A NOÇÃO DE REDE REGIONAL: REFLEXÕES A PARTIR DA MIGRAÇÃO "GAÚCHA" NO BRASIL ROGÉRIO HAESBAERT* The concept of regional network: its application to "gaúcho" migration in Brazil The concept of regional network is proposed as an use fui tool for the study of migration. Regional networks arise when migrants create in lhe incoming region the institutions which they had left behind. "Gaúcho" migration is a good example of tnis. After leaving the southemmost Brazilian state of Rio Grande do Sul, "gaúchos" tend to reproduce cultural patterns in the new setting in arder to preserve their original territorial identity. This is done by means of the creation of "Gaúcho" Heritage Centers (C'I Ge), which form a noncontiguous "gaúcho" networkterritory in the country. Este artigo visa clarificar uma noção que propusemos como resultado de uma pesquisa empírica bastante detalhada que envolveu os fluxos migratórios de sulistas pelo interior do Brasil (HAESBAERT, 1997). Esta pesquisa, desenvolvida de forma mais prolongada através de uma "observação participante" entre os sulistas migrantes na região Nordeste, especialmente no oeste baiano e sul do Piauí, acabou se estendendo, através de outras fontes de dados, para todo o Brasil. Iniciamos nosso trabalho utilizando a metáfora "diáspora" para enfatizar a força deste fluxo migratório e seus vínculos com uma identidade cultural cujas bases históricas e geográficas (o espaço apropriado simbolicamente para sua construção, a estância latifundiária da "Campanha" gaúcha) já haviam sido analisadas em pesquisa anterior (HAESBAERT, 1988). Após discutirmos as principais propostas conceituais para território e rede, chegamos à conclusão de que a geografia desenhada por grande parte desses sulistas no interior do país necessitava de uma outra noção para ser apreendida. Daí a nossa proposição de "rede regional" que, imbricada de • Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense 56 Revista TERRITÓRIO, ano 111, nº 4, jan./jun. 1998 forma complexa, em diferentes níveis, a várias outras redes, é um dos componentes fundamentais dos processos de construção-destruição e reconstrução de territórios (ou de des-re-territorialização) no espaço brasileiro contemporâneo. Da metáfora "diáspora" à noção de "rede regional" gaúcha São muito conhecidas a "tradição (i)migrante" que muitos sulistas dizem "levar no sangue" ("europeu", ou seja, de descendentes de italianos e alemães) e características que, interna e/ou externamente difundidas, fazem deste migrante um "pioneiro", um "desbravador" e até mesmo um "novo bandeirante" que tem expandido nas últimas décadas parte da "modernização" (agrícola, basicamente) do interior brasileiro. Mesmo questionando em nosso trabalho todos os estereótipos que criam uma identidade homogeneizadora, moldada sempre por emblemas de "superioridade" e "bravura", identidade que se reforça ainda mais frente aos estigmas negativos imputados à identidade nordestina ou baiana (a principal relação por nós analisada foi entre baianos e gaúchos, mas isto também se reproduz, com algumas especificidades, em todas as áreas de migração sulista), fica evidente, em vários momentos, a eficácia simbólica desses mitos' . Como toda representação, esses mitos podem influenciar e mesmo desencadear processos concretos que chegam, no seu extremo, a promover a segregação socioespacial: vide os bairros "gaúchos" em Barreiras (BA) e Balsas (MA), as várias emancipações político-administrativas e tentativas de formação de novos Estados (como o de Araguaia, no Mato Grosso, e o do São Francisco, na Bahia) alimentadas em diferentes níveis por essa distinção de base identitária. Essa migração sulista na verdade remonta ao início do século, quando se consolida o processo de privatização das terras no Rio Grande do Sul e os "colonos" descendentes de imigrantes (especialmente italianos e alemães) começam a deslocar- se para novas áreas, inicialmente áreas de mata (como nos seus espaços de origem, já que no século XIX lhes foram destinadas as áreas de mata ainda desocupadas do Sul do país), no oeste de Santa Catarina e oeste do Paraná. Somente mais tarde é que, naquilo que alguns supõem ser uma confirmação da "índole naturalmente desbravadora" dos sulistas (na verdade referindo-se a um grupo bem definido: pequenos agricultores e capiMito no sentido de possuírem uma origem naturalizada, a-históríca, passível de ser reatualizada por meio de ritos que, no caso dos gaúchos, têm sua evidência mais concreta na prática dos CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), onde se busca reviver um tempo de heroísmo que remonta República Rio·Grandense da Guerra dos Farrapos (1835-1845), cuja data de proclamação (20 de setembro) é feriado oficial no Rio Grande do Sul e motivo de grandes comemorações em todas as áreas de migração sulista. 1 a A noção de rede regional 57 talistas ligados à atividade rural, descendentes de imigrantes), passa-se a "colonizar" também áreas de campo e cerrados. A ocupação e modernização (capitalista) dos cerrados teve na verdade muitos outros agentes que não o sulista (denominado, de forma genérica "gaúcho", venha ele do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná ou de outras áreas para onde já havia migrado, como o Mato Grosso). Entra aí principalmente a atuação do Estado, seja através da EMBRAPA e seus investimentos em biotecnologia (descobrindo novas sementes de soja adaptadas aos solos e ao clima dos cerrados), seja por meio de subsídios à produção (que, no início dos anos 80, restritos à área de atuação da SUDENE, levaram muitos sulistas a passar dos cerrados do Centro-Oeste para os do planalto ocidental baiano). Muitos capitalistas de outros estados como São Paulo e Minas, e mesmo do próprio Nordeste, também atuam na difusão dessa modernização, alguns tão "pioneiros" (ou "invasores", como diziam muitos baianos) quanto os "gaúchos". Trata-se assim de enfatizar que aquilo que denominamos inicialmente de "diáspora" gaúcha não é um processo de expulsão por motivos políticoculturais, como originalmente a noção indica (relacionada ao êxodo dos judeus) mas sim econômicos, pois tanto o capitalista que migra para expandir seus lucros quanto o sem-terra que vai em busca de terra e trabalho são movidos por diferentes faces da mesma lógica de concentração dos meios de produção e da especulação imobiliária e financeira (tão presente nessas "fronteiras agrícolas" dominadas pelo complexo agroindustrial da soja que SANTOS FILHO et aI. [1988] usam a denominação fronteiras do capital financeiro). No caso dos sulistas trata-se mesmo de um processo inverso: se fosse pelo poder simbólico (cf. BOURDIEU, 1989) de sua identidade territorial/regional, muitos deles certamente prefeririam permanecer em seus territórios de origem. A migração tem antes de tudo uma base econômica, pela pressão e a expansão da dinâmica capitalista, embora também carregue, de forma indissociável, o mito "imigrante" de dominação e difusão de inovações em outras terras. Ocorre que uma leitura que se restrinja à dimensão econômica do processo acaba simplificando uma dinâmica muito mais ampla, que a velha "determinação econômica" não consegue dar conta. Se mesmo no interior do circuito econômico encontramos múltiplas conexões e conflitos (entre banqueiros, Estado, especuladores imobiliários, empresários rurais, industriais, grandes prestadores de serviços, sem falar nas relações entre patrões e classes subalternas), imagine-se o grau de complexidade quando introduzimos elementos de ordem política e cultural (vide, por exemplo, o papel do coronelismo nordestino na estrutura de poder municipal/estadual e seus conflitos e alianças com políticos sulistas). A trama geográfica desenhada entre os múltiplos segmentos da migração sulista demonstrou que entravam outras "variáveis", especialmente de ordem político-cultural, conectadas de diversas formas aos processos de na- 58 Revista TERRITÓRIO, ano 111,nº 4, jan./jun. 1998 tureza econômica. Quer dizer, não era apenas a grande rede do capital nas escalas regional, nacional e global que explicava padrões de ordenação da sociedade e do território através do qual aqueles grupos se reproduziam. Clarificado de forma muito mais detalhada para o oeste baiano e manchas de cerrado no alto da Chapada Diamantina e sul do Piauí, esse raciocínio acabou se estendendo para outras áreas de migração sulista e foi possível, no final do trabalho, demonstrar, inclusive através de mapeamentos em escala nacional, que a manutenção e mesmo o (re)fortalecimento da identidade sulista ou "gaúcha" era um importante complicador neste novo quadro de relações sociais. Também foi possível compreender o caráter ao mesmo tempo uno e múltiplo, estático (pretensamente "a-histórico", mítico) e processual de (re)construção dessa identidade. Buscamos demonstrar este fato através de um esquema (v. quadro 1) onde distinguimos algumas das diferentes dimensões/segmentações no interior da pretensamente monolítica identidade gaúcha. Muitos sulistas se vêem de forma muito distinta do restante dos brasileiros. Corroborando esta perspectiva, a herança cultural gaúcha, revi vida através dos Centros de Tradições (CTGs), faz com que muitos se julguem "o povo mais tradicionalista" do país". Mesmo aí, entretanto, há um tradicionalismo mais progressista, cujos participantes são conhecidos como "nativístas" (que usam a música regional para pregar a reforma agrária, por exemplo) e um tradicionalismo mais conservador (muitos de seus praticantes são denominados na Bahia, pejorativamente, de "bombachistas"), sem falar nos sulistas que não se identificam com as práticas do gauchismo. A origem étnica e religiosa também é outro elemento diferenciador entre os sulistas, com predomínio do protestantismo luterano entre os descendentes de alemães e do catolicismo entre os descendentes de italianos, que por longo tempo tiveram suas culturas relativamente separadas dentro do próprio Rio Grande do Sul, evitando inclusive casamentos interculturais. A origem étnica "européia", quer dizer, ítalo-germânica (pois existem os gaúchos descendentes de portugueses e espanhóis, ocasionalmente com traços ameríndios e africanos, denominados "pêlos-duros"), é um elemento de distinção que muitas vezes se sobrepõe até mesmo a uma identidade de classe, como demonstra COSTA (1994) para acampamentos de sem-terra em Mato Grosso, em que sulistas e nordestinos reproduzem preconceitos mútuos. Quanto às classes socioeconômicas, embora predominem nos CTGs as classes média e alta (até pela dificuldade, para os sulistas mais pobres, mesmo "tradicionalistas", de "pilchar-se" [vestir-se a rigor] e filiar-se a um Há mesmo quem veja o MTG - Movimento Tradicionalista Gaúcho - como "a maior manifestação de regionalismo do país", com cerca de 2 milhões de filiados no Brasil e no exterior (rev. Veja, 14.09.1994, "A nação gaúcha"). Para uma análise aprofundada das contradições e uma perspectiva histórica do MTG ver OLlVEN (1992). 2 A noção de rede regional 59 QUADRO 1 Principais segmentações e interseções na identidade "gaúcha" (especialmente entre migrantes, fora do Sul do Brasil) I _ "GAÚCHOS" Prática do TRADICIONALISMO "BRASILEIROS" I TRADICIONALISTAS Conservadores ("bombachistas") Origem ÉTNICO"NACIONAL" e RELIGIOSA "ALEMÃES" Categorias SOCIOECONÔMICAS SEM-TERRA! SEM-TETO I LUTERANOS Principais filiações POLÍTICO-PARTIDÁRIAS _--"MODERNIZADORES" Progressistas "ITALIANOS" "PÊLOS-DUROS" ~ /' CATÓLICOS CLASSES MÉDIAS CAPITALISTAS PFL PSDB PMDB <, PDT PT alianças com "coronéis" nordestinos Origem GEOGRÁFICA Diferenças de GÊNERO Diferenças ETÁRIAS ZONAS RURAIS GAÚCHO CRIANÇAS PEQUENAS OU GRANDES CIDADES GAÚCHA ("puxa mais pela raíz") JOVENS ADULTOS IDOSOS CTG), não é possível reconhecer uma vinculação estrita entre classe social e fortalecimento da identidade. Por fim, as múltiplas posições político-partidárias revelam outro cornplicador na definição da identidade gaúcha, isto sem falar no fato da diferença de gênero e por faixa etária, pois a mulher e os mais idosos geralmente têm uma vivência da identidade e uma vinculação com a terra de origem bastante distinta da do homem gaúcho (adulto, "chefe da casa"), muito mais impregnado do ideário capitalista. No oeste baiano muitas donas de casa afirmavam que "a mulher é que puxa pela raiz", geralmente migrando contra a sua vontade e atendendo às imposições do marido. Era muito raro encontrar idosos, e os poucos casamentos com baianos/as que 60 Revista TERRITÓRIO, ano" I, n!! 4, jan./jun. 1998 encontramos ocorriam entre alguns jovens mais progressistas (como o fundador do PT em Barreiras). Mas, ao mesmo tempo em que é fragmentada e está em constante mutação, variando de intensidade tanto no espaço - vide a força atual do MTG em Mato Grosso - quanto no tempo - vide o arrefecimento da identidade regional gaúcha, principalmente nos períodos ditatoriais como o de Vargas e dos militares pós-64 - esta mesma identidade é que é ativada no sentido de sedimentar elos de união e solidariedade entre diversos segmentos dos grupos migrantes. Respeitadas essas características de diversidade espaço-temporal, a identidade gaúcha, representada por exemplo na difusão de C'TGs por todo o interior do país, como mostra a tabela 1, forma uma grande rede, em parte fortalecida ou mesmo alicerçada por outros elementos de ordem econômica (como a migração periódica de trabalhadores especializados contratados no Sul e a manutenção de vários laços entre cooperativas e empresas que mantêm suas sedes no Sul do país) e política (vide a expressiva Tabela 1 CENTROS DE TRADiÇÕES "GAÚCHO" NO BRASil (total por estados e por regiões) Rio Grande do Sul Santa Catarina Paraná 1.616 245 222 São Paulo Mato Grosso 51 36 Mato Grosso do Sul Goiás Rondônia Bahia Distrito Federal Tocantins 15 7 Am~o~s 2 Pará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Minas Gerais, Rio de Janeiro REGIÃO REGIÃO REGIÃO REGIÃO REGIÃO 5 3 2 2 SUL CENTRO-OESTE SUDESTE NORTE NORDESTE 1 cada 2.083 60 53 10 8 FONTES: CBTG (Confederação Brasileira do Tradicionalismo Gaúcho) e MTGs (seções do Movimento Tradicionalista Gaúcho) no Brasil (1993 e 1994). A noção de rede regional 61 parcela de sulistas que não transfere o título de eleitor ou que vota em candidatos sulistas - gerando o que uma jornalista denominou, para o caso de Mato Grosso, "voto étnico"). A intensidade dos fluxos com o Sul é manifestada, por exemplo, na quantidade de linhas de ônibus como as que ligam diariamente Santa Maria (RS) e Barreiras (BA), Porto Alegre (RS) e Canarana (MT), Cascavel (PR) e Porto Velho (RO) etc. Todas essas evidências empíricas nos encaminharam para a formulação de um novo conceito ou, pelo menos, de uma noção que, de um ponto de vista geográfico, pudesse dar conta dessa realidade complexa e multi facetada. Partindo de conceitos tradicionais como os de território, rede e região, chegamos até a noção de rede regional. É este caminho, agora sob um ponto de vista que prioriza a discussão teórica, que percorreremos a seguir. o binômio território-rede e a questão da identidade territorial Embora sejam concepções de origem muito antiga, remontando no mínimo ao século passado, território e rede sofreram nos últimos anos uma verdadeira reviravolta conceitual que inclusive extrapolou as fronteiras da Geografia. Junto a elas devemos lembrar a intensidade com que passaram a ser utilizadas as noções de territorialização e desterritorialização (alguns exemplos, fora da Geografia, encontram-se em IANNI [1992] e ORTIZ (1995], para o caso brasileiro, e em DELEUZE/GUATIARI [1976] e BADIE [1995], para o âmbito francês). O problema, na maioria das vezes, é que as ciências sociais redescobriram ou deram nova importância à dimensão territorial dos processos sociais mais para dizer que o território está desaparecendo do que para destacar, de fato, a relevância de sua análise. Este processo complexo, que RAFFESTIN (1993) denomina de T-D-R: Territorialização/Desterritorialização/Reterritorialização, foi uma das bases de onde partimos para o entendimento daquilo que denominamos "binômio território-rede" (HAESBAERT, 1995). O território, no nosso ponto de vista, não é apenas um espaço dominado/apropriado, no sentido político-econômico do termo, como muitos enfatizam. LEFEBVRE (1986) já propunha uma distinção entre dominação, num sentido econômico-político, e apropriação, num sentido simbólico-cultural. Preferimos ver o território com esta dupla face, ou seja, como "o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio ou controle político do espaço e sua apropriação simbólica", reconhecendo que "a dominação tende a originar territórios puramente utilitários e funcionais, sem que um verdadeiro sentido socialmente compartilhado e/ou uma relação de identidade com o espaço possa ter lugar" (HAESBAERT, 1995:35). Dessa forma. podemos afirmar que o território é um espaço sobre/por meio do qual: • se exerce um controle, um poder, politicamente estruturado/ estruturante (dai o papel fundamental de um de seus elementos, a fronteira): 62 Revista TERRITÓRIO, ano 111, nº 4, jan./jun. 1998 • estabelece-se uma apropriação simbólica, ou seja, relações sociais produzem ou fortalecem uma identidade utilizando como uma referência fundamentai o espaço. O território terá sempre como uma de suas propriedades o assentamento, a ocupação de uma área, ou, se preferirmos, um certo grau de "enraizamento", concreto e simbólico, do grupo social que ali se reproduz. Como já ressaltavam antigos geógrafos, o homem tem sempre "uma raiz na terra", é um ser social e biológico, cultural e natural ao mesmo tempo. Isto não implica, contudo, em hipótese alguma, "naturalizar" a relação do homem com o espaço, naturalizando a noção de território e de identidade territorial. Mas também não se pode incorrer no equívoco oposto: desnaturalizar completamente o homem, sob a velha crença "moderna" (instrumental/ tecnicista) do pleno domínio e manipulação da "natureza". Assim, uma concepção de território que prescinda de uma base física ou natural é uma noção abstrata, como algumas vezes aparece no discurso metafórico de alguns filósofos e cientistas sociais". É neste risco que também incorremos quando reduzimos ou diluímos hoje o conceito de território ao conceito (ou noção, se quiserem) de rede. A polissemia do termo rede é tão vasta que inclui, e isto de maneira crescente nos últimos anos, a visão de redes puramente imateriais e/ou simbólicas. Desse modo, propomos definir território (ou suas distintas manifestações) considerando: a. as formas e a intensidade com que se apresenta a relação indissociável entre sua dimensão predominantemente material, político-econômica (reconhecida, por exemplo, na força de controle do acesso proporcionada por suas fronteiras, como enfatizou SACK, 1986, ou no território como "todo espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder", como define SOUZA, 1996:111), e sua dimensão mais imaterial, simbólico-cultural (manifestada pela coesão e o poder simbólico da identidade territorial por ele veiculada); b. a configuração espacial que ele manifesta, seja como uma única superfície, contínuo, seja como um conjunto de superfícies, fragmentado; neste caso é imprescindível enfatizar a imbricação território-rede pois, como demonstrou nosso trabalho, territórios são marcados sobretudo pela horizontal idade espacial" e, especialmente quando fragmentados, necessitam de redes (ainda que imateriais) para sua articulação. Insistimos, por isso, tanto no reconhecimento da íntima relação e interpenetração entre territórios e redes, quanto no reconhecimento de algumas especificidades. Na definição de um território a partir de sua relação com 3 Ver, por exemplo, alguns usos da expressão "território" feitos por DELEUZE e GUATIARI [1991], especialmente no capo 4, Géophilosophie. 4 Sobre as noções de horizontal idade e verticalidade do espaço, ver SANTOS (1994, 1996). A noção de rede regional 63 as redes podemos ter pelo menos duas situações que, por sua vez, dependem da dimensão social e da escala que priorizarmos em nossa análise: - o território é mais amplo do que as redes, sobrepondo-se a elas, caso em que as redes se tornam "elementos" constituintes ou fortalecedores do território, caso típico dos Estados-nações quando vistos a partir das redes político-administrativas e socioeconômicas que lhes dão uma (relativa) coesão interna, tendo, neste sentido, um papel territorialízador. dialeticamente, o território, por meio de suas fronteiras, pode manter ou fortalecer a coesão dessas redes, ao controlar os fluxos dirigidos para fora deste território. - o território é mais restrito do que as redes, quando estas se sobrepõem a eles, podendo participar de dois processos distintos: um de ordem territorializadora, quando a(s) rede(s) servem de articulação para territórios fragmentados (caso da "rede regional gaúcha" aqui analisada); outro de ordem desterritorializadora, quando a(s) rede(s), com seu caráter extrínseco preponderando em relação a um território, atua(m) na sua desarticulação (podendo, entretanto, rearticular territórios em outras escalas, como é o caso das "empresas-rede" multinacionais [CHESNAIS, 1996]). Entre suas especificidades, o território, mais do que as redes, incorpora uma base física, material, e certo nível de continuidade ou extensão sobre a superfície da Terra. Muitas redes, ao contrário, podem ser basicamente imateriais, como algumas redes de comunicação representadas materialmente por meros emissores/receptores ou "antenas" de conexão na superfície da Terra e redes de solidariedade mantidas sem uma clara fundamentação territorial (como o movimento feminista). Por estarem sempre, em maior ou menor intensidade, interligados, processos de desterritorialização promovidos no contexto das redes podem facilmente gerar novos territórios, em outras escalas, o que faz com que seja cada vez mais comum encontrarmos o fenômeno da sobreposição de territórios. Na verdade, não existe nunca um processo exclusivamente territorializador ou desterritorializador, há apenas o predomínio de uma dinâmica sobre a outra, dependendo do fenômeno ou dimensão social e da escala focalizados. A rede possui uma característica muito importante que é a de nunca conseguir preencher de forma contínua o espaço geográfico. Uma rede que se tornasse uma malha tão compacta a ponto de preencher todo um espaço deixaria de ser rede. É por isso que o uso do termo se disseminou com tanta rapidez nos últimos anos, num mundo em que a lógica "tradicional" dos domínios territoriais (que BERQUE, 1982, denominou de lógica "areolar") é cada vez mais suplantada por uma nova lógica "reticular", onde uma espécie de "territorialidade pós-moderna" é pautada pela fragmentação e sobreposição de territórios. Outra consideração muito importante que, podemos afirmar, foi um pressuposto e ao mesmo tempo uma construção resultante de nosso trabalho sobre a rede regional gaúcha, envolve o debate sobre as múltiplas formas de 64 Revista TERRIT6RIO, ano 111,nº 4, jan./jun. 1998 manifestação, no/pelo território, das dimensões material (de caráter predominantemente político-econômico) e imaterial (simbólico-cultural) da vida social. Trata-se de um jogo complexo onde propomos considerar, tal como na questão território/rede, as distinções e a imbricação entre elas. Assim, o território pode manifestar: a. um conteúdo mais material do que imaterial, ao prevalecerem as relações de domínio sobre as de apropriação territorial (tal como na distinção de Lefebvre anteriormente comentada); neste caso, tende a predominar uma lógica areolar sobre uma lógica reticular; b. um conteúdo mais imaterial do que material (embora não possa prescindir deste, pois aí o território perderia sua base concreta e, portanto, seu caráter geográfico, que sempre leva em consideração a relação indissociável entre materialidade e imaterial idade), prevalecendo, portanto, a apropriação (mais simbólica) e não o domínio (mais material) sobre o espaço; neste caso a apropriação é vista na forma de um processo de identificação mediada pelo espaço, e neste processo é impossível imaginar uma identidade territorial representada unicamente na forma de rede. Entramos aqui numa outra concepção, a de identidade territorial, que nos servirá de meio caminho para chegarmos depois à concepção de região e daí, retornando à rede, à discussão final sobre rede regional. A identidade territorial é uma identidade social fortemente mediada por um território (ou por territórios inseridos em outras escalas territoriais que, como no caso da estância latifundiária para a identidade regional gaúcha, sofrem um processo de transposição escalar ou geográfica, no sentido simbólico, pois com ele se identificam não só os habitantes da Campanha gaúcha mas também de todo o Rio Grande do Sul). Como toda identidade social, ela promove uma determinada classificação dos indivíduos enquanto grupo, com base, aqui, nas relações de pertencimento e identificação com um determinado espaço. A identidade regional, por sua vez, é a manifestação da identidade territorial numa determinada escala, aquela manifestada através da região, que definimos como: "um espaço (não institucionalizado como Estado-nação) tidade cultural e representatividade política, articulado ção de interesses específicos, geralmente econômicos, fração ou bloco 'regional' de classe que nele reconhece territorial de reprodução" (HAESBAERT, 1988:26). de idenem funpor uma sua base Como a região se define frente ao Estado-nação, neste sentido ela seria um território contínuo, não fragmentado e moldado espacialmente no estilo "colcha de retalhos" em que a moderna sociedade capitalista tentou inserir todos os pontos do planeta. Ocorre que o mundo contemporâneo, dito globalizado, tornou-se muito mais complexo geograficamente do que o mundo "internacionalizado", onde territórios e redes ainda podiam ser vistos em A noção de rede regional 65 conexões e lógicas hierárquicas relativamente bem definidas, sem grandes sobreposições e interseções. Em nosso trabalho, deparamo-nos com grupos sociais (ou pelo menos com expressivos segmentos deles) profundamente impregnados por algumas das características com as quais definimos uma região (especialmente a identidade regional), sem que no entanto eles coabitassem um mesmo espaço, contínuo, e pelo qual pudessem articular um movimento político "regionalista". Verificamos então que a saída seria a proposição de um outro conceito ou noção, capaz de demonstrar. sociológica e geograficamente, a força dos laços "regionais" mantidos mesmo fora da região num sentido mais tradicional e que ao mesmo tempo convivem com outros elos e dinâmicas socioespaciais. Foi assim que surgiu a concepção de rede regional, cuja proposta discutiremos a seguir. Os elementos articuladores da rede regional Uma das metáforas mais utilizadas para representar a geografia do mundo contemporâneo é a do caleidoscópio, uma miríade de facetas repetindo-se e entrecruzando-se sem parar. Mas mesmo o caleidoscópio, na sua complexidade, está carregado de uma "geometricidade" que o espaço atual não comporta. Se as redes têm que possuir pontos e linhas e, portanto, uma determinada "geometria", o mesmo não acontece com as superfícies e as fronteiras dos territórios, por sinal cada vez mais fragmentados (vide as propostas político-territoriais para a solução dos conflitos na Bósnia e na Palestina). Além do fato de vivermos sob múltiplos territórios, entrecruzados por redes de diversas ordens, o que pode promover a incerteza e a ambigüidade, não podemos esquecer que um número crescente de pessoas sequer pode afirmar que vive num território e/ou que está incorporado/conectado a uma rede: são os excluídos no sentido mais extremo, abandonados à própria sorte, geralmente pela lógica "flexível" e perversa do capitalismo deste final de século, e para os quais a única razão de existir pode ser a sobrevivência biológica cotlolana." Em HAESBAERT (1995) propusemos a noção de "aglomerados humanos de exclusão" para definir o espaço destes excluidos. cujos exemplos mais conhecidos são os acampamentos de refugiados e muitos sem-teto. Alguns autores constestam a idéia de "exclusão", advogando que "o que ocorre é que se combinou de uma maneira sem precedentes na história do mundo a exploração com a exclusão. a população oprimida que trabalha cada vez mais por menos com a que está sobrando e não tem trabalho, nem assistência, nem solidariedade, nem nada" (CASANOVA. 1996:53). José de Souza Martins, por sua vez, prefere o termo "inclusão precária" ou "marginal" ao termo "exclusão" (mesa-redonda no Simpósio "O fenômeno migratório no limiar do Terceiro Milênio", São Paulo, novo 1996, e obra recente "Exclusão social e a nova desigualdade" [S.Paulo. Paulus, 1997]). 5 66 Revista TERRITÓRIO, ano 111,nº 4, jan./jun. 1998 Deixando de lado a parcela de excluídos (ou os grupos sociais de inclusão extremamente precária) entre os migrantes que estudamos, por se tratar, pelo menos na área analisada (cerrados baianos e sul do Piauí), de uma parcela minoritária, já que a maioria dos sulistas pertence às classes média e alta (o que não quer dizer que muitos não tenham sofrido várias formas de "exclusão parcial" no decorrer do processo - uns excluídos da terra, outros excluídos da participação política etc.), estes mantêm entre si e com as áreas de origem vários tipos de ligações que nos permitiram formular a noção (conceito?) de rede regional para, em substituição à metáfora da "diáspora", compreender a complexidade geográfica da migração e os vínculos econômicos, culturais e mesmo políticos mantidos entre os sulistas ou "gaúchos". É verdade que nem todos utilizam o termo diáspora apenas como metáfora, tentando incorporar-lhe um certo rigor conceitual. Neste ponto de vista a diáspora tem muito a ver com a rede regional (ou nacional, se extrapolarmos para os grupos nacionais migrantes, para os quais o termo diáspora é utilizado com muito mais freqüência). Basta lembrar as três características básicas que BRUNEAU (1995, com base em G. Sheffer) reivindica para o que ele denomina de "conceito de diáspora": "a consciência e o fato de reivindicar uma identidade étnica ou nacional; a existência de uma organização política, religiosa ou cultural do grupo disperso (riqueza da vida associativa); a existência de contatos sob diversas tormas, reais ou imaginárias, com o território ou país de origem" (p. 8). A diversidade de formas com que os "gaúchos" se agregam à rede regional (uns pelos Centros de Tradições, outros pelas Cooperativas com sede no Sul, outros pela Igreja Luterana ... ) demonstra que, como afirma Bruneau, não nos tornamos membros de uma diáspora - ou rede regional - por uma questão "natural" ou inexorável, mas por opção ou constrangimento social. Parafraseando Bruneau, que associa diáspora e nação, podemos afirmar, aqui para o contexto região / rede regional, que, enquanto a região tem sido tradicionalmente tratada como um espaço relativamente bem definido e delimitado (o gaúcho sabe quando está saindo do Rio Grande do Sul ou dos "estados do Sul"), a rede regional é fluida, policêntrica, com limites mal definidos. Apesar da manutenção de vários traços identitários comuns, ela adquire feições diferentes de acordo com a área de destino (por exemplo, os "gaúchos" que estão no Nordeste não reproduzem sua identidade da mesma forma que aqueles que estão no Triângulo Mineiro, na Amazônia mato-grossense ou em Roraima). Enquanto a região tende a ser um espaço mais centralizado, contínuo e homogêneo, a rede regional é mais descentralizada, territorialmente descontínua e heterogênea. Podemos então afirmar que, dependendo da escala enfatizada, a rede regional é ao mesmo tempo um território no sentido tradicional, que prioriza a dimensão horizontal, contínua ou em superfície do espaço, numa lógica A noção de rede regional 67 "areolar", e uma rede, numa lógica "reticular" pautada em ligações materiais e imateriais através de fluxos que unem seus espaços traqrnentados". O que parece mais paradoxal na rede é que ela vai contra a idéia de que redesl fluxos que ultrapassam fronteiras relativamente bem definidas são sempre desterritorializantes, ou seja, desarticuladoras de territórios. Pelo menos neste caso o que denominamos de fluxos ou "linhas" da rede regional, que unem pontos de diferentes espaços geográficos, servem justamente para dar coesão ao mesmo tempo a esses "microterritórios" (ou "comunidades" predominantemente gaúchas, como é o caso de alguns bairros e novos municípios criados e dirigidos por sulistas), à escala local, e a sistemas de integração social "em rede" que podem alcançar a escala do Estado-nação. Outra característica importante da rede (regional ou não) é que ela é capaz de atravessar territórios sem lhes exercer a menor influência. É o que se denomina "efeito túnel", como ocorre com o TGV (trem de grande velocidade) francês que, ao mesmo tempo em que reaproxima grandes centros urbanos, distancia ou simplesmente ignora outros, excluídos de seu circuito de integração (através das estações). Isto em parte é válido para as inúmeras linhas de ônibus que interligam diariamente cidades do Sul do país com cidades para onde os sulistas migra(ra)m. Estes ônibus praticamente servem apenas à rede "gaúcha", parando em locais estratégicos, desde pontos para comprar erva-mate (como a parada da linha Santa Maria-Barreiras no interior de Palmeira das Missões) até os pontos de embarque-desembarque (no caso da linha Santa Maria-Barreiras, em 1992, as paradas de embarque terminavam em Maringá, no Paraná, e as de desembarque começavam no Triângulo Mineiro). Propomos distinguir pelo menos dois elementos básicos dentro da rede regional, em seu sentido geográfico: os "territórios de base local" ou "comunitários" (que se tornam "pontos" da rede quando vistos na escala nacional), onde os contatos cotidianos e face a face são possíveis, e a rede propriamente dita, ou seja, as "linhas de fluxos intercomunitários" ou "interidentitários", que se estendem não apenas entre os territórios de organização local dominados por migrantes, mas principalmente destes com a região de origem. Estes vínculos podem ser de ordem material (transportes terrestres, que incluem a migração dirigida de trabalhadores e a importação de produtos de uso característico do grupo - como a erva-mate, no caso dos sulistas -, e os laços comerciais interempresas, muitas mantendo sua sede na região de origem) e imaterial (os contatos via redes técnico-informacionais, desde ligações telefônicas e de fax até antenas parabólicas que permitem sintonizar Tomamos como referência aqui outros autores que, em distintas perspectivas (algumas até mesmo dicotômicas), distinguem ou estabelecem uma combinação diferenciada entre território e rede, entre eles LATOUR (1991), LÉVY (1993), BADIE (1995) e BRUNET (1995). 6 68 Revista TERRITÓRIO, ano 111,nº 4, jan./jun. 1998 programas de rádio e televisão da região de origem 7). Um dos elementos fundamentais para a consolidação da rede é a articulação entre determinados "pontos-chave" ou de maior valor estratégico em seus rnicroterritórios. Eles atuam como agentes aglutinadores e/ou fomentadores dos laços de identificação que mantêm a coesão do grupo (ou pelo menos de sua parcela hegemônica). No caso dos "gaúchos" são fundamentais os Centros de Tradições Gaúchas (só no Mato Grosso são 36, tão articulados que serviram de pontos de apoio na campanha para governador Dante de Oliveira). Eles formam, a nível nacional, a Confederação Brasileira do Tradicionalismo Gaúcho, com várias seções regionais e uma articulação inclusive em nível internacional, pois não apenas a identidade gaúcha é partilhada com os "hermanos" platinas, especialmente da Argentina e do Uruguai (onde está hoje a sede da Confederação Internacional do Tradicionalismo Gaúcho), como também se expande para outros países onde existem migrantes sulistas (em países como Paraguai, Bolívia, Estados Unidos, Inglaterra e até mesmo no Japão). Numa visão ufanista, o principal veículo da imprensa "tradicionalista" a nível nacional, o jornal "Tradição", editado em Porto Alegre, afirma, por exemplo: "Pode-se dizer, a rigor, que onde existe um gaúcho emigrado, em qualquer ponto da Nação, a Querência e os feitos dos legendários Farrapos estarão sendo reverenciados (Tradição nº 212, set. 96, p. 1). A cultura gaúcha chega, hoje, através do [jornal] TRADiÇÃO a lugares onde até bem pouco tempo passado não imaginávamos acabaríamos chegando. Integrando os desgarrados do pago que, através deste órgão, sentem-se ligados não apenas ao seu Rio Grande mas a todos aqueles que, em qualquer lugar situado dentro da Rosa dos Ventos, carrega um pouco de gauchismo." (Tradição nº 209, jun. 1996, p. 1) Determinados segmentos dos migrantes encontram outros canais para expressar sua especificidade cultural, como os descendentes de alemães, que têm nas Igrejas Luteranas (chamadas de "igreja dos gaúchos" pelos "nativos" baianos), cujas sedes nacionais estão em São Leopoldo e Porto Alegre (RS), um importante núcleo articulador. Outros, como empresários ligados ao setor de educação, chegam a expandir suas instituições (vide a criação da Como pode ser observado neste anúncio do jornal Nova Fronteira, de Barreiras (BA, 5.07.1994:12): "Se você é gaúcho, tem antena parabólica e quer matar as saudades dos pagos, aqui vai a dica: sintonize a qualquer hora o canal da Record e gire o comando do áudio dois graus á esquerda. A Rádio Gaúcha está entrando com som local. É um balaço. No esporte tu podes acompanhar os jogos do Grêmio e do Internacional. Notícias de todo o Brasil com aquele sotaque e músicas galponeiras com os resultados das últimas Califórnias (da Canção Nativa). E tome um mate!" 7 A noção de rede regional 69 Fundação Educacional do Sul do Piauí, em Corrente, pela Universidade de Passo Fundo) e promover cursos de atualização de professores no Rio Grande do Sul. Por fim, políticamente, os atores da rede regional, embora sejam múltiplas suas formas de participação (ou exclusão) dos processos de decisão política, procuram de algum modo manter o controle sobre seus territórios de base local, geralmente municípios (seria interessante um mapeamento dos municípios com prefeitos sulistas ou dos processos emancipatórios comandados por sulistas fora da região Sul) mas também novos estados (onde podem atuar sob a forma de alianças e coligações com grupos locais). Várias prefeituras, até mesmo no sul do Amazonas (Apiuí, por exemplo), são comandadas por sulistas, e em muitas áreas eles estimulam o separatismo, de onde provém o ditado que ouvimos com certa freqüência no Nordeste: "gaúcho onde chega quer separar". É importante lembrar que isto é fonte de conflitos, nem sempre explícitos, produto de resistências de antigas elites locais, como ocorre em Mimoso do Oeste, localidade "gaúcha" na Bahia que já possui prefixo próprio na TElEBA e, com cerca de 15 mil habitantes, a maior indústria de óleos vegetais do estado e três agências bancárias, não consegue a emancipação de Barrreiras. Marilena Felinto, em reportagem na Folha de São Paulo (31.07.94) chamou de "verdadeira guerra de secessão" a tentativa dos sulistas de emanciparem a localidade de Serra dos Gaúchos, que reúne cerca de 2.000 sulistas nos cerrados do noroeste mineiro. Contraditoriamente, porém, ao mesmo tempo que promovem políticas conservadoras, muitas vezes voltadas para o interior do grupo (por exemplo, quando só votam em candidatos identificados com sua base geográficoidentitária), muitos podem exercer o papel de articuladores de novas práticas políticas (por exemplo, muitos núcleos do Partido dos Trabalhadores no circuito dos migrantes, criados por sulistas). Apesar de ser ambígua e aberta, múltipla e fragmentada, a rede regional é mantida e se fortalece através das várias articulações entre seus territórios em nível local e, sobretudo, destes com o território/região de origem (que, como já ressaltamos, variam de intensidade no tempo e de acordo com os grupos ou classes sociais envolvidos). Essas articulações podem ser econômicas (laços comerciais e de investimento de capitais, por exemplo), políticas (pela reprodução de estruturas de poder semelhantes e pela busca de controle político, ainda que seja à escala local/municipal e que se realize através de alianças e acordos) ou culturais (especialmente pela coesão dada pela consciência de pertencimento a uma identidade social comum). A rede regional não é uma região, no sentido mais utilizado para este termo, porque seus atores não partilham de um espaço comum, dotado de continuidade e que, desse modo, poderia coordenar um movimento político-territorial autonomista (um "regionalismo") frente ao Estado-nação. Uma questão que se coloca hoje, entretanto, e com a qual encerramos este artigo (e manifestamos nosso novo campo de pesquisa, envolvendo agora 70 Revista TERRITÓRIO, ano 111, nº 4, jan./jun. 1998 a "rede brasileiro-gaúcha" nos parceiros do Mercosul), é aquela que propõe um novo tipo de região e/ou rede regional, construída não mais trents ao Estado-nação mas diretamente frente ao processo de globalização empreendido por certas empresas e instituições. Muitas delas podem fazer uso das especificidades e da coesão dessas "redes regionais" (ou "nacionais", como é o caso das redes chinesa e hindu) tanto para promover laços de solidariedade quanto para melhor reproduzir seus circuitos de exploração e de exclusão, aliando desigualdade socioeconômica e segregação político-cultural. Bibliografia 1. Livros e artigos BADI E, B. (1995): La fin des territoires. Paris, Fayard. BERQUE, A. (1982): Vivre I'espace au Japon. Paris, PUF. BOURDIEU, P. (1986): O poder simbólico. Brasil. 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