- Academia Brasileira de Neurocirurgia

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JORNAL
BRASILEIRO DE
NEUROCIRURGIA
RELATO DE CASO
Forma neurítica pura da hanseníase com
acometimento exclusivo do nervo ulnar –
Relato de caso
Carlos Eduardo Barbosa Cavalcanti*
Sinopse
A hanseníase é uma doença crônica de baixo grau de contágio,
provocada pelo bacilo álcool-ácido resistente Micobacterium
leprae. A doença raramente é fatal, mas a neuropatia associada
pode levar a séria incapacidade, sendo causa freqüente de
comprometimento de nervos periféricos no nosso país. A forma
neurítica pura da hanseníase provoca espessamento do nervo, sem
alterações cutâneas associadas, e compromete principalmente os
nervos ulnar, fibular, radial, tibial, mediano e auricular, sendo o
nervo ulnar bem mais acometido que os demais. A forma neurítica
pura com envolvimento de múltiplos nervos é infreqüente, mas tem
seu diagnóstico sugerido pelos diversos nervos acometidos. Quando
o acometimento é de um só nervo, a forma neurítica pura é rara,
sendo a biópsia um importante método auxiliar na determinação
do seu diagnóstico final. Estamos relatando um caso dessa rara
apresentação clínica de hanseníase.
Palavras-chave
Nervo ulnar, biópsia, hanseníase, neuropatia periférica.
Abstract
Pure neuritic form of Hansen’
Hansen’ss disease with isolated
involvement of ulnar nerve. Report of a case
Hansen's disease is a chronic disease of a low degree of
contagiousness caused by the acid-fast bacillus Mycobacterium
leprae. The disease is rarely fatal, but serious disability may result
from neuropathy and it is a frequent cause of peripheral nerve
involvment in our country. The pure neuritic form provokes neural
thickening without cutaneous alterations and compromises mainly
the ulnar, peroneal, radial, median, and auricular nerves, being
*
Médico Neurocirurgião do Hospital Tarquínio Lopes Filho – São Luís, MA.
the ulnar nerve the mostly frequently affected. The pure neuritic
form with involvement of only one nerve is rare and in these cases
biopsy is very important to reach the final diagnosis. We are
reporting a case of this rare clinical presentation of Hansen's
disease.
Keywords
Ulnar nerve, biopsy, Hansen’s disease, peripheral neuropathy.
Introdução
O acometimento do nervo ulnar é uma das mais freqüentes manifestações do sistema nervoso da forma
tuberculóide da hanseníase3. Existem casos em que o acometimento desse nervo é isolado, sem lesões cutaneomucosas, tornando o diagnóstico de certeza difícil, mesmo com
aumento de volume do nervo na região do cotovelo4. Nesta
enfermidade, talvez mais do que em outras, torna-se possível
relacionar os fenômenos imunológicos e os achados
bacterioscópicos com o tipo de reação inflamatória e as
manifestações clínicas correspondentes, criando deste modo
uma classificação racional das várias formas de hanseníase.
O conhecimento dessa peculiaridade permite que se efetue
uma abordagem terapêutica adequada, com a obtenção de
bons resultados imediatos e, portanto, com diminuição dos
riscos de deterioração neurológica periférica15.
A hanseníase apresenta-se sob duas formas principais:
a tuberculóide e a lepromatosa. Além dessas, também devem
ser consideradas a forma indeterminada, que compreende,
em sua maioria, casos iniciais com possibilidades de se
diferenciar para os tipos tuberculóide ou lepromatoso, e a
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do nervo ulnar – Relato de caso
J Bras Neurocirurg 13(3): 106-108, 2002
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forma dimórfica, que apresenta características dos dois tipos
principais16. Os nervos são acometidos em qualquer forma
de hanseníase, mesmo as mais benignas, em que podemos
identificar infiltrados inflamatórios ao redor das fibras nervosas. O acometimento do nervo ulnar é a mais freqüente
manifestação do sistema nervoso periférico na hanseníase
tuberculóide12,18.
Relato de caso
Paciente MSM, 35 anos, sexo masculino, proveniente
do interior do Estado do Maranhão (zona endêmica),
apresentando queixas de fraqueza e formigamento no
território do nervo ulnar direito. O exame neurológico evidenciava redução da força muscular na abdução do dedo
mínimo, garra ulnar, anestesia termodolorosa no território
de distribuição cutânea do nervo e espessamento neural ao
nível do cotovelo do lado da lesão. O exame dermatológico
não identificou lesão cutânea. A eletroneuromiografia constatava redução dos potenciais de ação sensitivos e motores
no nervo ulnar. O paciente foi submetido a exploração
cirúrgica do nervo ulnar no cotovelo e, durante o procedimento, foi verificado que o nervo encontrava-se bastante
espessado. O mesmo foi dissecado e transposto anteriormente. Foi realizada a biópsia do ramo cutâneo dorsal do
nervo ulnar, no dorso da mão. Apesar de não ter sido encontrado o bacilo no material examinado, o aspecto macroscópico do nervo e a presença de infiltrado inflamatório, a
perda axonal e a desmielinização no material biopsiado
tornaram possível inferir o diagnóstico de hanseníase. O
paciente era mitsuda-negativo, o que simplesmente comprovava ser portador da forma tuberculóide.
Discussão
É provável que a hanseníase tenha afetado a humanidade
muito tempo antes de ser reconhecida como entidade clínica
definida. Os sinais e os sintomas da hanseníase são padronizados e inconfundíveis17. Calcula-se que em nível mundial
existam atualmente mais de 10 milhões de pessoas portadoras
de hanseníase e que aproximadamente 4 milhões apresentem
seqüelas da enfermidade. Os países com maior concentração
de doentes, nos quais são diagnosticados 80% dos casos
mundiais, são: Brasil, Índia, Nepal, Bangladesh e África7,10.
Na hanseníase tuberculóide o nervo ulnar é o mais
acometido, seguido dos nervos fibular, mediano, radial tibial
e facial12,13. Em alguns casos o acometimento neural é
isolado, sem alterações cutâneas, o que torna difícil o diagnóstico. Esse tipo constitui a denominada forma neurítica
pura da hanseníase9. Katz et al.5 realizaram biópsia do
epineuro do nervo ulnar no cotovelo em 12 pacientes com
suspeita de hanseníase neurítica. Seus achados mais importantes foram o espessamento do epineuro e a presença de
infiltrado inflamatório. Por outro lado, Jenkins et al.4, analiCAVALCANTI CEB – Forma neurítica pura da hanseníase com acometimento
exclusivo do nervo ulnar – Relato de caso
sando biópsias do ramo sensitivo em pacientes com a forma
neurítica pura, verificaram que somente em 50% deles existiam alterações histológicas – 30% apresentavam perda
axonal e desmielinização, 5% exibiam alterações sugestivas
de vasculite e 5% apresentavam fibrose. A biópsia do ramo
cutâneo dorsal do nervo ulnar parece ser mais adequada
que a biópsia do próprio nervo ulnar. Além de apresentar
menores conseqüências para o paciente, permite, por ser
um ramo completamente sensitivo, que seja realizada a
ressecção completa de um fragmento do nervo, com a possibilidade de análise de todos os fascículos8.
Srinivasan e Rao14 e Becx-Bleumink e Manetje1 descreveram uma forma de hanseníase denominada neurite
silenciosa, definida como comprometimento progressivo
da função neural periférica, sem a evidência de neurite
clínica reacional. Essa variante clínica só pode ser detectada
por meio de exame neurológico seqüencial para acompanhamento progressivo do déficit neurológico11.
Nenhum achado eletroneuromiográfico é específico da
lesão neural por hanseníase, o que reduz a importância desse
exame no diagnóstico etiológico da paralisia isolada do nervo
ulnar2. Por outro lado, a possibilidade de a biópsia do ramo
cutâneo dorsal do nervo ulnar demonstrar o bacilo, além dos
achados inespecíficos já mencionados, torna este exame
importante no diagnóstico de formas de hanseníase que cursam
com lesão do nervo ulnar, sem acometimento da pele6. O caso
relatado é ilustrativo de um tipo raro de acometimento da
hanseníase, mas que deve ser considerado durante a avaliação
de pacientes portadores de aumento de volume do nervo,
mesmo que de forma isolada e sem manifestações cutâneas.
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