CENTRO CULTURAL PARAÍSO TERRESTRE FILOSOFIA E MESSIAS 28) SCHELLING Charles Guimarães Filho - 2016 1 2 ÍNDICE Conhecimento geral sobre Schelling 05 Catástrofe cartesiana Unidades significantes Cisão entre sujeito real e conhecimento Idealização do cristianismo Deus como visão bárbara “Eu” relativo Necessidade e liberdade Mitologia e revelação Panorama do pensamento de Schelling 09 11 14 19 21 22 25 28 34 3 4 Conhecimento geral sobre Schelling Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775 — 1854) foi um filósofo alemão, um dos representantes do idealismo alemão, assim como Fichte e Hegel. No desenvolvimento do idealismo alemão, os Historiadores da Filosofia normalmente situam Schelling entre Fichte, seu mentor antes de 1800, e Hegel, seu amigo e companheiro de quarto na Universidade de Tübingen. Vida Schelling nasceu em 1775, em Leonberg. Em Tubinga teve Hegel como condiscípulo, com o qual, em seguida, sustentou pesada polêmica. Passou da teologia à filosofia e dedicou-se ao estudo de Spinoza, do qual deriva a sua concepção idealista; de Fichte, que constitui o pressuposto imediato do seu pensamento, afastando-se, entretanto, dele em seguida. Em Leipzig integrou a sua cultura humanista e literária com estudos científicos. Nele influíram também as turvas fantasias da mística alemã. Foi sucessivamente professor nas universidades de Jena, Würzburg, Erlangen, Munique e Berlim, onde dominara o seu adversário Hegel, cujo racionalismo ele demole. Faleceu em Berlim, em 1854, quando o idealismo já estava esfacelado. Ele foi um autor variado e fecundo. As faces do seu pensamento são fundamentalmente duas: o período da filosofia da identidade, e o da filosofia da liberdade. As suas obras principais são: o Sistema do idealismo Transcendental (primeira fase, filosofia da identidade); Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana (segunda fase, filosofia da liberdade). 5 A filosofia de Schelling é, fundamentalmente, idealista: o espírito, o sujeito, o eu, é princípio de tudo. Como Fichte, admite que a natureza é uma produção necessária do espírito; recusa, porém, o conceito de Fichte de que a natureza tenha uma existência puramente relativa ao espírito. Para ele, a natureza - embora concebida idealisticamente - tem uma realidade autônoma com respeito ao sujeito, à consciência. A natureza é o espírito na fase de consciência obscura, e o espírito é a natureza na fase de consciência clara. Nessa primeira fase – Filosofia da Identidade - então o princípio da realidade não é mais o eu de Fichte (o eu absoluto, o sujeito puro); mas deverá ser um princípio mais profundo, anterior ao eu e ao não-eu: será precisamente a identidade absoluta do eu e do não-eu, do sujeito e do objeto, do espírito e da natureza. Dessa identidade (princípio absoluto da realidade, donde realidade absoluta) decorrerá, primeiro, a natureza e o seu desenvolvimento, e depois o espírito com toda a sua história, não como o espírito sendo oposição e negação da natureza, mas ela sendo como seu desenvolvimento e consciência. Mas então como se explica a visão, mesmo ilusória, do universo que aparece múltiplo e em via de se tornar? Se a realidade absoluta é una e imutável, e nada existe fora dela, como e donde pode surgir essa visão destruidora do Absoluto? Schelling procura resolver esse problema, passando da filosofia da identidade à filosofia da liberdade, de um sistema racional, a um sistema irracional. Tal passagem é representada pela segunda fase do seu pensamento. Nessa segunda fase – Filosofia da Liberdade -, Schelling imagina a passagem de Deus, do mundo ideal, ao mundo empírico e contingente, não se podendo realizar mediante uma dedução lógica, porquanto há essencial heterogeneidade entre o perfeito, o imutável, o 6 universal e o imperfeito, o temporal, o particular. Tal passagem se explica então mediante um ato irracional, irracional da vontade, de liberdade. E isto é possível, porque as ideias eternas participam da natureza divina, que é liberdade e vontade. Por conseguinte, elas [as ideias eternas] se podem destacar do Absoluto, decair no mundo empírico da multiplicidade, da individualidade, do contingente, do devir. E, com efeito, tal queda, tal separação aconteceu e constitui o mundo material e espiritual, natural e humano, com todo o mal que nele existe. Através, pois, da história da natureza e da humanidade, deveria realizar-se progressivamente a redenção dessa queda original, o retorno das coisas a Deus, da multiplicidade à Unidade, do finito ao Infinito. Compreende-se, portanto, como, para Schelling, é racional o mundo das ciências, das ideias; mas irracional o mundo da existência, da realidade. Com relação ao primeiro é possível conhecimento racional, ciência, filosofia; ao passo que o segundo pode ser unicamente descrito com base na experiência. 1794 - Sobre a Possibilidade de uma Forma da Filosofia em Geral 1795 - Sobre o Eu Como Princípio da Filosofia ou sobre o Incondicionado no Saber Humano 1797 - Ideias para uma Filosofia da Natureza 1798 - Da Alma do Mundo 1799 - Primeiro Esboço de Um Sistema da Filosofia da Natureza 1800 - Sistema do Idealismo Transcendental 1802 – {Giordano] Bruno ou Sobre o Princípio Natural e Divino das Coisas 7 1809 - Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana Filosofia da Mitologia e Filosofia da Revelação As Eras do Mundo 8 Catástrofe cartesiana A apresentação convencional da filosofia de Schelling costuma situá-lo dentro deste período chamado de Idealismo Alemão, mas eu acho que essa classificação não cabe muito bem. A filosofia de Schelling é uma coisa de enorme complexidade e a parte dela que se situa claramente neste desenvolvimento é só uma primeira parte [Filosofia da Identidade]. E tem uma segunda [Filosofia da Liberdade] que nós não sabemos situar historicamente ainda porque de fato não foi absorvida até hoje. Porque você só pode localizar historicamente uma filosofia supondo-se que dominou a sua estrutura interna e que você compreendeu as suas implicações, então você é capaz de vê-la de fora e portanto situá-la dentro de uma cronologia, relacionando com as suas antecedentes e as suas consequentes. Mas acontece que essas consequentes na verdade não apareceram até hoje. Na verdade, foi só a partir eu creio dos anos 50 que se começou realmente a prestar atenção nessa segunda parte da filosofia de Schelling que é justamente aquela que ele apresenta já na década de 40, 1940, na “Filosofia da Mitologia e Filosofia da Revelação” e no livro “As Eras do Mundo”, e que são provavelmente os melhores livros de filosofia que alguém escreveu no Ocidente. Não há nada que se compare a isso aí. É uma coisa tão grande que a gente tem a impressão de que nós ainda estamos dentro de uma época de Schelhng e não temos consciência muito clara disso. De qualquer modo é preciso ver que uma das características de Schelling é que ele próprio se situa historicamente, ele se coloca num ponto determinado do desenvolvimento do pensamento europeu, ele sabe onde ele está com relação aos seus antecedentes, mas nós não 9 podemos ainda situá-lo com relação aos seus consequentes porque nós fazemos parte disto aí, ainda estamos dentro da fileira de consequências do pensamento de Schelling o qual ainda dará muitos frutos pelos séculos seguintes; me parece a filosofia mais fértil de consequências que existiu nos últimos séculos. Mas, ao tentar se localizar historicamente, ele parte exatamente do cartesianismo que ele considera um acontecimento catastrófico na ordem do espírito humano, não que ele se oponha à filosofia de Descartes, não é esse o ponto, é que algo aconteceu ali de muito grave que não pode ser reduzido à biografia intelectual de Descartes, existe realmente uma ruptura com algumas conquistas importantes do espírito humano. E essa ruptura toma a forma, como, aliás, nós já mencionamos de passagem, de uma aporia [dificuldade ou dúvida racional decorrente da impossibilidade objetiva de obter resposta ou conclusão para uma determinada indagação filosófica], um conflito insolúvel que é colocado pela ciência cartesiana na medida em que ela dividindo o ser, o existente, em dois tipos de substâncias. A substância dita pensante ou ego subjetivo que se conhece por auto-reflexão, meditação; e a substância extensa que é aquela que se caracteriza por ter uma extensão, por poder ser medida de algum modo. Nós imediatamente concluímos que nenhuma dessas duas corresponde à natureza no sentido em que nós estamos acostumados a viver nela. [A substância pensante ou ego subjetivo, ou ainda o eu] não ocupando lugar no espaço, ele sendo constituído apenas da sua própria auto-reflexão (da sua própria autoconsciência) evidentemente ele não é um dado da natureza física, ele não tem como ser situado dentro da natureza, pode ser situado no tempo, mas não no espaço. E a tal substância extensa justamente porque ela se define exclusivamente 10 pela sua extensão, quer dizer, pela sua forma mensurável, também não corresponde aos entes da realidade física. Ora, se você somar todas as medições que você pode tomar sobre um ente, você vai saber certamente muita coisa sobre ele, mas ele não constituirá com isso nada de real; porque a realidade que se apresenta a nós se apresenta sempre sob a forma de existências individuais irredutíveis, tudo o que existe, existe como individualidade. E o fato é que tudo aquilo que num ser pode ser medido é exatamente aquilo que ele tem simplesmente em comparação ou em relação a outros entes. Quer dizer, a existência dele como substância individual não pode ser abarcada pela ideia de medida ou de extensão, então, o que acaba sendo prejudicado aí nesta ciência cartesiana é a própria natureza sensível que fica reduzida aos seus aspectos mensuráveis. A facilidade que isto oferece, de algum modo para os estudos científicos, é bastante sedutora porque justamente as medidas são aquilo que todo mundo pode conferir. Então, uma ciência constituída apenas dos aspectos mensuráveis é de certo modo uma ciência que está ao alcance de todo mundo. Unidades significantes O fato de que ela [ciência] não tenha nada a ver com a realidade substantiva da natureza parece que não afeta a ninguém. Porque a ideia de que o processo do conhecimento deve se ater aos aspectos fenomênicos, isto é, aqueles aspectos que são mais aparentes, e que estão mais ao alcance do conhecimento humano, essa ideia se impregnou de tal modo na mente humana que passados três séculos e meio já ninguém se dá conta de que quanto é anormal você acreditar 11 que vive num mundo que é constituído apenas de aparências onde não existe nenhuma substância, onde não existe nenhuma realidade. É claro que a própria consciência humana repugna profundamente a ideia da sua própria irrealidade. E não vejo como se poderia escapar disso uma vez que você decretou que tudo se constitui apenas de aparências mensuráveis. Mas ao mesmo tempo em que se desenvolvia esta filosofia de Descartes havia ainda um conflito que se desenvolvia desde algum tempo antes que é o surgimento das novas ciências, ciência de Galileu, de Newton, ele repentinamente coloca de lado todo o universo alquímico, astrológico e simbólico da ciência medieval. Esse universo encarava a natureza essencialmente como sendo uma manifestação do Espírito divino ou do Logos, da fala divina, então, o universo é constituído de unidades significantes em permanente e universal intercomunicação, quer dizer, tudo tem alguma relação com tudo, tudo significa algo, tudo diz algo, e o universo de algum modo pode ser lido. Hoje em dia nós temos uma certa dificuldade de compreender o grau de exatidão em que essa leitura podia ser feita. Com o surgimento das ciências modernas o mundo da natureza passa a ser encarado apenas como um objeto de medição e comparação, quer dizer, ele perde toda a substancialidade própria, e evidentemente o mundo que a ciência física estuda não é propriamente o mundo no qual nós vivemos, mas é um conjunto de abstrações selecionado para este fim especificamente. E isto talvez tinha que ser necessariamente assim pelo fato de que cada ciência só pode abarcar uma determinada seção da realidade, desde que ela queira proceder de maneira organizada, ela vai ter que recortar o seu objeto mais ou menos de acordo com as possibilidades de investigação que ela tem, 12 quer dizer, existe uma certa comproporcionalidade entre o objeto da ciência e o método que a investiga. Então, é evidente que a tendência de recortar o mundo de acordo com o método, quer dizer, fazer com que o método seja de certo modo mais real do que o próprio objeto, essa tendência também é quase irreversível, é difícil de você deter. E o fato é que à medida que as ciências modernas conseguem alguns avanços impressionantes nos séculos que se seguem ao Renascimento, nesta mesma medida, o mundo da natureza tal como elas [a ciência moderna] o descrevem não se parece em nada com o mundo da experiência humana. Isso quer dizer que aqueles dois polos [natureza e experiência] que justamente na ciência medieval apareciam unidos, quer dizer, na ideia da analogia e da simbolização mútua entre as várias partes do cosmos que era considerado uma totalidade vivente na qual todas as partes reagem umas às outras e dialogam umas com as outras, de repente esta totalidade desaparece sendo substituída por um conjunto de esquemas matemáticos. Por um lado, que são objetos da ciência física e, do outro lado, por uma ideia de um eu incorpóreo que miraculosamente, não se sabe como, se vê dentro deste cenário de entes matemáticos que lhe são completamente heterogêneos, que não tem nada que ver, quer dizer, você não consegue reduzir o eu a uma formulação matemática. E as formulações matemáticas, por sua vez, só podem ser conhecidas pelos métodos matemáticos, pela medição. Isso quer dizer que a auto-reflexão do eu não ajuda você em nada também a compreender a natureza. 13 Cisão entre sujeito real e conhecimento Ao mesmo tempo em que o objeto da ciência se torna cada vez mais evanescente [de existência efêmera] e reduzido à sua versão matematizável, também o eu vai perdendo totalmente a concretude do eu real, do eu biográfico humano. Nós vimos que o próprio eu que Descartes ao qual ele se refere nas “Meditações Metafísicas”, ele começa a tratá-lo como se fosse o seu eu real, o seu eu biográfico que em tal data fez uma experiência cognitiva assim, assim, assim, mas que daqui a pouco este eu se converte apenas num sujeito de proposições lógicas das quais ele vai tirando consequências. Então, o objeto das ciências da natureza não corresponde à natureza objetiva concreta e o eu do filósofo também não corresponde ao eu concreto real. Isso é a mesma coisa que dizer que a vida real, quer dizer, o universo da experiência humana é totalmente expelido do domínio das ciências e em troca você tem uma série de especulações filosóficas sobre o eu, de um lado, e uma série de comparações e medições matemáticas da natureza, do outro. Claro que alguma coisa por uma via ou por outra sempre se obtém. Nós, quando estudamos a filosofia de Fichte, vimos que desse exame do eu alguma coisa ele tira de real. Do mesmo modo não se pode negar que as ciências conquistaram algo, porém o elemento que constituía a principal força da cultura medieval que era a integração do sujeito real no universo do conhecimento, ou seja, o universo de que se tratava nas universidades, do qual tratavam os letrado e cientistas, era o mesmo no qual as pessoas comuns sentiam que viviam. Você vai ver a concepção do mundo que tem um Duns Scot, ou que tem um Tomás de Aquino, ela não é substantivamente diferente daquela que tem um 14 carroceiro ou um lavrador. Ela é apenas mais elaborada intelectualmente, porém a partir da Renascença, a partir de Descartes, o universo dos cientistas, dos sábios, vai ficando cada vez mais diferente do mundo onde o cidadão comum acredita viver, e isso significa que a aquisição da ciência, a aquisição do “conhecimento superior” (entre aspas) nesse período só se pode fazer também à custa de uma ruptura do indivíduo com ele mesmo, que aí justamente que é a origem do fenômeno que eu denomino [de] a paralaxe. Quer dizer que o universo sobre o qual o filósofo ou o cientista teoriza não é exatamente o universo no qual ele está vivendo, eles podem estar totalmente deslocados um em relação ao outro, portanto não há como confundir o fenômeno da paralaxe com uma simples duplicidade de discurso ou duplicidade moral, não é nada disso que eu estou falando, estou falando de um processo cultural trágico e não de alguma falsidade ou hipocrisia individual. É claro que não é disso que está se tratando. De fato não existe nenhum meio de colar as duas partes, se você não pode colar o eu, a substância pensante e a substância extensa, então, também não tem nenhum jeito de você colar por outro lado o mundo da sua experiência real com o universo do pensamento e das ciências. E Schelling percebeu muito bem isto, e ele notou que houve um pensador de transição entre a Idade Média e o Tempo Moderno que foi o Giordano Bruno, notou que o Giordano Bruno de certo modo tinha percebido a necessidade de restaurar um senso de unidade, uma vez perdido aquele universo simbólico-alquímico medieval, tinha que achar uma outra maneira de você restaurar o senso de unidade da realidade. É evidente que se os contemporâneos de Giordano Bruno tivessem percebido isso jamais o teriam queimado porque ele estava numa linha 15 que na verdade ia favorecer a cosmovisão antiga sobre a moderna. A vida de Giordano Bruno é uma coleção de equívocos, e a própria condenação dele é um equívoco brutal, mas a imagem que se forma dele hoje como de um mártir da ciência moderna é totalmente errada. Primeiro que Giordano Bruno jamais se interessou pelas ciências modernas, ele só se interessava por ciências antigas, filologia, história, gramática, etc., etc., ele não entendia nada de matemática, nem de física, coisa nenhuma. Segundo, ele acreditava na possibilidade de uma especulação imaginativa, ele achava que a individualidade humana por ser ela mesma uma expressão ou um resultado de um certo processo cósmico, ela jamais se desligava desse processo e tinha de algum modo alguma via de acesso à compreensão do processo todo; não a compreensão exata, mas pelo menos uma compreensão imaginativa, então ele achava que através da imaginação nós podemos de algum modo traçar uma espécie de história cósmica. Para fazer isso, ele acreditava que no próprio mundo material existe um certo princípio espiritual ou psíquico que lhe é inerente, essa doutrina veio a se chamar hilozoísmo, hil(e/o) quer dizer a matéria no sentido mais grosseiro da coisa, e zo(o) é animal vivente, quer dizer, toda matéria é vivente de algum modo. Mas o fato é que a ideia de Bruno não foi para frente, ninguém ligou muito para isso. Então, já na etapa seguinte, depois de Descartes, Espinosa tenta restaurar a ideia de uma unidade reduzindo tudo à noção de Deus: só existe uma única substância, essa substância é Deus, e todas as manifestações e fenômenos não são senão propriedades ou acidentes de Deus, de algum modo. Porém diz Schelling que Espinosa opera essa redução à unidade por uma maneira puramente mecânica e conceptual, quer dizer, fazendo Deus como se fosse um conceito mais 16 primitivo do qual os outros conceitos vão sendo deduzidos, vão sendo extraídos por mera dedução, como se a estrutura da realidade fosse a estrutura de uma dedução silogística: Deus é a primeira premissa e as outras entidades vão sendo deduzidas como se fossem as suas substâncias. Schelling com razão considera esta explicação demasiado mecânica para poder ser verdadeira. Falhada a tentativa de Espinosa de reunir as partes que Descartes havia separado, na etapa seguinte Leibniz também tenta resolver o mesmo problema, mas através da supressão de um dos polos. Leibniz reduz todo o mundo corporal, o mundo das substâncias corporais, a representações que acontecem dentro de uma mônada. A mônada é essencialmente uma alma, quer dizer, é uma alma vivente que se conhece a si mesma e que tem dentro de si um análogo ou uma imagem de tudo o mais. Ou seja, tudo aquilo que existe, toda individualidade, ela tem dentro de si, não somente as suas próprias características, mas tem as diferenças que a separam de todas as demais; mas essas diferenças fazem parte dele, então, isso quer dizer que cada uma tem dentro de si a imagem de todas as outras. Mas, ora, se todas têm a imagem de todas as outras, é fácil você perceber que todas se constituem somente de imagens. Ou seja, não há uma realidade externa fora da mônada, fora da consciência da mônada, por assim dizer, para ser conhecida, porque tudo o que ela vai conhecer é uma outra mônada para a qual ela também é uma imagem. No fim tudo se resume em representações ou em imagens. Eu estou usando a palavra “imagem” imperfeitamente é claro, mas é só para dar uma ideia aproximada do que é. Quer dizer, duas entidades corpóreas quando se aproximam não se aproximam como dois corpos no espaço, mas como dois conjuntos de representações que se conhecem um ao outro, e até 17 a corporalidade que o outro ser me apresenta não é senão uma parte da minha representação, quer dizer, eu tenho uma representação da corporalidade dele, assim como ele tem uma da minha. Então, isso quer dizer que a rigor não é necessária a distinção entre a corporalidade e a representação, o mundo psíquico; sobra só o mundo psíquico. Porque a corporalidade é somente um dado a mais que as mônadas transmitem umas às outras. É evidente, Leibniz não nega a existência da corporalidade, mas ele afirma que ela existe sobretudo como representação. Desde que nós chegamos a este ponto em que você tem por um lado esta redução de tudo à subjetividade das mônadas com Leibniz e do outro lado você tem a hipótese hilozoísta herdada de Giordano Bruno, ou seja, ou você atribui à alma o primado sobre a matéria, porque a matéria passa a ser apenas um aspecto conhecido pela alma, ou você reduz a alma a uma propriedade da matéria como fazia o hilozoísmo. Quando as coisas estavam assim, no instante seguinte é evidente que esta ruptura tinha que se agravar, ainda mais quando por um lado aparece toda essa escola materialista francesa com Durbach, D'Alembert, etc., que afirma rigorosamente que tudo o que existe é a matéria considerada na sua corporalidade da qual o espírito ou mente não é senão uma função como qualquer outra, quer dizer, assim como a matéria tem peso, gravidade, eletromagnetismo, etc., ela produz também a consciência ou por uma reação elétrica ou como uma espécie de secreção. Então, por um lado tem todo esse materialismo bronco da filosofia francesa e em oposição a isso você tem o total subjetivismo do Fichte que nós já estudamos. Quer dizer, de um lado você tem os camaradas que dizem que até o eu subjetivo humano é 18 uma secreção da matéria e do outro o sujeito diz: “Olha, não existe nada, só existe o eu”. Idealização do cristianismo É claro que Schelling quando vê as coisas assim diz: “É claro que não pode ficar assim, é uma situação absolutamente catastrófica”. E ele quando constata isso, ele tem a ideia de que isto não é somente uma catástrofe no sentido intelectual e filosófico, mas uma catástrofe civilizacional, quer dizer que isso abarca uma civilização inteira e que sobretudo isto representa um total esvaziamento da própria ideia de Deus. Ele em certo momento diz que a filosofia dos últimos séculos não fez outra coisa senão tentar idealizar e portanto esvaziar o cristianismo. Quer dizer que Deus vai sendo reduzido cada vez mais a uma ideia e esta ideia em última análise acaba se identificando com o próprio eu; você vai ver que a ideia de eu e a ideia de Deus no fim das contas são a mesma. E ele diz: “Olha, isso aí não funciona porque ninguém vai conseguir me explicar como é que esta ideia produziu todas as coisas materiais, este imenso universo material que nos cerca com seres vivos, etc., não é possível uma transição entre uma coisa e outra, de maneira que em algum ponto nós tomamos a pista errada e nós já não entendemos mais... só entendemos Deus como ideia ou como autoconsciência, mas não o entendemos como força, como poder gerador”. Este esvaziamento não deixa de ter suas consequências histórico-políticas de enorme gravidade dentro das quais nós vivemos ainda. Porque se Deus fica reduzido a uma ideia, não há outra maneira possível de você se relacionar com ele a não ser filosoficamente. Isso 19 quer dizer que o Deus da Bíblia desaparece e entra o Deus dos filósofos. E o Deus dos filósofos sendo um conceito manejável, ele pode perfeitamente se reduzir no fim das contas à própria consciência filosófica que o examina, quer dizer, não é mais possível você distinguir entre o que é a consciência do filósofo e esse deus-conceito que o filósofo de algum modo abarca e domina. Daí a confusão criada por Hegel entre o seu processo cognitivo, o processo da sua dialética interna e o processo da criação da realidade e o processo histórico como um todo, que nós já estudamos aqui. Então, também não sabemos aqui em que medida houve nisso da parte de Hegel alguma sacanagem e em que medida ele foi apenas uma vítima desta catástrofe intelectual que já vinha desde dois séculos antes. Quando Hegel chega à conclusão de que o Estado já havia absorvido tão bem o cristianismo que não era mais preciso Igreja porque o Estado se incorporava agora a função de educador e de guia espiritual da humanidade e com essa ideia ele gera todo um cortejo de consequências quase apocalípticas que nós vemos nos séculos XIX e XX, isto não é senão uma consequência deste processo assinalado por Schelling da idealização do cristianismo. Ele sabia que Deus ia [se] transformar numa ideia, esta ideia é filosoficamente manejável e por outro lado como a própria ideia de natureza também havia se dessubstancializado e se transformado apenas num conjunto de esquemas matemáticos, então fica tudo muito fácil para um filósofo e aquela impressão de onipotência que Hegel transmite às vezes é totalmente ilusória, mas é fácil de você compreender como é que ele caiu nisto, justamente porque se Deus tinha se transformado numa espécie de eu e a natureza tinha se transformado num conjunto de esquemas matemáticos domináveis pela inteligência humana, então, 20 fica tudo muito fácil: você dentro do seu tabuleiro filosófico, você cria o mundo, você inventa todo o processo histórico e você ao mesmo tempo se coloca na origem do processo e no fim do processo e chega a um ponto em que não é mais possível você saber se Hegel está falando dele mesmo ou do próprio Deus, eles se tornaram indiscerníveis. E Schelling que havia começado junto com Hegel percebe o buraco em que eles estão entrando e de imediato ele não sabe como sai disto. Eu não conheço em detalhe a biografia de Schelling, mas eu tenho a impressão de que foi diante desta dificuldade, e não só por problemas pessoais que teve na universidade, que ele se retira do ensino, eu acho que foram dificuldades intelectuais mesmo, ele percebeu que estava com um abacaxi monstro na mão e ele não sabe como resolver, então precisava de um tempo para pensar. Deus como visão bárbara Diz ele que esse cristianismo dessubstancializado havia perdido o que ele chama de vivência, a experiência bárbara de Deus, que é de Deus como força. Deus como poder, que está presente na própria natureza física. Deus criador da natureza. Você veja que uma vez o Bruno Tolentino me disse que se você estiver no deserto e furar o pneu do seu carro não adianta você rezar que Deus não vai encher o pneu. E eu cá comigo pensei: Para que me serve um Deus que nem mesmo enche pneu? Então, ao mesmo tempo eu comecei a ter contato com pessoas de igrejas evangélicas e eu vi que elas rezavam para que Deus enchesse pneu, sim; aquela coisa material e imediata; e aquilo foi um choque para a minha cabeça porque isso era o que o Schelling chamava [de] a visão bárbara, eles... 21 (Aluno) Por que eles chamavam isso de visão bárbara? Por que o termo “bárbaro”? É um modo de dizer, porque diz que a civilização do Ocidente foi se tornando muito refinada e idealizando e esvaziando o cristianismo, e então perdeu o que ele chamava [de] visão bárbara, seria a visão medieval. (Aluno) Aí é um termo colocado entre aspas... É claro, entre aspas, é evidente. É uma expressão apenas. Quer dizer, os bárbaros sabiam que Deus é força e poder, agora nós pensamos que Deus é o Hegel... é o Hegel ou é um conceito. “Eu” relativo Então, ele observa na filosofia desde Descartes até Hegel uma progressiva fuga das realidades da vida, uma fuga da natureza, uma fuga da estrutura da realidade na qual nós estamos, dentro da qual nós estamos. E inventa uma estratégia para recuperar isto. Por isso que eu acho errado colocá-lo como idealista, porque a primeira coisa que ele fala é o contrário do que Fichte fala. A primeira coisa é a seguinte: não existe eu nenhum, ele diz, só o que existe é o absoluto e infinito. Quando eu digo que eu penso, ou eu estou pensando fora deste infinito e fora deste absoluto, e portanto sou eu mesmo o próprio infinito e absoluto, ou na verdade não sou eu que estou pensando, é Ele que está pensando; quer dizer, tudo o que existe é um atributo, um acidente do próprio Deus, nada é concebível fora Dele. Portanto, ele diz que não é possível você dizer que uma pessoa crê em Deus; como se Deus pudesse ser uma ideia na cabeça de uma pessoa. Ele diz [que] é o contrário, Deus é que é o princípio inicial e o que vem depois é apenas 22 uma expressão Dele. Então, se você diz que uma pessoa crê em Deus, você está querendo dizer que sob certo aspecto é Deus que está acreditando nele mesmo. Agora é fácil você perceber que toda a tradição filosófica, o que ela busca? Ela busca saber qual é a substância fundamental ou, dito de outro modo, qual é o fator absoluto do qual todos os relativos emergem de algum modo. A briga é sempre essa, é sempre isso que está se procurando. E Schelling vê que o eu não pode ser de maneira alguma um ponto de partida. Ele diz [que] o eu será no máximo aquilo que dizia Giordano Bruno, ele é a crista de uma onda dento de um oceano. Quer dizer, você não é o primeiro sujeito que nasceu nem é o último que vai existir, você é apenas mais um que, ao exercer as funções da sua consciência, está apenas prosseguindo, é um processo cósmico que já vem aí desde bilhões de anos antes de você. Então, como tomar este eu como centro ou como princípio? O eu humano, a primeira obrigação que ele tem é saber que ele não é autofundante, que ele é apenas uma aparência dentro do processo cósmico, ou, ainda para usar a imagem de Giordano Bruno, ele é apenas uma gotinha dentro de um oceano. (Aluno) Nem em forma analógica, não poderia ser pego? Não! Como princípio inicial, o eu não funciona de jeito nenhum. Se o eu pode ser o princípio inicial então ele é o absoluto, ele é autofundante, ele é o começo de tudo. Quer dizer, o eu não pode ser admitido como princípio nem mesmo cognitivamente. Isto quer dizer que por baixo deste eu existe uma multidão de realidades. E na hora em que o eu fala consigo mesmo, ele está querendo dizer o quê? Que ele possui uma razão, que ele possui uma consciência, ou ao contrário, que uma consciência e uma razão lhe foram dadas? Foi ele que se deu 23 isto? Não é isso? Schelling rompe drasticamente com este solipsismo de toda filosofia moderna. Então, eu não vejo como situá-lo dentro do idealismo. Isso aí não é idealismo, isso é outra coisa. (Aluno) Estou pensando em algumas técnicas de meditação que parece que apontam para essa consciência de si... Mas a consciência de si, se você pegar, por exemplo, a sequência de meditações da escola vedantina, ela vai partir de uma pergunta sobre o eu. Ela vai perguntar: o que ou quem sou eu? E você vai tentar então se autodefinir. Na medida em que você vai prosseguindo nesta investigação você percebe que você não tem nenhuma outra substância a não ser a própria substância do absoluto, ou seja, não é que você é Ele, mas Ele é você, quer dizer, a sua realidade é a Dele; e não uma realidade própria, você não tem uma realidade própria que você possa dizer: “eu sou isto”! Para você ser o que quer que seja você só pode ser dentro do ser. E quem é o ser? É você? É por isso que Schelling diz: “É errado dizer que nós temos uma razão, é a razão que nos tem. É a razão divina que nos tem!” Então, você veja, isso aqui escapa tão formidavelmente do universo da época que eu não vejo como encaixar Schelling dentro do idealismo alemão. Ele não é idealismo alemão coisíssima nenhuma, ele começou como idealista alemão, depois ele virou um outro negócio que eu não sei o que é, mas que se parece muito mais com escola vedantina ou coisa assim. E o próprio passo inicial dele; “Olha, não existe eu nenhum!” Bom, então, acabou! Vê a distância que ele foi parar do “penso, logo existo!” e a distância que ele foi parar de Fichte e também de Hegel. 24 (Aluno) Parece muito um pouco com o Santo Agostinho em que ele diz que se eu existo alguma coisa deve ter me criado. Mas note bem que ele não diz nem isto, ele é muito mais radical, *ele+ fala: “Não, não existe nada, só existe o absoluto.” E o que quer que exista só pode ser concebido em função Dele, ou como um aspecto ou manifestação, ou irradiação, ou criação, alguma coisa assim. Ele elimina três séculos de discussões e volta ao primeiro princípio. E diz: o grande problema da filosofia, o problema do filósofo, já que o filósofo é apenas uma ponta, a crista de uma onda num oceano, é ele saber como é que este oceano veio a gerá-lo, quer dizer, como é que esta realidade na qual nós vivemos pessoalmente emerge da sua origem no absoluto. Então, é o processo. O grande problema se torna o problema da cosmogonia [corpo de doutrinas, princípios (religiosos, míticos ou científicos) que se ocupa em explicar a origem, o princípio do universo; cosmogênese], da origem do cosmos e como que o absoluto veio se manifestando através de uma pluralidade de canais e como esses canais se interligam de algum modo. Necessidade e liberdade Ele percebe, por exemplo, que o mundo da natureza é um mundo que é regido pela necessidade. Não precisa ser uma necessidade absoluta, hoje nós concebemos até em termos de probabilismo. Mas de qualquer modo, o que é uma probabilidade? Probabilidade é uma necessidade limitada, quantificável, em última análise. E que ele percebe por outro lado que o eu humano não pode se compreender em termos de necessidade porque como bem tinha visto 25 Fichte, o eu se define pela sua liberdade de se autocolocar. Ora, nós vemos que nós temos esta liberdade de nos autocolocar, e nesse ponto o conjunto da filosofia de Fichte pode ser absorvido como se fosse um parágrafo da filosofia de Schelling, quer dizer, tudo o que Fichte disse está certo, só que não é tudo, tem muito mais coisa em volta. De certo modo ele tem que inverter esse Fichte e colocá-lo de cabeça para baixo, ou ele estava de cabeça para baixo e tem que ser posto de novo sobre os pés. Ele diz [que] se por um lado existe o mundo da necessidade que é o mundo da natureza e existe o mundo da liberdade, é porque estes dois são aspectos do absoluto. Isso quer dizer que nós podemos compreender o mundo existente como uma expressão de um absoluto que é ao mesmo tempo necessidade e liberdade. Isso quer dizer que necessidade e liberdade são apenas aspectos que se diferenciam no curso da manifestação de Deus no mundo. (Aluno) Temporal? É! Espaço-temporal! Mas é evidente que se existe esta diferenciação é porque esses dois aspectos não são tão heterogêneos assim; ou seja, se fossem duas manifestações heterogêneas, uma vai para um lado, a outra vai para outro e [se] não tivessem uma raiz comum elas não poderiam se reconhecer, então, nós ficaríamos exatamente como na situação de Descartes, você tem um eu inespacial colocado perante um universo de entidades espaciais que também não correspondem às entidades materiais da natureza, mas que são apenas como se fossem formas geométricas, então estaríamos de novo no dualismo cartesiano. Ele diz: “Não, tem que haver um ponto de reconhecimento”. Isso quer dizer que você encontrará algo desta necessidade material dentro da própria 26 dialética formadora do eu humano e encontrará algo da liberdade interior do eu na própria natureza, apenas em doses diferentes, mais ou menos como nós veríamos nesse símbolo do yin-yang em que a parte preta tem uma bolinha branca e a parte branca de uma bolinha preta. Isso quer dizer que a natureza para Schelling não é constituída somente de extensão, ela é a expressão da necessidade dentro da qual deve haver um elemento de liberdade com o qual o eu humano possa dialogar ou entrar em contato de algum modo. As consequências disso, só do ponto de vista científico, são absolutamente formidáveis, porque a corporalidade aí deixa de ser corporalidade em sentido estrito, num sentido excludente, mas aí se abre a porta até para reconquistar algo da antiga cosmovisão medieval no qual as entidades corporais significam algo e dizem algo. Nesse sentido, por exemplo, nós podemos conceber, e essa é uma ideia que me encanta particularmente, a ideia de que o mundo material em torno é um depósito de conhecimentos, ele é uma espécie de discurso latente no sentido de que, por exemplo, um mineralogista pode saber muito sobre os minerais, mas os minerais sabem mais ainda. Quer dizer, o maior depósito de conhecimento mineralógico são os minerais. Então, eles podem ser decodificados, e na hora em que são decodificados, eles são integrados na liberdade humana sob a forma de conhecimento. 27 Faz parte da filosofia de Schelling nesse período, por um lado a doutrina das idades do mundo que é a doutrina do que ele chama [de] as potências de Deus, quer dizer, como é que da totalidade absoluta surgem essas diferenciações de necessidade, liberdade, etc., etc., até todas elas tendo as suas contradições internas, até chegar na liberdade humana que seria o seu coroamento do sistema e que não sendo uma liberdade absoluta, mas uma liberdade que é condicionada ao universo material em que nós estamos, é também o lugar onde o reencontro de liberdade e necessidade é possível sob forma de consciência humana. Mitologia e revelação E o outro elemento importante que ele desenvolve nesse período é a Filosofia da Mitologia e [a Filosofia] da Revelação. Você veja que até então a ideia que se tinha da mitologia ou era de produtos de uma imaginação infantil que tentava pensar sobre o mundo sob formas toscas, e que criava imagens para suprir, para tapar os buracos da sua ignorância, ou era considerada como uma espécie de filosofia primitiva, quer dizer, que tem um conteúdo filosófico que poderia ser retirado dali de dentro. E Schelling repara que não pode ser nem uma coisa nem outra; ele diz que as mitologias em primeiro lugar são realidades, quer dizer, são coisas que aconteceram, que existem historicamente, e que devem ter uma função no próprio desenvolvimento histórico, ou seja, elas fazem parte, elas já são a sucessão das revelações, só podem ser compreendidas dentro da sequência da manifestação das potências divinas. Elas fazem parte da expressão das potências divinas. Então, isso não quer dizer que as maneiras anteriores de ver a mitologia estavam 28 erradas, as mitologias podem ser vistas também como produtos da imaginação humana, como criações culturais, etc., etc.. Só que essas explicações só abrangem certos aspectos, elas não bastam para explicar o conjunto; mas quando você as vê como parte do processo de autorevelação de Deus através da sucessão das potências, então, você obtém um outro patamar, um outro nível de abordagem no qual as explicações anteriores podem agora ser integradas. Quer dizer que pelo método de Schelling, cada nova mitologia tem evidentemente um conteúdo revelatório que é importante para a estruturação da própria humanidade, mas esse conteúdo revelatório aparece também como um produto cultural, o qual aparece também como fruto dos conflitos ideológicos da época, o qual aparece também como fruto da imaginação de alguns sujeitos que pensaram aquilo; então, você pode encaixar esses vários níveis analogicamente. Não é necessário dizer que é com isto aí Schelling inaugura toda a possibilidade das ciências da religião comparada, e também é assim que ele explica, por exemplo, que elementos de uma mitologia de mil ou dois mil anos atrás, ou cinco mil, possam ter uma importância para o autoconhecimento do homem contemporâneo. Quer dizer, um livro que eu recomendo para vocês é o livro do Paul Diel, ou seja, O Simbolismo na Mitologia Grega. O Paul Diel é um psicólogo suíço e ele parte da ideia de que na mitologia grega você tem uma representação completa da psique humana, todos os elementos estruturais da psique estão ali presentes, então, você sempre pode decodificar a psique de fulano ou fulano em termos de mitologia grega. Esta possibilidade simplesmente não existiria se não fosse isso que Schelling disse, isto é, se as mitologias não fossem etapas de uma progressiva auto-revelação 29 da própria estrutura da realidade que se torna transparente através daqueles símbolos. A mitologia não é um modo de transmitir algo, ela é o próprio algo que está sendo transmitido, ela é o próprio conteúdo que está sendo transmitido e que só se transformará em conteúdo diferenciado muito mais tarde. Isso é o mesmo que dizer que Homero, por exemplo, quando contava os seus mitos, ele não precisava entendê-los, a não ser mitologicamente. Nós é que extraímos desse mito um outro significado, uma outra clave intelectual, porém ele não precisava entender aquilo numa linguagem extra-mitológica, não, ele tinha somente aquela linguagem. Então, daí surge a ideia que depois se tornou até arroz-comfeijão que é do mito fundador; quer dizer que as civilizações todas começam a partir de um mito originário, esse mito originário estabelece uma certa área de possibilidades humanas que em seguida são realizadas temporalmente e que gradualmente vão tomando consciência de si próprias. Para você ter uma ideia da profundidade dessa ideia de Schelling, você pode examinar, por exemplo, o livro do Northrop Frye chamado “O Grande Código”, no qual ele demonstra que todos os enredos da literatura ocidental estavam na Bíblia. Quer dizer, ali você tem um mito originário, ou seja, tudo o que vocês viveram, pensaram e inteligiram durante dois mil anos já estava dado compactamente aqui. Isso seria absolutamente impossível se este mito fundador fosse apenas uma maneira de expressão, se ele não fosse um elemento estruturante da própria ordem da realidade. E é por isso que ele vê que esses mitos não são uma revelação de alguma coisa, não, eles são a própria revelação; eles inauguram um campo de possibilidades; não é que 30 existe um conteúdo que o mito transmite, não, ele é o conteúdo, ele é a forma e o conteúdo ao mesmo tempo. (Aluno) Se tudo isso é uma auto-revelação, porque que Deus precisa se auto-revelar? Como é? (Aluno) Por que Deus precisa se auto-revelar, seja pelos mitos, seja como for? Quem disse que Ele precisa? Se Nele a necessidade e a liberdade estão unidas, ou seja, as duas colunas, a misericórdia e a justiça (compaixão e rigor) estão perfeitamente unidas, quer dizer que aquilo que é inteiramente exato e absolutamente inelutável e inflexível em Deus é ao mesmo tempo um ato de liberdade, isso significa que Deus quer tudo aquilo que Ele quer, ou seja, e que Ele não poderia querer de outro modo, não porque Ele esteja preso a isto, mas porque esta é a única maneira perfeitamente livre e perfeitamente boa que Ele poderia agir, ou seja, a única compatível com a Sua natureza de Deus. A própria pergunta: “Por que Deus fez isto?” Você percebe que dentro de uma perspectiva Schellingiana a própria pergunta está muito mal colocada. O porquê de qualquer coisa, qualquer pergunta “por quê?” será respondida em última análise com “a vontade de Deus”. Ela não tem um outro porquê além de si mesma. (Aluno) É o que é? Depende de em que plano você entende isto. Se você colocar: “Não, mas é uma vontade arbitrária!” Eu digo: não, ele está dizendo que não é arbitrária porque não poderia ser de outro modo. Então, Deus atende a uma necessidade? Não a uma necessidade externa à Sua própria natureza de Deus. Agora, é claro que noventa e nove por cento das confusões teológicas surgem do fato de que ao tentar raciocinar 31 sobre o absoluto, nós o decompomos novamente em necessidade e liberdade e queremos explicá-Lo ou por uma ou pela outra, é exatamente isso que Schelling está dizendo que não dá para fazer. (Aluno) Essa análise que o senhor fez sobre os mitos se aplica apenas aos mitos antigos ou também se aplicaria a uma mitologia construída como a do...? Não! Só se aplicam a mitologias que fundam civilizações. Na verdade, não são todas as mitologias que nós conhecemos que são assim. Agora, produtos da ficção, lendas modernas, não, esses têm outra função. Schelling não diz isso, mas digo eu, que existem mitos que aparecem sob a forma de histórias contadas, outros que aparecem sob a forma de histórias vividas que depois são contadas. Existem mitos imaginários, por exemplo, a mitologia grega. Você não pode dizer que Zeus de fato fez isso ou fez aquilo, mas aquilo é um conjunto de narrativas e a narrativa como tal é uma presença histórica. E tem outros casos como, por exemplo, vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não! Primeiro aconteceu, depois foi narrado. Esta distinção é que mostra o seguinte: os mitos deste último tipo têm uma função um pouco diferente da dos outros; e são esses os que constituem aquilo que nós hoje chamamos [de] religião. Isto é a mesma coisa que dizer que a religião greco-romana não era bem uma religião, era uma outra coisa; era um conjunto de instituições sacras baseado num universo imaginário que fundou aquela civilização. Porém, quando tem a história, por exemplo, de Moisés, ou a história de Jesus Cristo, ou a história do Buda; isso aí não, essas coisas aconteceram realmente; e aqueles acontecimentos temporalmente localizados é que inauguram uma possibilidade. 32 (Aluno) Sobre essa questão desses mitos que são fundantes, eles também carregam uma estética que os acompanham o tempo todo. O senhor não acha? E depois quando ela se acaba, essa estética some também e surge uma nova? Ou isso não acontece? Não! Isso também acontece. Mas você veja que aí é uma das possibilidades humanas mais extraordinárias que é a possibilidade da arte, que é a possibilidade de o indivíduo participar deste processo. Quer dizer que o artista de certo modo também está inaugurando possibilidades, ele só não as cria, ele as transmuta a partir da sua experiência pessoal e da cultura adquirida, etc., etc., mas ele inaugura certas possibilidades que são ao mesmo tempo possibilidades de intelecção e possibilidades de existência. Você pode ver que existem muitas modalidades de vida humana, tipos de vida humana, tipos de biografia humana que só se tornam possíveis a partir de certos momentos em que certas formas foram geradas por certos artistas. Aí aquilo se incorpora na civilização e abre possibilidades para as gerações seguintes. E Schelling dedica especial atenção a este ponto. Então e de certo modo ao particular deste processo da revelação das potências, esta seria a forma mais completa de conhecimento que você poderia ter, porque você está agindo dentro do processo, você não está se colocando como um observador filosófico coloca o mundo entre parênteses como se fosse numa tela e o olha, mas você conscientemente está participando do processo da revelação. E nesse sentido, Schelling tem uma frase que ele diz que um sujeito que conseguisse escrever sua autobiografia com todos os componentes da sua vida, teria escrito a história do universo; porque tudo estava presente ali. Daí ele não pode conceber que haja nele algo que esteja separado como a crista da onda não está separada do oceano, ela de 33 certo modo é indiscernível, ela só consegue se discernir a si mesma como uma espécie de ponto de vista, quer dizer, como se cada um de nós fosse um ponto de vista, mas esse ponto de vista não existe sozinho, ele só existe na articulação de infinitos outros pontos de vista que compõem o tudo. Panorama do pensamento de Schelling Eis aí o panorama do pensamento de Schelling, a análise histórica por que ele faz a recolocação do fundamento, o retorno à ideia do absoluto, a eliminação do primado do eu e portanto a eliminação de todo o idealismo moderno, a doutrina da cosmogonia, a doutrina das revelações sucessivas, a doutrina da mitologia e da arte, e a doutrina do que ele chama [de] o diálogo anamnético, quer dizer, é o indivíduo que dialogando com o todo dentro do qual ele está ele se recorda da sua origem dentro do processo da revelação. Então, você vê que é um negócio de uma grandiosidade assim formidável e sobretudo de uma exatidão muito grande. Quer dizer, a filosofia de Schelling tem um valor científico mesmo, ela é uma espécie de restauração da estrutura da realidade. E cria a possibilidade de uma infinidade de ciência que só começaram a se desenvolver a partir daí. A religião comparada simplesmente não existiria, a religião comparada, a mitologia comparada, tudo isto sem Schelling seria impossível. Você pega obras como Mircea Eliade, por exemplo, Mircea Eliade deve tudo a Schelling. Quer ele declare ou não declare. (Aluno) Ainda sobre o plano de mito como é que tem esses dois tipos de mito, os simplesmente contados e os que aconteceram e depois foram contados? 34 Mas essa é uma distinção que eu estou fazendo e eu estou trabalhando em cima dela. (Aluno) Como é que a gente encaixa aí um outro tipo de mito que me parece diferente desses dois, eu não sei se se pode chamar o marxismo de mito? Não, isso não é um mito de maneira nenhuma. (Aluno) Mas ele não funda uma série de possibilidades civilizacionais? Não, você pode colocá-lo como uma criação artística, mas não como um mito fundador, quer dizer, ele é um artista que trabalha dentro disso aí, dá forma a determinadas possibilidades e elas abrem outras possibilidades de vida humana para uma série de gerações adiante. Mas não é um mito fundador. O mito fundador não pode fugir da estrutura da realidade. (Aluno) É isso que eu ia perguntar... Você pode criar uma possibilidade falsa, uma possibilidade fictícia que será verdadeira enquanto vivida; assim como o delírio do maluco, o delírio de um paranoico, ele é falso no seu conteúdo, mas ele é real biograficamente, quer dizer, o sujeito está delirando mesmo. Schelling na medida em que unifica os elementos que a filosofia moderna havia separado, também unifica historicamente o desenvolvimento do Ocidente, quer dizer que aquilo que durante dois ou três séculos parecia ter rompido, nele não tem mais, você tem uma continuidade de pensamento desde a Antiguidade até hoje, ele é o sujeito que costura tudo. (Aluno) Mas faz à revelia... Perfeitamente! 35 Agora, existe uma série de dificuldades que aparecem na filosofia de Schelling em função de que ele estava tentando restaurar isso numa época na qual isso parecia totalmente estranho, ninguém entendia uma palavra do que esse homem estava dizendo, e ele também às vezes não tem os termos apropriados. Então, a possibilidade de mal entendido dessa filosofia é enorme, tanto que foi mal entendido mesmo. E quem não queria entender mal, o que fazia? Esquecia, bota na gaveta e deixa para o século seguinte, como de fato ficou. Você ainda vai ver manuais de história da filosofia que dizem: “não, Schelhng é um filósofo panteísta”, ou “é um gnóstico”, etc. Eu falo que nenhuma dessas classificações cabem inteiramente, pode ter um pouquinho desses elementos todos, usados como elemento simbólico para tentar explicar alguma coisa que ele sendo o primeiro a perceber isso depois de três séculos de esquecimento, você não vai querer que o sujeito tenha a explicação na ponta da língua. Você não pode esquecer que quando surge, por exemplo, São Tomás de Aquino que vem tudo explicadinho, ali atrás você tinha três séculos de aprimoramento do instrumental lógico e linguístico para isto, e Schelling não tinha nada disto, ele está tentando dizer uma coisa que há muito tempo ninguém sabia e que não era exatamente a mesma que tinham dito antes. Você vê, por exemplo, esse aspecto cosmogônico, essa coisa da cosmogonia, nem mesmo os escolásticos tinham se interessado por isto, eles se contentavam com a cosmogonia simbólica e pronto, que é como está na Bíblia e está bem. Agora, como é que nós vamos dizer isto aí? Como é que isto aconteceu? O que veio antes? O que veio depois? Não tem linguagem para isso! 36 A gente não tem a menor dúvida, quer dizer, depois de Aristóteles e São Tomás, os maiores dos filósofos são Leibniz e Schelling, não tem outra coisa, não tem nada desse tamanho, você comparar um cara desses com Hegel, não dá, não dá nem para começar, Hegel é uma vírgula no discurso de Schelling. Ele pega todo aquele mundo de Hegel e ele diz: “É! Você tem razão, só que tem isso que veio antes e tem aquilo que veio depois”. E Fichte também, pega o antes e pega o depois. E Kant também. Todo mundo, todos os filósofos até Schelling, todos podem ser integrados dentro da filosofia dele, Giordano Bruno e Descartes, etc., cada um tem o seu pedaço de razão, mas continua e tem mais isto e mais aquilo e mais aquilo e mais aquilo outro. Quer dizer, eles são como se fossem superfícies que refletem aspectos, mas o mapa do labirinto só Schelling que tem. Porque eu digo que nós ainda vivemos dentro da filosofia dele, nós não somos capazes de vê-la de fora. (Aluno) Então, pode-se dizer que o drama de todos esses filósofos, Hegel, Fichte, Kant, Descartes, e tal não é aquilo que... Eles não eram suficientemente inteligentes para tratar do assunto que eles estavam tratando. (Aluno) Ou seja, não é o que disseram, é o que eles não disseram... Mas é claro! É o negócio do Leibniz: “Você tem razão no que você afirma, mas você está errado naquilo que você nega”. Aquilo que você diz está certo, só que tem muita coisa que você não disse, e que você nega, e que você não está enxergando. (Aluno) E por aí você pega um pouco o descontrole da escala... Da escala! Agora, você vê, o mundo de Leibniz é um mundo enorme, Leibniz abarca todas as ciências, e este mundo inteiro de 37 Leibniz se torna um capítulo dentro de Schelling. Este foi o maior dos filósofos alemães, o gênio alemão está todo ali. Os outros são todos meio doentes, são todos caras mutilados, você vê que eles são grandes, mas são monstros, são disformes, falta um braço, falta uma perna, falta o nariz, o primeiro sujeito que tem tudo inteiro, é um ser humano inteiro, é Schelling. Eu acho que foi uma verdadeira tragédia da cultura alemã que a influência de Schelling não irradiasse mais cedo. (Aluno) Se é que irradiou lá! Não, na época foi só assim: quando ele voltou a dar aulas, foi assim, o pessoal foi tudo para assistir a aula dele, mas é uma homenagem, um grande filósofo, velhinho, voltou, tal, ninguém entendeu uma palavra do que ele disse! Eles foram lá, assistiram à aula, muito bem, foram tudo para casa, e aquilo foi como se ele não tivesse dito absolutamente nada! Simplesmente não houve consequências. (Aluno) Alguém retomou? No século XX, sim! (Aluno) Mas aí já era tarde, para as tragédias que aconteceram lá já era tarde... Foi uma tragédia para a humanidade inteira, quer dizer, ele tinha de certo modo o remédio para toda a crise da civilização que já vinha há três séculos. Porque ele tem razão, o negócio do cartesianismo foi uma catástrofe. Se você lê os livros, por exemplo, do Wolfgang Smith, ele é um físico que analisa a história da ciência à luz desta coisa que ele dá esse nome de bifurcação. E ele diz que o que empata aí as ciências há muito tempo é esse negócio da bifurcação, quer dizer, mesmo tendo descoberto outros continentes como, por exemplo, a relatividade, a teoria quântica, filosoficamente os próprios cientistas 38 ainda interpretam essas mesmas descobertas deles, as descobertas estão certas, mas eles interpretam filosoficamente no termo bifurcacionista. Por exemplo, o Wolfgang Smith diz que na cosmovisão medieval você tinha a ideia de um mundo material, de um mundo intermediário e de um mundo espiritual, ele diz [que] nenhum físico percebeu que a física moderna não trata do mundo material, que ela trata do mundo intermediário; ou seja, você pode colocar toda a física moderna dentro da cosmovisão medieval e dá certinho. Só que eles não sabem disso. (Aluno) O que seria esse mundo? O mundo intermediário é o mundo da matéria sutil. Você pega os tratados de São Tomás de Aquino sobre as forças sutis da natureza, eu digo: Max Planck nunca leu isso e São Tomás nunca leu Max Planck, mas se um lesse o outro falariam: “Mas é disso aqui que nós estamos falando!” É por isso que quando você chega em partículas subatômicas, elas têm umas propriedades esquisitas que você não consegue expressar aquilo em termos materiais. Em termos materiais dá contradição e no entanto você sabe que aquilo acontece. Então, essa é uma das propriedades das forças sutis do mundo intermediário, que é um mundo que é uma espécie de transição do ser para o não-ser e viceversa. Tudo isto aqui, se você ler o negócio do Wolfgang Smith, se não fosse o Schelling, esse cara não ia saber disto nunca, ele pode nem saber o que ele está devendo para o Schelling. E isto aqui são coisas que ainda vão ter consequências para as ciências e para a cultura pelos séculos vindouros, isto mal está começando. (Aluno) O Zubiri também já não entrou... 39 O Zubiri também deve muito a Schelling, sem dúvida! O Zubiri, o Lonergan, e o Voegelin também. Então, tem tantas soluções ali dentro, que nós ainda não conseguimos tirar proveito de todas elas. Eu acho que eles não leram o Schelling muito bem. Porque eles falam muita coisa que já estava explicada em Schelling e que eles não sabem. Eles estão achando que são os primeirões. Schelling já tinha dito. (Aluno) Uma coisa, o senhor comenta no... No livro “O conhecimento e o Sagrado” do Seyyed Hossein Nasr, ele concede uma parte a Schelling: “Não, Schelling tem lá seus méritos, etc., etc..” Mas ele não percebe o quanto. Eu acho que ele coloca o Schelling apenas como se fosse um precursor do René Guènon. Não, isso já estava tudo no Schelling e estava até melhor do que no René Guènon, estava um pouco mal explicado porque estava em alemão. É claro, nada que é alemão consegue ter aquela coisa arrumadinha do francês, de fato não consegue. O alemão é uma língua de duendes, de anõezinhos. Não é isso? Então é uma língua mitológica. (Aluno) Eu lembro que o senhor havia dito que é o mundo em que por exemplo os signos têm realidade existente, os mitos também. Isso é tudo mundo intermediário. Por exemplo, se você pegar o livro do Paulo Mercadante , “A coerência das Incertezas”. O que é? É um estudo da sucessão de símbolos historicamente operantes estudados com a lógica da teoria quântica. Quer dizer, como é? Você vai pegar o negócio de subatômico e vai aplicar nos mitos, nos símbolos, e dá certo? Claro que dá, porque a física quântica é a física do mundo intermediário, é um mundo onde nada é o que parece, é mágico na verdade. (Aluno) O livro... 40 É um livro maravilhoso, mas um livro do gênio que ninguém vai entender, mas tudo bem. (Aluno) Pior é que não está em alemão! Pior, está em português! (Aluno) Mas não é fácil em português, eu comecei a ler e... Não, é um livro dificílimo, dificílimo! Mas eu estou persuadido de que o Paulo Mercadante é um gênio, ele mesmo não sabe, mas o que ele fez naquele livro é uma monstruosidade, quer dizer, ele pega todo este universo do Voegelin e o expressa quanticamente. Esse mundo do Eric Voegelin, o mundo da sucessão dos símbolos articuladores da história e diz: “Ah, isso aí funciona igualzinho como na teoria quântica!” Está entendendo? São herdeiros de Schelling. Você veja, nos anos 30 houve o grande poeta austríaco Hugo von Hofmannsthal e ele disse o seguinte: “olha, o que está havendo no mundo é um movimento que daqui um século será visto como hoje nós vemos mais ou menos o Renascimento, quer dizer, uma transição intelectual absolutamente formidável”. E ele chamava isso de a Revolução Conservadora, porque ele dizia [que] nós vamos reconquistar tudo do que os séculos perderam, só que vai ser um processo de muitos séculos também. Hoje eu entendo o que o Hofmannsthal dizia, porque você vendo a história do século XX parece que foi o contrário. Foi o contrário na superfície da história, mas o que está acontecendo intelectualmente? O que está acontecendo é essa tomada de posse do Schelling, essa reconquista da religião comparada, da mitologia comparada, é a articulação da física quântica com a cosmovisão medieval, é isto que está acontecendo. (Aluno) O que está acontecendo agora com a quantidade de mudanças, de novidade, de novas descobertas em cada área do 41 conhecimento, é comparado com o que os Medici fizeram para o Renascimento. Pois é! Mas é uma coisa que só agora começa a tomar forma. Agora, um sujeito em 1930, quer dizer, em plena emergência do comunismo, do fascismo, etc., etc., ele falar em Revolução Conservadora! Eu digo que ele está louco! Não, mas ele disse, é um processo de muitos séculos. Ele não falou nas próximas décadas, nas próximas décadas é o contrário, nas próximas décadas, quer dizer, é o resíduo, é o resultado final dessa bifurcação. Quer dizer, ainda tem mais pelo menos um ou dois séculos de prejuízo que nós vamos levar em função desta coisa, mas enquanto vem essa devastação operando na superfície, embaixo vem se construindo uma outra coisa. E o que vai sobrar, por exemplo, da cultura do século XX? O que sobra? Bom, o que vai sobrar é o Hugo von Hofmannsthal, é o Eric Voegelin, é o René Guènon, é isso que vai sobrar para os séculos seguintes, o resto não vai sobrar nada. Você vê, onde no mundo ainda se lê Jean-Paul Sartre? Só no Brasil! Bertolt Brecht? Só no Brasil! (Aluno) Nem na França? Francês não liga para isso faz muito tempo! Esta coisa toda, desconstrucionista, então, não vai sobrar nada disto aí, já acabou. É como sapo que está morto e ainda mexe a perna. É uma decomposição mesmo. É o resultado de pessoas que estão se suicidando intelectualmente, cortando a própria cabeça. Você corta, tudo bem, faça o que você quiser, a cabeça é sua, mas a gente vai prosseguir, fazer outra coisa. (Aluno) Não é talvez que o que tinha que ser desconstruido já foi? 42 Os caras terminam por se desconstruir a si mesmos! (Aluno) Só que tem efeito, acaba desconstruindo o mundo. Você tem um efeito devastador em volta, mas acontece que essa devastação sempre tem que ter algo para devastar. A hora que ela acabou com tudo, ela se desliga automaticamente. Mas tem coisas que são inatingíveis, não é possível você desconstruir, por exemplo, a obra de Schelling, não é possível você desconstruir o René Guènon, não é possível você desconstruir o Eric Voegelin, não tem jeito. (Aluno) É possível você desconstruir a sua capacidade de entender isso? Você desconstrói o legado anterior daquela sua cultura, a cultura europeia moderna que é a cultura do tempo de Descartes até agora. Quando você tenta aplicar isso a outras épocas, não funciona, o que eles fazem é a decomposição do Ocidente moderno. Mas o Ocidente moderno já começou se decompondo. Já começou com a tal da bifurcação. Quer dizer que estes são os últimos estertores de um corpo que já estava doente há três séculos. Deu para entender? Então, o Schelling é isso aí. Por hoje é só. 43 44