Da “calmaria” afetiva à “tempestade” das automutilações e das tentativas de suicídio VI Curso de Prevenção do Suicídio PRAVIDA Maio/2013 Rafael Santana R1 Psiquiatria HUWC PERSONALIDADE • Conjunto de características (padrões de pensamentos, sentimentos e comportamentos) que determinam a maneira individual de interagir consigo mesmo, com outros indivíduos e com o ambiente, e que tendem a permanecer estáveis ao longo da vida • Temperamento X Caráter Transtorno de Personalidade Padrão persistente de vivência íntima e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo, é generalizado e inflexível, tem início na adolescência ou no início da idade adulta, é estável ao longo do tempo e provoca sofrimento ou prejuízo Manifesta-se em pelo menos duas das seguintes áreas: • Afetividade • Cognição • Funcionamento interpessoal • Controle dos impulsos Transtorno da Personalidade Borderline (TPB) • Padrão disseminado de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e dos afetos e impulsividade marcante que se inicia no início da idade adulta e está presente em diversos contextos (DSM-IV/APA, 2000) • Limite entre neurose e psicose • Esquizofrenia pseudoneurótica, esquizomania, esquizofrenia marginal, esquizoneurose, caráter impulsivo, caráter neurótico • Stern (1938): “hemorragia mental” • Grinker et al. (1967): síndrome borderline • Gunderson e Singer (1975)/Spitzer et al. (1979): critérios para o DSM-III DIÁRIO DE BORDER Hoje acordei mal. Também não dormi lá essas coisas. Passei a noite chorando e pensando na briga com a mamãe. Essas brigas estão ficando mais frequentes, sei lá, e tão me matando! Mas ela queria o que? Meu padrasto é uma pessoa (se é que pode ser chamado assim) má, insensível e interesseira, mas ela não vê isso. Ele é uma droga, e ela é viciada nele. Se não posso mais dizer isso na cara dela, porque ela vem com chilique, pelo menos eu escrevo. Aí vem ela e pega meu diário, invade a minha privacidade e ainda quer que eu me dê bem com o imbecil. Esperar o que? BRIGA! Olha, adoro a minha mãe, mas ela é muito infantil e às vezes me dá nos nervos! Tem dia que tá maravilhosa, aí de repente fica mandona e quer ser o general da casa, querendo controlar tudo. Tem dia que tá super carente, aí eu me sinto como mãe, tendo que dar colo pra ela. E eu? Não tem ninguém pra dar colo pra mim...Triste situação a minha! Vontade de sumir...Às vezes eu penso em morar só, trabalhar, estudar, casar, ter uma família normal. Mas isso parece tão distante...Eu reclamo da mamãe, mas me vejo muito nela. Nós duas vivemos “de ovo virado” rsrsrsrsrsrs! Sempre em busca de algo, sem saber direito o que... Hum, eu me sinto como o Ícaro, da mitologia grega, tentando ir ao sol com asas de cera. Quando tudo parece estar perfeito...Kabum! Queda livre, sem amparo! Aí eu fico no poço. Eu e a fossa somos best friends forever! Que saco! Parece que é assim com tudo na minha vida. Meu último namoro foi assim, o penúltimo também, o antepenúltimo...Enfim, já deu pra entender. Brigas, ciúmes bobos (tenho que admitir que sou baita ciumenta), só bobagem, uma besteirinha que vira uma besteirona. Devo dizer que sou uma pessoa muito devotada nos relacionamentos, e não é justo que eu espere isso dos outros também? Me entrego à toa, de corpo e alma, vivo e respiro a relação intensamente. Haha! Lembrei da música do Cazuza: “Exagerado, jogado aos teus pés, eu sou mesmo exagerado, adoro um amor inventado. Eu nunca mais vou respirar se você não me notar, eu posso até morrer de fome se você não me amar”. Me encaixo perfeitamente! Ora, não dizem que no mundo de hoje falta amor? Eu tenho muito amor pra dar (mas queria receber também...) Não sou como a mamãe, que se envolve com psicopatas que gostam de humilhar os outros e de se aproveitar da sua inocência e boa vontade. Também não suporto moleques meia-boca que curtem com a sua cara e depois lhe dão um pé na bunda. E ainda terminam por telefone! Ah, comigo não! Mas só posso ser muito idiota em sempre achar que aquela pessoa é a razão da minha vida. O primeiro ex (faço questão de não citar o nome, que me dá náuseas), por exemplo. Eu tinha acabado de entrar na faculdade de letras, aí tranquei pra entrar na dele, de música (é, a gente ia formar uma banda super maneira; rock, pop, soul, até MPB dava pra rolar). No início eram só flores, “amorzinho” pra cá, “fofinha” pra lá, depois a coisa descambou. Nem sei quando foi que começou a ficar feio o relacionamento. Qualquer coisa era motivo pra discussão. E eu geralmente ficava como a culpada da história, por meu “temperamento instável”. Ok, não sou nenhuma santa, às vezes eu me descontrolava mesmo, tinha uma raiva que subia e não tinha como conter. Mas tinha muito a ver com a mudança dele, do jeito dele comigo; foi ficando mais distante, aí quando eu cobrava presença ele se irritava, eu explodia, e a confusão tava feita. Dizia pra eu deixar de ser pegajosa. Ora mais, quando se gosta não se quer estar 24h com a pessoa? Fui vendo que ele só queria curtir e não me correspondia, como um verdadeiro cafajeste. Aí eu xingava ele de tudo que conseguia lembrar, chorava, esperneava, enfim, armava o barraco. Mas não perdia a esperança de salvar o relacionamento, pois ainda gostava dele, e sempre pedia desculpas (mesmo quando a culpa não era minha). Até que um dia ele simplesmente terminou tudo...por telefone! Meu desespero foi às alturas! Procurei por ele em tudo que era canto. Soube que ele tinha viajado com os pais pra “desopilar”. Hum rum....sei...desopilar. Ele tava era fugindo. E eu fui atrás dele. Passei quinze dias desaparecida, minha mãe acionando a polícia, quase tendo convulsões, tadinha (tinha dito pra minha mãe que ia dormir uns dias na casa de uma amiga, mas calculei mal o tempo...aí ela ligou pra essa minha amiga, que não conseguiu guardar segredo e disse que eu tinha viajado, mas não sabia pra onde). Eu tinha levado um dinheiro do cofre da mamãe, comprei passagem e fui ao encontro do cara, pronta pra fazer juras de amor eterno. Amarguei a maior decepção da minha vida. Até achei, sinceramente, que meu ato seria valorizado como uma prova de amor...Minha recompensa foi ter sido enxotada como um viralata. Mas não deixei barato e causei uma “cena” na rua que foi parar na TV (aí minha mãe finalmente me achou, morta de vergonha rsrsrsrs)! Depois disso, foram só lágrimas, cortes no braço (achava a dor física útil pra diminuir a dor do coração), idas a psicólogos (achava um tédio) ...Chegaram a me oferecer drogas, mas eu não aceitei (um tio meu morreu de overdose, acho que isso sempre me impactou muito). Nada conseguia preencher o vazio que eu sentia, que na verdade sempre senti...Até outro relacionamento pintar na parada. Só que foi quase a mesma coisa. Aí depois desse segundo eu me perdi de vez. Entrei de cabeça numa vida de bebedeira e sexo fácil. Gostava e não gostava da vida. Sei lá, minhas emoções eram tão confusas (ainda são rsrsrs!) que eu não sei nem descrever. Cheguei a tomar várias pílulas calmantes da minha mãe de uma vez só, aí me levaram pro hospital, foi o maior “auê”. Depois disso, fiquei sob estrita vigilância de uma tia e de uma prima, já que minha mãe estava muito fragilizada pra cuidar de mim (como sempre...). Passei um tempo mal mesmo. Achava que tudo no mundo estava contra mim, que a qualquer momento minha tia podia colocar veneno na minha comida pra se livrar do fardo de cuidar de mim. Não via luz no fim do túnel, não tinha mais forças pra nada. Me arranjaram uns livros de filosofia oriental, fui me interessando e disse que queria fazer faculdade de filosofia. Acho que combina comigo, pois aborda tantos temas existenciais. Voltei pra casa da minha mãe, já um pouco melhor, conseguindo pelo menos curtir uma música boa, uma comida gostosa, o pôr-do-sol...Aí fui levando a vida, tive mais dois relacionamentos mais ou menos estáveis, troquei de faculdade (voltei pra letras), e cá estou, pensando com meus botões, por que comecei a falar das brigas com a minha mãe e passei a dar um resumo da minha vida! Não sei...Pode ser que essa seja a última vez que eu escrevo nesse diário... Bom, se for o caso, preciso só acrescentar que nunca sofri nenhum abuso sexual, embora tenha sofrido abuso físico e o que poderia considerar “abuso verbal” de criaturas malignas que passaram pela vida da minha mãe. Nunca conheci meu pai; ele nos abandonou quando eu tinha dois anos. Enfim, peço desculpas, a quem porventura vier a ler este diário, pelo uso excessivo de pontos de exclamação e reticências, porém é assim que vejo minha vida: nesses meus 25 anos de jornada, não sei direito quem sou ou quem eu deveria ser, só sei que navego num mar furioso de emoções sem rumo definido e sem encontrar um porto seguro. Agora, me deem licença, que tenho uma faca pra afiar. Eternamente sua, V.B. Critérios Diagnósticos (DSM-IV TR) • Um padrão global de instabilidade dos relacionamentos interpessoais, da autoimagem e dos afetos e acentuada impulsividade, que se manifesta no início da vida adulta e está presente em uma variedade de contextos, indicado por, no mínimo, cinco dos seguintes critérios: (1) esforços frenéticos no sentido de evitar um abandono real ou imaginário. Nota: não incluir comportamento suicida ou automutilante, coberto no critério 5. (2) um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado pela alternância entre extremos de idealização e desvalorização (3) perturbação da identidade: instabilidade acentuada e resistente da autoimagem ou do sentimento de self (4) impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais à própria pessoa (p.ex., gastos financeiros, sexo, abuso de substâncias, direção imprudente, comer compulsivo). Nota: não incluir comportamento suicida ou automutilante, coberto no critério 5. (5) recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante (6) instabilidade afetiva devido a uma acentuada reatividade do humor (p.ex., episódios de intensa disforia, irritabilidade ou ansiedade geralmente durando algumas horas e apenas raramente mais de alguns dias) (7) sentimentos crônicos de vazio (8) raiva inadequada e intensa ou dificuldade em controlar a raiva (p.ex., demonstrações frequentes de irritação, raiva constante, lutas corporais recorrentes) (9) ideação paranoide transitória e relacionada ao estresse ou graves sintomas dissociativos Epidemiologia • Cerca de 2 a 6% da população • Mais em mulheres (3:1)? (viés de gênero?) • ~20% dos pacientes psiquiátricos internados • ~10% dos pacientes vistos ambulatorialmente em clínicas de saúde mental • ~70% tentam suicídio pelo menos uma vez • ~10% cometem suicídio • Comorbidade com depressão e abuso de substâncias eleva consideravelmente o risco de suicídio Etiologia Genes X Ambiente Concordância entre gêmeos • Monozigóticos: 35% • Dizigóticos: 7% História familiar de TPB/Depressão/transtornos do impulso Abuso na infância/Herman et al. (1989): 81% Ambiente familiar instável/separações e perdas Fisiopatologia • Áreas cerebrais reduzidas e alteração de metabolismo (lobo frontal/amígdala/hipocampo) • Ativação aumentada da amígdala/hipoatividade de córtex pré-frontal • Circuitos alterados (ex., circuitos da impulsividade; circuitos de recompensa) • Alterações em neurotransmissores (p.ex.,↓serotonina relacionada com ↑impulsividade) Comorbidades Transtornos do eixo I (depressão, transtorno bipolar, transtornos de ansiedade, transtornos alimentares, dependência química...) • TPB para o eixo I (espectro bipolar)? Transtornos do eixo II (em especial do cluster B – histriônica, antissocial...) Traços ansiosos de “evitação de dano” protegem contra suicídio Curso e Prognóstico Tendência a perder o diagnóstico (categorial) com o tempo • Zanarini et al. (2003): remissão de 35% em 2 anos, 50% em 4 anos e 69% em 6 anos • Paris et al. (2001): apenas 25% preenchendo critérios em 15 anos, e 7,8% em 27 anos Sintomas de exteriorização X interiorização Bom prognóstico se houver tratamento Tratamento Medicamentoso • Sintomático • ISRS (ex: fluoxetina) • Estabilizadores do humor (ex: ácido valproico) • Antipsicóticos (ex: quetiapina) Psicoterapia • Focada na Transferência • Baseada em Mentalização • Terapia Dialética-Comportamental (TCD): a melhor para pacientes com muita impulsividade, automutilação e alto risco de suicídio Referências • Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica/ Benjamin James Sadock, Virginia Alcott Sadock: tradução Claudia Dornelles...[et al.]. – 9. ed.- Porto Alegre: Artmed, 2007 • Transtornos de personalidade em direção ao DSM-V/[organizadores] William O’Donohue, Katherine A. Fowler, Scott O.Lilienfeld; [tradução Fábio Moraes Corregiari]. – São Paulo: Roca, 2010 • Clínica psiquiátrica/editores Euripedes Constantino Miguel, Valentim Gentil, Wagner Farid Gattaz. – Barueri, SP: Manole, 2011