Detecção de Alterações Funcionais do Coração Fetal

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Arq Bras Cardiol
volume 72, (nº 6), 1999
Murta e cols.
Atualização
Alterações funcionais do coração fetal
Detecção de Alterações Funcionais do Coração Fetal no
Primeiro Trimestre da Gestação
Carlos Geraldo Viana Murta, Antônio Fernandes Moron, Márcio Augusto Pinto de Ávila
São Paulo, SP
Os autores tecem considerações sobre a possibilidade da utilização do Doppler a cores do duto venoso e da
medida da translucência nucal no rastreamento de alterações funcionais do coração fetal no 1º trimestre da gestação. Os dados da revisão da literatura sugerem que a
combinação da medida da translucência nucal (TN) e o
Doppler entre 10 e 14 semanas de gravidez pode ser eficaz
na detecção dessas anormalidades cardíacas, no entanto,
a conclusão é preliminar, necessitando de estudos posteriores para confirmar essa proposição.
A função e a anatomia cardíacas são quase sempre
impossíveis de serem avaliadas no 1º trimestre da gestação.
Montenegro e cols. 1 propõem o estudo do Doppler do retorno venoso ao coração na tentativa de aferir, de forma indireta, essa função cardíaca.
Os principais órgãos determinantes da hemodinâmica
fetal são o coração e a placenta. Dois tipos de circulação
unem esses dois órgãos: de um lado a circulação venosa, e
do outro, a arterial. Ambas são passíveis de alterações em
nível placentário, cardíaco, do sistema nervoso central, e
em nível periférico. No entanto, paradoxalmente, na literatura existe uma supervalorização da avaliação do fluxo arterial. Apenas recentemente a circulação venosa tem sido
explorada. Eik-Nes e cols. 2 e Gill e cols. 3 publicaram, pela
primeira vez, a velocimetria ao Doppler do fluxo sangüíneo
da veia umbilical. Em 1983, Griffin, Cohen-Overbeek e
Campbell 4 estudaram a veia cava inferior. O primeiro estudo do duto venoso em feto humano foi publicado em 1991
por Kiserud e cols.5.
O início dos batimentos cardíacos do embrião ocorre
no fim da 4ª semana após a concepção. O coração, com desenvolvimento iniciado durante a 3ª semana, possui contrações rápidas e irregulares, capazes de impulsionar o
sangue no interior dos vasos. Nessa ocasião, o sistema
circulatório em desenvolvimento permite que ocorra o intercâmbio nutritivo e gasoso, materno-embrionário, nas
Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina
Correspondência: Carlos G. V. Murta - Vitória MedfetUS - Av. César Hilal - 1181/401
- 29052-231 – Vitória - ES
Recebido para publicação em 4/1/99
Aceito em 24/3/99
vilosidades coriais. Encontra-se bem demonstrado na literatura que, em fetos normais, a freqüência cardíaca (FC)
aumenta de 110bpm na 5ª semana de gestação para 170bpm
na 9ª semana. A partir daí ocorre gradualmente uma diminuição que atinge, em média, 150bpm com 13 semanas de
gestação. O aumento inicial da FC coincide com o desenvolvimento morfológico do coração, e o declínio subseqüente pode ser resultado do amadurecimento funcional
do sistema parassimpático 6.
Há evidências da possibilidade de se detectar disfunção cardíaca, de forma indireta, através da avaliação
velocimétrica do fluxo no duto venoso e da medida da
translucência nucal (TN), entre 10 e 14 semanas de gestação 1.
Translucência nucal
Os equipamentos de ultra-sonografia de alta resolução são capazes de detectar uma fina camada translucente
entre a pele e o tecido celular subcutâneo, que recobre a
coluna cervical. Esse espaço hipoecogênico pode ser visto
rotineiramente no fim do 1º e início do 2º trimestre da gravidez. Recebe o nome de TN devido à aparência ultrasonográfica.
Alguns estudos têm demonstrado significante presença do aumento da TN, entre 10 e 14 semanas, em anormalidades cromossômicas 7,8 e cardíacas 9,10. Esses trabalhos assinalam que, se houver treinamento adequado, a utilização deste novo método de conduta poderia rastrear alterações do coração e dos grandes vasos fetais no 1º trimestre
da gravidez. O exame poderia ser feito por via vaginal ou
abdominal, na dependência da posição fetal e da idade
gestacional. Ressalta-se que, quanto maior a TN maior a
possibilidade de defeito cardíaco 9.
As bases dos mecanismos fisiológicos para explicar
este marcador ultra-sonográfico transitório (TN) ainda não
estão estabelecidas. Alguns eventos que ocorrem nessa
época da prenhez poderiam, eventualmente, esclarecer o
acúmulo transitório de líquido na região da nuca do feto. A
possível causa é atribuída a alterações da drenagem linfática fetal e/ou, particularmente, a distúrbio hemodinâmico
decorrente da disfunção cardíaca transitória própria da idade gestacional. Revela-se, neste estágio intra-uterino, um
estreitamento do istmo aórtico, em fetos normais 10.
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Para Hyett e cols. 10, o istmo aórtico delgado produz
diferencial de pressão entre a aorta ascendente e a descendente, causando um aumento da perfusão da cabeça e do
pescoço fetal com conseqüente congestão e edema da
nuca, que pode variar de volume, de acordo com a dificuldade de drenagem.
Wladimiroff e cols. 11 demonstraram que, entre 11 e 13
semanas de gravidez, a resistência ao fluxo nas artérias cerebrais é menor que o verificada na aorta descendente. No
fim do 2º trimestre foi observada pequena diminuição da
resistência nos vasos cerebrais, em contraste com acentuada diminuição na aorta e artérias umbilicais, não obstante
essas mudanças velocimétricas serem conseqüência das
alterações vasculares placentárias peculiares nessa fase da
gravidez 11. Com base nos trabalhos mencionados, é provável que a TN tenha origem em uma adaptação hemodinâmica durante o desenvolvimento cardiovascular, reforçando esse argumento de ser comum a concomitância de
taquicardia e aumento da TN. Essa taquicardia pode ter origem no retardo do amadurecimento do sistema parassimpático fetal 6.
Do exposto depreende-se que algum tipo de alteração
anatômica ou fisiológica do coração fetal ou dos grandes
vasos, entre 10 e 14 semanas, é a principal responsável pelo
edema nucal. O fluxo de sangue teria dificuldade de atravessar o coração; o esforço cardíaco aumentado, em que pese
transitório, refletiria sobre a pré-carga (circulação venosa
central), sobrecarregando-a, o que talvez justificasse esse
acúmulo de líquido na região cervical e levaria a uma possível alteração na onda de velocidade do fluxo dos vasos venosos, notadamente no duto venoso.
Doppler do duto venoso
Os principais vasos de interesse na investigação do
retorno venoso ao coração fetal são a veia cava inferior e
os vasos da vascularização venosa do fígado fetal (veia
umbilical, veias portas, hepáticas e o duto venoso) 12. A
veia umbilical, quando penetra no abdome, assume posição mais horizontal e uma direção posterior; a seguir,
direciona-se para a direita, quando conflui com a veia porta esquerda e prossegue como veia porta direita com divisões, anterior e posterior. Antes de se dirigir para a direita
surge o duto venoso que possui aproximadamente 1/3 do
diâmetro da veia umbilical. O percurso do duto é posterior
e com direção cefálica. Logo ao emergir do fígado, desemboca na veia cava inferior, imediatamente abaixo do diafragma, sítio onde também desembocam as veias hepáticas (esquerda, média e direita). Essa região da veia cava
inferior foi denominada de vestíbulo venoso subdiafragmático 13.
O plano ideal ecográfico para se visibilizar o duto venoso no seu maior comprimento é o corte longitudinal médio-sagital do tronco fetal. A sua origem também pode ser
identificada mediante corte transversal (ligeiramente oblí740
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quo) da parte superior do abdome fetal. Na origem do duto
venoso, o sangue que vem da veia umbilical muda sua tonalidade, agora mais clara, o que indica maior velocidade
do fluxo.
O feto possui três derivações anatômicas na sua circulação, com a finalidade de modificar a direção do sangue
de modo a não ocorrer mistura entre o fluxo oxigenado, proveniente da placenta, e o de baixa saturação, que retorna ao
coração.
Aproximadamente 50% do sangue oxigenado da veia
umbilical entra no sistema venoso hepato-portal e o restante dirige-se à veia cava inferior torácica através do duto venoso (1ª derivação). Desta forma, a saturação de hemoglobina é a mesma no duto venoso e na veia umbilical 12.
O sangue proveniente da veia cava inferior abdominal, que representa 65 a 70% de retorno venoso ao coração, não se mistura com o fluxo bem oxigenado, proveniente do duto venoso, quando se encontram na veia cava inferior torácica. Tal fato se deve ao aumento da velocidade e
ao maior teor de saturação de oxigênio do sangue proveniente do duto venoso. No átrio direito (AD), o sangue
ricamente oxigenado, derivado pelo duto venoso, escoa
de forma facilitada pelo forame oval (2ª derivação) para o
átrio esquerdo, juntando-se com a pequena quantidade de
sangue proveniente das veias pulmonares. Assim o sangue bem oxigenado segue para o ventrículo esquerdo e,
daí, é distribuído tanto para os órgãos nobres (miocárdio e
cérebro), quanto, igualmente, para as extremidades superiores 14. De acordo com Hecher e Campbell 12, os dados na
literatura são conflitantes a respeito da existência de um
esfíncter (estrutura muscular isolada) que regularia o fluxo
sangüíneo no duto venoso. No entanto, já foi demonstrado que o sistema nervoso autônomo influencia na
regulação desse fluxo 15.
O restante do fluxo sangüíneo na veia cava inferior
(proveniente do fígado e extremidade inferior) reunido ao da
veia cava superior no AD, segue para o ventrículo direito
(VD) e permeia a artéria pulmonar; contudo, em maior volume, atinge a aorta descendente através da 3ª derivação da
circulação fetal (duto arterial). O sangue da aorta descendente, com baixo teor de saturação de oxigênio, tem seu retorno à placenta pelas artérias umbilicais para ser novamente oxigenado 16.
O duto venoso é uma das três derivações exclusivas
da circulação fetal que tem a função de conduzir, diretamente, o sangue bem oxigenado da veia umbilical para o coração. Mediante a emprego do Doppler a cores, o duto venoso é observado como um vaso pequeno e estreito, que possui fluxo de alta velocidade, semelhante ao das artérias.
Essa velocidade aumentada do sangue no duto venoso
possibilita atingir o forame oval, sem se mesclar com o fluxo
remanescente no AD, pouco oxigenado 5.
O estudo velocimétrico no duto venoso foi introduzido por Kiserud e cols. em 1991 5 e em 1992 por Huisman e
cols. 17, o que permitiu novas aplicações do Doppler na
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obstetrícia. Esses autores demonstraram, em gravidez normal, um aumento de 2 a 4 vezes da velocidade do fluxo
sangüíneo ao se introduzir no duto venoso. Desta forma o
sangue neste vaso apresenta-se com cores brilhantes, e
tonalidades tendendo para o claro, o que provoca diferença de tonalidade em relação ao fluxo da veia umbilical. Particularidade que favorece a identificação do fluxo no duto
venoso à luz do Doppler a cores. Gennser 18 refere que na
junção da veia umbilical com o duto venoso (região ístmica) existe um pequeno esfíncter muscular, responsável
pela regulação do fluxo que entra no duto. Esse esfíncter
seria também responsável pela oclusão do duto após o
nascimento 16.
A figura 1 mostra que a onda de velocidade de fluxo do
duto venoso é unidirecional e bifásica. O 1º pico surge durante a sístole ventricular (S), e o 2º, na diástole ventricular
(D). A incisura que aparece entre dois ciclos representa o
final da diástole e a contração atrial (a).
Montenegro e cols. 19 estudaram a onda de velocidade
do fluxo do duto venoso em gravidezes normais entre 10 e
13 semanas de gestação. Não encontraram nenhuma variação significativa dos parâmetros analisados (que permaneceram constantes). O valor da velocidade máxima durante a
sístole foi de 24.8 (+/- 10.0) cm/s, na diástole de 18.8 (+/- 8.4)
cm/s e o tempo de velocidade média (TAV) de 16.5 (+/- 2.0)
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cm/s. A média dos valores da velocidade máxima durante a
contração atrial foi de 3.4 (+/- 1.9) cm/s. O índice de pulsatilidade (IP) também permaneceu constante nesse período
(1.3 +/- 0.2). Os autores concluem que as mudanças nas velocidades dos diversos componentes da onda velocimétrica do duto venoso ocorrem após esse período, como demonstraram Wladimiroff e Huisman 20.
Wladimiroff e Huisman 20 avaliaram a velocimetriaDoppler do duto venoso entre 19 e 39 semanas de gestação.
Verificaram que, com o avançar da gestação, ocorre aumento
do TAV, do pico da velocidade máxima sistólica e da diastólica, permanecendo constante a relação S/D, constatando
que os achados foram devidos ao incremento da quantidade
de sangue circulante, ao aumento da contratilidade, à complacência cardíaca e à redução da pós-carga. A diminuição da
pós-carga está bem estabelecida devido ao decréscimo fisiológico da resistência vascular placentária no 2º trimestre 21.
Consoante às mudanças do padrão de fluxo no duto
venoso, Wladimiroff e Huisman 20 observaram que, durante a atividade fetal, ocorre um aumento de 30% das velocidades durante a sístole e a diástole, em comparação ao verificado durante o sono fetal. De acordo com os autores, é
provável que a atividade fetal requeira maior quantidade
de sangue bem oxigenado para o compartimento direito do
coração.
Fig. 1 - Onda de velocidade do fluxo sangüíneo do duto venoso na 11ª semana de gestação (comprimento cabeça-nádega de 40 mm). Exame realizado por via vaginal.
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Van Splunder e cols. 22 estudaram através do Doppler a
veia cava inferior, o duto venoso e a veia umbilical de 262 fetos entre 8 e 20 semanas de idade gestacional. Na veia umbilical encontraram a pulsação venosa como padrão normal
até 15 semanas; o índice pulsatilidade venoso (IPV) diminuiu linearmente, e o TAV aumentou com a idade gestacional. No duto venoso, além do aumento da TAV, houve aumento da velocidade máxima durante a sístole e a diástole, o
mesmo ocorrendo com a veia cava inferior. Ao contrário, em
ambos os vasos houve diminuição do IPV com o evolver da
gravidez. A percentagem de fluxo reverso na veia cava inferior permaneceu constante até 14 semanas, diminuindo consideravelmente, a partir dessa época. Não foi mencionado o
comportamento da velocidade mínima no duto venoso durante a contração atrial. A onda velocimétrica do duto venoso foi identificada a partir de nove semanas, uma vez que o
desenvolvimento anatômico desse vaso se completa com
oito semanas, enquanto a onda de fluxo da veia cava inferior
pode ser estudada a partir de oito semanas. O aumento do
TAV com a idade gestacional foi observada nos três vasos
estudados, em uma proporção de 2, 3 e 4 vezes, respectivamente, na veia cava inferior, na veia umbilical e no duto
venoso. Assim, o duto venoso foi o vaso que apresentou
maior aumento da velocidade do fluxo, o que pode confirmar
a existência e desenvolvimento do esfíncter nesse vaso.
Os estudos iniciais 5,17 mostraram, em gravidez normal,
um aumento de 2 a 4 vezes da velocidade do sangue ao se
introduzir no duto venoso. É possível que o aumento da
velocidade se deva à presença do esfíncter, referido anteriormente, entre a veia umbilical e o duto venoso (região
ístmica), e também ao gradiente de pressão entre a veia umbilical e o AD.
O Doppler venoso mostrou-se de grande utilidade na
avaliação do bem-estar fetal, notadamente no sofrimento
crônico descompensado no 2º e 3º trimestres 23,24. Quando o
feto se encontra em situação de falência miocárdica, o fluxo
sangüíneo tem dificuldade de atravessar o AD, decorrente
da FC alterada, ou enchimento ventricular prejudicado.
Nessa situação, o Doppler venoso fetal se altera, surge na
veia cava inferior elevação do fluxo reverso durante a contração atrial, que aumenta o seu percentual acima de 10%.
Na veia umbilical aparece a pulsação venosa por diminuição
da velocidade do fluxo. Nessa circunstância de falência cardíaca, no duto venoso pode não ser visibilizada a incisura
durante a contração atrial (ausência de fluxo), ou surge o fluxo reverso, semelhante ao encontrado na veia cava inferior.
Em 1993, Kiserud e cols. 25. investigaram 30 casos de
fetos portadores de alterações cardíacas por meio da análise
da velocidade do fluxo no duto venoso, sendo que 18 possuíam cardiopatia congênita, e dois, taquicardia supraventricular. O achado relevante foi a redução da velocidade durante a contração atrial em 19 casos (inclusive fluxo reverso
em 13). Os autores acreditam que a alteração da velocidade
na contração atrial é um marcador sensível para se detectar
alterações hemodinâmicas fetais, particularmente quando
existe uma malformação cardíaca que envolve a função
ventricular.
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Montenegro e cols. 1 estudaram a onda de velocidade
do fluxo do duto venoso e a medida da TN em 65 fetos entre
10 e 13 semanas de idade gestacional. Destes, 17 foram incluídos na casuística por apresentarem TN >3mm, sendo
que foram detectadas cinco trissomias (quatro casos de
síndrome de Down e um caso de trissomia do 18). Nos 12
restantes, o cariótipo fetal foi normal. Não foi realizado estudo citogenético nos 48 casos que apresentaram TN menor
que 3mm, porém, ao nascimento, no que concerne ao
fenótipo, os conceptos eram normais. Em relação ao duto
venoso, apenas nos cinco casos portadores de cromossomopatia foi evidenciada alteração na velocimetria ao Doppler. O único parâmetro velocimétrico que se alterou foi a velocidade do fluxo durante a contração atrial, <2cm/s
(p<0,001). Os autores acreditam que tanto o aumento da TN
quanto a alteração velocimétrica do duto venoso ocorrem
por disfunção do coração, e que a alteração do Doppler venha a diminuir a taxa de falso-positivo da medida da TN no
rastreamento de cromossomopatias e de cardiopatias, referindo a possibilidade de o Doppler do duto venoso detectar
alteração precoce do coração fetal.
Matias e cols. 26 relataram alterações do retorno venoso (duto venoso, veia cava inferior e da veia umbilical) em
três fetos que exibiam aumento da TN entre 12 e 13 semanas
de idade gestacional e anomalias cardíacas e cromossômicas reveladas no estudo citogenético do líquido amniótico obtido por amniocentese.
O 1º caso diz respeito a feto com 73mm de comprimento
cabeça-nádega (CCN), que apresentava TN de 4mm, dilatação da bexiga e FC de 165bpm. A Dopplervelocimetria mostrou aumento do fluxo reverso na veia cava inferior e presença de fluxo reverso no duto venoso durante a contração
atrial, e também evidenciou pulsação na veia umbilical. O
cariótipo revelou trissomia do 13. Os parâmetros biométricos, ao estudo anatomopatológico, consistiam em um feto
de 14 semanas, embora a maturação pulmonar fosse compatível com 16/17 semanas, sugerindo presença de crescimento intra-uterino retardado, tendo entre outras malformações: lábio leporino; polidactilia; microcólon e moderada
hidronefrose e confirmada a presença de megabexiga. O fígado e o coração apresentaram microcalcificações e lesões
isquêmicas recentes e antigas, compatíveis com infarto do
miocárdio. No coração, essas lesões eram predominantemente subendocárdica e se localizavam no VD. Não foi detectado anomalia cardíaca de grande porte.
O 2º caso, a TN foi de 5,3mm, detectada com 12 semanas de idade gestacional. O CCN mediu 46mm, compatível
com 11 semanas. A FC foi de 127bpm. A ultra-sonografia
evidenciou onfalocele e defeito do septo atrioventricular. O
Doppler exibiu pulsação da veia umbilical e fluxo reverso no
duto venoso durante a contração atrial. O estudo citogenético revelou tratar-se de trissomia de 18. Os achados
anatomopatológicos confirmaram as evidências ultrasonográficas, além de revelar displasia da valva pulmonar.
O 3º caso em uma gestante de 28 anos (a maior idade
dentre os três casos relatados), o exame ultra-sonográfico
de rotina de 12 semanas mostrou TN de 10mm e defeito com-
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pleto de septo atrioventricular. A FC era de 147bpm. O
Doppler revelou aumento de fluxo reverso na veia cava inferior e ausência de fluxo no duto venoso durante a contração
atrial. O cariótipo foi compatível com trissomia do 21. O estudo anatomopatológico confirmou o defeito septal, além de
evidenciar outras alterações menores comuns na síndrome
de Down.
De acordo com Kiserud e cols. 27, as alterações do fluxo
da veia umbilical, da veia cava inferior e do duto venoso revelam aumento de pressão ventricular durante a fase diastólica
final e a contração atrial. Hecher e Campbell 12 assinalaram
que a resistência vascular periférica (como o aumento da resistência placentária) tem grande influência no retorno venoso e no padrão de enchimento do coração direito.
Concernente ao duto venoso, a redução da velocidade
do fluxo sangüíneo nesse vaso durante a contração atrial
está associada a crescimento intra-uterino retardado 27, malformação cardíaca 25,1,26 e a cromossomopatia 1,26.
Comentários
A medida da TN é considerada um método de grande
valia no rastreamento de cromossomopatias 7,8. Alguns autores, a exemplo de Montenegro e cols. 1, aceitam a teoria de
que o aumento da TN deve-se a uma falha cardíaca precoce. Assim, o método poderá também ser utilizado no rastreio
destas anormalidades.
É provável que a alteração da velocidade do fluxo durante a contração atrial nos casos de cromossomopatia refe-
rida por Montenegro e cols. 1 revele indiretamente uma falha
precoce do coração fetal (alteração na contração atrial ou na
complacência ventricular), apesar de esses resultados serem preliminares e únicos na literatura revista.
A combinação de TN com o Doppler do duto venoso
poderá assumir grande utilidade na detecção de defeitos
cardíacos precoces. De acordo com Souka e Nicolaides 28, a
associação de cardiopatias graves com TN espessada está
em torno de 2%. Esta prevalência é similar ao grupo de portadoras de diabete melito e ao grupo de mulheres com história anterior de filho com cardiopatia. Nesses dois grupos
não se discute a indicação de ecocardiografia fetal. Da mesma forma, haveria uma indicação formal do estudo do coração fetal, quando a TN estivesse espessada entre 10 e 14
semanas de idade gestacional. A ecocardiografia seria feito
posteriormente, no 2º trimestre. Nos dias atuais não haveria
meios suficientes, tanto em instalações, quanto em número
de especialistas, para suportar esta nova demanda, uma vez
que existem evidências de que aproximadamente 5% dos
fetos possuem aumento da TN. Há de se supor que a realização do Doppler do duto venoso com a medida da TN poderia reduzir esta demanda de ecocardiografia fetal, quando o
Doppler se mostrasse normal.
Os resultados até o momento não permitem indicar o
método (TN associado ao Doppler do duto venoso) na predição da disfunção cardíaca. Para que haja justificativa na
busca destas alterações fetais, faz-se necessário um estudo
multicêntrico com amplo protocolo de rastreamento.
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