Pierre Hadot, Michel Foucault e a filosofia como modo de vida.

Propaganda
Exercícios Espirituais:
Pierre Hadot, Michel Foucault e a filosofia
como modo de vida.
Autora:
Bianca Cristina Vieira Pereira
Doutoranda em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
IUPERJ
3
Índice
Introdução...................................................................................................................................03
I - Pierre Hadot e os exercícios espirituais..................................................................................04
I.I - O platonismo............................................................................................................04
I.II - O estoicismo...........................................................................................................10
II - Michel Foucault e o cuidado de si..........................................................................................14
Conclusão...................................................................................................................................20
Referências bibliográficas...........................................................................................................21
4
Introdução
Michel Foucault, renomado filósofo francês, em seus últimos escritos
_
mais
precisamente no Uso dos Prazeres (1984) e no Cuidado de Si (1985) que correspondem,
respectivamente, ao segundo e terceiro volumes da História da Sexualidade
_
, introduziu a
questão da subjetividade ao propor uma forma do indivíduo relacionar-se consigo mesmo.
Forma esta que parte principalmente da contribuição filosófica grega antiga, que concebia a
filosofia como um estilo de vida. As obras anteriores elaboradas por Foucault tinham como
eixo teórico a questão do poder, posteriormente o autor passou a tratar a questão do governo e
finalmente chegou à temática do "governo de si". O que antes era tido como poder negativo,
repressivo, passou a ser no último Foucault, um poder positivo, constituinte.
Pierre Hadot escreveu, em sua obra "Exercices spirituels et philosophie antique"
(1987), algo que supostamente teria influenciado Michel Foucault na elaboração dos
argumentos que foram publicados no final de sua vida, apesar de só haver uma menção a
Pierre Hadot na introdução ao Uso dos Prazeres. Os dois autores não chegaram a estabelecer
um diálogo sistemático que levasse em conta seus respectivos trabalhos, devido, no mínimo,
ao falecimento de Michel Foucault em 1984.
O presente trabalho divide-se em duas partes fundamentais que visam uma melhor
compreensão do que ambos os autores definiam e propunham quando se referiam a um tipo
peculiar de filosofia, a qual era encarada principalmente como um modo de vida. Na primeira
parte do trabalho, a proposta de Pierre Hadot é esboçada, localizando os chamados "exercícios
espirituais" nas doutrinas referentes ao platonismo e ao estoicismo respectivamente. A escolha
destas duas escolas filosóficas são justificadas pelo fato de que tanto Hadot, quanto Foucault
adotam no seio de suas propostas, os postulados defendidos e praticados por ambas as escolas.
Vale ressaltar que é no Banquete (1972) de Platão, cuja figura mítica de Sócrates se faz
presente, que aparece pela primeira vez na história da filosofia a noção do filósofo como um
praticante da filosofia. E é justamente em razão deste fato que o Banquete ganha espaço neste
capítulo. A terceira e última parte, por sua vez, visa percorrer os argumentos foucaultianos
desenvolvidos nos dois últimos volumes da História da Sexualidade, com ênfase ao Cuidado
5
de Si. Ao longo do capítulo, as restrições e pontos de contato existentes entre Foucault e
Pierre Hadot são desenvolvidos.
I-
Pierre
Hadot
e
os
exercícios
espirituais
na
Antigüidade.
Pierre Hadot, em sua obra "O que é a filosofia antiga?" (1999) e também em
"Exercices spirituels et philosophie antique" (1987), expôs uma concepção de filosofia que
opõe-se a concepção moderna, na medida em que concebemos o saber, nos dia atuais, como
algo a ser encontrado nas construções teóricas e mais, que a função do filósofo consiste em
debruçar-se sobre teorias abstratas, independente do estilo de vida que adote. A filosofia
tratada por Hadot tem suas origens na Antigüidade, mais precisamente na Grécia, cuja idéia
fundamental é formar as almas dos alunos, de modo que estes exercitem a formação de si
mediante o uso do discurso filosófico e também mediante um modo de vida que permita ao
indivíduo estar em harmonia com a razão. Hadot não somente descreve a concepção filosófica
presente na Antigüidade, como também acredita que esta é possível de ser atualizada. Os
exercícios espirituais cumpririam papel fundamental nesta empreitada. Vejamos de uma
maneira geral como os preceitos desta concepção adotada por Hadot estiveram presentes ao
longo de todas as escolas filosóficas da Antigüidade. Tanto o platonismo, quanto o
estoicismo, serão retomados de alguma maneira por Michel Foucault posteriormente.
I.I- O platonismo
Segundo Hadot, quando nos debruçamos sobre a filosofia praticada na Antigüidade
percebemos que todas possuem não só um traço histórico comum, mas também um traço
espiritual. Posteriormente, estes traços foram transmitidos
à Idade Média e também aos
tempos modernos.
Pierre Hadot considera primeiramente que as teorias filosóficas da Antigüidade, mais
precisamente as desenvolvidas à partir de Sócrates, estão intrinsecamente ligadas a uma
escolha sobre determinados estilos de vida. Por estilo de vida entende-se uma opção
existencial, uma maneira de comportar-se perante si e o grupo circundante. Esta opção
existencial é segundo ele, inicial e não final, ou seja, o discurso filosófico origina-se destes
6
respectivos modos de vida e não o contrário, afinal, sua função é justamente revelar de
maneira racional estas visões de mundo.
A palavra filosofia designa inicialmente "amor pela sabedoria", e esta não restringe-se,
na filosofia antiga, a meros preceitos teóricos e abstratos como encontramos atualmente. O
filósofo antigo caracteriza-se tanto pelo discurso que aplica, quanto pelo modo de vida que
pratica. A sabedoria é para este, um objetivo inalcançável (estado ontológico transcendente).
Contudo, a busca incessante pela sabedoria é o melhor presente que a vida pode oferecer ao
homem.
Este modelo de filósofo é encontrado no encantador diálogo de Platão denominado "O
Banquete" (1972). A figura mítica de Sócrates se apresenta como o eixo central da definição
do filósofo como um "vivenciador" da filosofia. Sócrates marcou profundamente a história da
filosofia, apesar de não ter escrito nada durante sua vida. Alguns de seus discípulos
difundiram sua mensagem mediante a fundação de escolas socráticas. Estas escolas possuíam
conteúdos bastante diferentes, mas todas concebiam a filosofia como um modo de vida.
Sócrates é um homem consciente de que nada sabe. É este filósofo que está
constantemente lembrando aos outros que o saber não é uma "receita de bolo" cujas
proposições ou ingredientes podem ser fabricados e transmitidos. Nesta passagem do
Banquete percebemos isso claramente quando Agatão diz:
"_ Aqui, Sócrates! Reclina-te ao meu lado, a fim de que ao teu contato
desfrute eu da sábia idéia que te ocorreu em frente de casa. (...) Sócrates
então senta-se e diz:
_
Seria bom Agatão, se de tal natureza fosse a
sabedoria que do mais cheio escorresse ao mais vazio..." (PLATÃO: 1972, p.
16).
Sócrates age interrogando os que julgam saber efetivamente alguma coisa,
demonstrando intenção de aprender com eles. Quando o interlocutor está à vontade no
diálogo, Sócrates o el va a descobrir que nada sabe. Este método é conhecido como "ironia
socrática":
7
"...não se trata de uma atitude artificial, de um parti pris de simulação, mas de
uma espécie de humor que recusa levar totalmente a sério tanto os outros
como a si mesmo, porque, precisamente, tudo o que é humano, e mesmo
tudo o que é filosófico, é coisa bem pouco assegurada, de que não se pode
ter muito orgulho. A missão de Sócrates é fazer com que os homens tomem
consciência de seu não-saber" (HADOT: 1999, p. 52).
Sócrates adota, diferentemente da idéia professoral de filósofo que encontramos nos
sofistas, um método filosófico que não se caracteriza pela transmissão do saber, e sim por
levar o indivíduo à aporia, ou seja, à impossibilidade de conjeturar um saber. Desta maneira, o
conteúdo do tema discutido entre Sócrates e o interlocutor recebe importância secundária,
pois o que está em jogo é o diálogo em si, que leva o indivíduo a um permanente estado de
alerta acerca de suas proposições.
Trata-se tão somente de um cuidado permanente de si. Tanto a maneira de Sócrates
levar a vida (esquisito, criador de aporia), quanto o método que utiliza para interrogar os
outros, proporcionam uma verdadeira revolução interior em quem se permite dialogar com
ele. Segundo Hadot, o indivíduo experimenta o sentimento de não mais ser o que supunha ser.
Neste momento, a individualidade dá lugar à universalidade, pois ambos, o filósofo e o
interlocutor, atingem um lógos que é comum a ambos.
"No fim das contas, após ter dialogado com Sócrates, seu interlocutor... toma
distância em relação a si mesmo, desdobra-se, uma parte de si mesmo
identificando-se, de agora em diante, com Sócrates no acordo mútuo que
este exige de seu interlocutor em cada etapa da discussão. Opera-se nele
uma tomada de consciência de si; ele se põe a si mesmo em questão"
(HADOT: 1999, p. 55-56).
Pierre Hadot enfatiza que a importância de Sócrates para a filosofia antiga e também
para as posteriores, localiza-se na idéia de que o saber é antes de tudo, uma descoberta
pessoal. O filósofo é apenas um instrumento que auxilia o outro a operar esta descoberta
interior, não a partir de conceitos, mas sim de valores. Vale ressaltar que para Sócrates, o
homem possui o desejo inato de realizar o bem, e se este erra (comete o mal moral) é porque o
8
faz acreditando que encontrou o bem. Assim, o filósofo orienta o outro a atingir a pureza da
intenção moral, e para que isto aconteça faz-se necessário o contínuo exame de si.
Pierre Hadot enfatiza a idéia de que Sócrates, apesar de disseminar aporia por todos os
lados, é um homem constantemente inserido na vida social. O que ele quer dizer é que o
indivíduo não precisa estar fora-do-mundo para transformar-se interiormente, muito pelo
contrário, o cuidado de si perde a sua eficácia social quando se dá em casos isolados. Não
adianta apenas um indivíduo tornar-se melhor, pois participar da vida social é uma aspiração
para que as coisas mudem, e a melhor maneira de resistir ao que está errado é estando
próximo do erro.
Platão, que fora influenciado pela personalidade de Sócrates, concebeu em sua obra O
Banquete, um novo sentido à palavra "filosofia", a qual até então designava o conhecimento
que os sofistas podiam conceder aos seus alunos. A história do Banquete é mais ou menos a
seguinte: Agatão, que já fora mencionado anteriormente, era um famoso poeta que acabara de
vencer um concurso de tragédias e por isso ofereceu um banquete. Neste banquete, discursos
foram proferidos em honra a Eros, deus do amor. Sócrates, que fora convidado para o
banquete, foi o único que ao falar do amor, manifestou nada saber. No final, Alcibíades faz
um longo elogio a Sócrates, que é, por sua vez, o único lúcido no final da história. Mais
adiante, veremos o porquê desta lucidez.
O Banquete aparentemente é muito simples, contudo, há neste um sentido profundo e
sutil que é justamente o de traçar a nova concepção da figura do filósofo. Segundo Hadot,
durante os discursos percebe-se que os traços de Eros e Sócrates se confundem. Eros por ser
filho de Penia (deusa da pobreza) e de Poros (deus da riqueza), e por ter nascido no dia de
Afrodite (deusa da beleza), é portador de três respectivas características: é amoroso, miserável
e caçador. Sócrates também é portador de um desejo impetuoso, e enfeitiça as almas pelas
palavras. Sendo assim, o retrato de Eros-Sócrates concebido no Banquete estabelece de forma
brilhante o novo conceito de filósofo a ser conhecido daí em diante.
A partir de então, a filosofia começou a propagar a idéia de nada saber, e também a
caracterizar-se pelo exercício da busca pela sabedoria. No Banquete, o amor aparece não
apenas como o desejo pelo que é sábio e belo, mas também como ambição de imortalização,
que se dá pelo intermédio da fecundação da alma.
9
"A alma fecunda só pode fecundar e frutificar por seu comércio com outra
alma, na qual serão reconhecidas as qualidades necessárias; e esse
comércio pode instituir-se pela palavra viva, pela conversa diária que supõe
uma vida comum, organizada em vista de fins espirituais, e por um futuro
indefinido e rapidamente uma escola filosófica, tal como Platão concebera a
sua, em sua época presente e como continuidade da tradição" (HADOT:
1999, p. 91).
Uma outra característica crucial da nova filosofia proposta por Platão, é o
estabelecimento de uma comunidade de vida e do diálogo entre mestres e discípulos no seio
das escolas. Escolas fundadas no intuito de valorizar, tanto a vida em comum quanto o uso
que se pode fazer da palavra viva como instrumento do cuidado de si. De certa forma, estas
escolas são a institucionalização da concepção socrática de pedagogia. Platão reconhece que
observar os costumes de Sócrates foi mais produtivo do que seus ensinamentos propriamente
ditos. Sendo assim, conclui que os ensinamentos só possuem valor quando diretamente
vinculados a um modo de vida.
As escolas também possuíam intenção política. Contudo, Platão almejava dar um
passo à frente dos sofistas, na medida em que propunha um saber fundado sobre um método
racional rigoroso atrelado à concepção socrática pedagógica baseada no diálogo, no modo de
vida e no cuidado permanente de si. Segundo ele, mesmo que os alunos não governem
diretamente a cidade em que vivem, estes podem governar a si mesmos segundo um modelo
ideal de cidade. Esta característica estará presente na maior parte das escolas filosóficas
posteriores.
A dialética, entendida como o exercício de discussão de uma determinada tese, era
ensinada na Academia de Platão visando, antes de tudo, que os alunos escapassem das
armadilhas do interrogador. O objetivo não é apenas que vença o mais hábil e sim, que cada
um funde seus argumentos em torno do que o outro reconhece saber. Ambos devem atingir
um acordo baseado num saber compartilhado (lógos), superando pontos de vista particulares.
Sai-se do particular e atinge-se o universal. Trata-se de um exercício espiritual mútuo, de uma
ascese, ou seja, de uma transformação deles mesmos.
10
"Um verdadeiro diálogo não é possível se não se quer realmente dialogar.
Graças a esse acordo entre interlocutores, renovado a cada etapa da
discussão, já não é um dos interlocutores que impõe sua verdade ao outro;
bem ao contrário, o diálogo ensina-lhes a pôr-se no lugar do outro... Graças a
seu esforço sincero, os interlocutores descobrem por eles mesmos, e neles
mesmos, uma verdade independente deles, na medida em que se submetem
a uma autoridade superior, o lógos" (HADOT: 1999, p.100).
O legado que Platão deixou para a história da filosofia resume-se ao fato de que viver
filosoficamente implica dedicar-se não somente à vida intelectual e sim, debruçar-se sobre a
vida espiritual. A ética do diálogo conduz a infinitas transformações na alma dos indivíduos,
colocando em jogo toda a vida moral.
A ética do diálogo é o exercício espiritual por excelência. Porém, vários outros
exercícios espirituais eram praticados no interior da Academia visando a manutenção do
modo de vida transmitido por Sócrates. Segundo Hadot, exercícios espirituais são "praticas
que podem ser de ordem física, como regime alimentar; discursiva, como o diálogo e a
meditação; ou intuitiva, como a contemplação, mas que são todas destinadas a operar
modificação e transformação no sujeito que as pratica" (HADOT: 1999, p. 21).
Platão, ao longo de seus diálogos, cita alguns tipos de exercícios espirituais que levam
à transformação de si. Um deles é a preparação para o sono. Trata-se de tentar afastar da alma
os sonhos que revelam o lado "temível" e "selvagem" que existe em nós, ou seja, as nossas
paixões. Para tal tarefa, faz-se necessário que, durante o dia, a parte racional da alma seja
estimulada mediante discursos interiores e meditação.
O mais importante exercício é o chamado "exercício para a morte". Platão afirma que
a filosofia é em si um exercício para a morte, na medida em que esta cumpre a função de
desligar o corpo da alma, afinal, o corpo engedra paixões que devem ser dispersadas mediante
a purificação do pensamento. O "eu" quando liberto do corpo e identificado ao lógos, elimina
o medo da morte e faz com que a alma passe a olhar a realidade com mais universalidade. "A
individualidade corporal cessa de existir no momento em que se exterioriza no lógos"
(HADOT: 1999, p. 106).
A filosofia como modo de vida, como exercício, é retratada no
Banquete logo no início, quando Aristodemo e Sócrates caminham em direção a casa de
11
Agatão, e este último fica para trás: "Sócrates então, como que ocupando o seu espírito
consigo mesmo, caminhava atrasado" .Aristodemo, por sua vez, chega ao local do banquete,
onde todos sentem falta de Sócrates. Então Agatão diz a um servo: "Não vais procurar
Sócrates e trazê-lo aqui, menino?" e um outro servo diz: "Esse Sócrates retirou-se em frente
aos vizinhos e parou; por mais que eu o chame não quer entrar" Então Aristodemo constata:
"Deixai-o! É um hábito seu esse. Às vezes retira-se onde quer que se encontre, e fica parado"
(PLATÃO: 1972, p. 15-16). Percebe-se neste momento que Sócrates tinha o hábito de voltarse para si, para sua interioridade onde quer que estivesse. O fato de ter permanecido lúcido até
o final do banquete, diferentemente de todos que se encontravam ali, sugere que ele, como
praticante dos exercícios espirituais, possuía certa resistência às fraquezas da carne.
Como podemos observar, Platão fornece ao mundo um saber supradiscursivo,
baseado, assim como Sócrates, em valores e, secundariamente, em conteúdos. Estes últimos
são utilizados visando o triunfo dos primeiros. As ciências matemáticas, por exemplo,
empenhavam-se em purificar o espírito das representações sensíveis.
A filosofia praticada no período helenístico (IV a.C. - I a.C.) foi profundamente
marcada pelo espírito socrático. Havia praticamente quatro escolas em Atenas: a Academia de
Platão, o Liceu de Aristóteles, O Jardim de Epicuro e a Stoa de Zenão. No momento, nos
debruçaremos somente sobre esta última, pois uma parte do argumento de Michel Foucault, o
qual veremos adiante, funda-se sobre os preceitos do estoicismo.
I.II- O estoicismo
Zenão de Citium (334 - 262 a.C. aproximadamente) foi o fundador da antiga escola
estóica. Tudo começou quando seu pai lhe deu uns tratados socráticos, os quais lhe
despertaram o entusiasmo para com os estudos filosóficos. Por volta do ano 300, Zenão funda
a sua escola. Por ser localizada no pórtico, cuja correspondência em grego é stoa, passou a ser
denominada "estóica". Assim como Platão, Zenão conferia primazia à ética e à união de
filosofia e modo de vida. A escola ganha impulso por volta do século III a. C. sob a direção de
Crisipo.
12
Segundo o estoicismo, existem coisas que estão fora do nosso alcance, tais como: ser
belo, ser rico ou pobre, ter saúde ou não etc. Estamos constantemente sob influência do
destino, e nossa infelicidade encontra-se no fato de estarmos buscando a todo o instante,
adquirir bens que não temos como conseguir e fugir de males que estão fora de nosso
controle. Contudo, existe apenas uma coisa que podemos controlar: a vontade de fazer o bem
e de agir de acordo com a razão. Para tal, faz-se necessário termos coerência para com os
nossos próprios atos. Quando os estóicos falam da vontade de fazer o bem, eles estão
incorporando a escolha socrática que, como já fora dito, afirma que o bem ou a virtude são os
valores supremos e a felicidade consiste na exigência deste bem moral, que é ditado pela
razão e transcende o indivíduo. A virtude não apenas concebe a felicidade; ela é em si mesma
um bem imediato. A felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, que
gera a tranqüilidade da alma, a independência interior, a autarquia. A paixão, na filosofia
estóica, é algo a ser repudiado, pois trata-se de um movimento irracional. A virtude estóica é a
indiferença e a renúncia a tudo o que escapa ao controle do homem. Devemos nos voltar
somente para a sabedoria, o pensamento e a virtude.
O discurso filosófico estóico é composto por três partes: a física, a lógica e a ética. A
física ajuda o homem a compreender que a racionalidade da ação humana está diretamente
ligada à razão da natureza. As causas exteriores estão encadeadas de maneira racional, de
acordo com a Lei universal que rege a natureza. Para os estóicos, o mundo é um todo orgânico
e a escolha existencial encontra-se na própria natureza. A felicidade é acessível a todos e está
presente neste próprio mundo e não em um superior, como afirmava o platonismo.
O cosmos está todo encadeado pelo princípio da causalidade, contudo, a razão
discursiva presente no homem faz com que, tanto os acontecimentos oriundos do destino,
quanto as ações da razão humana passem a ter determinado sentido. O juízo que fazemos das
coisas e não a substância destas é justamente o que pode causar perturbação. Os males que
nos perturbam, como o medo da morte por exemplo, são males morais. Devemos assim, sair
de uma visão humana composta por juízos e paixões e passarmos a adotar uma visão física
das coisas, ou seja, acreditarmos que estas pertencem a uma Razão universal. Sendo assim, a
intenção moral é, para os estóicos, o que permite ao homem modificar-se a si mesmo e com
isso, modificar sua atitude em relação ao mundo.
13
O destino cumpre um papel fundamental no estoicismo, porém, as ações humanas não
são determinadas totalmente por este. Estas dependem também de nossa intenção moral e das
ações dos outros homens. O resultado destas ações é sempre incerto. Assim, o que passa a ter
valor para os homens é justamente a intenção de fazer o bem. Não devemos nos revoltar com
o acaso e sim, caso não obtenhamos êxito por algum motivo, devemos buscá-lo de outras
maneiras e em outras ocasiões. O cuidado que os estóicos têm não é somente o cuidado de si,
mas também o cuidado dos outros; da comunidade dos homens, afinal, estes não agem
movidos por interesses individuais.
Os exercícios espirituais também fazem parte da doutrina estóica que visa o cuidado
de si. A física é um tipo de exercício espiritual, pois, segundo eles, devemos definir
fisicamente os acontecimentos a fim de vê-los em sua essência, ou seja, sem juízos de valor
oriundos principalmente das paixões humanas. Para colocarmos a física estóica em prática
devemos primeiramente, reconhecermos que fazemos parte de um Todo e que devemos
procurar ver todos os acontecimentos segundo a lógica da Razão universal.
Assim como o platonismo, o estoicismo também adota exercícios espirituais. Existem
dois destes exercícios que são considerados fundamentais: o exercício da imaginação, o préexercício. O primeiro deles consiste em observar de um modo geral a transformação das
coisas humanas e do mundo a sua volta para que esta visão de longo alcance eleve os
sentimentos. Trata-se de um exercício lógico e físico. Em última instância este conduzirá à
aceitação da morte como algo natural inerente à ordem universal. O segundo deles consiste
em uma das práticas mais famosas dos estóicos: o "pré-exercício"
Este estabelece que
devemos estar preparados para os acontecimentos, e a melhor forma para que isso se dê é
debruçarmos sobre as inúmeras possibilidades de acontecimento, de modo que se estas
ocorrerem efetivamente, o fator surpresa estará praticamente eliminado. Com esta prática não
almeja-se apenas tornar o choque menos intenso e sim, restaurar em si mesmo a paz interior.
Afinal, os infortúnios são males que não dependem de nós. Trata-se de um exercício físico e
ético. "Quando age, ele (o homem) prevê os obstáculos e nada acontece contra sua
expectativa. Sua intenção moral permanece intacta, mesmo que surjam obstáculos"
(HADOT: 1999, p. 202).
A filosofia para os estóicos resumia-se a uma vigília permanente de si e do momento
presente. Era nada mais do que a lógica (consciência do que se faz e se pensa) e a física
14
(consciência do seu lugar no cosmos) vividas juntamente. Sendo assim, para que se viva a
filosoficamente, exercendo a sabedoria, faz-se necessário entrelaçar os ensinamentos da física,
da lógica e da ética. Vejamos como Pierre Hadot resume o que constitui a ascese para os
estóicos:
"Há a (ascese) dos estóicos, retificando seus juízos sobre os objetos e
reconhecendo que não se deve prender-se às coisas indiferentes. Todas elas
supõem um desdobramento, pelo qual o eu recusa confundir-se com seus
desejos e apetites, distancia-se dos objetos de sua cobiça e toma
consciência de seu poder de desligar-se deles. Ele se eleva, com isso, de um
ponto de vista injusto e parcial a uma perspectiva universal, seja ela da
natureza ou do espírito" (HADOT: 1999, p. 273-274).
15
II - Michel Foucault e o cuidado de si.
Michel Foucault, em sua últimas obras
_
as quais correspondem aos dois últimos
volumes da História da Sexualidade: "O Uso dos Prazeres" (1984) e "O Cuidado de Si"
(1985) _ , apresenta uma concepção de filosofia que em muito se aproxima da apresentada por
Pierre Hadot, apesar de não fazê-lo explicitamente. Foucault menciona Pierre Hadot apenas
na introdução ao Uso dos Prazeres sem especificar sua influência.
O objetivo de Foucault era saber por que o comportamento sexual constitui objeto de
preocupação moral. No intuito de responder a esta questão, o autor remontou da época
moderna, passando pelo cristianismo e chegando até a Antigüidade. Sendo assim, no Uso dos
Prazeres, o autor estuda como o comportamento sexual, que implica escolhas morais, fora
influenciado pelo pensamento grego clássico. Já no Cuidado de Si, a problemática está
voltada para a análise, à partir dos textos gregos e latinos, dos preceitos acerca do modo de
vida, que baseava-se na preocupação de si.
Michel Foucault publicou estas duas obras pouco antes de morrer. O seu estado de
saúde era degradante. Homossexual, falecera devido as complicações da Aids apesar de,
segundo os amigo íntimos, não ter certezas sobre o mal que o acometera. O tema da
"estilização da existência" era tratado tanto em sua obra como em sua vida pessoal.
"Problema histórico, naturalmente, e que ele formula, como sempre, muito
intimamente ligado ao que ele vive. Gilles Deleuze o destaca com razão: o
que interessa a Foucault nesse momento não é o retorno à Antigüidade, mas
'nós hoje'. Ele havia declarado a Dreyfus e Rabinow: "o que me surpreende é
que em nossa sociedade a arte só tenha relação com os objetos e não com
os indivíduos ou com a vida. A vida de todo indivíduo não poderia ser uma
obra de arte?" (ERIBON: 1990, p. 310).
Michel Foucault afirma que quando começou a estudar os deveres e as proibições
referentes a sexualidade, interessou-se não somente pelos atos proibitivos, mas também pelos
sentimentos que estavam representados nestes e escondidos no si de cada um. Ele perguntavase por qual processo de si mesmo o sujeito constrangeu-se no que se refere ao proibido. Para
responder tal pergunta, o autor recorreu à hermenêutica do cuidado de si na Antigüidade e
16
posteriormente nos primeiros tempos da era cristã. No Cuidado de Si, Foucault afirma que no
mundo helenístico os indivíduos eram mais isolados uns dos outros e buscavam fundamentar
o individualismo segundo as regras de conduta oferecidas pela filosofia, que era, como já
vimos, um modo de vida. O individualismo compreende fenômenos bastante diversos
conforme a época em que se apresentam. Três aspectos variam amplamente conforme
determinada época: a atitude individualista, a valorização da vida privada e a intensidade das
relações consigo.
Segundo Foucault, a filosofia praticada nos primeiros séculos do Império Romano,
retomou o cuidado de si difundido por Sócrates. Porém, este cuidado adquiriu novas
dimensões ao circular em várias doutrinas diferentes como se fosse uma "receita de bolo",
tomando ares de uma "prática social". A filosofia antiga e o ascetismo cristão se colocam sob
o signo do cuidado de si, contudo, o sentido é inteiramente diferente. Antes, o ocupar-se de si
era anterior ao conhecer a si mesmo, já na era cristã, o inverso se revela e mais, o cuidado de
si passou a ser tido como algo imoral, como transgressor da regras, na medida em que a
renúncia de si fora adotada como condição de salvação.
Foucault chama a atenção para o fato de que na filosofia platônica, o cuidado de si era
realizado através de um movimento dialético que é inerente à alma. Trata-se de uma
atividade, onde deve-se ler, estudar e meditar. Contudo, Foucault chama a atenção para o fato
de que apesar do corpo não ser tido como importante para os estóicos, Marco Aurélio, em
seus escritos, fala de sua saúde corporal e do amor homossexual, que já era algo importante.
Sendo assim, Foucault considera que reside neste ponto uma ambigüidade, pois ao mesmo
tempo que o cuidado de si é referido à alma, os assuntos ligados ao corpo também possuem
importância.
Foucault identifica três exercícios para o cuidado de si na era imperial romana. O
primeiro corresponde aos "procedimentos de provação", onde o indivíduo busca abster-se do
supérfluo, no intuito de reconhecer-se como independente do não-essencial. Estes exercícios
eram diferenciados segundo a tradição epicurista e segundo a tradição estóica. Para estes
últimos: "Não se passa por privação num dado momento para melhor provar os refinamentos
futuros, mas sim para convencer-se que o pior dos infortúnios não privará do indispensável, e
que sempre se pode suportar aquilo que se foi capaz de tolerar algumas vezes. Familiarizarse com o mínimo" (FOUCAULT: 1985, p.65).
17
O segundo exercício é o "exame de consciência", o qual deverá ser realizado pela
manhã e pela noite, considerando respectivamente as tarefas e serem realizadas durante o dia
e a memorização do dia transcorrido, que servia para interrogar a alma. Segundo Foucault,
com este exercício, Sêneca evoca um juiz, o qual não lhe fornecerá nenhuma autopunição e
sim apenas uma sábia reflexão que lhe servirá futuramente. "O que há de mais belo do que
esse hábito de inquirir sobre todo o seu dia? Que sono, este que sucede a essa revista dos
próprios atos? O quanto é calmo (tranquillus), profundo (altus) e livre (liber) quando a alma
recebeu sua porção de elogio e de reprovação" (FOUCAULT: 1985, p. 66).
O terceiro exercício é denominado "trabalho do pensamento sobre si mesmo". Trata-se
de um trabalho constante de filtragem das representações. Assim, quando surge uma
representação em nossa mente, devemos aplicar o cânon estóico, que separa o que depende e
o que não depende de nós. Devemos ter um cuidado especial com a nossa alma a fim de não
aceitarmos o que nos é dado primeiramente e superficialmente. Segundo Foucault, a
espiritualidade cristã busca a origem profunda das idéias, e o estoicismo, por sua vez, busca a
relação entre o si e o que é representado pelo si, concedendo importância somente ao que
depende da escolha do sujeito.
Percebemos assim que as práticas de si na era imperial romana possuíam significações
sensivelmente diferentes das propostas por Sócrates. Trata-se de uma trajetória que deve ser
observada a fim de entendermos até que ponto tudo isto influenciou na formação da moral
cristã.
"É no quadro dessa cultura de si, de seus temas e de suas práticas que
foram desenvolvidas no primeiro século de nossa era, as reflexões sobre a
moral dos prazeres; é preciso olhar para esse lado a fim de compreender as
transformações que puderam afetar essa moral. (...) o campo daquilo que
podia ser proibido em nada se ampliou e não se procurou organizar sistemas
de proibições mais autoritárias e mais eficazes. A mudança concerne muito
mais à maneira pela qual o indivíduo deve se constituir como sujeito moral"
(FOUCAULT: 1985, p. 72).
18
Para Foucault, o desaparecimento da estrutura dialética é uma das grandes diferenças
entre a época de Platão e a era imperial romana. Nesta última, o indivíduo passa a ter a
obrigação de ouvir o seu mestre e de ficar em silêncio, e por outro lado, praticar a escuta de si
próprio como instrumento para o descobrimento da verdade. Para Platão, a verdade está
escondida no próprio indivíduo. Já para os estóicos, a verdade passa a ser descoberta no
preceito dos mestres. Segundo Foucault, a memória tem valor crucial no estoicismo, na
medida em que possibilita a conversão do que o mestre disse, em regra de conduta. Sendo
assim, conclui-se que o ascetismo platônico consiste na revelação do si que é secreto. O
ascetismo estóico, por sua vez, consiste num ato de rememoração. Já no ascetismo cristão, o
que conta é a renúncia ao si para que uma outra realidade seja alcançada.
O cristianismo caracteriza-se pela imposição de um conjunto de regras de conduta que
têm por objetivo a salvação, e esta só pode ser alcançada através de um certo tipo de
transformação de si. Trata-se de uma religião confessional, onde cada um deve reconhecer
suas fraquezas e admitir seus desejos e tentações. Tudo isso é impossível se o indivíduo não
obtiver o conhecimento de si. Os cristãos precisavam reconhecer publicamente a sua fé. O que
era privado para os estóicos passa a ser público para os cristãos. Depois de reconhecida as
fraquezas, o pecador recorre à confissão para receber uma punição, que o levará à revelação
de si. A penitência é um ritual simbólico, teatral, que o indivíduo realiza publicamente no
intuito de expressar uma ruptura consigo mesmo.
Segundo Foucault, é sobre o terceiro exercício estóico, denominado "trabalho do
pensamento sobre si mesmo", que é iniciada a hermenêutica de si cristã. Trata-se de uma nova
técnica de si, onde o mestre controla integralmente a conduta do discípulo, o qual confessa a
este não só os seus pensamentos, como também os movimentos mais ínfimos de sua
consciência, reforçando o ideal cristão que considera que a revelação só pode ser concedida
mediante a renúncia de si.
Pierre Hadot, ao comentar a perspectiva foucaultiana em "Refléxions sur la notion de
'culture de soi'" (1988), afirma que Foucault errou ao não ressaltar a importância crucial do
tempo presente para os filósofos da Antigüidade, valorizando o papel da escrita como
possibilidade de rememoração do passado. Segundo Hadot, a escrita só tem valor quando
existe um aspecto importante para o “presente” destes filósofos.
19
"...stoïciens et épicuriens s'accordent dans une attitude qui consiste à se
libérer aussi bien du souci de l'avenir que du poids du passé pour se
concentrer sur le moment présent, soit pour en jouir, soit pour y agir. Et, de ce
point de vue, ni les stoïciens ni même les épicuriens n'ont attribué une valeur
positive au passé: l'attitude philosophique fondamentale consiste à vivre au
présent, à posséder le présent et non le passé" (HADOT: 1998).
A proposta foucaultiana é a de que os exercícios espirituais praticados pelos gregos
constituem um instrumento positivo na constituição de um novo indivíduo, agora mais
cultivador de si, não mais renunciante. Sendo assim, nem Hadot e nem tampouco Foucault
desejam apenas uma imitação estereotipada das práticas gregas. O primeiro propõe que a
noção de filosofia antiga como ascese seja disponibilizada nas universidades modernas como
uma alternativa ao discurso filosófico moderno. Diferentemente da proposta de redenção
Habermasiana, Foucault fornece uma possibilidade de cunho íntimo e não coletivo. Na
introdução ao Uso dos Prazeres (1984), Foucault equilibra visivelmente “análise histórica” e
“transformação filosófica”. Por mais que o cuidado de si seja também um cuidado dos outros,
Foucault propõe que nos comportemos como um grego, independente do contexto histórico e
cultural que estejamos imersos. Francisco Ortega resume muito bem esta questão:
"A respeito de Foucault, Hadot observa que para ambos (Foucault e ele) a
discussão com a filosofia antiga não possuía um mero interesse histórico.
Isto constitui um fato importante, característico do trabalho histórico de
ambos os autores: trata-se de estudos pertencentes ao campo histórico, mas
que, porém, não são realizados com os olhos de um historiador. A partir do
estudo da filosofia antiga, da ascese da Antigüidade, realiza-se "o protocolo
de um exercício", um exercício de autotransformação, pois Hadot e Foucault
tratam os textos da Antigüidade como 'textos práticos'" (ORTEGA:1999, p.
56)
No Cuidado de Si, estabelece-se uma noção de que o indivíduo arma sua vida
(estilização). Cada gesto envolve reflexão diária. A vida passa a ser definida como uma obra
de arte, onde a comunidade gay conta com a possibilidade de dispor de uma ética que
organiza e altera a conduta, estabelecendo que mesmo o mundo sendo este, o indivíduo não
deve se dobrar a ele. Foucault sugere que o sexo deve ser tratado como um conjunto de
20
práticas a serem aplicadas sobre si mesmo, uma ginástica espiritual. O propósito é conviver
neste mundo impedindo que as experiências provenientes deste último corrompa o indivíduo.
Trata-se de um contragoverno individual. A possibilidade lançada por Foucault, apesar de ser
universal, não tem o propósito de que todos a adotem. Ele propõe uma alternativa, onde à
partir da consciência atinge-se uma libertação genérica. Paul Veyne diz que estas últimas
obras de Foucault constituíram uma ascese pessoal para este: "A idéia de um estilo de vida
desempenhou um papel muito importante nas conversa e na vida interior de Foucault nos
últimos meses de sua vida, que ele via ameaçada" (ORTEGA: 1999, p. 59).
Apesar de Foucault tomar como base o estoicismo, ele cria uma categoria atemporal,
ou seja, com uma razão muito mais móvel e que pode se aplicar a vários contextos. Trata-se
agora de uma estética da existência e não mais de uma ética propriamente dita. São práticas
que podem conduzir o indivíduo a estabelecer uma relação consigo próprio, permitindo
escapar à normatividade, constituindo assim, uma resistência contra um poder subjetivante.
21
Conclusão
Michel Foucault e Pierre Hadot propuseram, em diferentes momentos, que se fizesse
uma atualização, nos dias de hoje, da concepção filosófica presente na Antigüidade. Tanto no
Cuidado de Si (1985) quanto nos Exercices espirituels et philosophie antique (1987), faz-se
presente uma noção de filosofia que exercita a formação de si. Trata-se de uma opção
existencial, onde o indivíduo, mediante a prática de exercícios espirituais, obtém a
transformação de si próprio.
Especula-se que Michel Foucault tenha sido influenciado pelos argumentos de Pierre
Hadot. Contudo, Pierre Hadot aparece explicitamente na História da Sexualidade em um
único momento: numa uma citação na introdução ao Uso dos Prazeres. Hadot, por sua vez,
escreveu posteriormente um artigo em que comentava as proposições esboçadas por Foucault.
Trata-se do “Refléxions sur la notion de culture de soi” (1988). Um debate mais sistemático
entre ambos não se realizou devido à prematuridade da morte de Foucault, acontecida em
1984.
Pierre Hadot analisa as concepções filosóficas originadas na Antigüidade, as quais,
devido principalmente a influência da figura de Sócrates, conceberam uma nova noção de
filosofia, que se difere em muito da noção adotada pelos sofistas. Sócrates acreditava que o
saber não localizava-se nas construções teóricas abstratas e mais, acreditava que este era
impossível de ser alcançado. Porém, a busca pelo saber já era suficientemente capaz de
fornecer ao indivíduo a tranqüilidade da alma. Através do diálogo socrático e dos exercícios
espirituais, todos poderiam cuidar da transformação de si. Hadot sugere que a noção de
filosofia antiga como ascese seja disponibilizada nas universidades modernas como uma
alternativa ao discurso filosófico moderno.
Michel Foucault, oferece, por sua vez, uma alternativa de cunho íntimo, onde a vida
individual passa a ser definida como uma obra de arte, ou seja, com um cuidado permanente
de si. A comunidade gay passaria a contar com a possibilidade de viver neste mundo e de não
curvar-se a ele. Trata-se de um contragoverno individual, cujo propósito é conviver neste
mundo impedindo que as experiências oferecidas por este acabe por corromper o indivíduo.
22
Referências bibliográficas:
ERIBON, Didier. (1990), Michel Foucault. São Paulo, Companhia das Letras.
FOUCAULT, Michel. (1984), História da Sexualidade 2: O Uso dos Prazeres. Rio de
Janeiro, Graal.
_________________. (1985), História da Sexualidade 3: O Cuidado de Si. Rio de Janeiro,
Graal.
_________________. (1994), Dits et Écrits. Paris, Gallimard (pp.783-813).
HADOT, Pierre. (1987), Exercices spirituels et philosophie antique. Paris, Études
Augustiniennes.
_____________. (1988), "Refléxions sur la notion de culture de soi", in Michel Foucault
philosophe. Rencontre Internationale, Paris.
_____________. (1999), O que é a filosofia antiga?. São Paulo, Edições Loyola.
ORTEGA, Francisco. (1999), Amizade e Estética da Existência em Foucault. Rio de Janeiro,
Graal.
PLATÃO. (1972), O Banquete. São Paulo, Abril (Coleção Os Pensadores)
23
Download