RCPV (2014) 109 (591-592) 62-69 Entomologia Forense Médico-Veterinária Veterinary Medical Forensic Entomology Maria T. Rebelo*(1), José Meireles(2), Anabela Moreira(2), Isabel Pereira da Fonseca(2) Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM), Campo Grande 1749-016 Lisboa 1 2 Centro de Investigação Interdisciplinar em Sanidade Animal, Faculdade de Medicina Veterinária, Departamento de Sanidade Animal, Universidade de Lisboa, Av. Universidade Técnica, 1300-477 Lisboa Resumo: A entomologia forense (EF) utiliza o estudo de insectos e outros artrópodes presentes na decomposição da matéria orgânica como ferramenta auxiliar da investigação criminal e conflitos civis. Os artrópodes apresentam características que permitem utilizar as evidências entomológicas na resolução de casos forenses. Os insectos acumulam-se no cadáver e em seu redor, tornando-se parte da evidência. Na fauna entomológica cadavérica existe uma sucessão hierarquizada de artrópodes, ainda que se observe por vezes uma forte competição e com intervalos definidos em cada estádio, que permite aos entomologistas forenses datar o intervalo post mortem, i.e. a estimativa do tempo decorrido entre o óbito e a descoberta do corpo. No Homem, a EF apresenta diversas áreas de intervenção (homicídio, suicídio, negligência e violação sexual) e mais recentemente, a EF estendeu-se a estudos no âmbito da fauna selvagem e da medicina veterinária onde tem tido particular relevância na vigilância e salvaguarda de eventuais casos de negligência, abuso físico de animais domésticos ou selvagens em cativeiro e também em animais selvagens envenenados/caçados em áreas protegidas. A entomofauna varia com o tipo de cadáver (ave, mamífero, carnívoro, omnívoro, etc.) e os artrópodes coletados têm de ser corretamente acondicionados e conservados, para manterem a sua morfologia e estádio evolutivo podendo as condições atmosféricas acelerar ou retardar o processo assim como os grandes necrófagos, as bactérias, os fungos e até a ação do Homem. Os autores pretenderam, através deste artigo, divulgar informação e fomentar o interesse sobre a entomologia forense médico-veterinária enquanto área de conhecimento. Summary: Forensic entomology (FE) uses the study of insects and other arthropods present in the decomposition of organic matter as an auxiliary tool of criminal and civil conflicts. Arthropods features allow the appliance of entomological evidence for solving forensic cases. Insects accumulate in corpse and around it, becoming part of the evidence. In the cadaveric insect fauna there is a hierarchical succession of arthropods. Although a strong competition may be present there are species and instars that allow forensic entomologists to date the post mortem interval, ie the estimate of the time between death and the discovery of the corpse. Human forensic entomology has several areas of intervention (homicide, suicide, negligence and rape) and more recently, the FE extended to studies within the wildlife and veterinary medicine which has had particular relevance in monitoring and safeguarding cases of negligence, physical abuse of domestic and wild animals in captivity and *Correspondência: [email protected] 62 also poisoned/hunted wildlife in protected areas. The insect fauna varies with the type of carcass (bird, mammal, carnivore, omnivore, etc.). Arthropods must be properly collected and preserved to maintain their morphology and evolutionary stage. Atmospheric conditions can accelerate or decrease the decomposition process as well as the action of large scavengers, bacteria, fungi and even man. With this article the authors intend to call the attention to medical and veterinary forensic entomology promoting the interest in this area of knowledge. Introdução A entomologia forense (EF) utiliza o estudo de insectos e outros artrópodes presentes na decomposição da matéria orgânica como ferramenta auxiliar da investigação criminal e conflitos civis. Os artrópodes apresentam diversas características que permitem utilizar as evidências entomológicas na resolução de casos forenses, nomeadamente, o facto de apresentarem a maior diversidade de espécies conhecidas por possuírem grande capacidade de adaptação a diferentes tipos de habitat, terem dimensões reduzidas que lhes permitem passar despercebidos, na maior parte das vezes, constituindo provas dificilmente manipuláveis e, ainda, exibirem estádios evolutivos que fornecem informações importantes para o processo em avaliação. Quando um crime é cometido, os insectos acumulam-se no e em redor do cadáver, tornando-se parte da evidência. Os entomologistas forenses podem assim datar a morte estimando o tempo decorrido entre o óbito e a descoberta do corpo, isto é, o intervalo post mortem (IPM), perceber se o corpo foi deslocado, identificar o local do crime e/ou determinar a causa da morte através da deteção de toxinas ou substâncias como fármacos, estupefacientes e venenos. No Homem, a EF apresenta diversas áreas de intervenção. Além das investigações de homicídio, suicídio e violação sexual, a EF também é usada em casos de abuso físico e negligência no tratamento de crianças e idosos, quando feridas, escaras e/ou ori- Rebelo M. et al. fícios naturais apresentam formas larvares, ninfais ou adultas de insectos ou vestígios da sua actividade (entomologia médico-legal). Adicionalmente, podem ser obtidas através da EF, informações relativas a litígios decorrentes da infestação de espaços privados ou públicos (entomologia urbana), ou de produtos alimentares comercialmente distribuídos (entomologia de produtos armazenados), assim como análise de toxinas drogas (entomotoxicologia) ou mesmo ADN da vítima, presentes em insectos que se alimentam de cadáveres. Mais recentemente, a EF estendeu-se a estudos no âmbito da fauna selvagem e da medicina veterinária onde tem tido particular relevância na clarificação de eventuais casos de negligência ou abuso físico de animais domésticos ou selvagens em cativeiro, indiciados pela evidência de miíases, ou em animais selvagens envenenados ou caçados em áreas protegidas. História Desde o antigo Egipto que se conhecem referências à intervenção de insectos, em particular moscas, na decomposição dos cadáveres. O Papiro de Gizeh 18026:4:14, encontrado numa múmia, refere “As larvas não se vão transformar em moscas dentro de ti” (Greenberg, 1991). Contudo, o primeiro caso documentado da resolução de um crime através da observação de insectos encontra-se no Manual de Medicina Legal, Xiyuan jílù - The Washing Away of Wrongs, escrito por Sung Ci no século XIII (Benecke, 2001). O autor relata o homicídio de um agricultor, que foi encontrado degolado, num campo de arroz numa aldeia remota da China. Todos os aldeãos foram obrigados a depositar as foices no solo ao ar livre, tendo o assassino sido incriminado pelo juiz que se apercebeu que diversas moscas estavam pousadas numa única foice, tendo deduzido que teria vestígios de sangue da vítima. O proprietário acabou por confessar o crime. Na Europa, durante a Idade Média, a proibição de exumar e estudar cadáveres humanos conduziu à estagnação das ciências forenses, apesar de haver representações artísticas reveladoras do conhecimento da colonização dos mortos por larvas de insectos. Todavia, apenas a partir do séc. XVII, Francesco Redi, biólogo italiano, provou cientificamente, em 1668, que as larvas encontradas em carne em decomposição tinham origem em insectos, refutando a teoria da geração espontânea (Amici, 2001). Em 1830, Mateu J. Orfila, médico e químico catalão naturalizado francês, refere a presença de insectos em cadáveres no Traité des exhumations juridiques (Amendt et al., 2004). Já Bergeret d’Arbois, médico francês, em 1855, foi o primeiro a analisar evidências entomológicas associadas ao corpo mumificado de uma criança encontrado emparedado num apartamento em Paris e a determinar o IPM, incriminando os anteriores loca- RCPV (2014) 109 (591-592) 62-69 tários (Benecke, 2004). Hermann Reinhard, médico e entomologista alemão, realizou, em 1881, o principal estudo de sistemática de espécies de insectos associadas a corpos exumados e Jean Pierre Mégnin, veterinário francês, autor de Faune des Tombeaux e La Faune des Cadavres, menciona a aplicação da entomologia à medicina legal, desenvolvendo no seu segundo livro, publicado em 1894, a teoria da sucessão da entomofauna na colonização dos cadáveres (Byrd e Castner, 2010), cuja aplicação prática se mantém até aos nossos dias. Até meados do séc. XX, verificou-se no Ocidente, um distanciamento entre entomólogos e profissionais da medicina legal e apenas num pequeno número de processos criminais a sua intervenção foi requerida, reflectindo-se na escassez de entomólogos especializados no estudo da sistemática e biologia da entomofauna dos cadáveres. A partir da segunda metade do séc. XX, contudo, houve um incremento do número de investigadores a trabalhar na área da EF e um avultado acréscimo nas obras publicadas, destacando-se o americano Kenneth G.V. Smith (1986), com o primeiro manual, A Manual of Forensic Entomology e os australianos Neal Haskell e E. Paul Catts (1990), com o primeiro guia de procedimentos, Entomology and Death, a Procedural Guide. Em Portugal, a EF foi uma área negligenciada até há poucos anos, quando vários estudos de levantamento das espécies entomológicas de interesse forense permitiram, iniciar a compilação de dados morfológicos e moleculares essenciais à identificação de Diptera e Coleoptera, de forma a cobrir a lacuna que existia na área da investigação médica e veterinária neste domínio no nosso país (Gusmão, 2008; Marques, 2008; Cainé et al., 2009; Centeio, 2011; Ferreira et al., 2011; Oliveira et al., 2011; Prado e Castro et al., 2011; Rolo et al., 2013; Farinha et al., 2014 e Lopes et al., sd). Nos Estados Unidos (http://www.forensicentomologist.org/), na Europa (www.eafe.org), e mais concretamente em Portugal realizam-se atualmente diversos cursos e seminários sobre este e outros temas das Ciências Forenses em vários estabelecimentos de ensino. A medicina veterinária forense: investigando situações de crueldade em animais Um pouco por todo o mundo, a comunidade está cada vez mais atenta para os casos de crueldade para com os animais. Em alguns países, são obrigatórias as declarações deste tipo de casos em diferentes espécies animais, existindo legislação punitiva nesse sentido. A necessidade dos clínicos veterinários e dos patologistas adquirirem competências que lhes permita avaliar as diversas situações, nomeadamente 63 Rebelo M. et al. a distinção entre diferentes padrões traumáticos fechados ou abertos, acidentais ou infligidos, asfixia e afogamentos, envenenamentos, queimaduras, maus tratos por negligência, entre outros, é indispensável independentemente da espécie animal a que se refira. Nos Estados Unidos da América, em 2007, Melinda Merck publicou o livro Veterinary Forensics no qual são compiladas informações sobre como direccionar a investigação num cenário de crime, técnicas laboratoriais forenses, interpretação de resultados da patologia forense e ainda directrizes sobre a forma de lidar com as evidências e conduzir as avaliações que serão levadas a tribunal. Muitas outras obras do mesmo teor evidenciam a preocupação crescente sobre este tema. O fenómeno da cadaverização e a fauna entomológica Após a morte, inicia-se um processo de decomposição do corpo em que a libertação quase imediata de odores é detectada pelos insectos que são os primeiros organismos a localizar o cadáver, sendo os principais responsáveis pela sua degradação. Os insectos podem agrupar-se em necrófagos, quando se alimentam directamente do corpo sendo excelentes indicadores do IPM (representados nos dípteros por espécies das famílias Calliphoridae e Sarcophagidae, e nos coleópteros por espécies das famílias Silphidae e Dermestidae,), predadores e parasitas de necrófagos (nomeadamente Diptera – Calliphoridae; Coleoptera - Silphidae, Staphylinidae e Histeridae; Hymenoptera), omnívoros, quando consomem indistintamente o cadáver ou os artrópodes a ele associados (Hymenoptera – Formicidae e Vespidae; Coleoptera) e acidentais, se utilizam o corpo como extensão do seu habitat normal (Araneae; Acarina; Collembola) (Amendt et al., 2004). De modo geral, sabe-se que os dípteros são os primeiros a chegar ao cadáver variando as espécies em função da época do ano, entre outros fatores. Por ex. em Múrcia, na Primavera e Verão, aparece primeiro Phaenicia sericata enquanto no Outono surge Calliphora vicina (López Gallego, 2008). Por outro lado, em Coimbra, aparecem ambas as espécies na Primavera (Prado e Castro et al., 2011). É de referir que a velocidade de decomposição é afectada por vários factores, sendo de destacar a temperatura (que não só acelera os processos bioquímicos, como promove a maior actividade dos insectos), a acessibilidade dos insectos ao cadáver, a causa da morte (feridas expostas que estimulam a atração ou fármacos que podem retardar o desenvolvimento dos estádios imaturos dos primeiros colonizadores do corpo) e a superfície de contacto (corpos no interior de edifícios ou submersos serão mais lentamente degradados pela acção dos artrópodes). 64 RCPV (2014) 109 (591-592) 62-69 A entomofauna encontrada no cadáver varia numa sequência previsível, ao longo do processo de decomposição, de acordo com a região geográfica e com a época do ano, pois cada fase atrai selectivamente diferentes espécies devido às alterações introduzidas pela própria actividade dos insectos. A fauna própria do solo não participa ativamente no fenómeno da decomposição (Bornemissza, 1957). As diferentes fases de decomposição, indicadoras das alterações físicas sofridas pelo cadáver, são usualmente quatro e diferenciam-se pela ocorrência sequencial de insectos (Benecke, 2004): - Fresca: principia com a morte, ocorrendo a colonização por moscas varejeiras (Calliphoridae) que iniciam a oviposição, dando-se a eclosão das larvas do 1º estádio (L1); a actividade da massa de larvas pode ser retardada pela acção de formigas; por vezes surgem coleópteros adultos (Silphidae). - Gasosa, inchamento ou enfisematosa: verifica-se o inchaço do corpo (pela produção de gases por acção bacteriana) e observa-se a presença de todos os estádios de larvas de moscas Calliphoridae, Sarcophagidae e Muscidae; é comum a ocorrência de adultos e larvas de coleópteros Silphidae e Histeridae. - Coliquação ou estado de decomposição ativa: normalmente o corpo rotura-se e os fluídos escapam pelos orifícios naturais, notando-se a ausência de ovos mas a presença maciça de larvas de varejeiras que rasgam a pele, abandonam o corpo (que se encontra reduzido a cerca de 20% da massa original) e pupam; coleópteros (Staphylinidae e Histeridae) surgem e começam a alimentar-se dos outros insectos. - Esqueletização: o cadáver encontra-se reduzido a cabelo/pêlo, pele e ossos e a população de moscas é reduzida a espécies das famílias Phoridae e Piophilidae, sendo dominante a presença de coleópteros Dermestidae, Staphylinidae e Histeridae; por vezes surgem ácaros predadores. - Seco: esta fase nem sempre ocorre, especialmente em ambientes húmidos, podendo prolongar-se por vários meses e até anos; é caracterizada pela ausência de larvas de varejeiras, presença de adultos e larvas de coleópteros das famílias Dermestidae, Cleridae e Scarabidae e de larvas de lepidópteros Pyralidae. A Estimativa do Intervalo Post-Mortem (IPM) O IPM corresponde ao período que decorre entre a morte e a descoberta do cadáver. Na realidade o que se vai medir é o período no qual houve actividade dos insectos. De acordo com Amendt et al. (2007) as estimativas do IPM baseadas na entomofauna seguem dois princípios: a) o tempo requerido para uma es- Rebelo M. et al. pécie atingir um determinado estádio de desenvolvimento, baseado no conhecimento do seu ciclo de vida e b) a comparação de todas as espécies presentes no cadáver no momento da observação, ancorada no conhecimento da sucessão entomológica. O cálculo do IPM baseado no ciclo de vida dos insectos recolhidos baseia-se no pressuposto dos insectos serem poiquilotérmicos (Byrd e Castner, 2010), i.e. a temperatura corporal flutua de acordo com a temperatura ambiente, influenciando o seu crescimento pelo que cada espécie apresenta um limiar abaixo do qual não ocorre desenvolvimento (limiar mínimo). Quando a temperatura ultrapassa esse limiar mínimo, um tempo específico é requerido para o insecto completar cada estádio de desenvolvimento. Este valor térmico é acumulado em “unidades térmicas”, graus, que são calibrados em “graus-dia” (GD) ou “graus-hora” (GH). O total “acumulado de graus/ hora” (AGH) ou graus/dias (AGD) reflecte o tempo gasto pelo insecto no seu desenvolvimento. Para as espécies mais comuns existem tabelas com a temperatura mínima de desenvolvimento, que varia com a localização geográfica. Como exemplo, veja-se a espécie de varejeira, Calliphora vicina, que apresenta, como limiar mínimo, valores de 3,5°C no norte do Reino Unido e de 1°C em Londres (Amendt et al., 2007). O procedimento para a estimativa do IPM implica a identificação das espécies presentes no cadáver e a recolha da temperatura ambiente na cena do crime (para a região e, de preferência, para o local, até 3-5 dias após a descoberta do corpo). Conhecendo as temperaturas óptimas de desenvolvimento de cada espécie é então possível estimar o IPM aplicando as fórmulas: • Tempo (horas) x (temperatura ambiente-limiar mínimo) = AGH ou • Tempo (dias) x (temperatura ambiente-limiar mínimo) = AGD Note-se que o cálculo do tempo em horas é mais adequado para mortes recentes (inferiores a um mês), porque o grau de variações acumuladas tem um peso maior em intervalos de tempo curtos. A inferência do IPM baseada no conhecimento da sucessão entomológica pressupõe que os insectos invadem os cadáveres em “ondas”, de acordo com as preferências das condições ambientais e da fase de decomposição (Benecke, 2004). As primeiras colonizações são feitas por dípteros, as vulgares moscas varejeiras, emergindo os adultos cerca de duas semanas após a oviposição. Os coleópteros apresentam maior actividade depois da primeira geração das moscas ter abandonado o corpo embora surjam ainda durante a presença das massas larvares dos dípteros. O procedimento implica identificar todos os exemplares (e todos estádios de desenvolvimento) encon- RCPV (2014) 109 (591-592) 62-69 trados no corpo e na cena do crime, conhecer a taxa de desenvolvimento de cada estádio/espécie nas condições climatéricas da região e ainda distinguir a sequência, padrão e duração das espécies presentes (e das ausentes), na estação do ano correspondente. Esta metodologia apoiada na sucessão entomológica é preferível à anterior (ancorada no ciclo de vida) quando se investigam mortes ocorridas há mais de três meses, porque nesta fase já existem inúmeras espécies de dípteros e coleópteros no corpo que permitem uma avaliação mais precisa do IPM. As limitações da estimativa do IPM devem-se ao facto da maioria dos cálculos das taxas de desenvolvimento dos insectos se basearem em estudos laboratoriais realizados a temperatura constante, que não ocorrem na Natureza e à necessidade de estabelecer correlações entre as flutuações nocturnas e diurnas da temperatura e a temperatura média diária registada nas estações meteorológicas que é tomada retrospectivamente à data da descoberta do cadáver. Fauna entomológica de interesse forense e sua caracterização O elemento crucial da EF é a identificação das espécies que colonizam os cadáveres. Insectos morfologicamente semelhantes podem, de facto, pertencer a espécies distintas e, consequentemente, apresentarem taxas de crescimento, comportamentos e habitats muito diversos. São usualmente identificados através de chaves dicotómicas específicas para cada família e/ou género, através da observação de peças da genitália, características das asas e outras estruturas. É de notar que a identificação morfológica dos estádios imaturos é extremamente complexa e, na maioria dos géneros impossível sem utilização de técnicas de microscopia electrónica (Centeio, 2011). O grande progresso verificado nos últimos anos das novas técnicas de análise molecular, associado ao desenvolvimento da sequenciação automática e ao aumento vertiginoso da capacidade computacional, têm permitido a disponibilização em bancos de dados internacionais da identificação molecular das espécies de insectos com interesse forense (cf. por ex: Wells e Stevens, 2008; Ferreira et al., 2011; Oliveira et al., 2011; Rolo et al., 2013 e Lopes et al., sd), agilizando o processo de identificação e superando as dificuldades enfrentadas na identificação de caracteres morfológicos de espécies gémeas, quando os exemplares estão danificados ou apenas se recolhem estádios imaturos muito prematuros. Os principais grupos de insectos que colonizam os cadáveres são moscas e escaravelhos. As famílias mais importantes encontram-se indicadas na Tabela 1, com os nomes vulgares em inglês para permitir uma mais fácil consulta das obras anglo-saxónicas e sempre que na língua portuguesa não se faz distinção específica. 65 Rebelo M. et al. RCPV (2014) 109 (591-592) 62-69 Tabela 1 - Principais famílias de moscas (Diptera) e escaravelhos (Coleoptera) com interesse forense Ordem Sarcophagidae Nome vulgar em português e inglês Varejeiras verdes e azuis; Blow Flies Moscas–da-carne; Flesh Flies Muscidae Moscas; Muscid Flies Piophilidae Skipper Flies Família Calliphoridae Diptera Família Sepsidae Stratiomyidae Phoridae Psychodidae Muscina levida Muscina pascuorum Muscidae Synthesiomyia nudiseta Fannia aequilineata Fanniidae Humpbacked Flies ou Scuttle Flies Moscas-da-areia; Moth Flies, Sand Flies e Owl Midges Histeridae Clown Beetles Cleridae Checkered Beetles Trogidae Hide Beetles Scarabaeidae Scarab Beetles Nitidulidae Sap Beetles Em Portugal, na última década, esta área de estudo tem assistido a um incremento que possibilitou a compilação da entomofauna com interesse forense que ocorre no território nacional, como referenciada na Tabela 2 para a região da Grande Lisboa. Família Género / Espécies Anthomyia pluvialis Anthomyiidae Muscidae 66 Anthomyia quinquemaculata Delia platura Lasiomma seminitidum Pegomya ulmaria Suillia flagripes Heleomyzidae Suillia variegata Tephrochlamys rufiventris Sarcophaga (Liosarcophaga) dux Sarcophaga (Helicophagella) hirticrus Diptera Sarcophaga (Bercaea) africa Sarcophaga (Liopygia) argyrostoma Sarcophaga (Helicophagella) melanura Sarcophaga (Sarcophaga) teretirostris Sarcophaga (Liopygia) cultellata Sarcophaga (Liosarcophaga) tibialis Sarcophagidae Sarcophaga (Pierretia) sexpuntata Sarcophaga (Heteronychia) vicina Ravinia pernix Calliphora vomitoria Diptera Fannia monilis Anthomyia imbrida Calliphora vicina Calliphoridae Fannia canicularis Fannia pusio Tabela 2 - Lista das famílias e espécies de Diptera e Coleoptera com interesse forense colectadas na Grande Lisboa em 20112013, no âmbito do projecto FCT, PTDC/SAL-ESA/101228/2008 (Farinha et al., 2014) Ordem Muscina stabulans Potamia littoralis Small Dung Flies e Minute Dung Flies Soldier Flies Staphylinidae Dermestidae Muscina prolapsa Phaonia trimaculata Black Scavenger Flies Carrion Beetles Skin Beetles, Leather Beetles, Hide Beetles e Carpet Beetles Rove Beetles Silphidae Género / Espécies Musca domestica Scathophagidae Dung Flies Sphaeroceridae Coleoptera Ordem Chysomya albiceps Sarcophaga (Liosarcophaga) portschinskyi Lucilia ampulacea Sarcophaga (Sarcophaga) lehmani Lucilia caesar Sarcophaga (Liosarcophaga) marshalli Lucilia sericata Sarcophaga (Liosarcophaga) jacobsoni Melinda viridicyanea Sarcophaga (Myorhina) nigriventris Pollenia rudis Sarcophila latifrons Atherigona sp Sarcophaga (Thyrsocnema) kentejana Graphomya maculata Aulacigastridae Hebecnema nigra Carnidea Hydrotaea aenescens Cecidomyiidae Hydrotaea armipes Ceratopogonidae Hydrotaea capensis Chloropidae Hydrotaea ignava Drosophilidae Limnophora obsignata Ephydridae Rebelo M. et al. Lonchaeidae Phoridae Platystomatidae Diptera Psychodidae Scatopsidae Sciaridae Ulidiidae RCPV (2014) 109 (591-592) 62-69 lógicos no interior de cavidades e tecidos do cadáver deverá ser concluída durante a autópsia ou necrópsia. É fundamental recolher ovos (Figura 1), larvas (Figura 2), pupas e adultos de dípteros, coleópteros e outros artrópodes que se encontrem no cadáver e no local envolvente (amostras de solo da região sob o corpo devem ser colhidas para pesquisa de pupas e larvas em dispersão). Carabidae Chrysomelidae Curculionidae Histeridae Coleoptera Lathridiidae Scarabaeidae Silphidae Staphylinidae Tenebrionidae Colheita e preservação de exemplares entomológicos Todo o material entomológico encontrado no cadáver ou na cena do crime deve ser criteriosamente recolhido e transportado para o laboratório para análises posteriores. Assim, para evitar a contaminação do local do crime e do corpo, deve usar-se equipamentos de protecção individual (como luvas e protecção para calçado que protegem o corpo do investigador e impedem a transferência de evidências e de materiais), evitar caminhar inadvertidamente pelo local destruindo vestígios e não tocar no cadáver antes de os exames periciais terem terminado. A documentação através de camaras fotográficas ou de vídeo é imprescindível. Os procedimentos a seguir sintetizados encontram-se detalhados em diversas obras, nomeadamente, Haskell e Catts (1990), Amendt et al. (2007), Byrd e Castner (2010) e Oliveira-Costa (2013). No local devem observar-se as características gerais envolventes, como plantas, presença/ausência de água, sol/sombra e actividade de insectos em voo, no solo, na vegetação, até 3-6m em redor do cadáver. O registo da abundância e diversidade, estádios imaturos (marcas de alimentação, orifícios de saída, pupas fechadas ou eclodidas) e de possíveis predadores (formigas, vespas), assim como da temperatura ambiente (a 30cm e 1,5m de distância do corpo), do solo, da superfície do corpo e da massa de larvas deve ser concluído in loco sendo recomendável a utilização de sensores de leitura rápida e de armazenamento de dados. No corpo deve examinar-se a posição ao sol, à sombra, quais as zonas em contacto com o substrato e áreas expostas aos pontos cardeais, além de colectar-se todos os insectos visíveis nas roupas/pelagem e à superfície do corpo e, depois de ser removido pelas entidades competentes, sob o corpo. A recolha de exemplares entomo- Figura 1 - Ovos de Calliphoridae na cavidade oral de cão Figura 2 - Larvas de Calliphoridae na cavidade oral de raposa Para a recolha dos adultos voadores pode empregarse uma manga entomológica e o material deve ser preservado em frascos com álcool glicerinado a 70% (se 67 Rebelo M. et al. posteriormente forem necessárias análises de extracção de ADN é recomendável que sejam preservados em álcool absoluto), mas a maior parte da amostra (8090%) requer ser mantida viva (para criação em laboratório até ao 3º estádio larvar e/ou estádio adulto, para facilitar a identificação específica que é quase impossível nos estádios imaturos). O material vivo deve ser acondicionado em malas térmicas para reduzir o metabolismo durante o transporte até ao exame laboratorial. De referir que a colheita de larvas de dípteros exige a sua submersão (por alguns segundos) em água a ferver antes de serem mergulhadas em álcool, para evitar a putrefacção e a descoloração. No laboratório, a conservação em meio seco deve ser quase imediata, usando timol (ou outro produto similar) para evitar a destruição por entomófagos, procedendo-se à montagem imediata dos exemplares. Caso contrário, há que colocá-los numa câmara húmida cerca de 24h antes da manipulação, para evitar danos nas estruturas. Para a montagem individual dos exemplares usam-se alfinetes entomológicos de tamanho e espessura normalizados ou triângulos de cartolina. Para colocar os alfinetes há normas que variam de acordo com o grupo entomológico (cf. Johnson e Triplehorn, 2004). Na rotulagem usam-se dois tipos de etiquetas: de captura (com indicação da data, hora, local, condições climáticas, características do local, nome do colector) e de identificação (nome específico do artrópode, nome do identificador e data de identificação). O acondicionamento dos exemplares é feito em caixas ou gavetas (normalmente de madeira) de armários entomológicos que contêm um desinfectante (timol ou análogo). A conservação em meio líquido permite poupar tempo, guardando os exemplares em lotes, devidamente etiquetados (em papel vegetal escrito a tinta da China ou a grafite) em tubos com conservante (normalmente álcool glicerinado a 70% ou absoluto), os quais, por sua vez, são colocados em frascos maiores, repletos do mesmo conservante. É fundamental uma vigilância regular para evitar a evaporação do conservante e consequente deterioração dos exemplares entomológicos. A cadeia de custódia em EF A cadeia de custódia é o processo de documentar a história cronológica das evidências, destinado a garantir o rastreamento das que são utilizadas em processos judiciais, registando todos os intervenientes no seu manuseamento. Em algumas situações, o entomologista pode não fazer parte da equipa de investigação e não recolher as amostras nem fazer anotações sobre o cenário do crime pelo que é extremamente importante aceder a todas as informações e recomendações prévias que acompanhem o material colhido. Por estas razões é imprescindível a correta etiquetagem e registo 68 RCPV (2014) 109 (591-592) 62-69 das evidências assim como a documentação de todos os processos que as acompanhem que deverão ser correlacionados com todos os documentos referentes ao caso em estudo (Garcia e Arnaldos, 2009). Desafios à Entomologia Forense Os desafios mais importantes que se colocam à EF resultam da alteração das condições climáticas, que se têm verificado nos últimos anos e se prevê que venham a acentuar-se no futuro, e da ocorrência de parasitóides de estádios imaturos de moscas varejeiras. As alterações climáticas dificultam e podem induzir em erro o cálculo do IPM, pelo impacto na variação sazonal da entomofauna e na alteração do desenvolvimento dos estádios imaturos (Oliveira-Costa, 2013). Os parasitóides de pupas e larvas de Diptera podem provocar imprecisões nas estimativas do IPM, ao alterar o tempo de desenvolvimento dos indivíduos. Como exemplo, Lucilia sericata sofre uma pupação prematura quando parasitada por Alysia manducator, que se reflecte num ciclo de vida mais curto (Byrd e Castner, 2010). Conclusões Na fauna entomológica cadavérica existe uma sucessão hierarquizada de artrópodes ainda que se observe por vezes uma forte competição e com intervalos definidos em cada estádio. No entanto, as condições atmosféricas, como a temperatura, podem acelerar ou retardar o processo assim como os grandes necrófagos (ex. abutres), as bactérias, os fungos, o Homem e as máquinas. As roupas, o enterramento (em função da profundidade), a imersão, a ingestão de substâncias por parte da vítima, entre outros fatores, podem comprometer os cálculos do observador. O conhecimento pormenorizado da fauna entomológica local é fundamental para a obtenção de resultados forenses fidedignos. Sabe-se que a entomofauna varia com o tipo de cadáver (ave, carnívoro, omnívoro, etc.) e os artrópodes coletados devem ser corretamente acondicionados e conservados, para manterem a sua morfologia e estádio evolutivo. A EF médico-veterinária constitui cada vez mais uma ferramenta importante para estudos no âmbito da fauna selvagem e também dos animais domésticos com particular relevância na clarificação de eventuais casos de negligência e/ou de abuso físico de animais em cativeiro, indiciados pela evidência de miíases, ou em animais selvagens envenenados ou caçados em áreas protegidas. Os autores pretenderam, através deste artigo, divulgar informação e fomentar o interesse sobre a EF médico-veterinária enquanto área de conhecimento que em associação obrigatória com outras áreas do Rebelo M. et al. saber como a Toxicologia, a Patologia, a Odontologia, a Criminologia, o Direito, entre outras, constituem as Ciências Forenses em Medicina Veterinária. Esta disciplina deverá fazer parte dos conhecimentos dos médicos veterinários que, enquanto técnicos, necessitam de competências no caso de serem chamados a assumir o papel de peritos em questões legais ligadas a esta problemática. Bibliografia Amendt J., Campobasso C, Gaudry E, Reiter C, LeBlane H e Hall M (2007). Best practice in forensic entomology standards and guidelines. International Journal of Legal Medicine, 121, 90–104. Amendt J, Krettek R e Zehner R (2004). Forensic entomology. Naturwissenschafte, 91, 51–65. American Board of Forensic Entomology. http://www.forensicentomologist.org/, acedido em 24/6/2014. Amici RR (2001). The history of Italian parasitology. Veterinary Parasitology, 98, 3–30. Benecke M (2001). A brief history of forensic entomology. Forensic Science International, 120, 2–114. Benecke M (2004). Forensic Entomology: Arthropods and Corps. In: Forensic Pathology Reviews, vol II. Editor: M Tsokos. 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