Flúor: Mitos e realidade de seu uso coletivo pessoal, profissional e das suas combinações* Jaime A. Cury e Livia M. A. Tenuta CIOSP 2011 Tabela 1: Mitos e evidências sobre cárie dental.* Mitos Evidências Há pessoas resistentes a cárie Há segurança no controle de cárie para quem diz: “Meu filho come doces, mas escova os dentes após” Cárie é decorrente do acúmulo de bactérias nas superfícies dentais e exposição freqüente a açúcares da dieta, portanto frente a esses fatores lesões de cárie serão encontradas em qualquer face dental de qualquer indivíduo. A velocidade com que estas lesões se tornam visíveis clinicamente, bem como sua progressão, pode variar de indivíduo para indivíduo e do substrato dental (esmalte vs dentina; esmalte decíduo vs permanente). Ela não atende os princípios necessários para ser assim classificada, pois é provocada por bactérias naturalmente presentes na boca de todos. Se fosse infecciosa e transmissível, não teria sido possível observar o declínio de cárie constatado hoje, o qual não é devido a nenhuma vacina anticárie ou agente antibacteriano usado. Toda criança adquire sua microbiota bucal do ambiente onde ela vive, mas uma vez estabelecida sua microbiota, microrganismos de outros não se implantam na cavidade bucal residente. O que é “transmissível” na doença cárie são os hábitos de higiene e dieta da família, incorporados a rotina da criança, mas não os microrganismos! Com base no passado quando a maioria das pessoas acabava com um par de dentaduras, pacificamente esse fatalismo foi aceito como natural. Hoje cada vez mais as pessoas acreditam que é possível viver com todos os dentes na boca sem grandes preocupações com cárie, mais ainda, as pessoas querem hoje dentes brancos e bonitos! Cárie não é provocada por bactérias estranhas a microbiota bucal, portanto microbiologicamente é impossível de ser erradicada. Cárie é uma doença biologicamente controlável pela escovação dental, disciplina do consumo de açúcar e uso racional de fluoretos. Cárie sempre foi uma doença de fundo social, no passado atingindo as classes sociais mais altas (a realeza, os ricos), as quais tinham mais acesso a açúcar (bens de consumo), mas hoje é o retrato da desigualdade social, atingindo os mais pobres. Leite materno ou bovino contém lactose, sendo esse carboidrato em comparação com sacarose, considerado não cariogênico para o esmalte dentário e moderadamente cariogênico para dentina. O problema é que geralmente o leite é adoçado com sacarose! Sim, se todos fossem 100% eficientes para controlar o acúmulo de biofilme nas superfícies dentais. Entretanto, a limpeza que conseguimos realizar pelo simples ato mecânico de remoção do biofilme não engloba todas as superfícies dentais, deixando algumas sem proteção (as mais sucetíveis ao densenvolvimento de lesões de cárie), sendo imprescindíviel a utilização de dentifrício fluoretado para estender a proteção a essas áreas. a. Ninguém escova os dentes toda vez que, por exemplo, come uma bala! b. Enquanto o doce está sendo comido, o dente está sendo dissolvido; lembre-se que o pH cai após 2 min! c. Escovar os dentes será sempre importante, mas após ter havido a desmineralização, o mais importante seria ativar a reposição dos minerais perdidos (ocorrer a remineralização)! Enxaguar a boca com água após comer doce evita cárie Como dito acima, o que tinha que acontecer já aconteceu com o mineral do dente, i.e., a desmineralização, e em acréscimo a água não vai diluir o açúcar que entrou no biofilme porque sua concentração já está diminuindo a favor do gradiente decorrente da lavagem (“clearance”) do açúcar pela saliva! Cárie é uma “doença infecciosa e transmissível” Cárie é uma doença transmissível Cárie é uma doença natural Cárie é uma doença erradicável Cárie é uma doença não controlável Cárie é uma doença essencialmente biológica Leite é cariogênico Escovação dental evita cárie Tabela 2: Mitos e evidências sobre o mecanismo de ação do fluoreto no controle de cárie.* Mitos Evidências Flúor evita cárie Por não interferir com os fatores etiológicos da doença, i.e. acúmulo de bactérias sobre os dentes e fermentação de açúcares em ácidos, o F reduz a manifestação da doença. Assim, para o máximo efeito anticárie os dentes devem ser escovados com dentifrício fluoretado e açúcar ser usado com disciplina. Esta ingestão não torna o dente mais resistente à cárie. O que ocorre é que a incorporação de F no mineral dos dentes diminui sua solubilidade, mas o efeito clínico é extremamente pequeno se comparado com o efeito do F disponível na cavidade bucal, para agir nos processos de des e remineralização, e não explica a drástica redução de cárie pelo seu uso tópico. Ingerir F durante a formação dos dentes os torna mais resistentes a cárie É imprescindível a utilização de F por um meio sistêmico Fluoretação da água só é importante até 13 anos de idade O efeito anticárie do F da água depende só da água que é bebida Água fluoretada é o mais eficiente No passado se considerava que seria necessário ingerir F para deixar os dentes fortes, i.e., formar dentes resistentes a cárie. Na realidade o efeito do F ingerido é tópico interferindo com o processo de desenvolvimento da doença cárie pela presença constante na cavidade bucal. Assim, água fluoretada é um dos meios de uso de F que possibilita, pela ingestão contínua, uma ação tópica, mantendo níveis constantes de F na boca. Conceito do passado que considerava que o efeito do F era sistêmico e portanto, como após os 13 anos não mais havia nenhum dente em formação, fluoretar a água seria um desperdício de dinheiro. No entanto, ingerir água fluoretada beneficia o indivíduo pela vida toda, devido ao seu efeito tópico já mencionado. Conceito usado no passado para criticar a fluoretação da água porque as pessoas bebem também água mineral e refrigerantes. Também foi usado no passado para justificar a suplementação medicamentosa de F. No entanto, a maioria das pessoas, apesar de não beber água da torneira, sempre cozinha com ela! Assim, os alimentos cozido com água fluoretada contribuem com fração importante do total de F ingerido por dia em região com água fluoretada; só o arroz-feijão contribui com 45% do ingerido. Todo meio de usar F é eficiente para o controle de cárie, levando-se em consideração suas diferentes frequências de uso e avaliando seus efeitos no mesmo intervalo de tempo. Em países * De: Tenuta LM, Chedid SJ, Cury JA. Uso de fluoretos em Odontopediatria – mitos e evidências. In: Maia LC, Primo LG. Odontopediatria Clínica Integral. Ed. Santos, 2011, no prelo. meio de uso de F no controle de cárie F não é importante para o controle de cárie Usando F a ingestão de açúcar está liberada! O efeito do F é de remineralizar o esmalte-dentina O efeito anticárie do F é permanente onde a cárie ainda é um problema epidemiológico é o método de maior abrangência. Alguns países (poucos!) têm conseguido controlar cárie sem necessitar de água fluoretada. Em nenhum país do mundo, onde há consumo de açúcar, se conseguiu controlar cárie a não ser usando algum meio de liberação de F para a cavidade bucal. Há limites e F usado pela escovação com creme dental fluoretado é capaz de eficientemente controlar o processo de cárie se a exposição à sacarose não for superior a 6-8x/dia. Esse é um dos efeitos do F no controle de cárie, o qual é facilmente demonstrável experimentalmente, mas o F mantido no fluido do biofilme bucal também reduz a quantidade de mineral perdido quando do processo de desmineralização dental, e a importância relativa desses efeitos ainda está para ser esclarecida. Como pode ser entendido pelo seu mecanismo de ação, o efeito do F dura enquanto ele estiver sendo usado! O mais importante é que isso é válido para qualquer meio de usar flúor! Tabela 3: Mitos e evidências sobre fluorose dental.* Mito Evidências Fluoreto afeta o ameloblasto, célula produtora de esmalte Água fluoretada na concentração ótima não provoca fluorose dental O efeito do F não é celular; ele age na matriz do esmalte inibindo a reabsorção de proteínas e o efeito ocorre nos estágios finais de mineralização do esmalte. O espaço remanescente entre os cristais e prismas do esmalte gera uma opacidade, cuja severidade é função da dose de F utilizada e tempo de exposição. Na realidade concentração ótima de F na água é aquela que provoca o máximo benefício anticárie com o mínimo de fluorose dental. Assim, se numa região de água fluoretada não for encontrada certa porcentagem da população com fluorose é sinal de que a água está com concentração sub-ótima ou não fluoretada. Os valores aceitos como ótimos foram estabelecidos no EUA há mais de 50 anos e estão atualmente em revisão. É bem conhecido que o único efeito da água otimamente fluoretada é fluorose dental e como o grau de alteração provocado não compromete a estética, i.e., não muda a qualidade de vida das pessoas, a fluoretação é defensável considerando saúde pública porque os benefícios anticárie superam os riscos envolvidos. O tempo de duração de uma determinada dose de exposição a F é mais importante que períodos ou idades de risco quando grupos de dentes estão em formação. Assim, a prevalência de fluorose será menor quando da ingestão esporádica de água com concentração acima do ótimo do que quando água otimamente fluoretada é ingerida durante todo o período de formação do esmalte. Não necessariamente, porque o F precisa ser absorvido e estar circulante pelo sangue. Assim, a presença de alimentos no estômago reduz a absorção de F; além disso, apenas o F solúvel em alimentos ou dentifrícios é passível de ser absorvido, o que pode representar apenas uma porcentagem do F total. Embora o esmalte fluorótico seja mais poroso que o normal ele não é mais suscetível a cárie. Somente nos casos de fluorose severa, quando há perda de estrutura dental facilitando o acúmulo de biofilme e dificultando sua remoção, é que aumenta o risco de cárie. Em termos epidemiológicos, pré-molares são os dentes mais acometidos, cuja mineralização se inicia por volta dos 2 anos e se estende até os 7, quando não há mais grande preocupação com ingestão inadvertida de dentifrício fluoretado. Flúor da água é fator de risco de câncer, problemas ósseos, etc Há período (“janela”) de risco de fluorose dental Fluorose é função da quantidade de F ingerido Fluorose deixa o dente mais suscetível à cárie Os incisivos permanentes superiores seguidos dos molares são os dentes mais afetados pela fluorose devido à água fluoretada Dentes decíduos apresentam menor índice de fluorose que os permanentes devido à barreira placentária a F Fluorose provoca manchamento dental Fluorose dental e óssea são provocadas por mecanismos idênticos Dente com fluorose não deve sofrer aplicação profissional de F O grau de fluorose é acentuado após a erupção dental Fluorose pode acometer um único dente da arcada dental Em primeiro lugar, não existe barreira placentária à F; todo o F circulante no sangue da mãe estará circulando no sangue do feto. No entanto, o F ingerido pela gestante está distribuído por toda sua massa corporal, o que resulta numa menor dose do que se apenas o corpo do feto fosse considerado. Sendo fluorose uma hipomineralização, resulta num aspecto mais branco e opaco do esmalte, que perde sua translucidez. Em casos raros de fluorose moderada e severa, as áreas hipomineralizadas, por serem mais porosas, acabam por se pigmentar pela exposição a alimentos na cavidade bucal. Os mecanismos pelos quais o ameloblasto produz esmalte e o osteoblasto produz osso são totalmente distintos. O ameloblasto produz uma matriz protéica que é reabsorvida durante a mineralização do esmalte e o F, por um mecanismo ainda desconhecido, inibe essa reabsorção. No caso do osso a matriz protéica de colágeno é mineralizada sem ser reabsorvida. A mineralização do esmalte é mais sensível ao F que a óssea pois esmalte dental só se mineraliza uma vez, enquanto que o osso está sob constante remodelação. A aplicação tópica de F não vai agravar o grau de fluorose existente, que é uma fotografia do passado, da infância da criança, pois fluorose se desenvolve pelo efeito do F durante a mineralização do esmalte (pré-eruptivamente). A aplicação deve sim ser feita se o paciente apresenta risco ou atividade de cárie. Nos graus muito leve e leve, a exposição à cavidade bucal atenua o aspecto clínico, pela ação remineralizante da saliva e desgaste fisiológico superficial do dente. Apenas nos casos de fluorose moderada e severa pode haver pigmentação do esmalte hipomineralizado, ou formação de cavidades pelo atrito mecânico na cavidade bucal, mas não são esses os graus em discussão nas sociendades modernas expostas a água otimamente fluoretada e dentifrício. Fluorose é um efeito sistêmico do F presente no sangue, portanto dentes homólogos e formados no mesmo período devem apresentar a mesma alteração, por exemplo, incisivos e primeiros molares permanentes. Tabela 4: Mitos e evidências sobre dentifrícios fluoretados e riscos de sua utilização.* Mitos Evidências Escovar os dentes com dentifrício sem F previne cárie Os estudos clínicos feitos até hoje utilizando como controle dentifrício não fluoretado evidenciam que a presença de F no dentifrício é imprescindível para garantir o efeito anticárie da escovação habitual. A presença de F no creme dental é considerada tão importante quanto a presença de vitaminas na manteiga, leite e pão. Revisão sistemática recente da literatura mundial demonstrou que o dentifrício deve conter no mínimo 1000 ppm F para garantir o efeito anticárie. Dentifrício de 500 ppm F previne cárie Dentifrício fluoretado só deve ser usado após os 3 anos de idade Uso de dentifrício fluoretado na primeira infância causa problema renal, etc Uso de dentifrício fluoretado antes dos 3 anos de idade é fator de risco de fluorose dental Fluorose dental pode ser evitada usando dentifrício com 500 ppm F A prevalência de fluorose dental devido ao uso de dentifrício fluoretado é maior do que a provocada pelo F da água Há uma forte correlação entre dose de exposição a F pelos dentifrícios e o grau de fluorose dental Considerando os fatores envolvidos no desenvolvimento de cárie e o efeito do F no seu controle, não há razão para privar crianças jovens da utilização de dentifrício fluoretado. O único efeito colateral do uso crônico de F é fluorose dental. A associação de qualquer outro efeito ao seu uso, independentemente da idade, é puro mito. Embora creme dental fluoretado seja considerado fator de risco de fluorose, não há evidência de associação entre prevalência de fluorose dental e seu uso antes dos 3 anos. Se a quantidade de dentifrício utilizada não for controlada, mesmo na concentração de 500 ppm F a dose de exposição ao F pode ser excessiva! Dados epidemiológicos mostram que o risco de desenvolver fluorose pela exposição à água otimamente fluoretada é 2x maior do que a pelo uso de creme dental fluoretado. Não há dados na literatura de estudos longitudinais mostrando uma clara associação entre quantidade de dentifrício ingerida durante a formação dos dentes e a fluorose resultante, enfatizando a diferença de dose de ingestão e o F absorvido (fração biodisponível). Tabela 5: Mitos e evidências sobre uso de soluções fluoretadas.* Mitos Evidências Bochechos de F devem ser usados por todos Em função do declínio de cárie devido ao uso de creme dental fluoretado, eles só tem indicação individual para casos especiais, por exemplo pacientes usando aparelho ortodôntico fixo. Não, porque bochecho de F só é recomendado para crianças acima de 6 anos de idade quando o esmalte da maioria dos dentes já está mineralizado. Bochecho de F é fator de risco de fluorose dental Tabela 6: Mitos e evidências sobre o uso profissional de F.* Mitos Evidências F acidulado x Neutro x Verniz x Espuma: um é melhor do que o outro Aplicação tópica profissional de F deve ser feita por 4 min Após a aplicação tópica profissional de F, por 30 min deve ser evitado beber água ou comer Não é necessário fazer profilaxia para que a aplicação tópica profissional de F tenha efeito Somente há clara evidência de eficácia anticárie do F em gel acidulado e verniz tipo Duraphat, mas como os demais também formam “CaF2” no esmalte, é esperado que eles também sejam eficazes Não há evidência de relação entre cárie e tempo de aplicação. Não há evidência da relação entre cárie e essa recomendação. F em gel deve ser aplicado com escova Reaplicação de F deve ser feita a cada semana, por 4 semanas Reaplicação de F deve ser feita a cada 6 meses Aplicação tópica profissional de F é fator de risco de fluorose O efeito anticárie da aplicação profissional de F é permanente Alguns estudos clínicos demonstram efeito anticárie mesmo quando a profilaxia não é realizada, porém há outros demonstrando que esse efeito varia de acordo com o risco de cárie do paciente. Se o efeito da aplicação profissional de F depende da quantidade de “CaF2” formado no esmalte, a profilaxia deve ser relevante. Em acréscimo, dente limpo e seco é fundamental para o diagnóstico diferencial de lesões ativas de inativas de cárie! Não há estudo clínico comparando a efetividade do F gel aplicado com cotonete, escova ou moldeira. Com base no mecanismo de ação do meio, todas as formas de aplicação devem ser igualmente eficientes. Diversos programas preventivos envolvendo aplicação profissional de F apresentam eficiência comprovada na literatura, mas não há uma recomendação universal de protocolo. Há evidências de que reaplicação semestral é efetiva no controle de cárie, porém não há uma recomendação universal e essa deve sempre estar embasada no risco ou atividade de cárie dos pacientes. Não, porque na freqüência em que ela é utilizada, não é mantida no sangue concentração de fluoreto por um tempo suficiente para provocar uma alteração no esmalte que seja clinicamente visível. No entanto, a ingestão excessiva de gel ou verniz de F durante a aplicação sem o devido cuidado com a deglutição pelo paciente, pode causar intoxicação aguda: náusea ou vômitos. Não, nenhum meio de usar F garante efeito permanente (F não é vacina!); logo após a interrupção do uso de F recidivas de cárie podem ocorrer dependendo do comportamento de cada paciente. Tabela 7: Mitos e evidências sobre combinação de meios de uso de F.* Mitos O efeito anticárie da combinação de meios de usar F é a soma do efeito individual de cada meio Aplicação profissional de F deve ser feita em todos os pacientes Evidências Como todos os meios de uso de F agem pelo mesmo mecanismo de ação, o efeito sinérgico é menor do que a soma dos efeitos de cada meio; o exemplo clássico: água fluoretada reduz a prevalência de cárie em 60% e bochecho de NaF a 0,2% em 40%, mas uma criança usando ambos os meios nunca ficará isenta de cárie (100% de prevenção, “cárie zero”). Em decorrência do declínio de cárie devido ao uso de creme dental fluoretado, ela só tem indicação em estratégias populacionais direcionadas para indivíduos ou grupos de risco.