CAPÍTULO e39 - Harrison Brasil

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CAPÍTULO
e39
Imunodeficiências Primárias
(ou Secundárias) Associadas a
Outras Doenças
Alain Fischer
Existe um número crescente de distúrbios nos quais a imunodeficiência primária (IDP) foi descrita como um dos componentes de
uma doença mais complexa. Quando uma IDP é diagnosticada como
manifestação clínica principal, é essencial investigar as doenças associadas e, por outro lado, não desconsiderar as consequências potencialmente perigosas da IDP, que podem ser obscurecidas pelas outras
manifestações de determinada síndrome clínica.
A seguir, há uma descrição sucinta dessas síndromes, na qual a
IDP é classificada de acordo com o componente do sistema imune
afetado.
Imunodeficiências Primárias (ou Secundárias) Associadas a Outras Doenças
©2013, AMGH Editora Ltda. Todos os direitos reservados.
CAPÍTULO e39
1. Imunodeficiências primárias do sistema imune inato
a) Várias síndromes de neutropenia congênita grave (NCG)
podem estar associadas a malformações. A NCG recém-descrita causada pela deficiência de glicose-6-fosfatase (G6PC3)
pode estar associada a malformações cardíacas e urogenitais.
A doença Ib da glicogênese é semelhante e combina NCG
com hipoglicemia e hepatosplenomegalia. Algumas mutações do gene HAX-1 causam distúrbios neurocognitivos
e também NCG. A síndrome de Barth caracteriza-se por
miocardiopatia. Por fim, a síndrome de Shwachman é um
distúrbio autossômico recessivo (causado por uma mutação
do gene SBDS), no qual a granulopoiese anormal pode afetar
também outras linhagens hematopoiéticas; as manifestações
clínicas típicas dessa síndrome são estatura baixa, displasia
das metáfises ósseas e insuficiência pancreática exócrina.
b) A asplenia sindrômica caracteriza-se por risco mais alto de
infecções e anomalias cardíacas com situs inversus.
c) A deficiência de adesão leucocitária (DAL) tipo II inclui retardo do crescimento e distúrbios do desenvolvimento cognitivo.
d) Alguns pacientes com doença granulomatosa crônica ligada ao X têm uma síndrome de deleção dos genes adjacentes,
que pode incluir o fenótipo de McLeod – evidenciado por
anemia, acantocitose e risco grave de reação imune contra
as células dos doadores, porque as hemácias do paciente não
expressam o antígeno Kell. O fenótipo de McLeod também
pode causar doença neurológica.
e) A deficiência do modulador essencial NFB (NEMO) causa
não apenas um conjunto variável de deficiências dos componentes inato e adaptativo do sistema imune, como também
osteopetrose branda, linfedema e, mais comumente, displasia ectodérmica anidrótica, fácies dismórfico e dentes cônicos anormais. Em geral, essa última anormalidade ajuda a
diagnosticar essa doença.
2. Imunodeficiências primárias do sistema imune adaptativo
a) Imunodeficiências primárias dos linfócitos T. A disgenesia
reticular, uma imunodeficiência combinada grave (IDCG)
caracterizada por linfopenia T e agranulocitose, pode causar
surdez neurossensorial. A deficiência de coronina A é uma
variante de IDCG, que pode estar associada a distúrbios comportamentais porque o gene da coronina A está localizado em
uma área do genoma que está comprovadamente deletada em
alguns pacientes com este distúrbio. A falta das enzimas do
metabolismo das purinas (adenosina-desaminase e fosforilase dos nucleosídios purínicos) causa não apenas linfocitopenia grave das células T, como também disfunção neurológica
evidenciada por disautonomia e graus variáveis de anormalidades do desenvolvimento cognitivo em muitos pacientes.
A disfunção neurológica pode persistir depois do transplante
de células-tronco hematopoiéticas (TCTH). A condrodisplasia branda é uma anormalidade associada comumente à deficiência de adenosina-desaminase (ADA) e, na verdade, pode
ajudar o médico a firmar o diagnóstico definitivo.
b) Anomalias primárias do timo. A síndrome de DiGeorge
é uma embriopatia complexa causada pela deleção intersticial hemizogótica do cromossomo 22, que resulta em várias anomalias do desenvolvimento, inclusive malformações
conotruncais, hipoparatireoidismo e síndrome dismórfica.
Embora a imunodeficiência grave das células T seja rara na
síndrome de DiGeorge (cerca de 1% dos casos), a falha em
detectar esta anormalidade pode ter consequências fatais.
Do mesmo modo, algumas formas da síndrome CHARGE
relacionada (mutação do gene CHD7) também causam imunodeficiência profunda das células T.
c) Imunodeficiências primárias dos linfócitos T relacionadas
com as anormalidades do transporte de cálcio. Recentemente, estudos demonstraram que as IDP raras de células T
eram causadas por anormalidades da entrada dos íons cálcio
pelos canais controlados de armazenamento nos linfócitos T
e B, depois da estimulação antigênica. Essas anormalidades
(atribuídas deficiências de ORA-1 e STIM-1) também causam displasia ectodérmica anidrótica, dentição anormal e,
acima de tudo, uma doença muscular não progressiva evidenciada por fadiga excessiva.
d) Anormalidades do reparo do DNA. Várias anomalias genéticas interferem com os processos de reparação do DNA e algumas causam IDP combinadas dos linfócitos B e T com um
distúrbio sindrômico com complexidade variável. A mais
comum é a síndrome da ataxia-telangiectasia (AT), um distúrbio autossômico recessivo com incidência de 1 em 40.000
nascidos vivos; esta síndrome causa imunodeficiência de células B (níveis baixos de IgA, deficiência de IgG2 e produção
reduzida de anticorpos), que geralmente exige tratamento de
reposição com imunoglobulinas.
A AT está associada a uma imunodeficiência progressiva das
células T. Como o próprio nome sugere, as manifestações clínicas típicas da síndrome são telangiectasia e ataxia cerebelar.
Essas manifestações clínicas podem passar despercebidas
até a idade de 3 a 4 anos e, por esta razão, a AT deve ser considerada nas criancinhas com deficiência de IgA e infecções
difíceis de controlar. O diagnóstico baseia-se nas análises
citogenéticas com demonstração de rearranjos cromossômicos excessivos (afetando principalmente os cromossomos 7 e
14) nos linfócitos. A AT é causada por uma mutação do gene
que codifica a proteína ATM, ou seja, uma quinase que desempenha papel importante na detecção dos danos no DNA
e na organização do processo de reparo (ou morte celular,
quando os danos são muito numerosos) por ativação de várias vias diferentes. Em geral, a AT é uma doença progressiva associada a um risco muito alto de linfoma, leucemia e
carcinomas (na vida adulta). Uma variante da AT (doença
semelhante à AT) é causada por mutações do gene MRE11.
A síndrome da quebra de Nijmegen (NBS) é um distúrbio
mais raro, que também causa instabilidade cromossômica (e
as mesmas anormalidades citogenéticas encontradas na AT).
Essa síndrome caracteriza-se por imunodeficiência combinada grave das células B e T com padrão hereditário autossômico recessivo. Os pacientes com NBS têm microcefalia e
fácies semelhante a um pássaro, mas não apresentam ataxia ou
telangiectasia. O risco de desenvolver neoplasias malignas é
muito alto. A síndrome da quebra de Nijmegen resulta da deficiência de nibrina (NBS1, uma proteína associada ao MRE11
e ao Rad50, que estão envolvidos na verificação da ocorrência
de danos ao DNA) causada por mutações hipomórficas.
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PARTE XV
Distúrbios das Articulações e Tecidos Adjacentes
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As formas graves da disceratose congênita (também conhecida como síndrome de Hoyeraal-Hreidersson) caracterizam-se por imunodeficiência progressiva, que pode incluir
a ausência dos linfócitos B e das células natural killers (NK),
insuficiência progressiva da medula óssea, microcefalia, retardo do crescimento intrauterino e doença intestinal. Essa
doença pode estar ligada ao X ou, mais comumente, é autossômica recessiva. A disceratose congênita é causada por mutação dos genes que codificam as proteínas de manutenção
dos telômeros, inclusive a discerina (DKC1).
A síndrome de Bloom (deficiência de helicase) combina
uma síndrome dismórfica típica com retardo do crescimento,
lesões cutâneas e imunodeficiência branda, que também pode
ser encontrada em alguns pacientes com anemia de Fanconi.
As formas raras de imunodeficiência combinada das células B e T com padrão hereditário autossômico recessivo
estão associadas a síndromes mais complexas evidenciadas
por microcefalia, déficit de crescimento e uma síndrome
dismórfica variável. Esses distúrbios são causados por mutações dos genes que codificam a DNA-ligase 4 e o Cernunnos
(XLF), ambos componentes de uma via de reparo do DNA
por ligação de extremidades não homólogas.
Por fim, a síndrome de imunodeficiência, instabilidade
dos centrômeros e anomalias faciais (ICF) é uma síndrome
autossômica recessiva complexa com combinações variáveis
de imunodeficiência branda das células T e imunodeficiência mais grave das células B com fácies grotesco, doença intestinal e deficiência mental leve. A anormalidade citogenética diagnóstica é a presença de cromossomos multiradiais (na
maioria dos casos, cromossomos 1, 9 e 16) causando defeitos
na metilação do DNA. A síndrome é causada por uma deficiência de DNA-metiltransferase DNMT3B.
e) Síndrome da insensibilidade ao hormônio do crescimento (nanismo de Laron) com imunodeficiência primária
combinada. As mutações do gene STAT5b, que codifica
um fator de transcrição envolvido na sinalização posterior
do receptor do hormônio do crescimento e do receptor da
interleucina 2 (IL-2), aumenta a suscetibilidade às infecções em consequência de uma imunodeficiência funcional
parcial das células T com manifestações autoimunes, que
provavelmente resultam da formação/ativação anormal das
células T reguladoras.
f) Síndrome da hiper-IgE (forma autossômica dominante).
A síndrome da hiper-IgE é um distúrbio complexo evidenciado por infecções cutâneas, inflamação e suscetibilidade
às infecções bacterianas e fúngicas da pele e dos pulmões
(geralmente com pneumatoceles) com sinais sindrômicos
típicos como dismorfismo facial, perda anormal dos dentes primários, hiperextensibilidade, escoliose e osteoporose.
Os níveis séricos altos de IgE são típicos dessa síndrome. As
anormalidades recém-descritas das respostas efetoras das células TH17 explicam, ao menos em parte, a suscetibilidade
às infecções específicas. Essa doença é causada por mutação
heterozigótica (dominante) do gene que codifica o fator de
transcrição STAT3, que é necessário em várias vias de sinalização após as interações entre os receptores das citocinas
(principalmente IL-6).
g) Imunodeficiências primárias com doença óssea. A doença
autossômica recessiva dos pêlos e das cartilagens (CHH)
caracteriza-se por nanismo com membros curtos, dissostose metafisária e pêlos esparsos, além de IDP combinada das
células T e B com gravidade variável (IDCG parcial ou nenhum sinal clínico de imunodeficiência significativa). Esse
distúrbio pode predispor à eritroblastopenia, à autoimunidade e ao desenvolvimento de tumores. A doença é causada por
mutações do gene RMRP do RNA associado ao ribossomo
não codificador.
A displasia osteoimune de Schimke é um distúrbio autossômico recessivo raro evidenciado por imunodeficiência gra-
ve das células B e T com displasia espondiloepifisária, retardo
do crescimento e doenças renal e vascular. A doença é causada por mutações do gene SMARCAL1. A função do produto
desse gene pode estar relacionada com o reparo do DNA.
h) A doença veno-oclusiva com imunodeficiência (síndrome
VODI) é um distúrbio autossômico recessivo raro encontrado principalmente nas populações originadas do Líbano e
caracteriza-se por doença veno-oclusiva hepática, geralmente com imunodeficiência branda das células T e pan-hipogamaglobulinemia. Essa doença é causada pela deficiência de
uma proteína nuclear (Sp110).
3. Imunodeficiências primárias das células B
A hipogamaglobulinemia pode estar associada às anomalias
cromossômicas como a trissomia do 18 e a síndrome de Jacobsen (deleção hemizigótica de parte do braço longo do cromossomo 11). Uma deficiência bialélica rara da proteína de reparo
de pareamentos errados PMS2 causa deficiência parcial da recombinação por permuta de classes das imunoglobulinas dos
pacientes com risco muito alto de desenvolver cânceres em geral e carcinomas do intestino grosso e linfomas em particular.
A deficiência de transcobalamina interfere com o transporte
da vitamina B12 e, consequentemente, causa anormalidades da
hematopoiese. A hipogamaglobulinemia é corrigida facilmente
pela reposição de vitamina B12 e pode ser um sinal característico dessa doença muito rara.
4. Imunodeficiências primárias com anormalidades das vias de
regulação
Vários distúrbios hereditários que causam linfo-histiocitose hemofagocítica (HLH) também têm manifestações importantes
em termos diagnósticos e prognósticos. Três desses distúrbios
– síndrome de Griscelli, síndrome de Chédiak-Higashi e síndrome de Hermansky-Pudlak tipo II —, caracterizam-se por
albinismo parcial e cabelos prateados, que podem facilitar o
diagnóstico. A síndrome de Hermansky-Pudlak tipo II também
pode causar diátese hemorrágica quando a agregação plaquetária é anormal. A síndrome de Chédiak-Higashi também se
caracteriza por um distúrbio neurológico progressivo de início
precoce com desenvolvimento cognitivo deficiente e anormalidades motoras e sensoriais, que culminam em uma encefalopatia generalizada. A encefalopatia não pode ser evitada ou suprimida pelo TCTH alogênico, ainda que o risco de desenvolver
HLH seja controlado.
5 Imunodeficiências primárias associadas a outros distúrbios
Alguns distúrbios podem causar IDP por mecanismos indiretos. Por exemplo, o hipercatabolismo dos pacientes com
doença de Steinert pode causar hipogamaglobulinemia. A linfangiectasia intestinal com déficits de imunoglobulinas e células T virgens pode expor os pacientes a um risco significativo
de infecções. A perda urinária de IgG pode causar síndromes
nefríticas graves.
Alguns fármacos como os antimaláricos, o captopril, a penicilamina, a fenitoína e a sulfasalazina podem causar hipogamaglobulinemia envolvendo principalmente a IgA dos adultos
(provavelmente predispostos).
Também é importante considerar (1) as doenças que não parecem ser IDP, mas que incluem infecções recidivantes; e (2)
os distúrbios genéticos do sistema imune, que causam outras
manifestações clínicas. A fibrose cística (FC) é um exemplo
muito conhecido desse primeiro grupo. Embora o sistema imune seja funcionalmente normal, os pacientes com essa doença
desenvolvem infecções respiratórias bacterianas persistentes,
principalmente colonização por Pseudomonas aeruginosa. Essa
bactéria pode anular as respostas imunes inatas e causar inflamação persistente, que também facilita a infecção. Um exemplo do segundo grupo é a proteinose alveolar primária, que é
causada por uma anormalidade da eliminação do surfactante
pelos macrófagos alveolares. Essa doença é causada por uma
mutação do gene que codifica o receptor do fator estimulador
das colônias de granulócitos-macrófagos.
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