filosofia e messias - Charles Guimarães Filho

Propaganda
CENTRO CULTURAL PARAÍSO TERRESTRE
FILOSOFIA E MESSIAS
28) SCHELLING
Charles Guimarães Filho - 2016
1
2
ÍNDICE
Conhecimento geral sobre Schelling
05
Catástrofe cartesiana
Unidades significantes
Cisão entre sujeito real e conhecimento
Idealização do cristianismo
Deus como visão bárbara
“Eu” relativo
Necessidade e liberdade
Mitologia e revelação
Panorama do pensamento de Schelling
09
11
14
19
21
22
25
28
34
3
4
Conhecimento geral sobre Schelling
Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775 — 1854) foi um
filósofo alemão, um dos representantes do idealismo alemão, assim
como Fichte e Hegel. No desenvolvimento do idealismo alemão, os
Historiadores da Filosofia normalmente situam Schelling entre Fichte,
seu mentor antes de 1800, e Hegel, seu amigo e companheiro de
quarto na Universidade de Tübingen.
Vida
Schelling nasceu em 1775, em Leonberg. Em Tubinga teve Hegel
como condiscípulo, com o qual, em seguida, sustentou pesada
polêmica. Passou da teologia à filosofia e dedicou-se ao estudo de
Spinoza, do qual deriva a sua concepção idealista; de Fichte, que
constitui o pressuposto imediato do seu pensamento, afastando-se,
entretanto, dele em seguida. Em Leipzig integrou a sua cultura
humanista e literária com estudos científicos. Nele influíram também as
turvas fantasias da mística alemã. Foi sucessivamente professor nas
universidades de Jena, Würzburg, Erlangen, Munique e Berlim, onde
dominara o seu adversário Hegel, cujo racionalismo ele demole.
Faleceu em Berlim, em 1854, quando o idealismo já estava esfacelado.
Ele foi um autor variado e fecundo. As faces do seu pensamento
são fundamentalmente duas: o período da filosofia da identidade, e o
da filosofia da liberdade. As suas obras principais são: o Sistema do
idealismo Transcendental (primeira fase, filosofia da identidade);
Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana
(segunda fase, filosofia da liberdade).
5
A filosofia de Schelling é, fundamentalmente, idealista: o
espírito, o sujeito, o eu, é princípio de tudo. Como Fichte, admite que a
natureza é uma produção necessária do espírito; recusa, porém, o
conceito de Fichte de que a natureza tenha uma existência puramente
relativa ao espírito. Para ele, a natureza - embora concebida
idealisticamente - tem uma realidade autônoma com respeito ao
sujeito, à consciência. A natureza é o espírito na fase de consciência
obscura, e o espírito é a natureza na fase de consciência clara.
Nessa primeira fase – Filosofia da Identidade - então o princípio
da realidade não é mais o eu de Fichte (o eu absoluto, o sujeito puro);
mas deverá ser um princípio mais profundo, anterior ao eu e ao não-eu:
será precisamente a identidade absoluta do eu e do não-eu, do sujeito
e do objeto, do espírito e da natureza. Dessa identidade (princípio
absoluto da realidade, donde realidade absoluta) decorrerá, primeiro, a
natureza e o seu desenvolvimento, e depois o espírito com toda a sua
história, não como o espírito sendo oposição e negação da natureza,
mas ela sendo como seu desenvolvimento e consciência.
Mas então como se explica a visão, mesmo ilusória, do universo
que aparece múltiplo e em via de se tornar? Se a realidade absoluta é
una e imutável, e nada existe fora dela, como e donde pode surgir essa
visão destruidora do Absoluto? Schelling procura resolver esse
problema, passando da filosofia da identidade à filosofia da liberdade,
de um sistema racional, a um sistema irracional. Tal passagem é
representada pela segunda fase do seu pensamento.
Nessa segunda fase – Filosofia da Liberdade -, Schelling imagina
a passagem de Deus, do mundo ideal, ao mundo empírico e
contingente, não se podendo realizar mediante uma dedução lógica,
porquanto há essencial heterogeneidade entre o perfeito, o imutável, o
6
universal e o imperfeito, o temporal, o particular. Tal passagem se
explica então mediante um ato irracional, irracional da vontade, de
liberdade. E isto é possível, porque as ideias eternas participam da
natureza divina, que é liberdade e vontade. Por conseguinte, elas [as
ideias eternas] se podem destacar do Absoluto, decair no mundo
empírico da multiplicidade, da individualidade, do contingente, do
devir.
E, com efeito, tal queda, tal separação aconteceu e constitui o
mundo material e espiritual, natural e humano, com todo o mal que
nele existe. Através, pois, da história da natureza e da humanidade,
deveria realizar-se progressivamente a redenção dessa queda original,
o retorno das coisas a Deus, da multiplicidade à Unidade, do finito ao
Infinito.
Compreende-se, portanto, como, para Schelling, é racional o
mundo das ciências, das ideias; mas irracional o mundo da existência,
da realidade. Com relação ao primeiro é possível conhecimento
racional, ciência, filosofia; ao passo que o segundo pode ser
unicamente descrito com base na experiência.
1794 - Sobre a Possibilidade de uma Forma da Filosofia em Geral
1795 - Sobre o Eu Como Princípio da Filosofia ou sobre o Incondicionado
no Saber Humano
1797 - Ideias para uma Filosofia da Natureza
1798 - Da Alma do Mundo
1799 - Primeiro Esboço de Um Sistema da Filosofia da Natureza
1800 - Sistema do Idealismo Transcendental
1802 – {Giordano] Bruno ou Sobre o Princípio Natural e Divino das
Coisas
7
1809 - Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana
Filosofia da Mitologia e Filosofia da Revelação
As Eras do Mundo
8
Catástrofe cartesiana
A apresentação convencional da filosofia de Schelling costuma
situá-lo dentro deste período chamado de Idealismo Alemão, mas eu
acho que essa classificação não cabe muito bem. A filosofia de Schelling
é uma coisa de enorme complexidade e a parte dela que se situa
claramente neste desenvolvimento é só uma primeira parte [Filosofia
da Identidade]. E tem uma segunda [Filosofia da Liberdade] que nós
não sabemos situar historicamente ainda porque de fato não foi
absorvida até hoje. Porque você só pode localizar historicamente uma
filosofia supondo-se que dominou a sua estrutura interna e que você
compreendeu as suas implicações, então você é capaz de vê-la de fora e
portanto situá-la dentro de uma cronologia, relacionando com as suas
antecedentes e as suas consequentes. Mas acontece que essas
consequentes na verdade não apareceram até hoje. Na verdade, foi só
a partir  eu creio  dos anos 50 que se começou realmente a prestar
atenção nessa segunda parte da filosofia de Schelling que é justamente
aquela que ele apresenta já na década de 40, 1940, na “Filosofia da
Mitologia e Filosofia da Revelação” e no livro “As Eras do Mundo”, e
que são provavelmente os melhores livros de filosofia que alguém
escreveu no Ocidente. Não há nada que se compare a isso aí. É uma
coisa tão grande que a gente tem a impressão de que nós ainda
estamos dentro de uma época de Schelhng e não temos consciência
muito clara disso.
De qualquer modo é preciso ver que uma das características de
Schelling é que ele próprio se situa historicamente, ele se coloca num
ponto determinado do desenvolvimento do pensamento europeu, ele
sabe onde ele está com relação aos seus antecedentes, mas nós não
9
podemos ainda situá-lo com relação aos seus consequentes porque nós
fazemos parte disto aí, ainda estamos dentro da fileira de
consequências do pensamento de Schelling o qual ainda dará muitos
frutos pelos séculos seguintes; me parece a filosofia mais fértil de
consequências que existiu nos últimos séculos.
Mas, ao tentar se localizar historicamente, ele parte exatamente
do cartesianismo que ele considera um acontecimento catastrófico na
ordem do espírito humano, não que ele se oponha à filosofia de
Descartes, não é esse o ponto, é que algo aconteceu ali de muito grave
que não pode ser reduzido à biografia intelectual de Descartes, existe
realmente uma ruptura com algumas conquistas importantes do
espírito humano. E essa ruptura toma a forma, como, aliás, nós já
mencionamos de passagem, de uma aporia [dificuldade ou dúvida
racional decorrente da impossibilidade objetiva de obter resposta ou
conclusão para uma determinada indagação filosófica], um conflito
insolúvel que é colocado pela ciência cartesiana na medida em que ela
dividindo o ser, o existente, em dois tipos de substâncias.
A substância dita pensante ou ego subjetivo que se conhece por
auto-reflexão, meditação; e a substância extensa que é aquela que se
caracteriza por ter uma extensão, por poder ser medida de algum
modo. Nós imediatamente concluímos que nenhuma dessas duas
corresponde à natureza no sentido em que nós estamos acostumados a
viver nela. [A substância pensante ou ego subjetivo, ou ainda o eu] não
ocupando lugar no espaço, ele sendo constituído apenas da sua própria
auto-reflexão (da sua própria autoconsciência) evidentemente ele não
é um dado da natureza física, ele não tem como ser situado dentro da
natureza, pode ser situado no tempo, mas não no espaço. E a tal
substância extensa justamente porque ela se define exclusivamente
10
pela sua extensão, quer dizer, pela sua forma mensurável, também não
corresponde aos entes da realidade física.
Ora, se você somar todas as medições que você pode tomar
sobre um ente, você vai saber certamente muita coisa sobre ele, mas
ele não constituirá com isso nada de real; porque a realidade que se
apresenta a nós se apresenta sempre sob a forma de existências
individuais irredutíveis, tudo o que existe, existe como individualidade.
E o fato é que tudo aquilo que num ser pode ser medido é exatamente
aquilo que ele tem simplesmente em comparação ou em relação a
outros entes. Quer dizer, a existência dele como substância individual
não pode ser abarcada pela ideia de medida ou de extensão, então, o
que acaba sendo prejudicado aí nesta ciência cartesiana é a própria
natureza sensível que fica reduzida aos seus aspectos mensuráveis. A
facilidade que isto oferece, de algum modo para os estudos científicos,
é bastante sedutora porque justamente as medidas são aquilo que todo
mundo pode conferir. Então, uma ciência constituída apenas dos
aspectos mensuráveis é de certo modo uma ciência que está ao alcance
de todo mundo.
Unidades significantes
O fato de que ela [ciência] não tenha nada a ver com a realidade
substantiva da natureza parece que não afeta a ninguém. Porque a
ideia de que o processo do conhecimento deve se ater aos aspectos
fenomênicos, isto é, aqueles aspectos que são mais aparentes, e que
estão mais ao alcance do conhecimento humano, essa ideia se
impregnou de tal modo na mente humana que passados três séculos e
meio já ninguém se dá conta de que quanto é anormal você acreditar
11
que vive num mundo que é constituído apenas de aparências onde não
existe nenhuma substância, onde não existe nenhuma realidade. É claro
que a própria consciência humana repugna profundamente a ideia da
sua própria irrealidade. E não vejo como se poderia escapar disso uma
vez que você decretou que tudo se constitui apenas de aparências
mensuráveis.
Mas ao mesmo tempo em que se desenvolvia esta filosofia de
Descartes havia ainda um conflito que se desenvolvia desde algum
tempo antes que é o surgimento das novas ciências, ciência de Galileu,
de Newton, ele repentinamente coloca de lado todo o universo
alquímico, astrológico e simbólico da ciência medieval. Esse universo
encarava a natureza essencialmente como sendo uma manifestação do
Espírito divino ou do Logos, da fala divina, então, o universo é
constituído de unidades significantes em permanente e universal
intercomunicação, quer dizer, tudo tem alguma relação com tudo, tudo
significa algo, tudo diz algo, e o universo de algum modo pode ser lido.
Hoje em dia nós temos uma certa dificuldade de compreender o grau
de exatidão em que essa leitura podia ser feita.
Com o surgimento das ciências modernas o mundo da natureza
passa a ser encarado apenas como um objeto de medição e
comparação, quer dizer, ele perde toda a substancialidade própria, e
evidentemente o mundo que a ciência física estuda não é propriamente
o mundo no qual nós vivemos, mas é um conjunto de abstrações
selecionado para este fim especificamente. E isto talvez tinha que ser
necessariamente assim pelo fato de que cada ciência só pode abarcar
uma determinada seção da realidade, desde que ela queira proceder de
maneira organizada, ela vai ter que recortar o seu objeto mais ou
menos de acordo com as possibilidades de investigação que ela tem,
12
quer dizer, existe uma certa comproporcionalidade entre o objeto da
ciência e o método que a investiga. Então, é evidente que a tendência
de recortar o mundo de acordo com o método, quer dizer, fazer com
que o método seja de certo modo mais real do que o próprio objeto,
essa tendência também é quase irreversível, é difícil de você deter.
E o fato é que à medida que as ciências modernas conseguem
alguns avanços impressionantes nos séculos que se seguem ao
Renascimento, nesta mesma medida, o mundo da natureza tal como
elas [a ciência moderna] o descrevem não se parece em nada com o
mundo da experiência humana. Isso quer dizer que aqueles dois polos
[natureza e experiência] que justamente na ciência medieval apareciam
unidos, quer dizer, na ideia da analogia e da simbolização mútua entre
as várias partes do cosmos que era considerado uma totalidade vivente
na qual todas as partes reagem umas às outras e dialogam umas com as
outras, de repente esta totalidade desaparece sendo substituída por
um conjunto de esquemas matemáticos. Por um lado, que são objetos
da ciência física e, do outro lado, por uma ideia de um eu incorpóreo
que miraculosamente, não se sabe como, se vê dentro deste cenário de
entes matemáticos que lhe são completamente heterogêneos, que não
tem nada que ver, quer dizer, você não consegue reduzir o eu a uma
formulação matemática. E as formulações matemáticas, por sua vez, só
podem ser conhecidas pelos métodos matemáticos, pela medição. Isso
quer dizer que a auto-reflexão do eu não ajuda você em nada também
a compreender a natureza.
13
Cisão entre sujeito real e conhecimento
Ao mesmo tempo em que o objeto da ciência se torna cada vez
mais evanescente [de existência efêmera] e reduzido à sua versão
matematizável, também o eu vai perdendo totalmente a concretude do
eu real, do eu biográfico humano. Nós vimos que o próprio eu que
Descartes ao qual ele se refere nas “Meditações Metafísicas”, ele
começa a tratá-lo como se fosse o seu eu real, o seu eu biográfico que
em tal data fez uma experiência cognitiva assim, assim, assim, mas que
daqui a pouco este eu se converte apenas num sujeito de proposições
lógicas das quais ele vai tirando consequências.
Então, o objeto das ciências da natureza não corresponde à
natureza objetiva concreta e o eu do filósofo também não corresponde
ao eu concreto real. Isso é a mesma coisa que dizer que a vida real,
quer dizer, o universo da experiência humana é totalmente expelido do
domínio das ciências e em troca você tem uma série de especulações
filosóficas sobre o eu, de um lado, e uma série de comparações e
medições matemáticas da natureza, do outro. Claro que alguma coisa
por uma via ou por outra sempre se obtém.
Nós, quando estudamos a filosofia de Fichte, vimos que desse
exame do eu alguma coisa ele tira de real. Do mesmo modo não se
pode negar que as ciências conquistaram algo, porém o elemento que
constituía a principal força da cultura medieval que era a integração do
sujeito real no universo do conhecimento, ou seja, o universo de que se
tratava nas universidades, do qual tratavam os letrado e cientistas, era
o mesmo no qual as pessoas comuns sentiam que viviam. Você vai ver a
concepção do mundo que tem um Duns Scot, ou que tem um Tomás de
Aquino, ela não é substantivamente diferente daquela que tem um
14
carroceiro ou um lavrador. Ela é apenas mais elaborada
intelectualmente, porém a partir da Renascença, a partir de Descartes,
o universo dos cientistas, dos sábios, vai ficando cada vez mais
diferente do mundo onde o cidadão comum acredita viver, e isso
significa que a aquisição da ciência, a aquisição do “conhecimento
superior” (entre aspas) nesse período só se pode fazer também à custa
de uma ruptura do indivíduo com ele mesmo, que aí justamente que é
a origem do fenômeno que eu denomino [de] a paralaxe.
Quer dizer que o universo sobre o qual o filósofo ou o cientista
teoriza não é exatamente o universo no qual ele está vivendo, eles
podem estar totalmente deslocados um em relação ao outro, portanto
não há como confundir o fenômeno da paralaxe com uma simples
duplicidade de discurso ou duplicidade moral, não é nada disso que eu
estou falando, estou falando de um processo cultural trágico e não de
alguma falsidade ou hipocrisia individual. É claro que não é disso que
está se tratando. De fato não existe nenhum meio de colar as duas
partes, se você não pode colar o eu, a substância pensante e a
substância extensa, então, também não tem nenhum jeito de você
colar por outro lado o mundo da sua experiência real com o universo do
pensamento e das ciências.
E Schelling percebeu muito bem isto, e ele notou que houve um
pensador de transição entre a Idade Média e o Tempo Moderno que foi
o Giordano Bruno, notou que o Giordano Bruno de certo modo tinha
percebido a necessidade de restaurar um senso de unidade, uma vez
perdido aquele universo simbólico-alquímico medieval, tinha que achar
uma outra maneira de você restaurar o senso de unidade da realidade.
É evidente que se os contemporâneos de Giordano Bruno tivessem
percebido isso jamais o teriam queimado porque ele estava numa linha
15
que na verdade ia favorecer a cosmovisão antiga sobre a moderna. A
vida de Giordano Bruno é uma coleção de equívocos, e a própria
condenação dele é um equívoco brutal, mas a imagem que se forma
dele hoje como de um mártir da ciência moderna é totalmente errada.
Primeiro que Giordano Bruno jamais se interessou pelas ciências
modernas, ele só se interessava por ciências antigas, filologia, história,
gramática, etc., etc., ele não entendia nada de matemática, nem de
física, coisa nenhuma. Segundo, ele acreditava na possibilidade de uma
especulação imaginativa, ele achava que a individualidade humana por
ser ela mesma uma expressão ou um resultado de um certo processo
cósmico, ela jamais se desligava desse processo e tinha de algum modo
alguma via de acesso à compreensão do processo todo; não a
compreensão exata, mas pelo menos uma compreensão imaginativa,
então ele achava que através da imaginação nós podemos de algum
modo traçar uma espécie de história cósmica. Para fazer isso, ele
acreditava que no próprio mundo material existe um certo princípio
espiritual ou psíquico que lhe é inerente, essa doutrina veio a se
chamar hilozoísmo, hil(e/o) quer dizer a matéria no sentido mais
grosseiro da coisa, e zo(o) é animal vivente, quer dizer, toda matéria é
vivente de algum modo. Mas o fato é que a ideia de Bruno não foi para
frente, ninguém ligou muito para isso.
Então, já na etapa seguinte, depois de Descartes, Espinosa tenta
restaurar a ideia de uma unidade reduzindo tudo à noção de Deus: só
existe uma única substância, essa substância é Deus, e todas as
manifestações e fenômenos não são senão propriedades ou acidentes
de Deus, de algum modo. Porém diz Schelling que Espinosa opera essa
redução à unidade por uma maneira puramente mecânica e
conceptual, quer dizer, fazendo Deus como se fosse um conceito mais
16
primitivo do qual os outros conceitos vão sendo deduzidos, vão sendo
extraídos por mera dedução, como se a estrutura da realidade fosse a
estrutura de uma dedução silogística: Deus é a primeira premissa e as
outras entidades vão sendo deduzidas como se fossem as suas
substâncias. Schelling com razão considera esta explicação demasiado
mecânica para poder ser verdadeira.
Falhada a tentativa de Espinosa de reunir as partes que
Descartes havia separado, na etapa seguinte Leibniz também tenta
resolver o mesmo problema, mas através da supressão de um dos
polos. Leibniz reduz todo o mundo corporal, o mundo das substâncias
corporais, a representações que acontecem dentro de uma mônada. A
mônada é essencialmente uma alma, quer dizer, é uma alma vivente
que se conhece a si mesma e que tem dentro de si um análogo ou uma
imagem de tudo o mais. Ou seja, tudo aquilo que existe, toda
individualidade, ela tem dentro de si, não somente as suas próprias
características, mas tem as diferenças que a separam de todas as
demais; mas essas diferenças fazem parte dele, então, isso quer dizer
que cada uma tem dentro de si a imagem de todas as outras. Mas, ora,
se todas têm a imagem de todas as outras, é fácil você perceber que
todas se constituem somente de imagens. Ou seja, não há uma
realidade externa fora da mônada, fora da consciência da mônada, por
assim dizer, para ser conhecida, porque tudo o que ela vai conhecer é
uma outra mônada para a qual ela também é uma imagem. No fim tudo
se resume em representações ou em imagens. Eu estou usando a
palavra “imagem” imperfeitamente é claro, mas é só para dar uma ideia
aproximada do que é. Quer dizer, duas entidades corpóreas quando se
aproximam não se aproximam como dois corpos no espaço, mas como
dois conjuntos de representações que se conhecem um ao outro, e até
17
a corporalidade que o outro ser me apresenta não é senão uma parte
da minha representação, quer dizer, eu tenho uma representação da
corporalidade dele, assim como ele tem uma da minha. Então, isso quer
dizer que a rigor não é necessária a distinção entre a corporalidade e a
representação, o mundo psíquico; sobra só o mundo psíquico. Porque a
corporalidade é somente um dado a mais que as mônadas transmitem
umas às outras. É evidente, Leibniz não nega a existência da
corporalidade, mas ele afirma que ela existe sobretudo como
representação.
Desde que nós chegamos a este ponto em que você tem por um
lado esta redução de tudo à subjetividade das mônadas com Leibniz e
do outro lado você tem a hipótese hilozoísta herdada de Giordano
Bruno, ou seja, ou você atribui à alma o primado sobre a matéria,
porque a matéria passa a ser apenas um aspecto conhecido pela alma,
ou você reduz a alma a uma propriedade da matéria como fazia o
hilozoísmo.
Quando as coisas estavam assim, no instante seguinte é
evidente que esta ruptura tinha que se agravar, ainda mais quando por
um lado aparece toda essa escola materialista francesa com Durbach,
D'Alembert, etc., que afirma rigorosamente que tudo o que existe é a
matéria considerada na sua corporalidade da qual o espírito ou mente
não é senão uma função como qualquer outra, quer dizer, assim como
a matéria tem peso, gravidade, eletromagnetismo, etc., ela produz
também a consciência ou por uma reação elétrica ou como uma
espécie de secreção. Então, por um lado tem todo esse materialismo
bronco da filosofia francesa e em oposição a isso você tem o total
subjetivismo do Fichte que nós já estudamos. Quer dizer, de um lado
você tem os camaradas que dizem que até o eu subjetivo humano é
18
uma secreção da matéria e do outro o sujeito diz: “Olha, não existe
nada, só existe o eu”.
Idealização do cristianismo
É claro que Schelling quando vê as coisas assim diz: “É claro que
não pode ficar assim, é uma situação absolutamente catastrófica”. E ele
quando constata isso, ele tem a ideia de que isto não é somente uma
catástrofe no sentido intelectual e filosófico, mas uma catástrofe
civilizacional, quer dizer que isso abarca uma civilização inteira e que
sobretudo isto representa um total esvaziamento da própria ideia de
Deus. Ele em certo momento diz que a filosofia dos últimos séculos não
fez outra coisa senão tentar idealizar e portanto esvaziar o cristianismo.
Quer dizer que Deus vai sendo reduzido cada vez mais a uma ideia e
esta ideia em última análise acaba se identificando com o próprio eu;
você vai ver que a ideia de eu e a ideia de Deus no fim das contas são a
mesma. E ele diz: “Olha, isso aí não funciona porque ninguém vai
conseguir me explicar como é que esta ideia produziu todas as coisas
materiais, este imenso universo material que nos cerca com seres vivos,
etc., não é possível uma transição entre uma coisa e outra, de maneira
que em algum ponto nós tomamos a pista errada e nós já não
entendemos mais... só entendemos Deus como ideia ou como
autoconsciência, mas não o entendemos como força, como poder
gerador”.
Este esvaziamento não deixa de ter suas consequências
histórico-políticas de enorme gravidade dentro das quais nós vivemos
ainda. Porque se Deus fica reduzido a uma ideia, não há outra maneira
possível de você se relacionar com ele a não ser filosoficamente. Isso
19
quer dizer que o Deus da Bíblia desaparece e entra o Deus dos filósofos.
E o Deus dos filósofos sendo um conceito manejável, ele pode
perfeitamente se reduzir no fim das contas à própria consciência
filosófica que o examina, quer dizer, não é mais possível você distinguir
entre o que é a consciência do filósofo e esse deus-conceito que o
filósofo de algum modo abarca e domina. Daí a confusão criada por
Hegel entre o seu processo cognitivo, o processo da sua dialética
interna e o processo da criação da realidade e o processo histórico
como um todo, que nós já estudamos aqui. Então, também não
sabemos aqui em que medida houve nisso da parte de Hegel alguma
sacanagem e em que medida ele foi apenas uma vítima desta catástrofe
intelectual que já vinha desde dois séculos antes.
Quando Hegel chega à conclusão de que o Estado já havia
absorvido tão bem o cristianismo que não era mais preciso Igreja
porque o Estado se incorporava agora a função de educador e de guia
espiritual da humanidade e com essa ideia ele gera todo um cortejo de
consequências quase apocalípticas que nós vemos nos séculos XIX e XX,
isto não é senão uma consequência deste processo assinalado por
Schelling da idealização do cristianismo. Ele sabia que Deus ia [se]
transformar numa ideia, esta ideia é filosoficamente manejável e por
outro lado como a própria ideia de natureza também havia se
dessubstancializado e se transformado apenas num conjunto de
esquemas matemáticos, então fica tudo muito fácil para um filósofo e
aquela impressão de onipotência que Hegel transmite às vezes é
totalmente ilusória, mas é fácil de você compreender como é que ele
caiu nisto, justamente porque se Deus tinha se transformado numa
espécie de eu e a natureza tinha se transformado num conjunto de
esquemas matemáticos domináveis pela inteligência humana, então,
20
fica tudo muito fácil: você dentro do seu tabuleiro filosófico, você cria o
mundo, você inventa todo o processo histórico e você ao mesmo tempo
se coloca na origem do processo e no fim do processo e chega a um
ponto em que não é mais possível você saber se Hegel está falando dele
mesmo ou do próprio Deus, eles se tornaram indiscerníveis.
E Schelling que havia começado junto com Hegel percebe o
buraco em que eles estão entrando e de imediato ele não sabe como
sai disto. Eu não conheço em detalhe a biografia de Schelling, mas eu
tenho a impressão de que foi diante desta dificuldade, e não só por
problemas pessoais que teve na universidade, que ele se retira do
ensino, eu acho que foram dificuldades intelectuais mesmo, ele
percebeu que estava com um abacaxi monstro na mão e ele não sabe
como resolver, então precisava de um tempo para pensar.
Deus como visão bárbara
Diz ele que esse cristianismo dessubstancializado havia perdido
o que ele chama de vivência, a experiência bárbara de Deus, que é de
Deus como força. Deus como poder, que está presente na própria
natureza física. Deus criador da natureza.
Você veja que uma vez o Bruno Tolentino me disse que se você
estiver no deserto e furar o pneu do seu carro não adianta você rezar
que Deus não vai encher o pneu. E eu cá comigo pensei: Para que me
serve um Deus que nem mesmo enche pneu? Então, ao mesmo tempo
eu comecei a ter contato com pessoas de igrejas evangélicas e eu vi que
elas rezavam para que Deus enchesse pneu, sim; aquela coisa material
e imediata; e aquilo foi um choque para a minha cabeça porque isso era
o que o Schelling chamava [de] a visão bárbara, eles...
21
(Aluno)  Por que eles chamavam isso de visão bárbara? Por que
o termo “bárbaro”?
É um modo de dizer, porque diz que a civilização do Ocidente foi
se tornando muito refinada e idealizando e esvaziando o cristianismo, e
então perdeu o que ele chamava [de] visão bárbara, seria a visão
medieval.
(Aluno)  Aí é um termo colocado entre aspas...
É claro, entre aspas, é evidente. É uma expressão apenas. Quer
dizer, os bárbaros sabiam que Deus é força e poder, agora nós
pensamos que Deus é o Hegel... é o Hegel ou é um conceito.
“Eu” relativo
Então, ele observa na filosofia desde Descartes até Hegel uma
progressiva fuga das realidades da vida, uma fuga da natureza, uma
fuga da estrutura da realidade na qual nós estamos, dentro da qual nós
estamos. E inventa uma estratégia para recuperar isto. Por isso que eu
acho errado colocá-lo como idealista, porque a primeira coisa que ele
fala é o contrário do que Fichte fala. A primeira coisa é a seguinte: não
existe eu nenhum, ele diz, só o que existe é o absoluto e infinito.
Quando eu digo que eu penso, ou eu estou pensando fora deste infinito
e fora deste absoluto, e portanto sou eu mesmo o próprio infinito e
absoluto, ou na verdade não sou eu que estou pensando, é Ele que está
pensando; quer dizer, tudo o que existe é um atributo, um acidente do
próprio Deus, nada é concebível fora Dele. Portanto, ele diz que não é
possível você dizer que uma pessoa crê em Deus; como se Deus
pudesse ser uma ideia na cabeça de uma pessoa. Ele diz [que] é o
contrário, Deus é que é o princípio inicial e o que vem depois é apenas
22
uma expressão Dele. Então, se você diz que uma pessoa crê em Deus,
você está querendo dizer que sob certo aspecto é Deus que está
acreditando nele mesmo.
Agora é fácil você perceber que toda a tradição filosófica, o que
ela busca? Ela busca saber qual é a substância fundamental ou, dito de
outro modo, qual é o fator absoluto do qual todos os relativos
emergem de algum modo. A briga é sempre essa, é sempre isso que
está se procurando.
E Schelling vê que o eu não pode ser de maneira alguma um
ponto de partida. Ele diz [que] o eu será no máximo aquilo que dizia
Giordano Bruno, ele é a crista de uma onda dento de um oceano. Quer
dizer, você não é o primeiro sujeito que nasceu nem é o último que vai
existir, você é apenas mais um que, ao exercer as funções da sua
consciência, está apenas prosseguindo, é um processo cósmico que já
vem aí desde bilhões de anos antes de você. Então, como tomar este eu
como centro ou como princípio? O eu humano, a primeira obrigação
que ele tem é saber que ele não é autofundante, que ele é apenas uma
aparência dentro do processo cósmico, ou, ainda para usar a imagem
de Giordano Bruno, ele é apenas uma gotinha dentro de um oceano.
(Aluno)  Nem em forma analógica, não poderia ser pego?
Não! Como princípio inicial, o eu não funciona de jeito nenhum.
Se o eu pode ser o princípio inicial então ele é o absoluto, ele é
autofundante, ele é o começo de tudo. Quer dizer, o eu não pode ser
admitido como princípio nem mesmo cognitivamente. Isto quer dizer
que por baixo deste eu existe uma multidão de realidades. E na hora
em que o eu fala consigo mesmo, ele está querendo dizer o quê? Que
ele possui uma razão, que ele possui uma consciência, ou ao contrário,
que uma consciência e uma razão lhe foram dadas? Foi ele que se deu
23
isto? Não é isso? Schelling rompe drasticamente com este solipsismo de
toda filosofia moderna. Então, eu não vejo como situá-lo dentro do
idealismo. Isso aí não é idealismo, isso é outra coisa.
(Aluno)  Estou pensando em algumas técnicas de meditação
que parece que apontam para essa consciência de si...
Mas a consciência de si, se você pegar, por exemplo, a
sequência de meditações da escola vedantina, ela vai partir de uma
pergunta sobre o eu. Ela vai perguntar: o que ou quem sou eu? E você
vai tentar então se autodefinir. Na medida em que você vai
prosseguindo nesta investigação você percebe que você não tem
nenhuma outra substância a não ser a própria substância do absoluto,
ou seja, não é que você é Ele, mas Ele é você, quer dizer, a sua
realidade é a Dele; e não uma realidade própria, você não tem uma
realidade própria que você possa dizer: “eu sou isto”! Para você ser o
que quer que seja você só pode ser dentro do ser. E quem é o ser? É
você?
É por isso que Schelling diz: “É errado dizer que nós temos uma
razão, é a razão que nos tem. É a razão divina que nos tem!”
Então, você veja, isso aqui escapa tão formidavelmente do
universo da época que eu não vejo como encaixar Schelling dentro do
idealismo alemão. Ele não é idealismo alemão coisíssima nenhuma, ele
começou como idealista alemão, depois ele virou um outro negócio que
eu não sei o que é, mas que se parece muito mais com escola vedantina
ou coisa assim. E o próprio passo inicial dele; “Olha, não existe eu
nenhum!” Bom, então, acabou! Vê a distância que ele foi parar do
“penso, logo existo!” e a distância que ele foi parar de Fichte e também
de Hegel.
24
(Aluno)  Parece muito um pouco com o Santo Agostinho em que
ele diz que se eu existo alguma coisa deve ter me criado.
Mas note bem que ele não diz nem isto, ele é muito mais
radical, *ele+ fala: “Não, não existe nada, só existe o absoluto.” E o que
quer que exista só pode ser concebido em função Dele, ou como um
aspecto ou manifestação, ou irradiação, ou criação, alguma coisa assim.
Ele elimina três séculos de discussões e volta ao primeiro princípio. E
diz: o grande problema da filosofia, o problema do filósofo, já que o
filósofo é apenas uma ponta, a crista de uma onda num oceano, é ele
saber como é que este oceano veio a gerá-lo, quer dizer, como é que
esta realidade na qual nós vivemos pessoalmente emerge da sua
origem no absoluto. Então, é o processo. O grande problema se torna o
problema da cosmogonia [corpo de doutrinas, princípios (religiosos,
míticos ou científicos) que se ocupa em explicar a origem, o princípio do
universo; cosmogênese], da origem do cosmos e como que o absoluto
veio se manifestando através de uma pluralidade de canais e como
esses canais se interligam de algum modo.
Necessidade e liberdade
Ele percebe, por exemplo, que o mundo da natureza é um
mundo que é regido pela necessidade. Não precisa ser uma
necessidade absoluta, hoje nós concebemos até em termos de
probabilismo. Mas de qualquer modo, o que é uma probabilidade?
Probabilidade é uma necessidade limitada, quantificável, em última
análise.
E que ele percebe por outro lado que o eu humano não pode se
compreender em termos de necessidade porque como bem tinha visto
25
Fichte, o eu se define pela sua liberdade de se autocolocar. Ora, nós
vemos que nós temos esta liberdade de nos autocolocar, e nesse ponto
o conjunto da filosofia de Fichte pode ser absorvido como se fosse um
parágrafo da filosofia de Schelling, quer dizer, tudo o que Fichte disse
está certo, só que não é tudo, tem muito mais coisa em volta. De certo
modo ele tem que inverter esse Fichte e colocá-lo de cabeça para baixo,
ou ele estava de cabeça para baixo e tem que ser posto de novo sobre
os pés.
Ele diz [que] se por um lado existe o mundo da necessidade que
é o mundo da natureza e existe o mundo da liberdade, é porque estes
dois são aspectos do absoluto. Isso quer dizer que nós podemos
compreender o mundo existente como uma expressão de um absoluto
que é ao mesmo tempo necessidade e liberdade. Isso quer dizer que
necessidade e liberdade são apenas aspectos que se diferenciam no
curso da manifestação de Deus no mundo.
(Aluno)  Temporal?
É! Espaço-temporal!
Mas é evidente que se existe esta diferenciação é porque esses
dois aspectos não são tão heterogêneos assim; ou seja, se fossem duas
manifestações heterogêneas, uma vai para um lado, a outra vai para
outro e [se] não tivessem uma raiz comum elas não poderiam se
reconhecer, então, nós ficaríamos exatamente como na situação de
Descartes, você tem um eu inespacial colocado perante um universo de
entidades espaciais que também não correspondem às entidades
materiais da natureza, mas que são apenas como se fossem formas
geométricas, então estaríamos de novo no dualismo cartesiano. Ele diz:
“Não, tem que haver um ponto de reconhecimento”. Isso quer dizer
que você encontrará algo desta necessidade material dentro da própria
26
dialética formadora do eu humano e encontrará algo da liberdade
interior do eu na própria natureza, apenas em doses diferentes, mais
ou menos como nós veríamos nesse símbolo do yin-yang em que a
parte preta tem uma bolinha branca e a parte branca de uma bolinha
preta.
Isso quer dizer que a natureza para Schelling não é constituída
somente de extensão, ela é a expressão da necessidade dentro da qual
deve haver um elemento de liberdade com o qual o eu humano possa
dialogar ou entrar em contato de algum modo.
As consequências disso, só do ponto de vista científico, são
absolutamente formidáveis, porque a corporalidade aí deixa de ser
corporalidade em sentido estrito, num sentido excludente, mas aí se
abre a porta até para reconquistar algo da antiga cosmovisão medieval
no qual as entidades corporais significam algo e dizem algo. Nesse
sentido, por exemplo, nós podemos conceber, e essa é uma ideia que
me encanta particularmente, a ideia de que o mundo material em torno
é um depósito de conhecimentos, ele é uma espécie de discurso latente
no sentido de que, por exemplo, um mineralogista pode saber muito
sobre os minerais, mas os minerais sabem mais ainda. Quer dizer, o
maior depósito de conhecimento mineralógico são os minerais. Então,
eles podem ser decodificados, e na hora em que são decodificados, eles
são integrados na liberdade humana sob a forma de conhecimento.
27
Faz parte da filosofia de Schelling nesse período, por um lado a
doutrina das idades do mundo que é a doutrina do que ele chama [de]
as potências de Deus, quer dizer, como é que da totalidade absoluta
surgem essas diferenciações de necessidade, liberdade, etc., etc., até
todas elas tendo as suas contradições internas, até chegar na liberdade
humana que seria o seu coroamento do sistema e que não sendo uma
liberdade absoluta, mas uma liberdade que é condicionada ao universo
material em que nós estamos, é também o lugar onde o reencontro de
liberdade e necessidade é possível sob forma de consciência humana.
Mitologia e revelação
E o outro elemento importante que ele desenvolve nesse
período é a Filosofia da Mitologia e [a Filosofia] da Revelação. Você veja
que até então a ideia que se tinha da mitologia ou era de produtos de
uma imaginação infantil que tentava pensar sobre o mundo sob formas
toscas, e que criava imagens para suprir, para tapar os buracos da sua
ignorância, ou era considerada como uma espécie de filosofia primitiva,
quer dizer, que tem um conteúdo filosófico que poderia ser retirado
dali de dentro. E Schelling repara que não pode ser nem uma coisa nem
outra; ele diz que as mitologias em primeiro lugar são realidades, quer
dizer, são coisas que aconteceram, que existem historicamente, e que
devem ter uma função no próprio desenvolvimento histórico, ou seja,
elas fazem parte, elas já são a sucessão das revelações, só podem ser
compreendidas dentro da sequência da manifestação das potências
divinas.
Elas fazem parte da expressão das potências divinas. Então, isso
não quer dizer que as maneiras anteriores de ver a mitologia estavam
28
erradas, as mitologias podem ser vistas também como produtos da
imaginação humana, como criações culturais, etc., etc.. Só que essas
explicações só abrangem certos aspectos, elas não bastam para explicar
o conjunto; mas quando você as vê como parte do processo de autorevelação de Deus através da sucessão das potências, então, você
obtém um outro patamar, um outro nível de abordagem no qual as
explicações anteriores podem agora ser integradas. Quer dizer que pelo
método de Schelling, cada nova mitologia tem evidentemente um
conteúdo revelatório que é importante para a estruturação da própria
humanidade, mas esse conteúdo revelatório aparece também como um
produto cultural, o qual aparece também como fruto dos conflitos
ideológicos da época, o qual aparece também como fruto da
imaginação de alguns sujeitos que pensaram aquilo; então, você pode
encaixar esses vários níveis analogicamente.
Não é necessário dizer que é com isto aí Schelling inaugura toda
a possibilidade das ciências da religião comparada, e também é assim
que ele explica, por exemplo, que elementos de uma mitologia de mil
ou dois mil anos atrás, ou cinco mil, possam ter uma importância para o
autoconhecimento do homem contemporâneo. Quer dizer, um livro
que eu recomendo para vocês é o livro do Paul Diel, ou seja, O
Simbolismo na Mitologia Grega. O Paul Diel é um psicólogo suíço e ele
parte da ideia de que na mitologia grega você tem uma representação
completa da psique humana, todos os elementos estruturais da psique
estão ali presentes, então, você sempre pode decodificar a psique de
fulano ou fulano em termos de mitologia grega. Esta possibilidade
simplesmente não existiria se não fosse isso que Schelling disse, isto é,
se as mitologias não fossem etapas de uma progressiva auto-revelação
29
da própria estrutura da realidade que se torna transparente através
daqueles símbolos.
A mitologia não é um modo de transmitir algo, ela é o próprio
algo que está sendo transmitido, ela é o próprio conteúdo que está
sendo transmitido e que só se transformará em conteúdo diferenciado
muito mais tarde. Isso é o mesmo que dizer que Homero, por exemplo,
quando contava os seus mitos, ele não precisava entendê-los, a não ser
mitologicamente. Nós é que extraímos desse mito um outro significado,
uma outra clave intelectual, porém ele não precisava entender aquilo
numa linguagem extra-mitológica, não, ele tinha somente aquela
linguagem. Então, daí surge a ideia que depois se tornou até arroz-comfeijão que é do mito fundador; quer dizer que as civilizações todas
começam a partir de um mito originário, esse mito originário
estabelece uma certa área de possibilidades humanas que em seguida
são realizadas temporalmente e que gradualmente vão tomando
consciência de si próprias.
Para você ter uma ideia da profundidade dessa ideia de
Schelling, você pode examinar, por exemplo, o livro do Northrop Frye
chamado “O Grande Código”, no qual ele demonstra que todos os
enredos da literatura ocidental estavam na Bíblia. Quer dizer, ali você
tem um mito originário, ou seja, tudo o que vocês viveram, pensaram e
inteligiram durante dois mil anos já estava dado compactamente aqui.
Isso seria absolutamente impossível se este mito fundador fosse apenas
uma maneira de expressão, se ele não fosse um elemento estruturante
da própria ordem da realidade. E é por isso que ele vê que esses mitos
não são uma revelação de alguma coisa, não, eles são a própria
revelação; eles inauguram um campo de possibilidades; não é que
30
existe um conteúdo que o mito transmite, não, ele é o conteúdo, ele é a
forma e o conteúdo ao mesmo tempo.
(Aluno)  Se tudo isso é uma auto-revelação, porque que Deus
precisa se auto-revelar?
Como é?
(Aluno)  Por que Deus precisa se auto-revelar, seja pelos mitos,
seja como for?
Quem disse que Ele precisa? Se Nele a necessidade e a liberdade
estão unidas, ou seja, as duas colunas, a misericórdia e a justiça
(compaixão e rigor) estão perfeitamente unidas, quer dizer que aquilo
que é inteiramente exato e absolutamente inelutável e inflexível em
Deus é ao mesmo tempo um ato de liberdade, isso significa que Deus
quer tudo aquilo que Ele quer, ou seja, e que Ele não poderia querer de
outro modo, não porque Ele esteja preso a isto, mas porque esta é a
única maneira perfeitamente livre e perfeitamente boa que Ele poderia
agir, ou seja, a única compatível com a Sua natureza de Deus. A própria
pergunta: “Por que Deus fez isto?” Você percebe que dentro de uma
perspectiva Schellingiana a própria pergunta está muito mal colocada.
O porquê de qualquer coisa, qualquer pergunta “por quê?” será
respondida em última análise com “a vontade de Deus”. Ela não tem
um outro porquê além de si mesma.
(Aluno)  É o que é?
Depende de em que plano você entende isto. Se você colocar:
“Não, mas é uma vontade arbitrária!” Eu digo: não, ele está dizendo
que não é arbitrária porque não poderia ser de outro modo. Então,
Deus atende a uma necessidade? Não a uma necessidade externa à Sua
própria natureza de Deus. Agora, é claro que noventa e nove por cento
das confusões teológicas surgem do fato de que ao tentar raciocinar
31
sobre o absoluto, nós o decompomos novamente em necessidade e
liberdade e queremos explicá-Lo ou por uma ou pela outra, é
exatamente isso que Schelling está dizendo que não dá para fazer.
(Aluno)  Essa análise que o senhor fez sobre os mitos se aplica
apenas aos mitos antigos ou também se aplicaria a uma mitologia
construída como a do...?
Não! Só se aplicam a mitologias que fundam civilizações. Na
verdade, não são todas as mitologias que nós conhecemos que são
assim. Agora, produtos da ficção, lendas modernas, não, esses têm
outra função.
Schelling não diz isso, mas digo eu, que existem mitos que
aparecem sob a forma de histórias contadas, outros que aparecem sob
a forma de histórias vividas que depois são contadas. Existem mitos
imaginários, por exemplo, a mitologia grega. Você não pode dizer que
Zeus de fato fez isso ou fez aquilo, mas aquilo é um conjunto de
narrativas e a narrativa como tal é uma presença histórica. E tem outros
casos como, por exemplo, vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Não! Primeiro aconteceu, depois foi narrado.
Esta distinção é que mostra o seguinte: os mitos deste último
tipo têm uma função um pouco diferente da dos outros; e são esses os
que constituem aquilo que nós hoje chamamos [de] religião. Isto é a
mesma coisa que dizer que a religião greco-romana não era bem uma
religião, era uma outra coisa; era um conjunto de instituições sacras
baseado num universo imaginário que fundou aquela civilização.
Porém, quando tem a história, por exemplo, de Moisés, ou a história de
Jesus Cristo, ou a história do Buda; isso aí não, essas coisas
aconteceram realmente; e aqueles acontecimentos temporalmente
localizados é que inauguram uma possibilidade.
32
(Aluno)  Sobre essa questão desses mitos que são fundantes,
eles também carregam uma estética que os acompanham o tempo
todo. O senhor não acha? E depois quando ela se acaba, essa estética
some também e surge uma nova? Ou isso não acontece?
Não! Isso também acontece. Mas você veja que aí é uma das
possibilidades humanas mais extraordinárias que é a possibilidade da
arte, que é a possibilidade de o indivíduo participar deste processo.
Quer dizer que o artista de certo modo também está inaugurando
possibilidades, ele só não as cria, ele as transmuta a partir da sua
experiência pessoal e da cultura adquirida, etc., etc., mas ele inaugura
certas possibilidades que são ao mesmo tempo possibilidades de
intelecção e possibilidades de existência. Você pode ver que existem
muitas modalidades de vida humana, tipos de vida humana, tipos de
biografia humana que só se tornam possíveis a partir de certos
momentos em que certas formas foram geradas por certos artistas. Aí
aquilo se incorpora na civilização e abre possibilidades para as gerações
seguintes. E Schelling dedica especial atenção a este ponto.
Então e de certo modo ao particular deste processo da
revelação das potências, esta seria a forma mais completa de
conhecimento que você poderia ter, porque você está agindo dentro do
processo, você não está se colocando como um observador filosófico
coloca o mundo entre parênteses como se fosse numa tela e o olha,
mas você conscientemente está participando do processo da revelação.
E nesse sentido, Schelling tem uma frase que ele diz que um sujeito que
conseguisse escrever sua autobiografia com todos os componentes da
sua vida, teria escrito a história do universo; porque tudo estava
presente ali. Daí ele não pode conceber que haja nele algo que esteja
separado como a crista da onda não está separada do oceano, ela de
33
certo modo é indiscernível, ela só consegue se discernir a si mesma
como uma espécie de ponto de vista, quer dizer, como se cada um de
nós fosse um ponto de vista, mas esse ponto de vista não existe
sozinho, ele só existe na articulação de infinitos outros pontos de vista
que compõem o tudo.
Panorama do pensamento de Schelling
Eis aí o panorama do pensamento de Schelling, a análise
histórica por que ele faz a recolocação do fundamento, o retorno à
ideia do absoluto, a eliminação do primado do eu e portanto a
eliminação de todo o idealismo moderno, a doutrina da cosmogonia, a
doutrina das revelações sucessivas, a doutrina da mitologia e da arte, e
a doutrina do que ele chama [de] o diálogo anamnético, quer dizer, é o
indivíduo que dialogando com o todo dentro do qual ele está ele se
recorda da sua origem dentro do processo da revelação. Então, você vê
que é um negócio de uma grandiosidade assim formidável e sobretudo
de uma exatidão muito grande. Quer dizer, a filosofia de Schelling tem
um valor científico mesmo, ela é uma espécie de restauração da
estrutura da realidade. E cria a possibilidade de uma infinidade de
ciência que só começaram a se desenvolver a partir daí. A religião
comparada simplesmente não existiria, a religião comparada, a
mitologia comparada, tudo isto sem Schelling seria impossível. Você
pega obras como Mircea Eliade, por exemplo, Mircea Eliade deve tudo
a Schelling. Quer ele declare ou não declare.
(Aluno)  Ainda sobre o plano de mito como é que tem esses dois
tipos de mito, os simplesmente contados e os que aconteceram e depois
foram contados?
34
Mas essa é uma distinção que eu estou fazendo e eu estou
trabalhando em cima dela.
(Aluno)  Como é que a gente encaixa aí um outro tipo de mito
que me parece diferente desses dois, eu não sei se se pode chamar o
marxismo de mito?
Não, isso não é um mito de maneira nenhuma.
(Aluno)  Mas ele não funda uma série de possibilidades
civilizacionais?
Não, você pode colocá-lo como uma criação artística, mas não
como um mito fundador, quer dizer, ele é um artista que trabalha
dentro disso aí, dá forma a determinadas possibilidades e elas abrem
outras possibilidades de vida humana para uma série de gerações
adiante. Mas não é um mito fundador. O mito fundador não pode fugir
da estrutura da realidade.
(Aluno)  É isso que eu ia perguntar...
Você pode criar uma possibilidade falsa, uma possibilidade
fictícia que será verdadeira enquanto vivida; assim como o delírio do
maluco, o delírio de um paranoico, ele é falso no seu conteúdo, mas ele
é real biograficamente, quer dizer, o sujeito está delirando mesmo.
Schelling na medida em que unifica os elementos que a filosofia
moderna havia separado, também unifica historicamente o
desenvolvimento do Ocidente, quer dizer que aquilo que durante dois
ou três séculos parecia ter rompido, nele não tem mais, você tem uma
continuidade de pensamento desde a Antiguidade até hoje, ele é o
sujeito que costura tudo.
(Aluno)  Mas faz à revelia...
Perfeitamente!
35
Agora, existe uma série de dificuldades que aparecem na
filosofia de Schelling em função de que ele estava tentando restaurar
isso numa época na qual isso parecia totalmente estranho, ninguém
entendia uma palavra do que esse homem estava dizendo, e ele
também às vezes não tem os termos apropriados. Então, a
possibilidade de mal entendido dessa filosofia é enorme, tanto que foi
mal entendido mesmo. E quem não queria entender mal, o que fazia?
Esquecia, bota na gaveta e deixa para o século seguinte, como de fato
ficou.
Você ainda vai ver manuais de história da filosofia que dizem:
“não, Schelhng é um filósofo panteísta”, ou “é um gnóstico”, etc. Eu
falo que nenhuma dessas classificações cabem inteiramente, pode ter
um pouquinho desses elementos todos, usados como elemento
simbólico para tentar explicar alguma coisa que ele sendo o primeiro a
perceber isso depois de três séculos de esquecimento, você não vai
querer que o sujeito tenha a explicação na ponta da língua. Você não
pode esquecer que quando surge, por exemplo, São Tomás de Aquino
que vem tudo explicadinho, ali atrás você tinha três séculos de
aprimoramento do instrumental lógico e linguístico para isto, e
Schelling não tinha nada disto, ele está tentando dizer uma coisa que há
muito tempo ninguém sabia e que não era exatamente a mesma que
tinham dito antes. Você vê, por exemplo, esse aspecto cosmogônico,
essa coisa da cosmogonia, nem mesmo os escolásticos tinham se
interessado por isto, eles se contentavam com a cosmogonia simbólica
e pronto, que é como está na Bíblia e está bem. Agora, como é que nós
vamos dizer isto aí? Como é que isto aconteceu? O que veio antes? O
que veio depois? Não tem linguagem para isso!
36
A gente não tem a menor dúvida, quer dizer, depois de
Aristóteles e São Tomás, os maiores dos filósofos são Leibniz e
Schelling, não tem outra coisa, não tem nada desse tamanho, você
comparar um cara desses com Hegel, não dá, não dá nem para
começar, Hegel é uma vírgula no discurso de Schelling. Ele pega todo
aquele mundo de Hegel e ele diz: “É! Você tem razão, só que tem isso
que veio antes e tem aquilo que veio depois”. E Fichte também, pega o
antes e pega o depois. E Kant também. Todo mundo, todos os filósofos
até Schelling, todos podem ser integrados dentro da filosofia dele,
Giordano Bruno e Descartes, etc., cada um tem o seu pedaço de razão,
mas continua e tem mais isto e mais aquilo e mais aquilo e mais aquilo
outro. Quer dizer, eles são como se fossem superfícies que refletem
aspectos, mas o mapa do labirinto só Schelling que tem. Porque eu digo
que nós ainda vivemos dentro da filosofia dele, nós não somos capazes
de vê-la de fora.
(Aluno)  Então, pode-se dizer que o drama de todos esses
filósofos, Hegel, Fichte, Kant, Descartes, e tal não é aquilo que...
Eles não eram suficientemente inteligentes para tratar do
assunto que eles estavam tratando.
(Aluno)  Ou seja, não é o que disseram, é o que eles não
disseram...
Mas é claro! É o negócio do Leibniz: “Você tem razão no que
você afirma, mas você está errado naquilo que você nega”. Aquilo que
você diz está certo, só que tem muita coisa que você não disse, e que
você nega, e que você não está enxergando.
(Aluno)  E por aí você pega um pouco o descontrole da escala...
Da escala! Agora, você vê, o mundo de Leibniz é um mundo
enorme, Leibniz abarca todas as ciências, e este mundo inteiro de
37
Leibniz se torna um capítulo dentro de Schelling. Este foi o maior dos
filósofos alemães, o gênio alemão está todo ali. Os outros são todos
meio doentes, são todos caras mutilados, você vê que eles são grandes,
mas são monstros, são disformes, falta um braço, falta uma perna, falta
o nariz, o primeiro sujeito que tem tudo inteiro, é um ser humano
inteiro, é Schelling.
Eu acho que foi uma verdadeira tragédia da cultura alemã que a
influência de Schelling não irradiasse mais cedo.
(Aluno)  Se é que irradiou lá!
Não, na época foi só assim: quando ele voltou a dar aulas, foi
assim, o pessoal foi tudo para assistir a aula dele, mas é uma
homenagem, um grande filósofo, velhinho, voltou, tal, ninguém
entendeu uma palavra do que ele disse! Eles foram lá, assistiram à aula,
muito bem, foram tudo para casa, e aquilo foi como se ele não tivesse
dito absolutamente nada! Simplesmente não houve consequências.
(Aluno)  Alguém retomou?
No século XX, sim!
(Aluno)  Mas aí já era tarde, para as tragédias que
aconteceram lá já era tarde...
Foi uma tragédia para a humanidade inteira, quer dizer, ele
tinha de certo modo o remédio para toda a crise da civilização que já
vinha há três séculos. Porque ele tem razão, o negócio do cartesianismo
foi uma catástrofe. Se você lê os livros, por exemplo, do Wolfgang
Smith, ele é um físico que analisa a história da ciência à luz desta coisa
que ele dá esse nome de bifurcação. E ele diz que o que empata aí as
ciências há muito tempo é esse negócio da bifurcação, quer dizer,
mesmo tendo descoberto outros continentes como, por exemplo, a
relatividade, a teoria quântica, filosoficamente os próprios cientistas
38
ainda interpretam essas mesmas descobertas deles, as descobertas
estão certas, mas eles interpretam filosoficamente no termo
bifurcacionista. Por exemplo, o Wolfgang Smith diz que na cosmovisão
medieval você tinha a ideia de um mundo material, de um mundo
intermediário e de um mundo espiritual, ele diz [que] nenhum físico
percebeu que a física moderna não trata do mundo material, que ela
trata do mundo intermediário; ou seja, você pode colocar toda a física
moderna dentro da cosmovisão medieval e dá certinho. Só que eles não
sabem disso.
(Aluno)  O que seria esse mundo?
O mundo intermediário é o mundo da matéria sutil. Você pega
os tratados de São Tomás de Aquino sobre as forças sutis da natureza,
eu digo: Max Planck nunca leu isso e São Tomás nunca leu Max Planck,
mas se um lesse o outro falariam: “Mas é disso aqui que nós estamos
falando!”
É por isso que quando você chega em partículas subatômicas,
elas têm umas propriedades esquisitas que você não consegue
expressar aquilo em termos materiais. Em termos materiais dá
contradição e no entanto você sabe que aquilo acontece. Então, essa é
uma das propriedades das forças sutis do mundo intermediário, que é
um mundo que é uma espécie de transição do ser para o não-ser e viceversa. Tudo isto aqui, se você ler o negócio do Wolfgang Smith, se não
fosse o Schelling, esse cara não ia saber disto nunca, ele pode nem
saber o que ele está devendo para o Schelling. E isto aqui são coisas que
ainda vão ter consequências para as ciências e para a cultura pelos
séculos vindouros, isto mal está começando.
(Aluno)  O Zubiri também já não entrou...
39
O Zubiri também deve muito a Schelling, sem dúvida! O Zubiri, o
Lonergan, e o Voegelin também.
Então, tem tantas soluções ali dentro, que nós ainda não
conseguimos tirar proveito de todas elas. Eu acho que eles não leram o
Schelling muito bem. Porque eles falam muita coisa que já estava
explicada em Schelling e que eles não sabem. Eles estão achando que
são os primeirões. Schelling já tinha dito.
(Aluno)  Uma coisa, o senhor comenta no...
No livro “O conhecimento e o Sagrado” do Seyyed Hossein Nasr,
ele concede uma parte a Schelling: “Não, Schelling tem lá seus méritos,
etc., etc..” Mas ele não percebe o quanto. Eu acho que ele coloca o
Schelling apenas como se fosse um precursor do René Guènon. Não,
isso já estava tudo no Schelling e estava até melhor do que no René
Guènon, estava um pouco mal explicado porque estava em alemão. É
claro, nada que é alemão consegue ter aquela coisa arrumadinha do
francês, de fato não consegue. O alemão é uma língua de duendes, de
anõezinhos. Não é isso? Então é uma língua mitológica.
(Aluno)  Eu lembro que o senhor havia dito que é o mundo em
que por exemplo os signos têm realidade existente, os mitos também.
Isso é tudo mundo intermediário. Por exemplo, se você pegar o
livro do Paulo Mercadante , “A coerência das Incertezas”. O que é? É
um estudo da sucessão de símbolos historicamente operantes
estudados com a lógica da teoria quântica. Quer dizer, como é? Você
vai pegar o negócio de subatômico e vai aplicar nos mitos, nos
símbolos, e dá certo? Claro que dá, porque a física quântica é a física do
mundo intermediário, é um mundo onde nada é o que parece, é mágico
na verdade.
(Aluno)  O livro...
40
É um livro maravilhoso, mas um livro do gênio que ninguém vai
entender, mas tudo bem.
(Aluno)  Pior é que não está em alemão!
Pior, está em português!
(Aluno)  Mas não é fácil em português, eu comecei a ler e...
Não, é um livro dificílimo, dificílimo! Mas eu estou persuadido
de que o Paulo Mercadante é um gênio, ele mesmo não sabe, mas o
que ele fez naquele livro é uma monstruosidade, quer dizer, ele pega
todo este universo do Voegelin e o expressa quanticamente.
Esse mundo do Eric Voegelin, o mundo da sucessão dos
símbolos articuladores da história e diz: “Ah, isso aí funciona igualzinho
como na teoria quântica!” Está entendendo? São herdeiros de
Schelling. Você veja, nos anos 30 houve o grande poeta austríaco Hugo
von Hofmannsthal e ele disse o seguinte: “olha, o que está havendo no
mundo é um movimento que daqui um século será visto como hoje nós
vemos mais ou menos o Renascimento, quer dizer, uma transição
intelectual absolutamente formidável”. E ele chamava isso de a
Revolução Conservadora, porque ele dizia [que] nós vamos
reconquistar tudo do que os séculos perderam, só que vai ser um
processo de muitos séculos também. Hoje eu entendo o que o
Hofmannsthal dizia, porque você vendo a história do século XX parece
que foi o contrário. Foi o contrário na superfície da história, mas o que
está acontecendo intelectualmente? O que está acontecendo é essa
tomada de posse do Schelling, essa reconquista da religião comparada,
da mitologia comparada, é a articulação da física quântica com a
cosmovisão medieval, é isto que está acontecendo.
(Aluno)  O que está acontecendo agora com a quantidade de
mudanças, de novidade, de novas descobertas em cada área do
41
conhecimento, é comparado com o que os Medici fizeram para o
Renascimento.
Pois é! Mas é uma coisa que só agora começa a tomar forma.
Agora, um sujeito em 1930, quer dizer, em plena emergência do
comunismo, do fascismo, etc., etc., ele falar em Revolução
Conservadora! Eu digo que ele está louco! Não, mas ele disse, é um
processo de muitos séculos. Ele não falou nas próximas décadas, nas
próximas décadas é o contrário, nas próximas décadas, quer dizer, é o
resíduo, é o resultado final dessa bifurcação. Quer dizer, ainda tem mais
pelo menos um ou dois séculos de prejuízo que nós vamos levar em
função desta coisa, mas enquanto vem essa devastação operando na
superfície, embaixo vem se construindo uma outra coisa. E o que vai
sobrar, por exemplo, da cultura do século XX? O que sobra? Bom, o que
vai sobrar é o Hugo von Hofmannsthal, é o Eric Voegelin, é o René
Guènon, é isso que vai sobrar para os séculos seguintes, o resto não vai
sobrar nada.
Você vê, onde no mundo ainda se lê Jean-Paul Sartre? Só no
Brasil! Bertolt Brecht? Só no Brasil!
(Aluno)  Nem na França?
Francês não liga para isso faz muito tempo!
Esta coisa toda, desconstrucionista, então, não vai sobrar nada
disto aí, já acabou. É como sapo que está morto e ainda mexe a perna.
É uma decomposição mesmo. É o resultado de pessoas que estão se
suicidando intelectualmente, cortando a própria cabeça. Você corta,
tudo bem, faça o que você quiser, a cabeça é sua, mas a gente vai
prosseguir, fazer outra coisa.
(Aluno)  Não é talvez que o que tinha que ser desconstruido já
foi?
42
Os caras terminam por se desconstruir a si mesmos!
(Aluno)  Só que tem efeito, acaba desconstruindo o mundo.
Você tem um efeito devastador em volta, mas acontece que
essa devastação sempre tem que ter algo para devastar. A hora que ela
acabou com tudo, ela se desliga automaticamente. Mas tem coisas que
são inatingíveis, não é possível você desconstruir, por exemplo, a obra
de Schelling, não é possível você desconstruir o René Guènon, não é
possível você desconstruir o Eric Voegelin, não tem jeito.
(Aluno)  É possível você desconstruir a sua capacidade de
entender isso?
Você desconstrói o legado anterior daquela sua cultura, a
cultura europeia moderna que é a cultura do tempo de Descartes até
agora. Quando você tenta aplicar isso a outras épocas, não funciona, o
que eles fazem é a decomposição do Ocidente moderno. Mas o
Ocidente moderno já começou se decompondo. Já começou com a tal
da bifurcação. Quer dizer que estes são os últimos estertores de um
corpo que já estava doente há três séculos.
Deu para entender? Então, o Schelling é isso aí. Por hoje é só.
43
44
Download