, mais literalmente, ‘diabinhos azuis’. A palavra blue (azul), em inglês, também significa melancolia/melancólico”. (MAZZOLENI, 2012, p. 20). 4 indiscutíveis ancestrais do rock’n’roll. (...) se criava uma mistura étnica inédita entre os cortadores de lenha negros, os trabalhadores chineses, os operários mexicanos e os contramestres brancos.” (MAZZOLENI, 2012, p. 12). Tocado nos trens que levavam os imigrantes e cujo som era inspirado nos sons dos próprios trens, esse pode ter sido o primeiro ritmo sulista a ser tocado no Norte. Os músicos levavam uma vida instável, eram itinerantes, iam de acampamento a acampamento difundindo a música, que rapidamente alcançou o público negro, mas demorou ainda alguns anos para atingir o público branco. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o swing era uma música ainda mais dançante e agitada, tocada em grandes salões com bastante espaço para o público dançar, e a música proporcionava um ritmo bem marcado para que os dançarinos pudessem acompanhar com sua coreografia, baseada em movimentos ousados e acrobáticos. As orquestras eram conhecidas como big bands, por sua formação chegar a vinte músicos, negros e brancos contratados em uma mesma banda. Os instrumentos eram acústicos, exceto talvez pelo microfone do cantor ou do solista principal, o que dificultava a propagação do som, e quantos mais instrumentos acústicos, melhor o efeito em um grande salão, melhor a propagação das ondas sonoras entre os dançantes. O recrutamento militar reduziu drasticamente a quantidade de big bands, coincidindo com a greve do sindicato dos músicos americanos7 em gravações de discos comerciais. Parte do público direcionou sua atenção para o be-bop, enquanto a maior parte se direcionou para o jump blues e para o rhythm’n’blues – abreviado para R&B. As bandas reduziram seu número de integrantes e os instrumentos amplificados assumiram o lugar dos acústicos, e então a propagação do som se tornou mais eficaz (MAZZOLENI, 2012, p. 16). Ao tratarmos da música folclórica nos anos de 1940 e 1950 nos Estados Unidos estamos falando de um período de estabelecimento da indústria fonográfica e da criação de uma demanda por discos e música gravada. Com a difusão do disco como meio de entretenimento, seu barateamento e o aumento de sua penetrabilidade enquanto meio de divulgação da produção 7 James Petrillo era o presidente do sindicato dos músicos americanos na época. A greve se estendeu de 25 de julho de 1942 a 13 de novembro de 1943, impedindo muitas bandas de gravar e, consequentemente, diminuindo o interesse do público por elas. (MAZZOLENI, 2012, p. 16). 5 musical, e o surgimento de uma demanda de consumo, as canções folclóricas tornaram-se acessíveis a um público mais amplo, com uma consequente inserção de intérpretes e compositores nos distintos circuitos de circulação musical. (ARANTES, 2008, p. 7-8). O rhythm’n’blues é um predecessor direto do rock’n’roll, abrangendo vários elementos essenciais dos ritmos anteriores, como o ritmo agitado e dançante. Desenvolveu-se no final da década de 1940, após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), iniciando o que seria o sentimento de otimismo que viria a perpassar durante a década seguinte. Devido à situação favorável em que os Estados Unidos se encontraram após a Segunda Guerra, o país passou a vender a imagem de sociedade capitalista bem sucedida e a aquisição de bens de consumo se tornou viável a uma quantidade maior de famílias estadunidenses. Os sonhos do carro e da casa própria foram alcançados por muitos e a televisão surgiu como a novidade dos meios de comunicação e entretenimento. Surgia a classe média e seus modos de vida conservadores, que passaram a ser vistos como tipicamente estadunidenses. Mas, além disso, surgiu um novo perfil: o adolescente. Nesse contexto, a junção dos diversos estilos de música negra e ainda alguma coisa do country branco fundiram-se e ressignificaram-se e deram origem ao que foi chamado posteriormente de rock’n’roll. Como havia nos demais ritmos musicais de origem negra, junto ao rock’n’roll veio o preconceito. Porém, o ódio ao rock como a expressão da comunidade negra não era compartilhado por todos os brancos, que adotaram o repertório e se identificaram com as interpretações. Mas também não significa que a oposição acabou assim que alguns brancos incorporaram essa nova música negra. “Elvis Presley jamais será convidado em meu programa!”, declarou Ed Sullivan em junho de 1956. Uma manifestação tão veemente do principal apresentador da televisão americana sobre a maior sensação do momento já mostrava claramente o abismo existente entre as duas gerações. (...) (...) Confiante e conservador, ele pertencia à antiga geração, a dos pais, que vestia terno e gravata e conheceu os anos da Grande Depressão em um país profundamente dividido sobre as questões raciais. Diante dos pais, a geração dos adolescentes era cheia de ardor e esperança por uma América mais justa e um mundo melhor, do qual o rock’n’roll era a trilha sonora, uma verdadeira ruptura. (MAZZOLENI, 2012, p. 6) 6 Existia um conflito entre duas gerações, a dos pais e a dos filhos, que, nessa década de 1950, acabaram tornando-se tão diferentes. A geração anterior, de modo geral, fazia o estilo estadunidense típico, conservador, mantenedor do preconceito racial, apegado a suas tradições e costumes, que viveu a Crise de 1929 e suas consequências. A nova geração, no entanto, encarava o mundo de outra forma, talvez com mais esperança que seus pais, e, agora, via seu espaço na sociedade começar a despontar. Os jovens tinham efetiva participação na audiência dos programas televisivos, e os apresentadores, como Ed Sullivan, não deixaram esse fato passar em branco: trataram de exibir apresentações que agradassem esse público. Mas havia uma resistência mesmo dos apresentadores quanto a alguns artistas, como foi o caso de Elvis Presley e sua dança lasciva. Ainda assim, ele conseguiu atingir um público muito maior em meio ao público adolescente e a mídia e as gravadoras tiveram que admitir isso para comercializar sua imagem e produtos. As questões que o levaram a ser conhecido como “o Rei do Rock” pelos próximos cinquenta anos foram mais do que razões musicais. A imagem que Elvis transmitia influenciou em muito o rumo das questões estéticas na música. Porém, Elvis não foi o primeiro branco a cantar esse ritmo negro e a chocar a população de classe média estadunidense: “Os primeiros brancos a se aventurarem no contagiante ritmo foram Bill Haley, Carl Perkins, Johnny Cash, Jerry Lee Lewis, Roy Orbison e Elvis Presley (...)”. (VINIL, 2008, 11). O primeiro dentre os músicos citados por Kid Vinil, Bill Haley, não teve, no entanto, sucesso tão duradouro como músico de rock quanto a Elvis Presley. Os padrões estéticos na década de 1950 já estavam mudando e, sendo esse um dos motivos, Bill Haley não obteve maior visibilidade posteriormente à década do que possuía à época: “Um dos caras mais negligenciados pela mídia foi Bill Haley, músico do Estado de Michigan, que já tocava rock and roll desde o início dos anos 50” (VINIL, 2008, p. 13). Mas seu reconhecimento enquanto importante personalidade nesse início é irrefutável. Seu início foi difícil perante as gravadoras, mas a partir do momento em que sua música entrou para a trilha sonora de um filme sobre o universo adolescente, justamente por representar musicalmente o sentimento do público, a carreira de Bill Haley and his Comets atingiu seu apogeu. “Os autores de ‘Rock Around the Clock’, inconformados com o pouco 7 sucesso que a canção fez inicialmente, resolveram então mandá-la a Hollywood para ser incluída na trilha sonora do filme Sementes da Violência.” (VINIL, 2008, p. 17). 4 SEMENTES DA VIOLÊNCIA: A JUVENTUDE DO PÓS-GUERRA A juventude está naquele centro onde nasce o novo. Há novamente uma geração que deseja superar a encruzilhada, mas a encruzilhada não está em nenhum lugar. (Walter Benjamin)8 Tomando como base a afirmação de Paulo Pan Chacon de que o rock é o seu público, é necessário dirigir uma análise mais detalhe para identificar quem é esse público – ou quem são esses públicos. No contexto de meados da década de 1950, o público que se identificava com o rock’n’roll era constituído, em sua maioria, por adolescentes e jovens adultos. Segundo Luisa Passerini, ao se desconstruir o conceito de juventude que desencadeou no teenager estadunidense do pós-guerra e pensar o adolescente enquanto sujeito histórico, há algumas datas importantes a se considerar: (...) a década da virada do século [XIX], como fase determinante para a invenção da adolescência, que retoma em termos psicológicos e sociológicos a ideia da juventude como turbulência e renascimento, germe da nova riqueza para o futuro, força capaz de aniquilar a miséria do passado, prometendo uma regeneração tanto individual quanto coletiva; a década de 1960 como fase final daquele conceito, incluindo os últimos estertores – no que concerne a ideia de juventude – representados pelos movimentos estudantis. (PASSERINI, 1996, p. 319). Adentrando no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, o novo agente social que surge é o adolescente9. Tratado pela indústria capitalista como um novo perfil de consumidor, ao qual dirigiu seus produtos, era visto pela sociedade estadunidense conservadora como um ser dotado da “capacidade de ser a força obscura e estranha que ameaça a corrida rumo ao progresso da sociedade americana.” (PASSERINI, 1996, p. 320). 8 BENJAMIN, Walter. Metafisica dela gioventù. Scritti 1910-1918. Turim: Einaudi, 1982, p. 108. apud PASSERINI, Luisa. A juventude, a metáfora da mudança social. Dois debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950. In: LEVI, Giovanni; SCHMITT, Jean-Claude. (Org.). História dos Jovens 2: a época contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 373. 9 O período da adolescência aqui compreendido vai dos 13 aos 19 anos. 8 Após a Segunda Guerra é que a adolescência passou a ser tomada como uma fase da vida. Meses antes do término, em janeiro de 1945, foi publicado no jornal The New York Times um artigo enumerando os dez direitos dos adolescentes10. A ‘Teen-Age Bill of Rights usava o termo, teenage, como “parte da linguagem corrente” (PASSERINI, 1996, p. 352). Quanto ao conteúdo veiculado, a introdução situava o leitor sobre os debates acerca dos teenagers e as perguntas que suscitavam por parte dos pais sobre “o que há de errado com nossos filhos?” e “o que há de errado conosco?”. Era a juventude uma válvula de escape para as incertezas, receios e temores da sociedade, “como uma metáfora do social de um discurso que a sociedade conduzia sobre si mesma e sobre as próprias inquietudes” (PASSERINI, 1996, p. 354). Porém, há pouco tempo esses debates eram feitos apenas entre os adultos, e pouco importava a opinião dos teenagers sobre o assunto. Mas no período pós-Segunda Guerra, os adolescentes adentraram no debate. Preocupou a muitos pais e estudiosos essa identificação que estava surgindo entre os adolescentes – aquilo que o sociólogo James Coleman chamou em seus estudos de “subcultura adolescente na sociedade industrial”11 – era algo preocupante. “Edgar Friedenberg, autor de estudos fundamentais sobre os jovens no campo da psicologia, observou que o teenager parecia ter substituído o comunista como objeto de controvérsia pública e de previsão sobre o futuro da sociedade.” (PASSERINI, 1996, p. 355). Os adolescentes ganhavam o centro das atenções, ao passo que os adultos sentiam-se temerosos em perder sua autoridade perante a juventude que não estava se encaixando nos padrões previstos de aceitação dos modelos sociais. Ao mesmo tempo em que havia a tentativa de conter e rebater as manifestações adolescentes, havia também uma indústria cultural que se aproveitava para fornecer produtos a serem consumidos por esses jovens. A indústria cinematográfica foi uma delas, apresentando justamente a visão temida da perca da autoridade: “[...] o cinema os apresentava [os professores] aterrorizados por bandos de 10 COHEN, Elliot E. A ‘Teen-age bill of rights. The New York Times, New York, 7 Jan. 1945, p. 17; 54. Disponível em: <http://goo.gl/B8oLJY>. Acesso em: 15 nov. 2014, tradução nossa. 11 COLEMAN, James S. The adolescente society. The social life of the teenager and its impact on education. Glencoe: Free Press, 1961, p. 11-3. apud PASSERINI, 1996, p. 355. 9 adolescentes violentos e prevaricadores, como no famoso Blackboard Jungle [Sementes de violência] (1955)” (PASSERINI, 1996, p. 359). “Antes da Segunda Guerra Mundial, a liberdade de ação dos adolescentes era restrita. Eles não tinham praticamente nenhum poder econômico e nenhuma influência nas escolhas e tendências dos adultos.” (MAZZOLENI, 2012, p. 122). Mas, para a alegria das indústrias estadunidenses – segundo Eric Hobsbawm, os Estados Unidos chegaram ao fim da guerra “com quase dois terços da produção industrial do mundo” (2002, p. 254) – a mudança foi drástica. Grande parte da mídia anunciava o caos; “Para outros, menos reacionários e mais empreendedores, o surgimento dos adolescentes e da cultura jovem anunciava uma abundância comercial aparentemente sem fim.” (MAZZOLENI, 2012, p. 123). “O surgimento do adolescente como ator consciente de si mesmo era cada vez mais reconhecido, entusiasticamente, pelos fabricantes de bens de consumo” (HOBSBAWM, 2002, p. 318). Afora a propagação do american way of life, os primeiros anos da Guerra Fria foram marcados por turbulências – incluindo-se aí o medo dos comunistas e das bombas – em que se encaixou a questão discutida à época sobre a delinquência juvenil. Nos documentos do Subcomitê do Senado sobre a Delinquência Juvenil lia-se que “o gângster de amanhã é o tipo à Elvis Presley de hoje”. (PASSERINI, 1996, p 361). Essa preocupação se estendia às novas formas de manifestações culturais. Os meios de comunicação que contribuíram para a difusão dessas manifestações foram apontados como culpados pela delinquência. “A combinação de duas mídias importantes como os discos e o cinema favoreceu o sucesso de filmes baseados em canções famosas como as de Pat Boone e Elvis Presley” (PASSERINI, 1996, p. 373). Como anteriormente citado, a indústria cinematográfica trabalhou a estética adolescente em seus filmes. O primeiro deles foi O Selvagem (The Wild One, 1953); seguido por Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955), que trouxe James Dean a ídolo; e enfim o primeiro filme que trouxe o rock’n’roll como parte da trilha sonora, Sementes da Violência (Blackboard Jungle, 1955). “O filme responsável pela estética padrão do rock and roll foi, sem dúvida, O Selvagem (The Wild One), de 1953. (...) Ainda em 1955, outro filme consolidava a geração rock and roll: Sementes da Violência (Blackboard Jungle)” (VINIL, 2008, p. 16). 10 Muito dessa visão criada e disseminada pelo cinema hollywoodiano atravessou as décadas e continua a existir atualmente, em pleno século XXI. Mas tratando ainda a década de 1950, essa visão não se manteve apenas nos Estados Unidos. Assim como os filmes, ultrapassou fronteiras e se espalhou pelo Ocidente, junto de outros filmes com a mesma estética que consagrou Elvis Presley. Mais do que isso, o filme levou a música. E a música que acompanhou a exibição do filme para diversas salas de cinema espalhadas pelo globo – incluindo as brasileiras – era Rock around the clock, da banda Bill Haley and His Comets. O filme que alavancou a carreira do grupo de Bill Haley e que foi exibido em diversos países do mundo teve uma grande repercussão. As reações a ele foram consideradas tão rebeldes quanto às atitudes dos atores do filme. (...) no filme Sementes da violência, uma única cena resume perfeitamente essa ruptura de gerações. Um professor tenta criar laços com seus alunos fazendo-lhes ouvir músicas de sua coleção de discos. Incapazes de se reconhecerem nessa preferência, eles se irritam e atiram os discos por toda a classe ao som de “Rock Around the Clock”, de Bill Haley & His Comets. Hollywood associou o rock’n’roll instantaneamente à rebelião adolescente. O sucesso internacional de Sementes da violência se deu em grande parte à sua trilha sonora, o que não mudava o fato de que a partir dali todos os adolescentes que escutavam o rock’n’nroll passaram a ser vistos pelos adultos como arruaceiros em potencial! (MAZZOLENI, 2012, p 122). O filme No Balanço das Horas, lançado no ano seguinte, aproveitou-se do sucesso da canção e trouxe às telas um musical; o filme foi totalmente destinado ao público jovem, trazendo os artistas que estavam fazendo sucesso com o rock’n’roll. O filme fez tanto reboliço quanto o anterior, causando grande alvoroço nas salas de cinema. Estava definido um mundo adolescente, o qual os adultos não compreendiam ou aceitavam. “O aparecimento de um filme desse gênero numa sala do centro legitimava a subcultura adolescente; era uma ocasião para a demonstração pública de presença, identidade e solidariedade dos adolescentes.” (PASSERINI, 1996, p. 372-373). O filme também foi exibido no Brasil. 5 A REVISTA DO RÁDIO A Revista do Rádio circulou de fevereiro de 1948 a 4 de agosto de 1970. Seu período de publicação compreendeu os anos seguintes ao fim do Estado Novo de Getúlio Vargas; o 11 governo instituído por eleições diretas do General Eurico Gaspar Dutra (1946-1950); o segundo governo Vargas (1951-1954); os “anos dourados” do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960); o curto governo de Jânio Quadros (1961); o governo de João Goulart (1961-1964), destituído por um golpe de Estado; e os primeiros anos do Regime Militar; sendo um documento histórico que esteve presente durante quase um quarto do século XX, acompanhando as transformações culturais do Brasil. A partir de 1969, a revista passou a se chamar Revista Rádio e TV. No total, foram 1073 números lançados. Esta publicação é um meio a ser usado para tentar conhecer um pouco sobre o público do rock’n’roll em seu início, verificando qual a aceitabilidade dos meios de comunicação e quais os territórios de interdito que estas mídias traçavam. “Para isso podemos utilizar as listas de vendagem, os fã-clubes, as revistas especializadas” (CHACON, 1991, p. 75). Na edição número 320, o rock’n’roll apareceu pela primeira vez de forma indireta. Foi lançada uma nota sobre o filme Sementes da Violência, informando que o filme havia sido visto pela crítica carioca e comentando brevemente que o filme havia sido vetado no Festival de Veneza. “Nessa ocasião, muitos brancos tinham formado conjuntos. Entre eles estavam os Cometas de Bill Haley, cuja especialidade era “cobrir” (to cover) ou suavizar os violentos blues, em geral de letras maliciosas - conforme afirma Charlie Gillett no seu livro Sounds of City (PAVÃO, 1989, p. 17). Parece haver um consenso quando se fala das primeiras canções e de Bill Haley and his Comets como o primeiro grupo musical de rock, a primeira banda. Mas que ponto de partida tomar para alcançar o público paulista e carioca? Qual solista ou grupo selecionar para manter a coerência na sequência de relação entre os fatos? Uma das muitas possibilidades de resposta pode ser o mesmo grupo, Bill Haley and his Comets. “Em Congonhas aguarda-se a chegada de Bill Haley e seus Cometas, os reis do rock and roll, que a convite da rádio e TV Record cumprirão curta temporada para deleite da juventude, que enquanto espera seus ídolos, mesmo sob a chuva, se entrega ao ritmo crazy.” (PRIMEIRA visita de Bill Haley ao Brasil. São Paulo: TV Record. 1958. (4:09)). O grupo Bill Haley and his Comets esteve no Brasil antes de voltar às suas raízes do country (MAZZOLENI, 2012, p. 160), em abril de 1958. Três cidades receberam os shows, 12 sendo elas Rio de Janeiro, São Paulo e Sorocaba (A HISTÓRIA do rock em Sorocaba, 2011). Pouco se recorda sobre este acontecimento nos atuais estudos sobre o rock no Brasil. No entanto, é possível utilizar este fato para compreender uma parcela do processo de disseminação do rock no Brasil. Resgatar a passagem de Bill Haley and his Comets pelas cidades São Paulo, Sorocaba e Rio de Janeiro pode responder algumas questões pertinentes. O vídeo sobre a visita do grupo ao Brasil diz que o convite foi da rádio e TV Record, para se apresentar em São Paulo. Em Sorocaba o show aconteceu no Ginásio de Esportes Gualberto Moreira, em 26 de abril de 1958, às 14h. O único da cidade que noticiou o evento foi o Folha Popular. Segundo as notícias veiculadas, Bill Haley and his Comets não viriam sozinhos: traziam Wilian Forneaut; Castatinha e Inhana; Izauro Garcia; Trio Ipanema e Dircinha Costa vieram em substituição aos artistas Jackson do Pandeiro – o tão esperado – e Almira, que não puderam vir. Os artistas eram os contratados pela Rádio e TV Record, e as fontes não permitem saber se o público estava mais interessado no rock’n’roll ou nos artistas brasileiros. A Revista do Rádio apresentou a notícia da vinda de Bill Haley com certo entusiasmo – mas assim são suas notícias: contadas num tom de quem conta uma curiosidade, uma novidade excitante ao leitor. Os artistas que prestaram seus depoimentos à revista, no entanto, não demonstravam o mesmo. Preferiam enfatizar a música nacional. Isto se mostrou presente na revista também, ao longo das notícias sobre o show – e na canção “Rock Around The Clock”, aparecendo sempre ao lado do nome de Nora Ney – em que os artistas brasileiros são colocados ao lado do rockstar, relatando mais que Bill Haley se encantou com nossos artistas e que queria levá-los para o exterior do que sobre o próprio show – de fato, Cauby Peixoto realmente foi para os Estados Unidos. Os artistas brasileiros viram a presença dos estadunidenses mais como uma oportunidade de divulgar a sua música para o próprio Brasil e para os outros países do que de forma a agregar os artistas internacionais. É importante destacar que o público da Revista do Rádio não era constituído unicamente pelos jovens a que se refere Paulo Pan Chacon “Isto é, o nosso público é aquele que vai da primeira mesada ao primeiro salário”. A Revista do Rádio, de âmbito nacional, tinha vários focos. 13 Ainda nas matérias da revista que faziam referência aos shows que Bill Haley and his Comets fizeram no país, nenhuma delas se trata de uma entrevista direta com os integrantes da banda. Tratam, antes, do acontecimento promovido na casa da cantora Ângela Maria. O acontecimento se trata de uma feijoada na casa de Ângela, novamente associando um dos símbolos “tipicamente brasileiros” oferecido à banda. Como é de característica da revista, o foco da matéria não era a notícia em si, mas sim as fotos dos artistas presentes. Depois disso, Bill Haley tornou-se um ponto de referência nas matérias seguintes: seu cabelo estilo “pega rapaz”; as casas de shows que receberam a banda eram promovidas com seu nome; em referência ao empresário Alex Valdez, que trouxe Bill Haley and his Comets ao Brasil e levou Cauby Peixoto aos EUA, notícia que, inclusive, rendeu matérias para várias edições. 6 A RECEPÇÃO BRASILEIRA O samba é tradição. O “rock” é novidade que não possui consistência. O samba mil vêzes mais. (Bill Farr)12 Pensando-se na situação musical do estratificado Brasil do fim do século XIX, “Gilberto Freyre enxergava na nossa tradição musical uma forma de unificação das classes sociais. Mas isso não quer dizer que o processo fosse unicamente harmonioso ou isento de conflitos” (MACHADO, p. 120): A música, desde sacra, de interior de igreja, à de largo de matriz, representada pela banda que tocava dobrados cívicos e até pela de africanos que nos sambas e maracatus recordavam a África negra nas ruas do Rio de Janeiro ou do Recife ou de Salvador, acompanhava de tal modo o brasileiro do tempo do segundo reinado nas suas várias e contraditórias expressões de vida e de cultura, de algum modo harmonizando-as ou aproximando-as, que se pode afirmar ter se realizado, então mais pelos ouvidos que por qualquer outro meio a unificação desses brasileiros e várias origens de um brasileiro de um só parecer, quase de um só sentir. Pois se umas músicas os dividiam em classes, em raças, em culturas diferentes, outras os uniam num povo só, através de uma síntese sonora de 12 REVISTA DO RÁDIO. Rio de Janeiro, N. 390., p. 11. 14 antagonismos e contradições. A modinha, por exemplo, foi um agente musical de unificação brasileira, cantada, como foi, no Segundo Reinado, por uns, ao som do piano, no interior das casas burguesas; por outros, ao som do violão, ao sereno ou à porta até de palhoças. Sua voga prolongou-se entre a gente média até os primeiros decênios da República. (FREYRE apud MACHADO, 2013, p. 120-121). No entanto, a ideia transmitida por Gilberto Freyre não abrange as reais tensões existentes entre as camadas sociais. Não é possível estabelecer uma harmonia e muito menos pressupor uma união entre essas expressões culturais. Cacá Machado propõe pensar a relação de transposições musicais entre essas camadas como uma mediação cultural. Aqui cabe uma digressão metodológica: em vez do termo unificação social utilizado por Gilberto Freyre, como vimos acima, para caracterizar essa capacidade híbrida e mercurial que a música tem em percorrer vários estratos socioculturais, acredito que a ideia de mediação cultural seja mais precisa para o nosso caso. A questão é que o termo unificação traz embutida a ideia de harmonia ou pacificação dos opostos enquanto o termo mediação descreve mais especificamente a noção de trânsito ou troca entre os opostos. Sabemos o que rendeu o debate sobre a frase freyriana da mistura das raças, muitas vezes, aliás, baseadas em leituras apressadas do autor. Portanto, para não abrir margem a conclusões equivocadas, apesar do inestimável valor do pensamento de Gilberto Freyre, prefiro ficar com a ideia de mediação cultural. (MACHADO, 2013, p. 121). Essa mediação cultural seria o que também se pode entender como uma circularidade cultural. Diferentemente de uma homogeneização cultural passiva, essa circularidade se caracteriza por interpenetrações culturais entre as camadas sociais, como o caso da música que de meados do século XX em diante passou a ser conhecida como a “autêntica” música brasileira: o samba. Comparando o desenvolvimento da música negra nos EUA e a música negra no Brasil, podemos encontrar algumas semelhanças e muitas diferenças. A música negra das work songs e dos spirituals desembocou no rock’n’roll do início dos anos 1950, sofrendo os preconceitos que perpassavam as manifestações culturais dos negros. A música negra do Brasil desenvolveu-se também, adentrando o século XX com o choro tocando nas salas de visitas dos morros no Rio de Janeiro e o samba tocando no fundo 15 do quintal, sendo mal visto e reprimido pelas classes mais altas, a música que viria a se tornar uma forma de protesto da massa. Depois, seria incorporada à questão de identidade nacional. Durante a década de 1950, a popularização do rádio havia atingido seu auge. As ondas do rádio atingiam pessoas de diversas camadas sociais e da mesma forma popularizaram-se as músicas transmitidas: músicas com características regionais; marchinhas; músicas com temática romântica; músicas estrangeiras e músicas nacionais embaladas pelas influências de fora; e uma infinidade de sambas, como sendo os mais tocados. Foi nesse contexto que surgiu um movimento folclorista – os “folcloristas urbanos” – que enaltecia aquilo que chamava de “autêntica música popular brasileira” de duas décadas antes, depreciando a produção musical da década de 1950, como escreve Marcos Napolitano: [...] a desqualificação daquele período teve sua gênese na própria década de 1950, por conta de um projeto historiográfico que construiu uma determinada ideia de tradição e “autenticidade” que incensava a década de 1930, em contraponto com os “decadentes” anos 1950. (NAPOLITANO, 2010, p. 60). Desta forma, a Revista do Rádio, segundo o pensamento desses folcloristas e nacionalistas, poderia ser considerada um elemento de difusão da música que denominavam “popularesca”, no sentido pejorativo que esse termo aparenta ter. considerando a visão desses intelectuais, “a nova audiência radiofônica consumia mais a vida dos seus ídolos do que a música que eles interpretavam.” (NAPOLITANO, 2010, p. 62). No entanto, a tão valorizada música popular surgida prioritariamente entre a população negra dos altos dos morros do Rio de Janeiro, estaria se dissociando de suas raízes pobres. Marcos Napolitano, analisando obra do “tradicionalista” José ramos Tinhorão, apontou como esse afastamento foi visto como uma consequência da “alienação” dos jovens com relação à tradição cultural musical. A década de 1950, porém, marcava o advento de uma recente separação social no Rio de Janeiro – pobres nos morros e na Zona Norte e ricos e remediados na Zona Sul – que não favorecia de modo algum este contato com as fontes do ritmo popular. Pelo contrário, propiciava o surgimento de uma camada de jovens completamente desligados da tradição musical popular [...]. Esse divórcio iniciado com a fase do samba tipo bebop e 16 abolerado de meados da década de 1940 atingiria o auge em 1958, quando um grupo de moços [...] rompeu definitivamente com a herança do samba popular. (TINHORÃO, 1991, p. 231 apud NAPOLITANO, 2010, p. 60). Este trecho refere-se à Bossa Nova como a quebra da tradição do samba. Obviamente, existia então grande relutância em aceitar influências estrangeiras. Entretanto, esses jovens alienados concentrados em regiões do Rio de Janeiro como a Zona Norte foram responsáveis por incorporar as primeiras influências do rock’n’roll, gravando as primeiras canções em português, segundo Paulo Seabra. Foi no Rio de Janeiro que os primeiros Rock‘n’Rolls foram gravados e divulgados, sendo a zona norte e o subúrbio um verdadeiro celeiro de músicos e cantores, ligados ao rock, tais como: a Turma da Matoso - Tijuca (Tim Maia, Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Jorge Ben Jor); os Golden Boys, Renato e seus Blue Caps, The Fevers, Tony Tornado, Gerson King Combo, Lafaiette, além da Turma do Imperator - Méier, que nos anos 1950, eram uma das maiores da cidade. (SEABRA, 2012, p. 12). Ora, evidentemente o rock’n’roll tinha seus admiradores no Brasil ainda na segunda metade da década de 1950 e é inegável que a trilha sonora do filme Sementes da Violência teve uma excelente vendagem – sendo ainda mais difundido pela interpretação de Nora Ney, tanto em inglês quanto em português –, mas nem de longe a repercussão teve a força e o impacto que teve nos Estados Unidos. A resistência aos estrangeirismos era, nesta época, mais forte. “nossa teimosa e nacionalista intelectualidade (e isto não tem um tom irônico) sempre procurou, especialmente nos turbulentos anos 60, do CPC ao Arena, resistir a tudo aquilo que tivesse cara ou cheiro de ESSO, Ford ou Kolynos”. (CHACON, 1991, p. 7). A princípio, o Brasil não recebeu bem o rock. Porém, não apenas por ser cantado em uma língua estrangeira ou por seu ritmo agitado. O rock não foi bem recebido devido ao fato de estar fora de seu contexto original. No Brasil da década de 1950, o rock não fazia sentido. O rock surgiu para representar as manifestações de uma classe social marginalizada nos Estados Unidos. A classe marginalizada em questão no Brasil também difundiu uma cultura própria. Primeiramente, ambos os países tentaram reprimir seu respectivo ritmo musical: os Estados Unidos, o rock; o Brasil, o samba. Em segundo lugar, houve a incorporação do ritmo 17 pela mídia e a difusão em seu país de origem, transformando em mercadoria e estabelecendo preços nos ritmos que de agora em diante seriam tratados como produtos, deixando lado a lado a intenção inicial de expressão cultural com os fins mercadológicos. Posteriormente à difusão do produto em território nacional, e do comprovado sucesso econômico, social e culturalmente, cada ritmo foi divulgado para os demais países, apresentando já algumas esteriotipações, como o samba na imagem de Carmen Miranda e o rock na imagem do “rebelde sem causa” transmitida pelos filmes, e encarnada, a partir da segunda metade do século XX, por Elvis Presley. Ambos os ritmos passaram por um processo de “branqueamento”: 1 – foram rejeitados pelos brancos; 2 – foram aceitos pelos brancos; 3 – foram absorvidos e/ou ressignificados pelos brancos; 4 – foram propagados pelos brancos. A cor da pele como uma forma de divisão em duas classes de pessoas do mesmo período histórico: é a forma como ambas as sociedades se encontravam, um dos pontos convergentes mais significativos na história de ambos os países, porém ocorridos de formas diversas. As diferenças e particularidades históricas de cada ritmo os levaram a destinos tão diferentes musicalmente, mas parecidos em propósito. No momento em que o rock chegou ao Brasil, houve então o choque de culturas. Retomando a citação de Paulo Pan Chacon: “O rock é e se define pelo seu público. Que, por não ser uniforme, por variar individual e coletivamente, exige do rock a mesma polimorfia para que se adapte no tempo e no espaço em função do processo de fusão (ou choque) com a cultura local (...).” (CHACON, 1991, p. 19). Eis o que pode ter acontecido inicialmente no Brasil, tendo antes da fusão da música estrangeira com a música nacional, o choque com a cultura popular musical brasileira. Se o rock se define pelo seu público, o público que o rock encontrou no Brasil não era o mesmo dos Estados Unidos. As características do gosto musical do público brasileiro em muito divergiam daqueles que elevaram o rock a um produto de consumo, causando o choque. Quando as primeiras músicas chegaram ao Brasil, foram cantadas em versões em português por consagrados cantores do rádio (DANTAS, 2007, p. 36-37), que estavam acostumados a interpretar as músicas da moda e encararam as canções do rock da mesma forma, acreditando que logo acabaria a moda deste ritmo que sequer tinha nome definitivo. 18 No Brasil, o rock comportamento teve muita importância durante todo o tempo, embora o rock música não mostrasse a mesma repercussão, pois não teve o apoio dos principais veículos de comunicação no período 1955-65, que mostravam clara e óbvia preferência pela bossa nova. Todavia, este fato não diminui a importância que o rock brasileiro na realidade teve, no sentido de desaguar no enorme sucesso do movimento Jovem Guarda e, por tabela, gerar como descendentes, tanto uma música pop infantil, como um chamado rock-Brasil, que no final destes anos 80 comandam as vendagens de discos e preferência popular, dentro do panorama musical brasileiro. (PAVÃO, 1989, p. 19). Pavão salientou que o rock como comportamento foi o que teve maior impacto no Brasil. Os jovens estadunidenses – de forma mais muito intensa – foram contagiados pelo comportamento rock’n’roll. O comportamento dos jovens com relação ao rock’n’roll era considerado uma questão de segurança. Frente a essa “ameaça” à moralidade, as autoridades sentiram a necessidade de tomar providências. Nos Estados Unidos, de 1950 a 1960, há uma série de intervenções governamentais para a contenção da “delinquência juvenil”, da qual o rock era parte essencial numa tentativa de regulamentar e disciplinar o comportamento – ou os comportamentos – dos jovens. No Brasil, houve preocupações semelhantes. Em 1956, segundo Pavão, não foram gravadas músicas de rock em português. No entanto, a exibição do filme Rock Aroud The Clock gerou tumulto quando da sua exibição nos cinemas do estado de São Paulo, preocupando o então governador Jânio Quadros, que deu ordens ao seu secretário de segurança do estado. Na exibição do “Ao Balanço das Horas”, houve uma baderna como jamais se havia visto em S.Paulo. Enquanto o filme era exibido, os jovens dançavam, gritavam e até queimavam rolos de inseticida. O tumulto foi tão grande que o governador do Estado (Jânio Quadros) foi obrigado a intervir. Informado, Jânio encaminhou despacho ao Secretário de Segurança nos seguintes termos: “Determine à polícia deter, sumariamente, colocando em carro de preso, os que promoverem cenas semelhantes. Se forem menores, entregá-los ao honrado Juiz. Providências drásticas”. Por sua vez, o Juiz de Menores, Aldo de Assis Dias, tratou logo de baixar Portaria proibindo o filme até 18 anos. Nela escreveu: “O novo ritmo divulgado pelo americano Elvis Presley é excitante, frenético, alucinante e mesmo provocante, de estranha sensação e de trejeitos exageradamente imorais”. E prossegue: “A música exerce influência prejudicial à juventude. Parece- me também conveniente que seja feito apelo às estações de rádio e televisão para que 19 não transmitam música com esse ritmo, até que se restabeleça o equilibrio dessa mocidade”. À ação do rock, correspondeu a reação da sociedade, amedrontada pelo poder devastador dessa nova música e da dança, ousada demais. (PAVÃO, 1989, p. 23-24). A ordem encaminhada pelo então governador do estado Jânio Quadros ao seu Secretário de Segurança transformou-se na Portaria Nº 17, de 19 de fevereiro de 1957 13. Este documento, publicado no Diário Oficial do São Paulo em 28 de fevereiro de 1957, proibiu a dança e a execução do ritmo em locais públicos durante os bailes de carnaval, alegando que o ritmo era um atentado à moral e os bons costumes. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mas o rock não é somente música. De início representava a rebeldia dos jovens contra os mais velhos. Com o tempo, essa posição de “contramão” foi se transformando em contestação dos valores vigentes, chegando, nos anos 60, a se constituir em contracultura. (Albert Pavão)14 A incorporação do rock às vozes brasileiras se deu com as versões produzidas por artistas da música popular, que levou a composições em português que receberam o rótulo de rock, até que a década de 1960 trouxe um movimento que ganhou o nome de Jovem Guarda, graças a um programa da TV Record com este título – a mesma TV Record que havia produzido os shows de Bill Haley and his Comets em três cidades do país, acompanhado de uma leva de artistas brasileiros. Poucos foram os jornais da época que noticiaram a vinda de Bill Haley and his Comets ao Brasil, e os que o fizeram, foi de forma breve, nas páginas de eventos, de maneira corriqueira, sem maiores detalhes. Nesses casos em que a notícia estava presente, a presença dos artistas brasileiros ganhava especial ênfase. O movimento Jovem Guarda surgido posteriormente não é o mesmo do rock’n’roll da década de 1950, nem pode ser tomado por uma continuidade. O público que o rock veio a 13 SÃO PAULO (Estado). Segurança Pública. Departamento de administração. Portaria N. 17, de 19 de fevereiro de 1951. O Secretário de Estado dos Negócios da Segurança Pública... Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo, 28 fev. 1957, p. 15. 14 PAVÃO, 1989, p. 19. 20 adquirir nos Estados Unidos à época das canções de rhythm’n’blues, que ainda não eram o rock em si não é o mesmo que encontrou a Jovem Guarda na década de 1960. Uma característica que se procurou destacar foi o polimorfismo do rock; mas se o rock é o seu público, é o seu público então polimorfo: em sua maioria jovens, produtores e consumidores, público do rock. “(...) o polimorfismo é algo mais que a multiplicidade: é a disponibilidade para assumir diversas configurações, incluindo aquelas que a própria cultura define como irremediavelmente outras.” (PASSERINI, 1996, p. 367). “(...) Não pense que os de hoje esqueceram suas idéias e seus mortos. Apenas não lhes cobre a cópia. A seu modo, com novos métodos e novos ídolos, todos (tá bom, a maioria) resistem.” (CHACON, 1991, p. 9). Logo depois estas músicas e comportamentos estenderamse à Grã-Bretanha. Os artistas de rock’n’roll expandiram-se para todo o mundo. Inspirados nos ídolos estadunidenses, jovens começaram a formar grupos musicais e a fazer rock’n’roll, formando os dois focos musicais aos quais o mundo esteve voltado durante meados da década de 1960, como nunca antes: a década de 1960 se inicia com as formações das bandas adolescentes que, inspirados em artistas negros e brancos, deram origem às bandas de maior sucesso até os presentes dias. A década seguinte foi a que consagrou o rock’n’roll e abriu um imenso leque de variações. Foi a década da Invasão Britânica, com The Beatles levando seu “yeah, yeah, yeah” para os Estados Unidos, seguidos daqueles que foram à época considerados sua contraposição, The Rolling Stones. Foi uma década dividida por fases; pela Guerra Fria; pela Guerra do Vietnã; foi a década da explosão da contracultura hippie; de regimes autoritários; da psicodelia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: A HISTÓRIA do rock em Sorocaba. Concepção, direção e edição de Cleiner Micceno. Produção de Delnaja. 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