Magna Carta e CPPLI 151210 _2 - Instituto de Estudos Políticos

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Sobre o legado de Magna Carta e a cultura política dos povos de língua inglesa
João Carlos Espada
Conferência “Magna Carta: Significados”
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, 10 de Dezembro de 2015
Queria começar por agradecer o honroso convite que me foi dirigido pelo Dr. Silvestre
Lacerda para participar nesta conferência sobre os significados da Magna Carta. Gostaria
ainda de saudar esta iniciativa conjunta do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e da
Senhora Embaixadora do Reino Unido, Kirsty Hayes, que permitiu trazer a Portugal um dos
originais da Magna Carta — o que muito nos honra.
*
Como é sugerido no título da minha comunicação, proponho-me discutir o legado da Magna
Carta do ponto de vista da especificidade da cultura política dos povos de língua inglesa.
Isto significa, entre outras coisas, que no centro do meu argumento não estará propriamente
a excepcionalidade da Magna Carta. Estará sobretudo a excepcionalidade da cultura política
de língua inglesa e do papel nela desempenhado pela Magna Carta e pelo seu legado.
Gostaria de abordar este tema em quatro momentos principais. Em primeiro lugar, referirei
brevemente o conceito de cultura política específica dos povos de língua inglesa. Num
segundo momento, recordarei brevemente como Winston Churchill descreveu essa cultura
política e como a remeteu sempre para a tradição da Magna Carta. Em terceiro lugar,
argumentarei que a âncora da Magna Carta deu a essa cultura política o conceito crucial de
governo limitado. Em quarto lugar, concluirei com nova referência a Winston Churchill e ao
seu conceito de “corrente de ouro” entre passado, presente e futuro.
I
Sobre a especificidade da cultura política de língua inglesa
Começando pela especificidade da cultura política dos povos de língua inglesa, eu diria que
se trata de um tema que captou a imaginação de várias gerações de anglófilos na Europa.1
Desde a Revolução Francesa de 1789, gerações sucessivas de grandes intelectuais franceses
– como Benjamin Constant, Guizot, Tocqueville, Élie Halevy ou Raymond Aron –
observaram a propensão da França para o eterno conflito entre revolução e contrarevolução, lamentando que a chamada “Pátria das Luzes” não tivesse conseguido reproduzir
o chamado “milagre da Inglaterra moderna”, uma frase cunhada por Élie Halevy. E é
importante notar que este milagre não residiu apenas, nem mesmo sobretudo, no facto de a
Inglaterra ter sido poupada à revolução desde 1688. Como recordou a distinta historiadora
norte-americana Gertrude Himmelfarb,
1
Em Anglomania: A European Love Affair (New York: Random House, 1998), Ian Buruma oferece uma excelente
panorâmica, divertida e informativa, do impacto da tradição Anglo-Americana (neste caso, principalmente Inglesa)
sobre várias gerações de anglófilos na Europa. Por outro lado, James W. Ceaser oferece também uma excelente
panorâmica da reacção na Europa contra a tradição Anglo-Americana (neste caso, principalmente americana) no seu
livro magnífico Reconstructing America: The Symbol of America in Modern Thought (New Haven & London: Yale
University Press, 1997).
“O verdadeiro “milagre da Inglaterra moderna” (a famosa expressão de Halévy)
não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas
revoluções – industrial, económica, social, política, cultural – sem recorrer à
Revolução.”2
No capítulo dedicado à filosofia política, através do qual deu o seu contributo para a Oxford
History of Western Philosophy, Anthony Quinton reconheceu esta especificidade da cultura
política de língua inglesa com um olhar original. Afirmou que “o efeito da importação das
doutrinas de John Locke em França foi muito semelhante ao do álcool num estômago
vazio.” Lord Quinton acrescenta que em Inglaterra os princípios de Locke “serviram para
sancionar uma ampla revolução conservadora [em 1688] contra a inovação absolutista”,
enquanto que em França [em 1789] a importação das ideias de Locke conduziria ao
radicalismo da revolução francesa.3
Uma forma de ilustrar o alcance destas palavras de Anthony Quinton consiste em comparar
a estabilidade relativa dos regimes políticos modernos no interior das tradições originadas,
por um lado, pela revolução inglesa de 1688, e, por outro, pela revolução francesa de 1789.
Em Inglaterra, a revolução mais recente ocorreu em 1688-89, e mesmo essa apresentou-se
como revolução relutante, visando restaurar as antigas liberdades constitucionais
consagradas na Magna Carta de 1215. Na América, apesar da Guerra Civil de 1861-65, a
Constituição de 1787-88 continua ainda hoje em vigor, recorrendo os legisladores a
acrescentos ao documento original, em vez de redesenharem novos projectos
constitucionais. A mesma evolução gradual pode em regra ser observada nos países de
língua inglesa como o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia e, até certo ponto, a Índia. Em
França, pelo contrário, a Revolução de 1789, ela própria composta de uma sucessão de
episódios revolucionários e contra-revolucionários, abriu caminho a uma profunda
instabilidade constitucional. Entre 1789 e 1871, em escassos 82 anos, a França teve dois
golpes de estado (Bonaparte em 1799 e Louis-Napoleon Bonaparte em 1851), um consulado
(1799-1804), um primeiro império (1804-1814-1815), uma restauração com duas
monarquias (1814-1830), uma monarquia constitucional (com Louis-Philippe, 1830-1848),
um segundo império (1852-1871), e três repúblicas (1792-99, 1848-51 e 1871).4 Algo
semelhante pode ser dito da América Latina, onde as revoluções republicanas e as
respectivas contra-revoluções ou golpes de estado tiveram dominante influência da cultura
política francesa.
Alexis de Tocqueville observou este mesmo contraste entre a evolução gradual nos povos
de língua inglesa e a oscilação entre revolução e contra-revolução no continente europeu. E
argumentou que, no continente europeu, os políticos conservadores tendiam a opor-se à
democracia, e os defensores da democracia tendiam a opor-se aos modos de vida e às
mundovisões conservadoras. Esta dicotomia fatal conduziu a Europa continental aquilo que
2
Gertrude Himmelfarb, Victorian Minds: A study of intellectuals in crisis and ideologies in transition, [Chicago: Ivan
R. Dee, 1995 (ed. Or: Knopf, 1968)], p.292.
3
A. Quinton, “Political Philosophy”, Anthony Kenny (ed.), The Oxford Illustrated History of Western Philosophy,
(Oxford, Oxford University Press, 1994), 327.
4
Catherine Hajdenko-Marshall, citando Bagehot, em “As eleições presidenciais e o futuro da Constituição Europeia”,
Nova Cidadania nº 34 Outubro-Dezembro 2007, pag.10.
Tocqueville designou por “conflito estéril entre Antigo Regime e Revolução”. Na tradição
anglo-americana, essa dicotomia não existiu, ou nunca foi levada a sério.
II
Winston Churchill e a cultura política de língua inglesa
Gostaria agora de recordar que este tema da especificidade da cultura política dos povos de
língua inglesa ocupou um lugar central na obra de Winston Churchill — e que ele atribuiu à
Magna Carta um papel central na explicação dessa especificidade.
O ponto de partida do seu argumento, que recorda Edmund Burke, reside com efeito na
Magna Carta de 1215. Churchill não lhe atribui uma especificidade inglesa. Considera-a
expressão da cultura cristã europeia, de que a Inglaterra era parte integrante (um dos
principais redactores da Magna Carta, como sabemos, foi o Arcebispo de Canterbury). O
princípio central dessa cultura cristã medieval era a limitação do poder pela lei. Como
recorda Churchill: “Rex non debet esse sub homine, sed sub Deo et lege — o rei não deve
estar abaixo dos homens, mas abaixo de Deus e da lei.”
Embora muitas das limitações ao poder real tenham sido expressas na Magna Carta como
privilégios da nobreza e da Igreja, a verdade, argumentou Churchill, é que elas serviram de
base a uma gradual ampliação. “Em duas ou três gerações, nenhum estadista prudente
pensaria em governar a Inglaterra sem um Parlamento e sem um rei.” E acrescentou:
“Parlamento, julgamento por júri, governo local por cidadãos locais, e até os começos de
uma imprensa livre, podiam ser vislumbrados, pelo menos em forma primitiva, na época em
que Colombo navegou para o continente americano”.
Esta gradual evolução foi abruptamente perturbada em Inglaterra no século XVII, com a
guerra civil entre facções inovadoras rivais: os partidários do absolutismo real e os do
absolutismo republicano. Só em 1688, na chamada “Gloriosa Revolução”, foi possível
restabelecer um equilíbrio que pusesse termo à guerra entre aquelas facções dogmáticas
rivais. Esse equilíbrio constitucional do “Rei no Parlamento”, que perdura até hoje, foi
prudentemente ancorado na tradição da Magna Carta de 1215.
Esta prudência gradualista foi ignorada em vários países do continente europeu. Em França,
o absolutismo inovador de Luís XIV praticamente aniquilou os freios e contrapesos
inerentes aos corpos intermédios da nobreza (que perduraram em Inglaterra). Esse poder
central ilimitado do rei abriu caminho ao despotismo da revolução francesa e do seu
herdeiro, Napoleão.
Esta especificidade das democracias de língua inglesa foi um tema central para Winston
Churchill. Logo em 1932, Churchill começou a escrever um livro sobre Uma História dos
Povos de Língua Inglesa. Só viria a publicar o primeiro dos quatro volumes em 1956 — foi
o seu último de mais de 40 livros publicados em vida. Foi o livro a que mais tempo dedicou
— na verdade passaram 24 anos entre o início e a publicação. Mas Churchill nunca desistiu
de o terminar.
Churchill via as democracias de língua inglesa como parte integrante da tradição europeia e
ocidental, comungando das mesmas raízes greco-romana, judaica e cristã. Não era uma
outra tradição. Mas tinha características especiais. Uma das mais importantes residia na sua
alergia a revoluções e à linguagem da inovação revolucionária.
A mais recente revolução inglesa ocorrera em 1688 e tinha sido feita em nome da
restauração das antigas liberdades da Magna Carta, de 1215. Fora uma revolução relutante,
moderada, promovida por um bloco central de monárquicos moderados (Tories) e
defensores moderados da soberania do Parlamento (Whigs), cujos objectivos expressos
eram evitar uma nova guerra civil em Inglaterra e tornar desnecessária qualquer nova
revolução. Estes moderados viam a restauração das antigas liberdades da Magna Carta —
um governo limitado pela lei que presta contas ao Parlamento — como forma de
domesticar, amaciar, civilizar (mas não utopicamente abolir ou asfixiar) os conflitos
radicais.
Enquanto admirador e estudioso desta tradição, Churchill só podia reagir com horror, desde
o início, aos fundamentalismos revolucionários de Lenine e Staline, Hitler e Mussolini. O
facto de ambos falarem em nome da ruptura revolucionária com o passado e em nome das
massas trabalhadoras e dos pobres não o impressionou. Essa era a linguagem que sempre
causara repugnância ao seu credo político reformista, ordeiro, conservador, liberal e com
forte sensibilidade social. Em 1938, quando trabalhava a fundo na preparação da História
dos Povos de Língua Inglesa, Churchill escreveu a um dos seus Assistentes:
“O tema fundamental [do livro] está a emergir e centra-se no crescimento da liberdade
sob a lei, nos direitos do indivíduo, na subordinação do Estado às concepções morais
fundamentais da comunidade. (…) Destas ideias os povos de língua inglesa foram os
autores, depois os trustees, e devem agora tornar-se os campeões armados. Por isso eu
condeno a tirania, qualquer que seja a versão ou o quadrante de onde onde venha.”
Num discurso nesse mesmo ano de 1938, Churchill retomou esse tema central da liberdade
sob a lei como distintivo dos povos de língua inglesa:
“Não temos nós uma ideologia própria — se tivermos de usar essa palavra horrível
[ideologia] — não temos nós uma ‘ideologia’ própria fundada na liberdade, numa
Constituição liberal, num Governo parlamentar e democrático, na Magna Carta e na
Petição de Direitos?”
III
O Legado da Magna Carta como “Governo Limitado”
Além do gradualismo, a âncora da Magna Carta gerou outra diferença crucial na
cultura política de língua inglesa: o apego ao princípio do governo limitado, mesmo quando
este é exercido em nome do povo ou da maioria.
A questão do governo limitado distingue claramente a orientação das revoluções
inglesa e americana, por um lado, da revolução francesa, por outro. No plano estritamente
teórico, o tema do governo limitado é central em John Locke,5 David Hume,6 Edmund
5
Ver, designadamente, John Locke, Two Treatises of Government (Cambridge, UK: Cambridge University Press,
1990), em especial “Second Treatise”, Ch. XI, “Of the Extent of the Legislative Power”, pp. 355-362.
Burke7 e nos Federalist Papers8 que prepararam a Constituição Americana de 1787. Pelo
contrário, ele está absoluta e expressamente ausente do pensamento de Jean-Jacques
Rousseau,9 o autor que mais influenciou a revolução francesa, e em particular os jacobinos,
e que mais influenciou a sua herança intelectual até à emergência do marxismo (que, como
poderíamos argumentar noutra altura, é em quase tudo devedor de Rousseau).
Apenas a título de exemplo, recordo aqui a comparação entre as seguintes passagens
de O Federalista , de James Madison, e de O Contrato Social, de Jean-Jacques Rousseau:
“Se os homens fossem anjos, os governos não seriam necessários. Se os anjos
governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem
internos sobre os governos. Ao desenhar um governo que será administrado por
homens sobre homens, a primeira dificuldade reside aqui: primeiro é preciso
capacitar o governo a controlar os governados; e a seguir é preciso obrigá-lo a
controlar-se a si próprio. Uma dependência do povo é, sem dúvida, o controlo
primário sobre o governo; mas a experiência mostrou à humanidade a
necessidade de precauções adicionais.”10
Oiçamos agora as palavras de Rousseau:
“Agora, uma vez que o soberano é formado inteiramente pelos indivíduos que o
compõem, ele não tem, nem poderia ter, qualquer interesse contrário ao deles; e
assim o soberano não tem necessidade de dar garantias aos súbditos, porque é
impossível a um corpo desejar produzir danos a todos os seus membros, da
mesma forma que, como veremos a seguir, ele não pode produzir danos a
qualquer membro particular. O soberano, pelo mero facto de ser, é sempre aquilo
que deve ser.”11
Rousseau introduziu a ideia da vontade geral sem constrangimentos e esta foi
interpretada de duas maneiras distintas pelos seus seguidores: numa versão democrata
radical, a vontade geral foi interpretada como vontade soberana, ilimitada, da maioria; numa
versão vanguardista, a vontade geral foi interpretada como algo semelhante a uma
“essência”: não a vontade expressa pelos cidadãos, ainda prisioneiros aos seus interesses
particulares, mas como uma espécie de “interesse geral” dos cidadãos, que estes seriam
incapazes de conhecer, e que deveria ser interpretada pelos seus líderes.12 Esta segunda
interpretação foi claramente a de Karl Marx e seus discípulos. O que importa aqui sublinhar
6
Ver, designadamente, David Hume, “Idea of a Perfect Commonwealth” in Henry D. Aidken (ed.), Hume’s Moral and
Political Philosophy (New York & London: Macmillan, 1948) pp. 373-386.
7
Ver, designadamente, Edmund Burke, “Thoughts on the Cause of the Present Discontent”, in Select Works of Edmund
Burke (Indiana: Liberty Fund, 1992) pp. 69-156.
8
Ver, designadamente, “Federalist X” e “Federalist LI” in James Madison, Alexander Hamilton and John Jay, The
Federalist Papers (London & New York: Penguin Books, 1987), pp. 122-128 e 318-322.
9
Ver, designadamente, Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract (London & New York : Penguin Books, 1968), em
especial Books I and II, pp. 49-83.
10
James Madison, “The Federalist LI”, op. cit, pp. 319-320.
11
Jean-Jacques Rousseau, op. cit. p. 63.
12
Oiçamos Rousseau novamente: “Existe frequentemente uma grande diferença entre a vontade de todos (o que os
indivíduos querem) e a vontade geral; a vontade geral estuda apenas o interesse comum enquanto que a vontade de
todos estuda o interesse privado, e não é na verdade nada mais do que a soma dos desejos individuais”, op. cit. P. 72.
é que ambas as versões não atribuem ao corpo político a função principal de protecção da
liberdade e dos modos de vida existentes. Pelo contrário, quer uma quer outra atribuem à
vontade geral um poder irrestrito, sem entraves. E esse poder tem um propósito: mudar a
sociedade, transformá-la com vista a atingir uma nova sociedade inspirada num modelo
particular de perfeição.
Em contrapartida, entre os povos de língua inglesa, o ideal de governo limitado
esteve no centro da sua cultura política desde a Magna Carta de 1215. Edmund Burke
permanece uma referência central deste legado da Magna Carta enquanto resistência ao que
ele chamou de “despotismo inovador”. Disse ele, criticando os governos de corte do rei
George III:
“É da natureza do despotismo odiar qualquer forma de poder que não seja o
decorrente do seu prazer momentâneo; e aniquilar todas as situações intermédias
entre a força sem limites da sua parte e a total debilidade por parte do povo.
Ver-se livre de todas estas instâncias independentes e intermédias e assegurar à
corte a utilização ilimitada e incontrolada da sua própria vasta influência, sob a
única direcção do seu próprio favor particular, este tem sido há alguns anos o
grande objectivo político. (…) Trata-se de um esquema de perfeição a ser
realizado numa monarquia muito para além da república visionária de Platão.”13
Burke era um defensor comprometido do Parlamento e do governo representativo.
Neste sentido, podemos dizer que era um democrata de tipo especial. Ao contrário da
maioria dos intérpretes continentais da democracia, sob a influência de Rousseau, Burke não
entendeu o governo popular ou representativo como uma fonte de governo ilimitado. Para
Burke, o governo representativo é sobretudo um limite à vontade política sem entraves, um
representante de modos de vida realmente existentes e uma garantia da sua protecção contra
“esquemas de perfeição” concebidos a partir de um centro único de poder. Para Rousseau e
seus seguidores, o governo da vontade geral é visto como uma Assembleia em permanente
acção política transformadora.
IV
A Magna Carta e a Corrente de Ouro de Winston Churchill
Talvez estejamos agora em condições de regressar à questão de Anthony Quinton
sobre as razões que conduziram a que a importação das doutrinas de Locke em França
produzissem um efeito “muito semelhante ao do álcool num estômago vazio”.
Gostaria de sugerir que os princípios lockeanos “serviram para sancionar uma ampla
revolução conservadora em Inglaterra” (e, na minha perspectiva, em larga medida também
na América) porque estiveram associados à tradição do Governo limitado. Esta tradição
existia antes de Locke – em boa verdade pode ser politicamente referenciada à Magna Carta
de 1215 e, culturalmente, ao mandamento cristão de dar a César o que é de César e a Deus
o que é de Deus. Isto significa que a tradição do Governo limitado não tem de ser
necessariamente deduzida a partir dos primeiros princípios de Locke – ou, já agora, a partir
de quaisquer primeiros princípios filosóficos particulares. Por outro lado, isto significa que
13
Edmund Burke, op. cit., pp. 79, 86, o destaque está no original.
a tradição do governo limitado pode ser compatível com vários – mas certamente não com
todos – primeiros princípios filosóficos particulares.
Por outras palavras, na chamada “Anglo-esfera”, a democracia liberal foi sobretudo
entendida como um sistema de Governo limitado. O conceito de governo limitado tem
consequências extraordinárias para o entendimento de democracia ou de governo popular.
O governo popular, quando percepcionado no seio da tradição do governo limitado, é
entendido ele mesmo como uma limitação sobre o Governo, um ponto que foi enfatizado
por Edmund Burke e pelos The Federalist Papers. A democracia liberal é assim entendida
como um sistema de Governo limitado, cujo objectivo principal é a protecção de modos de
vida realmente existentes e pacíficos (a protecção da vida, da liberdade e da busca de
felicidade, a partir das célebres palavras da Declaração de Independência Americana).
Pelo contrário, na Europa continental, a democracia liberal foi apresentada, em larga
medida, como a expressão política de um projecto racionalista, um “modelo” para uma
sociedade radicalmente nova, na tradição do que poderíamos talvez designar por
“racionalismo dogmático”, por contraposição ao que Karl Popper designou por
“racionalismo crítico”. Por outras palavras, enquanto que em Inglaterra e na América a
democracia liberal surgiu como uma protecção dos modos de vida existentes, na Europa
continental a democracia foi associada – quer pelos seus críticos, quer por alguns dos seus
impulsionadores – com um projecto de alteração dos modos de vida existentes com vista a
atingir o “modelo” de uma sociedade outra, desenhada pela “Razão”. Este projecto pode ter
vários modelos como objectivos – a secularização, a modernização, a igualdade, a
neutralidade moral, etc. – mas a sua principal característica é uma atitude adversarial para
com os modos de vida existentes. Para dizê-lo sem artifícios, esta atitude adversarial
resulta principalmente do facto de esses modos de vida já existirem há muito, eles estão
fundados no hábito, ou na tradição, ou na conveniência, ou em “attachments” particulares.
Numa palavra, eles não foram desenhados pela “Razão”.
Em Inglaterra, pelo contrário, nem o despotismo nem a revolução foram necessários
para alcançar a democracia moderna. Em grande parte, porque a Constituição inglesa (não
escrita) permaneceu ancorada na tradição da Magna Carta. Winston Churchill resumiu esse
gradualismo britânico na expressão corrente de ouro, a propósito da filosofia política de seu
pai, numa passagem com que eu gostaria de concluir esta minha breve apresentação:
“[Lord Randolph Churchill] não via razão por que as velhas glórias
da Igreja e do Estado, do Rei e do país, não pudessem ser reconciliadas
com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo
trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas
instituições através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu
progresso. É esta união do passado e do presente, da tradição e do
progresso, esta corrente de ouro, nunca até agora quebrada, porque
nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o
mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”
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