Administração n.º 62, vol. XVI, 2003-4.º, 1383-1403 A MEDITAÇÃO ÉTICA DA CHINA Ana Cristina Alves* INTRODUÇÃO Houve um tempo em que a religião teve grande poder ao nível do estado, na China. Nos tempos do império, os imperadores, também conhecidos por filhos do Céu, serviam-se, frequentemente, de métodos divinatórios, para consultar a «bíblia» chinesa, o Clássico das Mutações — Yi jing (易經), a fim de administrar correctamente os assuntos do estado. A partir do momento em que o Confucionismo se tornou a filosofia oficial do império, durante a dinastia Han, a religião manteve o seu peso e poder, muito embora com características especificamente chinesas, já que a religião na China nunca se assumiu como estatal à maneira ocidental. Os confucionistas combatiam até todas as formas declaradamente religiosoas de governo e, por isso, estiveram, muitas vezes, em guerra aberta com os daoístas e, mais tarde, com os budistas. Os confucionistas aceitavam apenas um poder impessoal, o Céu, ao qual o imperador, o filho terreno deste poder máximo, devia prestar culto, a fim de não perder o governo dos destinos do império que este pai impessoal lhe concedera na forma de mandato celestial. A religiosidade tipicamente confucionista manifestava-se, ainda, no Culto aos Antepasados, que todo o povo devia praticar com a maior das devoções. A religião era sobretudo o padrão familiar que os chineses deviam seguir de olhos postos no filho do Céu e auxiliava, portanto, na administração de um império, que se guiava por padrões essencialmente éticos. A religião defendida pelos confucionistas só assumia pleno sentido, quando estreitamente aliada à ética. O império devia, assim, ser admi* Licenciada e Mestre em Filosofia. Técnica superior do Ministério da Educação 1383 Português, a leccionar no Departamento de Português da Universidade de Macau. nistrado de um modo familiar e ético e, por isso, as leis eram bem menos importantes do que os ritos. Não surpreende pois que as relações afectivas e as normas não-verbalizadas estivessem muito acima da burocracia. Como a grande maioria dos imperadores seguiu, primeiramente, a linha confucionista, e a partir do século XI, a neoconfucionista, este tipo de religião muito específica, na verdade muito mais ético-moral do que religiosa, manteve uma estreita aliança com o poder até à queda do império, em 1911. As outras grandes religiões da China — a daoísta, autóctone, e a budista, importada numa primeira fase, e totalmente assimilada na forma de Budismo Chinês, numa segunda fase — estiveram quase sempre nas margens do poder, ou sob o seu controlo vigilante, a partir do momento em que o Neoconfucionismo predominou. O pensamento confucionista caracterizado pela ênfase conferida à dimensão ética contribuiu decisivamente para a criação de um modo de administrar único no mundo. O governo era, assim, entregue a funcionários estatais, os mandarins, que deviam ser exímios tanto do ponto de vista intelectual, como do ético-moral. Não se lhes pedia grandes conhecimentos políticos, dimensão que nem era sequer valorizada, mas apenas conhecimentos profundos ao nível da cultura chinesa e uma conduta moral irrepreensível, que copiasse os modelos fornecidos pelos grandes reis da antiguidade chinesa, investidos de capacidade governativa pelo poder impessoal do Céu. Deste modo, ao longo da história chinesa, apenas um tipo específico de religião se manteve no poder, aquela que, mais do que a dimensão sagrada, valorizava a humana, que empenhava todos os seus esforços na construção de um mundo mais perfeito do ponto de vista ético e procurava que todos os domínios da realidade social fossem abrangidos por normas ético-morais, incluindo naturalmente o administrativo. No entanto, penso que também é oportuno mostrar o pensamento ético-religioso daoísta e budista e, por isso, me proponho fazê-lo nas secções subsequentes. MÉTODOS DE MEDITAÇÃO DAS ESCOLAS RELIGIOSAS CHINESAS Nos conventos, templos e institutos, os jovens religiosos levam uma vida regrada. No curso daoísta triénio, a decorrer no Templo da Nuvem 1384 Branca, levantam-se às 5:30 da manhã e deitam-se às 9:00 da noite. Têm um vasto curriculum onde aprendem as doutrinas daoístas, os rituais, a música, a caligrafia, as artes marciais e até o inglês. Ouvem as notícias, jogam xadrez chinês, ténis de mesa e devoram literatura, estrangeira ou chinesa, sobretudo a que conta com os heróis das artes marciais. As duas principais escolas daoístas são a Zhengyi (真一派), ou da “Verdadeira Unidade”, derivada de Wu Dou Mi Dao, (五斗米道) numa tradução alargada, as “Cinco Medidas de Arroz”, fundada por Zhang Daoling, da Dinastia Han de Leste e a Escola Quanzhen (全真派), ou da “Pureza Completa”, fundada por Wang Zhongyang e pelo seu discípulo Qiu Chuji da dinastia Jin. Estas, com os seus métodos de meditação específicos, reclamam-se herdeiras dos ensinamentos de Laozi, que terá vivido entre o séculos V e IV aC1, mas também das técnicas científicas expostas no Clássico da Medicina Interna, atribuído ao Imperador Amarelo (2696-2597 aC), segundo nos informa o mestre Chan Han Shan (1546-1623). Mais recentemente, o método de meditação da Escola daoísta seria apresentado por Yin Shi Cu, em 1914, na obra “Yin Shi Cu Zuo Fa”. A prática de meditação daoísta assenta na regulação da postura corporal e no controlo da respiração. Há que escolher um lugar calmo, arejado e apropriado à meditação. Nada no corpo é deixado ao acaso. Há regras para a posição das pernas, das nádegas, das ancas, da barriga, das mãos, da cabeça, dos olhos, da boca e, sobretudo, para a respiração, considerada o grande elo de ligação entre o corpo e o espírito, o interior da pessoa e o mundo. Também há regras para a mente. O meditador deve travar o curso dos seus pensamentos, bem como o nascimento de novos pensamentos. A palavra-chave é a do esvaziamento da mente. A meditação é especificamente levada a cabo para curar doenças e melhorar a saúde. No entanto, enquanto se medita, deve-se assumir uma atitude natural e desinteressada em relação à saúde e ter uma fé religiosa profunda na prática que se está a realizar. É melhor meditar um pouco todos os dias e controlar cuidadosamente a respiração. Este controlo será ideal para afastar os pensamentos da prática meditativa, a fim de obter a pacificação da mente e do corpo. A concentração é fundamental para a libertação de doenças, o prolongamento da vida e, mesmo, a obtenção da imortalidade, grande objectivo de todos os daoístas. Mas esta só será conseguida com 1 Fung Yu-lan, A History of Chinese Philosophy, p. 408 1385 um equilíbrio perfeito entre o corpo e o espírito. A prática da meditação daoísta tem assim como objectivos próximos a auto-cura, a flexibilidade e a ginástica corporal, a revitalização dos órgãos internos e um suporte medicinal que remonta ao Clássico da Medicina do Imperador Amarelo, facultando, a título de complemento, o acesso à hábil utilização da acupunctura e cauterização. Mas este tipo de meditação daoísta é criticado pelas principais escolas de meditação budista Mahayana, que a consideram, mais utilitária do que religiosa, mais ao serviço do indivíduo e dos seus desejos de saúde, longevidade e até imortalidade, do que preocupada com a salvação religiosa individual e colectiva. Resumindo, os críticos budistas consideram que a dimensão ética da medição daoísta é muito reduzida, porque está limitada ao eu de quem a pratica e, simultaneamente, pouco religiosa, uma vez que, mistura o sagrado e o profano, ao nível do profano, como que dissolvendo a dimensão sagrada, por um culto e apego excessivo aos valores da vida. Não faz parte do âmbito desta comunicação defender ou privilegiar qualquer das principais escolas de meditação chinesas. No entanto, gostava de chamar a atenção para as dimensões ética e religiosa da meditação daoísta. Embora esta se centre na salvação física e espiritual de certos seres, os daoístas e especificamente os santos e imortais, e não faça um voto de iluminação e salvação colectiva, como sucede nas escolas de meditação budista da linha Mahayana, é de notar que a prática de meditação daoísta tem em vista a ligação religiosa ao sagrado e o regresso ao Dao, ou ao todo sem forma, inominável e orignário2. Esta fusão faz-se ao nível individual, mas não autista, pois só é possível pela relação que o indivíduo estabelece com a natureza e, concretamente, no caso da meditação, com o ar que respira. A Meditação depende, à maneira budista, da capacidade de travar os pensamentos, para deixar emergir a natureza instintiva de cada um, o que permitirá a ultrapassagem de todas as divisões e a transcendência de um mundo meramente fenomenal para se chegar ao contacto com a verdadeira realidade: aquela que nos faz compreender a ligação profunda de cada pessoa, ou microscosmos, ao macrocosmos e ao todo originário. É 2 Lao Tseu, Tao Te Jing,. Le Livre de La Voie et de La Virtue, traduction et 1386 Commentaire spirituel de Claude Larre, I a conexão com a verdadeira realidade que nos permite realizar a autocura, o prolongamento da vida e até, em certos casos, alcançar a imortalidade. Ora para que este tipo de meditação tenha êxito — advertem-nos os grandes mestres do daoísmo primitivo, como Laozi, Zhuangzi, Liezi e, também da vertente científica tal como aparece no Clássico do Imperador Amarelo — é necessário que o sábio, santo ou imortal encontre o seu eu profundo, verdadeiro, natural, sincero, humilde, flexível e receptivo. Este deve ser vazio de desejos, de modo a manifestar a natureza instintiva, a que compreende a profunda conexão entre todos os seres naturais e que, por isso, faz com que se entendam para além das convenções próprias de cada ser. Em o “Clássico da Medicina Interna do Imperador Amarelo” nomeiam-se as virtudes necessárias, aos seres verdadeiramente saudáveis, como a bondade, a temperança, a restrição, a delicadeza e a magnanimidade. Laozi diz que as maiores virtudes do sábio são a compaixão, a frugalidade e a humildade3. Zhuangzi desenvolve o tema das virtudes naturais do homem de Laozi, com a apresentação de um método para o homem autêntico. Este, no seu caminho existencial deve cultivar a purificação corporal e espiritual para se concentrar com êxito. E com que finalidade? A de atingir a verdadeira realidade, a dimensão transcendente que se dá a ver, ou a contemplar, na e pela natureza. Qual é o segredo do sábio, do santo ou do verdadeiro artista? Laozi responde: a recuperação da espontaneidade originária, a sabedoria do recém-nascido. Já Zhaungzi, mais metafórico, relata casos vividos para chamar a atenção da importância da meditação na vida das pessoas que procuram realizar obras autênticas, como por exemplo os artistas. Recorde-se o caso do entalhador de madeira. Sigo e resumo a tradução de Thomas Merton. Khing era um mestre entalhador que fazia magníficas armações para sinos. O príncipe de Lu quis saber qual era o segredo do famoso entalhador. Este, quando interrogado, respondeu que era um mero operário e que ao trabalhar protegia o espírito, não o desperdiçando com ninharias. Concentrava-se. Para tal jejuava: 3 Ob cit, XLVII 1387 Jejuei a fim de pôr o meu coração em repouso. Depois de jejuar três dias, Esqueci-me de lucro e do sucesso. Depois de cinco dias Esqueci-me do louvor e das críticas. Depois de sete dias Esqueci-me do meu corpo Com todos os seus membros. (...) Eu me recolhera ao único pensamento Da armação do sino. Depois fui à floresta Ver as árvores em sua própria condição natural. (...) Se não houvesse encontrado esta determinada árvore Não haveria qualquer armação para o sino. O que aconteceu? O meu próprio pensamento unificado Encontrou o potencial escondido na madeira; Deste encontro ao vivo surgiu a obra Que você atribui aos espíritos4 Este episódio tem como objectivo mostrar que o daoísta não é o ser individualista e autista que outras tradições religiosas chinesas denunciam. Para que haja meditação, ele parte, à semelhança do que sucede com os budistas, de uma preparação física e espiritual intensa, ligada ao desenvolvimento e transformação dos seus valores éticos, como, neste caso, os da frugalidade e simplicidade, pois só assim consegue a comunhão, a identificação e a fusão com o todo, que fazem dele um recém-nascido espontâneo à maneira de Laozi, ou um ser autêntico, à maneira de Changzi ou Liezi. Ele também não está de costas voltadas para a comunidade. É certo, como já disse, que não realiza os votos de salvação individual e universal, mas não é menos verdade que o seu modelo influencia 4 Thomas Merton, A Via de Chang Tzu, XIX. Ver também Zhuangzi, Library 1388 of Chinese Classics, Chinese-English, 1999. positivamente os outros. Estes, o comum dos mortais, copiam-no instintivamente, realizando, sempre que têm oportunidade de entrar em contacto com um santo, os valores éticos supremos mais adequados à sua própria natureza, mesmo sem se aperceberam que o estão a fazer. Portanto, na escola de meditação daoísta, à semelhança das restantes, partese do princípio de que aquele que medita se transforma e transforma em seu redor todos aqueles que contactam consigo, não — e eis uma característica especificamente daoísta — de um modo consciente e voluntarista, mas pela cultura de wu wei (無為) ou pela inacção. A escola de meditação daoísta é originariamente chinesa, já as de meditação budista vieram da Índia. No entanto, a filosofia budista acabou por ter grande aceitação entre os chineses. Crê-se que entrou na China durante o século I (primeiro) e começou a difundir-se devagar. No final da dinastia Han já havia muitas escrituras budistas traduzidas. No início do século IV, e devido à instabilidade interna, o budismo começou a ter grande aceitação quer junto das elites, quer do povo. O tipo de Budismo que teve melhor acolhimento foi o Mahayana. Esta corrente teve início na Índia por volta do séc. II a.C. Enfatiza o ideal de Bodhisattva, aquele que renuncia ao nirvana em nome da salvação espiritual de todos os seres. Surgiu como uma reacção ao budismo primitivo, o Hinayana, que valoriza sobretudo o santo, Arhat, que procura a iluminação individual e a obtenção do nirvana, a cessação dos desejos e a libertação do ciclo da existência. Para a escola Mahayana a compaixão, karuna, é tão importante como a Prajna, a sabedoria. Também se pode encontrar na China, sobretudo em Yunnan e regiões vizinhas, o budismo Theravada, ligado à tradição Hinayana. No entanto, este é muito menos influente do que o das escolas descendentes da via Mahayana, o que se explica pela maneira de ser prática dos chineses, que privilegiam a dimensão ético-moral e revelam fraco pendor para especulações teóricas e metafísicas, especialmente quando centradas no indivíduo. É ao monge Kumarajiva (344-413) que se deve grande parte da introdução e tradução dos textos da escola Mayahana e de uma das suas correntes de maior influência, Madhyamaka. Da tradição Mayahana dependem as principais escolas de meditação budista chinesa: a Tian Tai (天臺宗), fundada por Huisi (惠思), a Chan (禪宗), criada por Bodhidarma (菩提達摩) e a Jingtu (淨土宗), estabelecida por Hui-yuan (慧遠). 1389 O Budismo conheceu alguns períodos de grande perseguição na China. O último aconteceu durante a revolução cultural, quando todas as manifestações religiosas foram expressamente proibidas. A sua época áurea foi durante as dinastias Sui e Tang. Já mais tarde, durante as dinastias Song e Qing, o Confucionismo, ou mais correctamente, o Neoconfucionismo seria o sistema de pensamento dominante no país, que não excluiria certas teorias budistas. Actualmente o budismo voltou a recuperar terreno, ainda que sem as rígidas divisões escolares a que a tradição assistiu. Os chineses praticam as três tradições, as san jiao (三教) (Budismo, Daoísmo e Confucionismo), de uma forma complementar. Além disso, os religiosos podem mudar de escola de meditação, ao longo da vida, sem que se sintam incoerentes por o fazerem. Como bem resumiu David W. Chappell5, o que melhor caracteriza o budismo chinês é uma grande abertura e flexibilidade em relação às escolas, bem como aos métodos por estas adoptados. Esta postura traduz-se em 5 princípios: 1 — todos os seres, embora partilhem um destino comum, têm níveis diferentes de desenvolvimento espiritual; 2 — deve haver respeito mútuo entre todas as escolas budistas; 3 — todas as práticas e métodos são temporários e nenhum é absoluto; 4 — do ponto de vista do princípio último, Li (理), nada difere do nirvana, da verdadeira natureza, da mente e do estado buda. Todos somos, portanto, expressões do absoluto; 5 — a verdade última implica o equilíbrio entre o vazio e a oportunidade, os princípios Li (理), e os factos, shi (事). Com estes princípios presentes, passamos à distinção de métodos entre as principais tradições de meditação do budismo chinês. A Escola da Terra Pura (淨土宗) terá sido criada por Hui yuan (344-416), o primeiro patriarca da tradição chinesa que se reclama herdeiro de Samantabhadra Bodhisattva, o primeiro patriarca indiano. A Escola, também conhecida por seita de Lótus, proclama a salvação pela fé no buda Amitabha (普賢菩薩) e pela crença no sutra de Amitabha (阿彌陀佛). Hoje os 9 patriarcas reconhecidos são: Hui Yuan, Shan Dao, Cheng Yuan, Fa Zhao, Shao Kang, Yan Shou, Xing Chang, Lian Qi e Xing An. A tradição de meditação na Terra Pura assenta na fé. Considera-se que o Buda Amitabha salva quem realmente acredita nele, concedendo 5 Traditions of Meditation in Chinese Buddhism, edited by Peter N. Gregory, 1390 The Kuroda Institute, n. 4, pp. 192-193. às pessoas os dons de renascer num outro tempo, depois da morte, e espaço, na Terra Pura, o Reino do Buda Amitabha, localizado a Oeste. São três os principais métodos de meditação. 1 — A repetição do nome do buda Amitabha, que pode ir de 50 000 a 500 000, ou mais, por dia; 2 — a repetição do mantra6 de Amitabha; 3 — a contemplação do buda Amitabha, através de 16 métodos expostos no Sutra de Amitabha, que passam pela visualização interior de elementos naturais como o sol, a água, o chão, as árvores preciosas, até as imagens santas, como as dos Budas Amithaba e Guanyin e, também, do reino da Graça, a Terra Pura. Os métodos contemplativos desta escola são sensíveis e práticos. Os crentes recorrem à realidade que os rodeia. Lêem, recitam e cantam as escrituras, produzem e adoram imagens, rezam nos templos. Religam-se ao sagrado por meio da fé. A escola tem grande aceitação no sul da China e um dos seus clássicos mais famosos chama-se Xin Jing (心經), ou Sutra do Coração, onde se combatem as elaborações teóricas budistas, como a das “4 verdades” (o sofrimento, o nascimento, a morte e o caminho) em nome de uma filosofia do vazio e se oferece, à laia de conclusão, um mantra que cura todas as doenças. Nas antípodas desta escola meditativa, surge uma outra, a do Budismo Chan (禪宗), que criticou duramente os métodos meditativos da Terra Pura. O Budismo Chan chegou à China pela mão do monge indiano Bodhidharma (菩提達摩), o primeiro patriarca chinês e o 28.º da linha indiana, talvez no início do século VI7. Este terá trazido consigo a escritura Lankavatara, que representa os ensinamentos de Yogacara, a escola prática de Yoga. A prática meditativa e a análise do trabalho da mente são temas centrais desta escola. Defende-se que todos os fenómenos são produtos da mente8. É, por isso, necessário recorrer a técnicas de medita6 Uma tradução aproximada do mantra de Amitabha, dada por Bhikkhu Aryadeva: “ Refugiamo-nos no Tathagata (equivalente de Buda) Amitabha, assim seja: A imortalidade chegou, a imortalidade chegou perfeitamente, a imortalidade progrediu, a imortalidade está progredindo, caminhando para diante no glorioso Caminho Transcendental - swaha!”. Lu K´uan Yu (Charles Luk) in The Secrets of Chinese Meditation, p. 85. 7 Em 520, de acordo com a história Chan Jing Te Zhuan Deng Lu. 8 Esta teoria tem sido interpretada, por uns, como o ponto de partida para a defesa de um idealismo universal à maneira de Berkeley por outros, como uma tese essencialmente fenomenológica, que suspende a existência dos objectos externos e 1391 centra-se no modo como estes são revelados à mente. ção específicas para interromper a actividade fenomenal da mente, bem como os processos mentais que lhe são correlativos, a fim de a esvaziar para poder chegar à apreensão não conceptual e directa da realidade. Os principais patriarcas que se seguem a Bodhidarma são Huike, Sengcan, Daoxin, Hongren, Shenxiu e Huineng. Estes dois últimos fundaram, respectivamente as Escolas do Norte e do Sul. Shen Xiu (神秀) (602706) foi considerado o sexto patriarca na tradição do Norte e Hui Neng (慧能) (638-713) na do Sul. Shen Xiu era um monge com uma vasta cultura, e Hui Neng um lenhador iletrado, grande arauto da iluminação súbita, o que obrigou a Escola do Norte à defesa de uma iluminação mais gradual. Entretanto, o Budismo Chan conheceu grande desenvolvimento, sobretudo através da Escola do Sul, tendo ficado famosas as correntes das “5 Casas e Sete Seitas”, e certos monges, como Pai Zhang (720-814) que estabeleceu um sistema monástico baseado no dito “um dia sem trabalhar é um dia sem comer”; De Shan (m. 678) famoso por bater com o bastão nos seus alunos e Lin Ji, lembrado pelos seus gritos, com estes dois últimos monges, a agressão física passou a figurar entre os processos de iluminação directa. Durante a dinastia Tang, o Budismo Chan teve grande aceitação. A escola notabilizou-se pelos seus métodos de meditação, sobretudo aqueles que chamarei de linguísticos, os Gong´an (公案), ou “Casos Públicos”, apoiados por Hua Tou, palavras ou frases, produzidas pelo Mestre com o propósito de suscitar o sentimento de dúvida, Qingyi (清議). Os Chan também ficaram conhecidos por “monges caminhantes”, pelo facto de privilegiarem as viagens como método específico de redução das necessidades primárias ao mínimo e de contemplação da impermanência. A par dos métodos linguísticos revolucionários a que recorriam, desenvolveram o tipo de meditação clássica, a sentada (坐禪), e ainda hoje em certos conventos e mosteiros meditam quatro a oito horas por dia, quando não mais9. Os arautos da meditação sentada e da iluminação silenciosa seguiram, sobretudo a partir da dinastia Song do Norte, um manual, atribuído ao monge Chang-lu Zong Ze (長蘆崇賾), intitulado “Princípios da Meditação Sentada ou Zuo Chan Yi (坐禪儀)”. O texto é dirigi- 9 Carl Bielefeldt, Chang Lu Zong Ze Zuo Chan I and the “Secret of Zen 1392 Meditation” in Traditions of Meditation in Chinese Buddhism. do ao Bodhisattva que quer atingir a sabedoria (prajna) e medita não apenas com o objectivo de se beneficiar a si mesmo, mas a todos os seres: O Bodhisattva que estuda prajna deve suscitar o pensamento de uma profunda compaixão, fazer votos extensivos e cultivar samadhi10 (三昧). Deve fazer o voto de salvar todos os seres e não procurar apenas a libertação individual11. Daqui passa-se à descrição da postura meditativa, com o meditador sentado direito, na posição Yoga clássica: as pernas cruzadas e as mãos, a língua, os lábios, os dentes e os olhos controlados. Também a respiração deve ser regulada. O objectivo imediato é a observação dos pensamentos, à medida que eles aparecem e a sua travagem, de modo a obter uma mente unificada. O meditador nunca deve perder de vista o voto da salvação universal e a procura da iluminação silenciosa de Buda. Se mantiver um estado medidativo adequado, terá a recompensa de se sentir puro, calmo e alegre. Resumindo, este tipo de meditação clássica é baseada numa firme postura ética e conduz à sabedoria, tornando, do ponto de vista prático, o meditador feliz, saudável e pacífico, ao mesmo tempo que, do ponto de vista teórico, e à maneira da maiêutica socrática, conduz à descoberta da sabedoria que a mente já tem previamente em si. O outro tipo de práticas meditativas, a que chamo linguísticas, pede o auxílio de métodos, que embora tenham como objectivo último travar o pensamento conceptual e, portanto, linguístico, se apoiam em textos e frases, a que os mestres recorrem para iluminar os seus estudantes. Se por um lado, os seguidores desta metodologia se distanciam propositadamente da transmissão clássica da sabedoria, por outro procuram ultrapassar todo o pensamento discriminativo e conceptual. Dizem que só assim é possível despertar para a verdadeira realidade. Por isso, além dos gong´an, casos públicos, numas versões, e misteriosos noutras, utilizam, muitas vezes como técnica de suporte destes, hua tou (話頭), que consiste em palavras ou frases empregues para suscitar o sentimento de dúvida nos estudantes, o que é considerado um precioso auxiliar na cessação dos pensamentos, esvaziamento e controlo da mente. Vejamos então um gong´an retirado de um clássico budista Chan, Bi Yan Lu (碧巖錄), 10 Estado meditativo de concentração num único objecto, com o objectivo de desenvolver a sabedoria e a compaixão. 11 Ob. Cit, p. 159. 1393 ou o Registo da Falésia Azul, uma compilação de casos públicos, levada a cabo pelo mestre Xue Dou Chong Xian (980-1052) da dinastia Song: Zhao Zhou disse para os reunidos: “O Caminho Último não apresenta dificuldades, se evitarmos separar e escolher. Mal se fala, estamos a separar e a escolher. Isto é a claridade. Este velho monge não habita na claridade; ainda se consegue preservar alguma coisa ou não?” Então certo monge perguntou: “Já que não habita na claridade o que é que preserva?” Zhao Zhou replicou,” também não sei”. O Monge disse: “Uma vez que não sabe, Professor, porque é que mesmo assim insiste em dizer que não habita na claridade?” Zhao Zhou disse: “ Chega de perguntas, faz a vénia e retira-te”12. Não é através do pensamento conceptual que se atinge a verdadeira realidade. No entanto, este pode ser utilizado para travar o curso dos pensamentos. Se a realidade é mental, um dos processos mais eficazes de corte da relação do pensamento com os seus conteúdos, os pensamentos, é chamar a atenção, através do discurso, para o próprio funcionamento da mente. No entanto, nenhum destes budistas Chan desenvolveu uma filosofia da linguagem à maneira ocidental. Ela é utilizada, sem tematização e de um modo natural para lançar, propositadamente, o embaraço ao nível conceptual, de modo a abrir espaço à intuição de uma realidade inconsciente, mais profunda, que se apreende directamente. Por isso se cultiva o distanciamento em relação aos textos considerados sagrados pela tradição budista e, também, o afastamento de técnicas meditativas sensíveis e espontâneas como as rezas, os cânticos, a adoração de imagens, enfim todas as manifestações de fé ligadas às nossas vivências empíricas. Os mestres budistas Chan além dos gong´an, desenvolveram a técnica dos hua tou, que costuma acompanhar os casos públicos e toda a espécie de enigmas propostos aos estudantes. O objectivo desta técnica é captar a mente antes da formação de qualquer pensamento. Procura também mantê-la afastada dos sentidos e de todos os sentimentos, com excepção do de dúvida, que deve acompanhar as frases e palavras da técnica. O hua tou é assemelhado a um tijolo meio quebrado com que antiga12 The Blue Cliff Record, traduzido por Thomas Cleary & J. C Cleary, 1394 Shambhala, p. 10. mente se batia às portas na China. Quando a porta é finalmente aberta pode-se ver quem está dentro de casa. Esta técnica possibilita, assim, aceder ao espaço mental em vez de nos mantermos sempre ao nível exterior. Veja-se o exemplo de um hua tou muito utilizado pela tradição budista Chan. Surgiu com o mestre Kao Feng (1238-1305) para acompanhar o seguinte gong´an: Todas as coisas voltam ao Uno. Para onde volta o Uno? O hua tou consiste em o estudante manter a pergunta «Para onde regressa o Uno?» sempre activa, enquanto realiza as acções quotidianas. Esta dúvida, firme e contínua, assim como o sentimento que a acompanha, não devem ser abandonados e uma resposta conceptual não é a finalidade a alcançar, mas antes o despertar para uma unidade originária, que nos dará a contemplar a nossa verdadeira natureza. Até à iluminação, o estado de dúvida deve ser sempre alimentado, com vista à cessação de todos os actos mentais, excepto o da própria dúvida. Um outro exercício com a técnica hua tou, também considerado muito produtivo, é o que pode acompanhar, sem o recurso aos gong´ an, o monge viajante, ou qualquer um de nós, em todas as actividades diárias. Se pronunciamos o nome do Buda, deve-se, segundo o Mestre Xu Yun (1840-1959), perguntar: Quem está a repetir o nome de Buda? Se se come, então a questão será: Quem está a comer? Se se fala: Quem está a falar? E assim por diante com todas as acções, procurando evitar as respostas, ou seja, a intromissão da mente discriminatória. Se os preceitos da meditação sentada do Budismo Chan, teorizados pelo mestre Chang Lu Zong Ze, naquela a que se chama a meditação silenciosa, não suscitaram grande reacção, por parte das outras escolas de meditação, já este tipo de meditação, inovadora, em que o papel da linguagem se torna fundamental, irá provocar as maiores críticas por parte da tradição meditativa ligada à Terra Pura. A Escola Budista Chan e a da Terra Pura vão entrar em conflito aberto no século VIII, período em que o Budismo Chan conhece grande desenvolvimento, não se poupando os seus mestres a inovações metodológicas para levar os estudantes a atingir a iluminação súbita. Estas vão desde a utilização dos gong´an e hua tou até aos gritos, às sovas e outros métodos menos ortodoxos. A guerra das escolas foi aberta pelos budistas Chan que acusavam os religiosos da Terra Pura de recorrer a métodos inferiores, como os cânticos, a repetição das escrituras em voz alta e todo o tipo de rezas para adorar um Buda personalizado em 1395 Amitabha. A reacção não se fez esperar. Viria, numa primeira fase, violentamente com o religioso da Terra Pura, Huiri (惠瑞). Este estabeleceu-se em Cantão e considerava os seguidores do Budismo Chan: arrogantes; falseadores dos ensinamentos budistas, devido ao afastamento dos clássicos e do pensamento conceptual; impostores, por defenderem um despertar súbito ilusório e se proclamarem os arautos de uma iluminação inexistente. Enfim, acusava-os de impostura e criticava alguns dos seus métodos, catalogando-os de dolorosos e aberrantes, porque se baseavam em agressões físicas e mentais (a confusão suscitada) para obterem a tal iluminação súbita nos estudantes, que Huiri não acreditava ser possível. Mais tarde, com Feixi (飛錫) e outros teóricos, a Terra Pura tentou estabelecer uma ponte com o Budismo Chan, oferecendo modelos que não entrassem em conflito com esta escola. No entanto, os pressupostos das duas escolas não podiam ser mais diferentes. Os seguidores da Terra Pura proclamavam a dualidade e separação das realidades. Consideravam, e ainda hoje consideram, que o espaço e tempo sagrado e profano não se cruzam. A salvação acontece num futuro renascimento na terra do Buda Amitabha, que é a Pura. Portanto, a salvação só é possível noutro tempo e noutro espaço e as capacidades mentais dos crentes são manifestamente insuficientes para o alcance e fusão no momento presente com a realidade sagrada, ou verdadeira. Já para os Budistas Chan não há separação entre o mundo fenomenal e o numenal, logo a iluminação e a salvação estão ao alcance das possibilidades espirituais de qualquer um, porque a verdadeira realidade é mental e todos possuímos e partilhamos da mente Buda. Para os Chan não há dualidade entre o microcosmos e o macrocosmos, entre o espaço e tempo sagrado e profano. Devemos, por isso, ter confiança nas nossas capacidades espirituais e exercitar a mente meditativa, através de exercícios intelectuais activos e não apenas por meios passivos, dependentes exclusivamente da fé. A verdade é que hoje já não assistimos a guerras públicas entre as escolas de meditação. Os extremismos passaram e o Budismo Chinês caminhou no sentido da defesa de uma cultura dual. Assim, podemos encontrar nos conventos, mosteiros e locais de culto em geral, os dois tipos de espaços, salas para a meditação silenciosa e para o cântico. Falta mencionar, ainda, uma importante escola de meditação bu1396 dista, a Tian Tai (天臺宗), que cultivou, nas suas práticas de meditação tanto os métodos práticos, como teóricos tanto os mais sensíveis, como os mais inteligíveis. Apoia-se essencialmente no Sutra Lótus, ou em chinês Miao Fa Lian Hua Jing (妙法蓮花經), e parte da afirmação da não separação entre o mundo fenomenal e numenal. A verdadeira realidade está ao alcance da mente unificada que contém 3 sabedorias: a mundana, a supramundana e a suprema. A escola foi fundada por Hui Si (惠思) (515-576) e reformulada por Zhi Yi (智顗) (538-597). Este deixou para a história da escola os 3 textos fundamentais que viriam a pertencer à sua tradição: “O Sentido profundo do Sutra Lótus», “Comentários Textuais ao Sutra Lótus” e a “Grande Acalmia e Iluminação”. O ponto de partida dos seguidores desta escola é também o voto de salvação universal. Os vários métodos de meditação propostos contam, como não podia deixar de ser, com uma grande actividade ético-moral por parte dos praticantes. O objectivo de todos os métodos meditativos utilizados é zhi yi (止意), ou a paragem da actividade do pensamento conceptual ligado às coisas, à realidade fenomenal, shi (事), a fim de conduzir a um estado mental contemplativo, guan (觀), da verdadeira realidade, dos princípios li (理). A meditação efectua-se por meio de estados meditativos, samadhi (三昧), que têm em vista a concentração num único objecto. São seis, de um modo geral, os pré-requisitos para atingir o estado de concentração meditativa: estar num lugar agradável; ter poucos desejos; possuir satisfação em conhecer; não estar ocupado com muitas actividades; ter um comportamento ético puro e abandonar os pensamentos. A meditação tem uma componente prática muito activa: é preciso evitar as acções más e praticar sem cessar o bem. Os passos para a obtenção da iluminação são dez, efectuam-se depois do noviço ter feito o grande voto de libertação de todos os seres e da procura da suprema iluminação para si e para os outros. O Primeiro passo já foi discriminado acima e traduz-se nos 6 pré-requisitos do estado meditativo, destes há a salientar a criação de um ambiente favorável à meditação, só possível pela estrita observância da disciplina e da moralidade; o segundo passo é o afastamento de todos os desejos; o terceiro, a remoção de certas divisões, que o homem cria pelo desenvolvimento de desejos, do ódio, da preguiça, do desassossego, da dor, da dúvida; o quarto é o controlo da comida, do sono, do corpo, da respiração e da mente; o quinto consiste na sistematização das linhas de conduta, em 5 momentos: 1.º afastamento do mal, 2.º cumprimento de todas as proibi- 1397 ções, a saber, não: matar, roubar, ser carnal, mentir, atraiçoar, ter um discurso grosseiro, utilizar uma linguagem indecente, ser ganancioso, entrar em fúria e ter maus pensamentos; 3.º seguir no caminho da meditação e sabedoria, sem se afastar do voto de iluminação e libertação de todos os seres, 4.º distinção cuidadosa entre felicidade terrena e benção divina, 5.º afastamento da realidade ilusória e exaltação da meditação e sabedoria; o sexto é o domínio teórico e prático da mente, com vista à obtenção da contemplação e sabedoria perfeitas; o sétimo consiste na manifestação das boas raízes ou qualidades de cada um, que tanto podem ser externas, com a prática da caridade e compaixão, como internas, com a prática da meditação; o oitavo traduz-se no discernimento das influências negativas; o nono na cura das doenças e outros males e o décimo na iluminação. A prática do método zhi-guan (止觀), leva o meditador a compreender que todas as coisas são criadas pela mente e vazias, sendo portanto as causas da sua criação irreais. Neste método meditativo basicamente dual, zhi, a travagem, consiste na suspensão dos pensamentos da mente, que segundo os mestres Tian Tai, pula como um macaco13, Guan é a contemplação, o exame do objecto manifestado pela mente concentrada. Mas talvez uma outra técnica proposta por esta escola para a meditação, por Zhi Yi, ajude a compreender melhor a técnica meditativa da escola Tian Tai. O método denomina-se as “Seis Portas para a Verdade Profunda”, Liu Miao fa Men (六妙法門). Ora sem deixar de ser misterioso, apresenta um conteúdo delimitado, uma vez que incide na respiração. Consiste em 6 passos: 1 — o conter da respiração, 2 — o seguir da respiração; 3 — o parar ou a quietude do corpo e do espírito, conseguida através da suspenção da atenção na respiração, fixando a mente na ponta do nariz, em seguida, o corpo e o espírito parecem desaparecer, a fim de dar lugar a um estado de meditação profundo 4 — a contemplação da respiração; 5 — o regresso, ou a contemplação da mente subjectiva, incidindo na respiração objectiva, isto é, o estado em que a mente contempla o seu objecto e daí consegue regressar ao absoluto, a mente fundamental e, por fim, 6 — a realização prática do estado de pureza, não só pela 1398 13 Lu K´uan Yu ( Charles Luk ) The Secrets of Chinese Meditation, p. 157. experienciação da mente calma, que passou a sê-lo após ter abandonado as discriminações, a compreensão do seu estado puro como pela real. Do exposto fica a importância dos dois processos de meditação: numa primeira fase recorre-se ao zhi, ao travar da mente activa, que conduz à libertação de toda a discriminação, para, numa segunda fase, atingir o guan, a contemplação, isto é, a técnica de observação, exame e a introspecção do objecto a contemplar. A concentração da mente num único objecto é obtida, primeiro, por meio da diferenciação entre a mente subjectiva e o objecto a contemplar, a mente objectiva, a que se segue a transposição da dualidade para o regresso à unidade originária. Esta deverá produzir o efeito prático da purificação da mente e, também, a compreensão teórica desta mesma purificação. O método de meditação da escola Tian Tai, ainda que de sistematização acessível, não é de prática e compreensão fáceis, por isso os mestres desta escola advogam o recurso a práticas mais sensitivas durante a meditação. Esta pode ser realizada por um meditador tanto sentado, como a caminhar, ou em parte sentado e em parte a caminhar, ou nem sentado, nem a caminhar. O meditador cansado ou exausto pode recorrer a muitas das técnicas propostas pela escola da Terra Pura, como a invocação do nome de Buda, a oração, a reflexão, o arrependimento, o apoio de mestres e de amigos, etc...Mas nenhum destes paliativos esconde a dificuldade da missão que o meditador da escola Tian Tai, em particular, e de todas as da meditação budista em geral, enfrentam: travar a sabedoria mundana, para manifestar a supra-mundana, a fim de alcançar a sabedoria suprema, com a finalidade última não apenas de realizar a iluminação e salvação individuais, como o despertar e salvação colectivas. A MEDITAÇÃO ÉTICA CHINESA Para as escolas de meditação do Budismo Chinês, que seguem a linha Mahayana, e as principais seguem-na, a meditação seria uma acção vã e inútil, se não tivesse como ponto de partida um voto expresso por parte dos meditadores de salvação ética individual e colectiva. Este voto inicial é concretizado pelo recurso a técnicas de meditação que variam, como vimos, de escola para escola, mas que pretendem auxiliar à transformação ética do indivíduo, para que este possa, depois de metamorfoseado ou santificado, colaborar no processo de transformação 1399 de todos aqueles que o rodeiam. As técnicas de meditação têm, deste modo, uma componente prática, que se realiza pela transmutação de valores e purificação individuais, e uma componente teórica, que deve abrir ao meditador o caminho da revelação da sabedoria, a que deixa ver os princípios últimos e a verdade absoluta. O meditador para atingir a iluminação individual necessita de evoluir do mundo e verdade condicionados para um espaço sagrado e verdade incondicionados, aquele a que no Budismo se chama o vazio, o nirvana, a realidade suprema, a mente, o Buda. Ele necessita de romper o véu existencial para entrar num espaço absoluto, onde, seja verdadeira a dupla tese de tudo é um, porque todos igualmente reflectem ou são manifestação do absoluto, logo deixa de haver lugar e razão para as particularizações, e um é tudo, porque cada qual contém em si o princípio da salvação, a possibilidade de despertar, ao nível fenomenal, e o próprio estado de estar desperto ou iluminado, ao nível numenal. Consoante as escolas budistas, a meditação pode conduzir a uma iluminação gradual ou repentina. Se a iluminação for abrupta, como é advogado por certas facções do Budismo Chan, provoca uma revolução no indivíduo, sem pressupor uma ruptura e uma separação entre os planos profano e sagrado; se for gradual, como advogam os seguidores da escola Tian Tai e, também certas facções Chan, conta com a transformação lenta da pessoa e pressupõe uma passagem contínua do mundo profano para o sagrado, identificando-se os planos ao nível da realidade originária ou última. Mas se a iluminação for projectada num futuro, como sucede nalgumas teorizações da escola Jing Tu, então não há possibilidade de identificação e de cruzamento de mundos, parte-se da separação das realidades e a iluminação fica a depender exclusivamente da fé e, portanto, de uma actividade mental menos desenvolvida por parte dos crentes. Os crentes, mais fatalistas, entregam o destino e aguardam devocionariamente pela graça e benção do Buda, que neste caso é personificado em Amitabha. Para as leituras mais radicais da Terra Pura, não há revolução na ética do meditador, quando muito haverá uma reforma, ou melhor, uma preparação espiritual intensa, na qual o crente deposita toda a sua esperança e destino. Reza-se, canta-se e contempla-se, visualizase concentradamente, certos objectos de meditação (imagens mentais), com vista à salvação individual e colectiva, que apenas terá lugar de1400 pois da morte, com o renascimento na terra prometida. Os métodos meditativos da escola daoísta não têm como ponto de partida os votos de salvação individual e universal, nem como ponto de chegada a efectiva realização do mesmo. No entanto, este tipo de meditação não deixa de ser ético e religioso. O daoísta ao meditar parte do voto de libertação de si próprio, da sua natureza autêntica, verdadeira, profunda. Para tal necessita de cultivar, do ponto de vista prático, certos valores éticos, como a espontaneidade e a simplicidade e, do ponto de vista teórico, o esvaziamento da mente. Este último passo é conseguido recorrendo a um diálogo contínuo com a natureza em geral e a sua natureza física em particular. O meditador pretende atingir um equilíbrio perfeito entre o corpo e o espírito, a fim de regressar ao seu eu originário, que é muitas vezes ilustrado pela metáfora do recém-nascido, ligado à mãe, a fêmea obscura, o Dao, todo originário, realidade unificada, a que apenas os instintos e o inconsciente têm acesso. Por isso, à semelhança de grande parte dos meditadores budistas, a maior luta dos daoístas é a da libertação do pensamento conceptual, mas diferentemente dos budistas, estes medem o êxito do seu trabalho de meditação pelas obras autênticas que conseguem realizar seja ao nível da ciência, seja ao nível da arte ou da filosofia. Os outros, a comunidade, o Estado, etc., não são a principal preocupação do daoísta, que se interessa essencialmente por si, pela sua transformação ética. Acredita que se todos fizerem o mesmo e libertarem a sua natureza profunda, a terra se torna um verdadeiro paraíso. No entanto, os outros não estão completamente afastados do seu horizonte, que tem em primeiro plano o mundo natural. Os outros podem seguir o exemplo silencioso do meditador. Têm mesmo vontade de o imitar, quando o vêm e, por isso, ainda que, sem agir de um modo consciente e voluntarista, o meditador acabe por transformar, purificar e salvar todos aqueles que entram em contacto com ele e querem realmente ser salvos. Por fim, a morte é um ponto de referência constante de todas as escolas de meditação chinesas. Medita-se, no caso da escola daoísta, com a finalidade de libertar a verdadeira natureza, que possibilita, do ponto de vista prático, a cura das doenças, o prolongamento da vida, a longevidade e até a imortalidade. Medita-se nas escolas budistas para a libertação de uma existência condicionada ao sofrimento, ao nascimento e à morte, ou melhor, medita-se para encarar e ultrapassar, sem dor e calmamente, o reino da morte e para compassivamente auxiliar os outros a 1401 fazerem o mesmo. A meditação é, portanto, ao nível existencial, o melhor caminho ético para enfrentar, combater e superar a morte individual e colectiva, levando assim o meditador ao contacto com a verdadeira realidade, aquela que nunca morre e é totalmente subsistente e substantiva, do ponto de vista numenal e vazia do ponto de vista fenomenal. Na China actual as escolas de meditação encontram um espaço, se privilegiarem, acima de tudo, a sua dimensão ético-moral, de vocação intersubjectiva e colectiva, em detrimento da sua faceta religiosa. Certas correntes daoístas muito centradas no indivíduo tiveram, há uns anos, que se redifinir teoricamente, alargando explicitamente os seus princípios ao serviço da comunidade. Recordemos que a remodelação teórica imposta aos daoístas acentuava a benevolência, o patriotismo e o serviço público em lugar do misticismo e das práticas consideradas supersticiosas14. Assim, na nova China a religião embora possua uma certa autonomia, ainda depende da esfera política. 1402 14 Donald E. MacInnis, Religion in China Today, Policy & Practice, p. 206. BIBLIOGRAFIA Fung Yu-lan, “A History Of Chinese Philosophy”, Princeton, Princeton University Press, 1983. Lao Tseu, “Le Livre de La Voie et de la Vertu”. Ed bilingue. Tradução de Claude Larre s.j, Paris, Desclée de Brouwer, 1977. Lu K´uan Yu (Charles Luk): “The Secrets of Chinese Meditation”, USA, Samuel Weiser, Inc, 1964. MacInnis, D. E: “Religion in China Today, Policy & Practice”, USA, Orbis Book, 1989. Merton, Thomas: “A Via de Chaung Tzu”, Petrópolis, Editora Vozes, 1999. Powers, John: “A Concise Encyclopedia of Buddhism”, Oxford, Oneworld, 2000. “The Blue Cliff Record” Translated by Thomas Cleary/J. C. 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