A DIGNIDADE DA PESSOA E O BEM COMUM NO CONCÍLIO VATICANO II The Dignity of the Person and the Common Good in the Vatican Council II Pe. Ailbe O‟ Reilly, ORC1 RESUMO A dignidade humana é a excelência que cada pessoa humana possui por ser criada com inteligência e livre arbítrio. Todos possuem esta dignidade por terem a mesma vocação à comunhão com a Santíssima Trindade. Esta comunhão com Deus é iniciada pela nossa incorporação no Corpo Místico de Cristo no batismo. Isto nos confere uma nova dignidade, a dignidade cristã. Tanto a nossa dignidade humana como a nossa dignidade cristã estão em potência a uma dignidade moral, isto é, à dignidade que adquirimos pela obediência ao plano de Deus. É precisamente por esta vida virtuosa que alcançamos a nossa dignidade definitiva, nossa comunhão perfeita com Deus. O bem comum tem como fim facilitar a vida virtuosa de cada pessoa, facilitar a caminhada em direção a nossa dignificação definitiva com Deus, e isto, na sociedade perfeita, na Comunhão dos Santos. PALAVRAS-CHAVE: Dignidade humana. Dignidade cristã. Comunhão. Bem comum. Solidariedade. INTRODUÇÃO É com veemência que a Igreja ensina que o fundamento e o objeto primário da doutrina social da Igreja „é a dignidade da pessoa humana com os seus direitos inalienáveis, que formam o núcleo da “verdade sobre o homem”‟.2 Sem uma apreciação da pessoa humana feita à imagem e semelhança de Deus, isto é, criada com inteligência e vontade livre – e por isso chamada a realizar-se pelo uso livre das suas próprias capacidades – não podemos entender corretamente a relação entre pessoa e sociedade. Para entender bem o papel da sociedade é necessário entender a verdade sobre cada pessoa humana. Ademais, para entender bem o papel da “Sociedade das sociedades” – o Corpo Místico de Cristo – é necessário entender a vocação de cada ser humano. O conceito “dignidade” se refere a um bem, a um bem que somente os seres com inteligência e liberdade possuem. Todos os seres participam dos assim chamados transcendentais, isto é, todo ser é um, é verdadeiro e é bom. Porém o ser humano possui uma bondade que chamamos de dignidade. Nossas reflexões sobre o tema da dignidade 1 Pe. Ailbe O‟ Reilly ORC é Mestre na Teologia do Matrimônio e da Família pelo Instituto João Paulo II, Roma e Doutor em Teologia Moral pela Universidade de Santo Tomás, ou seja, pelo Angelicum, Roma. Atualmente é Coordenador do Curso de Teologia na Faculdade Católica de Anápolis. 2 CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Orientações para o Estudo e o Ensino da Doutrina Social da Igreja na Formação Sacerdotal, Roma 1988. No. 4. nos levaram ao ponto de formular a seguinte definição: a dignidade é a bondade específica do ser inteligente, ou seja, é a bondade que é exclusivamente presente em Deus, nos anjos e nas pessoas humanas. Somente pessoas possuem a bondade que chamamos de dignidade. Evidentemente não podemos comparar a Dignidade Divina e a dignidade da pessoa criada. Existe uma diferença infinita entre estas dignidades. Por isso, o termo “dignidade” é usado de forma análoga, isto é, as várias maneiras de usar este conceito têm algo em comum e algo diferente: tanto Deus como o ser humano possuem liberdade, mas há diferença infinita entre uma liberdade finita/limitada e a liberdade infinita/ilimitada, ou seja, divina. O escopo principal deste artigo é de explorar a doutrina do Concílio Vaticano II sobre a dignidade da pessoa humana e sua relação como a sociedade. Veremos que a sociedade, por meio do bem comum, está a serviço da pessoa. Faremos algumas referências à Sagrada Escritura e a outras fontes do Magistério na medida em que servem para corroborar a visão do Concílio. I. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A primeira verdade que a Sagrada Escritura pronuncia sobre o homem diz respeito a sua dignidade. “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”.3 O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e, por isso, ele tem um valor que o coloca acima de todo o mundo visível. O Concílio ensina que: O homem na verdade não se engana quando se reconhece superior aos elementos materiais, e não se considera somente uma partícula da natureza ou um elemento anônimo da cidade humana. Com efeito, por sua vida interior, o homem excede a universalidade das coisas.4 Por ter sido criado à imagem de Deus o homem é a única criatura visível que é “capaz de conhecer e amar seu Criador”.5 A dignidade do homem consiste na sua inteligência e no seu livre arbítrio. Mas estas capacidades são ordenadas à comunhão com Deus. Com outras palavras: o homem tem inteligência e livre arbítrio precisamente para poder entrar, estar e crescer numa comunhão com o Sumo Bem que é Deus. Entre todas as criaturas visíveis somente o homem é capaz disso. É por isso que o homem “é a única criatura na terra que Deus quis por si mesmo”.6 3 Gênesis 1,26. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 14. 5 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 12. 6 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 24. 4 “Por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém”.7 Com isso, podemos dizer que a dignidade da pessoa humana consiste principalmente na sua excelência de ser criado à imagem e semelhança de Deus, isto é, com inteligência e livre arbítrio. Que todos os homens gozem de uma dignidade igual recebe certo testemunho da parte de Jó: Nunca violei o direito de meus escravos, ou de minha serva, em suas discussões comigo. Que farei eu quando Deus se levantar? Quando me interrogar, que lhe responderei? Aquele que me criou no ventre, não o criou também a ele? Um mesmo criador não nos formou no seio da nossa mãe?8 Todas as pessoas humanas – dono, escravo, serva, pobre e órfão – são igualmente criaturas de Deus. Jó chega ao ponto de pedir o castigo de Deus sobre si mesmo caso ele violasse os direitos do pobre ou do órfão: Se vi perecer um homem por falta de roupas, e o pobre que não tinha com que cobrir-se, sem que seus rins me tenham abençoado, aquecido como estava com a lã de minhas ovelhas; se levantei a mão contra o órfão, quando me via apoiado pelos juízes, que meu ombro caia de minhas costas, que meu braço seja arrancado de seu cotovelo!9 Esta passagem da Sagrada Escritura nos ajuda intuir a igual dignidade que todas as pessoas humanas possuem. Gaudium et Spes nos dirá que a “igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida”.10 Pelo fato que não todos possuem as mesmas capacidades – “os homens não são todos iguais quanto à capacidade física e forças intelectuais e morais, variadas e diferentes em cada um”11 – não podemos afirmar de forma simplória que todos têm direitos iguais. Tal afirmação nos levaria a conclusões absurdas: todos os brasileiros teriam direito de estudar medicina em uma Universidade Federal, tanto homem como mulher teria direito de gestar uma criança, todos teriam igual direito de emprestar grandes quantias do banco para montar uma empresa tendo capacidade ou não de ser empresário! Fórmulas simplórias como “todos possuem direitos iguais” podem nos desviar da verdade sobre o ser humano. Para entender bem a questão dos “direitos iguais”, é necessário distinguir entre os direitos naturais – que são inalienáveis – e os direitos civis – que, em certo sentido, são relativos: 7 Catecismo da Igreja Católica, n. 357. Jó 31, 13-15. 9 Jó 31, 19-22. 10 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 29. 11 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 29. 8 Falando dos “direitos naturais” devemos falar de uma verdadeira igualdade. Todos têm igual direito ao alimento, ao vestuário e á moradia. Todos possuem direitos iguais de se casarem e de estabelecer uma família. Falando dos “direitos civis”, isto é, dos direitos individuais de cada cidadão, precisamos introduzir a conceito de “proporção”. O cidadão tem direitos em proporção às suas capacidades e à sua contribuição. Estes podem e devem ser avaliados por meio de exame ou outro meio comum, que exclui rigorosamente toda discriminação injusta.12 Em geral podemos afirmar que todos têm direito igual de desenvolver as capacidades que realmente possuem sejam estas capacidades grandes ou pequenas. E, por isso, todos devem ter acesso “aos direitos fundamentais da pessoa”,13 tais como comida, bebida, roupa, moradia, educação e saúde. Resumindo, com a ajuda de uma imagem bíblica, podemos dizer que todos têm direito igual às condições necessárias para desenvolver seus talentos, seja que eles foram dotados com um único talento ou com dez talentos. Eis o princípio geral. Porém, parece correto dizer que se os responsáveis precisam (por causa de condições particulares) decidir entre favorecer um ou outro, eles devem favorecer aquele que pode contribuir mais para o bem comum. II. A DIGNIDADE DA PESSOA CRISTÃ A vocação do homem se reconhece e se realiza em Cristo. Sem a Encarnação o homem não poderia reconhecer a grandeza a qual ele está chamado. De fato, é Cristo que revela o homem ao homem; sem Cristo não poderíamos reconhecer a finalidade da nossa existência. Sem Cristo nossa vida é um enigma: “Novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação”. 14 Por Cristo, Deus nos oferece o dom da felicidade eterna. O segundo elemento da nossa compreensão da dignidade da pessoa humana é visto quando refletimos no mistério da Encarnação. Para entender o ensinamento do Vaticano II sobre a dignidade, mencionemos aqui três fatores: 12 Para um ulterior aprofundamento sobre o direitos humanos referimos nossos leitores aos números 8-30 da Carta Encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII. 13 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 29. 14 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 22. 1. A dignidade de que cada homem goza em virtude de sua criação à imagem e semelhança de Deus (este ponto já foi explanado acima). 2. Parece que podemos falar de uma nova dignidade que cada homem “recebeu” em virtude da Encarnação. 3. A dignidade das pessoas incorporadas no Corpo Místico de Cristo pelo Batismo. A nova dignidade que cada homem “recebeu” em virtude da Encarnação Oferecemos agora uma explicação da dignidade que resulta para todos os homens do mistério da Encarnação. Gaudium es Spes ensina: Já que, nele [em Cristo], a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo, também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado.15 A afirmação, pela sua encarnação o Filho de Deus uniu-se de certo modo a cada homem, indica que, de algum modo, todas as pessoas humanas adquiriram uma nova dignidade pelo Mistério de Cristo. Contudo, parece que esta nova dignidade consiste no fato que o Filho de Deus se uniu a todos os homens por ter nascido de uma mulher, trabalho com mãos humanas e pensado com inteligência humana. Parece-nos que seria melhor descrever este união com uma união moral. A união moral existe, por exemplo, no Corpo de Bombeiros, quando todos se unem em prosseguir certo fim, no caso, a salvação de vidas humanas. Neste sentido Cristo se fez solidário com os homens. Ele se uniu e se une com os homens na sua procura de uma verdadeira realização humana. Porém, este união moral não é suficiente para descrever o que acontece no Batismo, não exausta nem explica nossa nova dignidade em Cristo. A nova dignidade que os batizados recebem de Cristo pelo Batismo O mesmo documento parece referir-nos à dignidade propriamente cristã, nos seguintes termos: O cristão, tornado conforme à imagem do Filho que é o primogênito entre a multidão dos irmãos, recebe “as primícias do Espírito” (Rm 8, 23), que o tornam capaz de cumprir a lei nova do amor. Por meio deste Espírito, “penhor da herança” (Ef 1, 14), o homem todo é renovado interiormente, até à “redenção do corpo” (Rm 8, 23).”16 15 16 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 22. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 22. Aqui fala de uma renovação interior, que não pode ser reduzida a uma união de solidariedade com Cristo. Parece que uma das melhores expressões desta dignidade se encontra na exclamação de São Leão Magna: Cristão, reconhece a tua dignidade. Por participares agora da natureza divina, não te degeneres retornando à decadência de tua vida passada. Lembra-te da Cabeça a que pertences e do Corpo de que és membro. Lembra-te de que foste arrancado do poder das trevas e transferido para a luz e o Reino de Deus.17 Com esta citação fica mais claro que o cristão, como participante da vida divina, tem uma dignidade que excede a dos não-cristãos. A dignidade humana está a serviço da vida divina nas nossas almas. Com outras palavras: fomos criados com inteligência e livre arbítrio para que pudéssemos receber a graça santificante e amar a Deus com amor sobrenatural. Falando dos leigos na Igreja Lumen Gentium – baseando-se nas palavras de São Paulo “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo” – oferece o seguinte ensinamento: “comum é a dignidade dos membros pela sua regeneração em Cristo, comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição”.18 Notemos que, segundo este texto, a conseqüência de termos uma comum dignidade não é que todos tenham os mesmos direitos, mas que todos tenham uma “comum a vocação à perfeição”. O chamamento à santidade, baseado no nosso batismo, é enfatizada nos seguintes termos: “Se, na Igreja, nem todos caminham pela mesma via, ainda assim, todos são chamados à santidade”.19 Para que cheguemos à santidade “é certo que alguns, por vontade de Cristo, são constituídos como doutores, administradores dos mistérios e pastores para os outros”. Porém, “reina afinal entre todos verdadeira igualdade no que respeita à dignidade e à ação comum de todos os fiéis para a edificação do corpo de Cristo”.20 A dignidade que todos os fiéis tem em comum pode ser deduzido do seguinte texto do Apostolicam Actuositatem: O dever e o direito do apostolado dos leigos deriva da união destes com Cristo cabeça. Com efeito, inseridos no corpo místico de Cristo pelo batismo e robustecidos pela virtude do Espírito Santo na confirmação, os leigos são deputados pelo próprio Senhor para o apostolado.21 É precisamente por sermos todos “inseridos no corpo místico de Cristo pelo batismo” que temos uma dignidade cristã, que é superior à dignidade humana. Porém, dentro da 17 São Leão Magno, Sermão 21,2-3. Citado no Catecismo da Igreja Católica, n. 1691. Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, n. 32. 19 Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, n. 32. 20 Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, n. 32. 21 Concílio Vaticano II, Apostolicam Actuositatem, n. 3. 18 comunidade cristã, devemos falar de uma verdadeira igualdade: todos os membros da Santa Igreja são igualmente filhos. Todos receberam a mesma graça de adoção. Ninguém pode dizer que é mais filho que o outro. Cristo, no batismo, deu a todos a graça de ser filho do Pai, por isso, filho no Filho. Nossa “enxertação” em Cristo nos chama à imitação de Cristo. A final, o enxerto deve assumir as características do tronco que o recebeu. III. A COMUNHÃO COM DEUS COMO “RAZÃO DE SER” DA NOSSA DIGNIDADE Já afirmamos que a pessoa humana tem inteligência e livre arbítrio para poder entrar em comunhão com o Sumo Bem que é Deus. Sabemos que esta comunhão só pode ser atingida por Cristo. Daí, podemos ver que nossa dignidade se fundamenta na nossa vocação: “A razão principal da dignidade humana consiste na vocação do homem para a comunhão com Deus”.22 Só podemos reconhecer o valor dum homem quando reconhecemos quão elevado é o fim que Deus deu à vida humana. Reconhecendo a vocação do homem reconhecemos a sua dignidade. “Deus criou tudo para o homem, mas o homem foi criado para servir e amar a Deus”.23 Todos são chamados a pertencer a Cristo e em Cristo amar a Deus: “Com efeito, já que por todos morreu Cristo e que a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina”.24 A vocação do homem é divina! Não somos chamados a uma mera realização humana, mas a uma “realização divina” a uma participação da vida divina e, no céu, a uma participação da felicidade da Santíssima Trindade. Em outro lugar Gaudium et Spes nos oferece uma síntese de tudo que falamos até agora e realça nosso destino divino: A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos.25 Na comunhão com Deus temos o ápice e a causa final da dignidade da pessoa humana. 22 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 19. Catecismo da Igreja Católica, n. 358. 24 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 22. 25 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 29. 23 IV. A DIGNIDADE ADQUIRIDA PELA VIDA VIRTUOSA Para saber como chegar a este felicidade divina, identificamos agora o quarto elemento de nossa compreensão do conceito “dignidade”. Gaudium et Spes fala: “Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer”.26 O homem é chamado a obedecer a uma lei que foi inscrita no seu coração por Deus: “De fato o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração... Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com esta lei”.27 É necessário notar que, dentro da lógica do Capitulo de Gaudium et Spes que estamos focando, esta dignidade (que a pessoa humana adquire pela sua obediência á lei) não necessita da Lei de Cristo. É uma dignidade conquistada pela obediência à lei natural. Contudo, acreditamos que (por via de analogia) podemos falar de uma dignidade conquistada pela obediência a Lei de Cristo. Com o ensinamento da Gaudium et Spes vemos que o homem adquire uma nova dignidade obedecendo à lei de Deus. Isto nos revela um novo sentido deste conceito: Não se trata da excelência fundamental que o homem tem em virtude da sua natureza, isto é, de sua capacidade de conhecer e decidir livremente. Esta “excelência fundamental” parece ser a causa material da dignidade cristã. Não se refere a sua elevação em Cristo, que seria a realização inicial de sua comunhão com Deus. Esta “elevação em Cristo” parece ser a causa formal da dignidade cristã. Não se refere à sua vocação à comunhão perfeita com Deus no céu. Esta comunhão com Deus parece ser a causa final da dignidade cristã. Mas sim, se refere a uma maneira de agir, se refere à ação livre que se harmoniza com as três verdades acima mencionadas. Esta ação livre da pessoa humana (obedecendo à lei natural e cristã) parece ser a causa eficiente da dignidade que obteremos no céu pela comunhão perfeita com Deus, isto é, da nossa dignidade/dignificação definitiva. Contudo, em outro sentido, devemos dizer que esta ação virtuosa (esta obediência à lei) já é dignificante aqui na terra: “obedecer a ela [á lei] é a própria dignidade do homem”.28 Neste sentido parece que, em certo sentido, pode ser considerado como uma causa formal da nossa dignidade aqui na terra. Aqui a dignidade é uma excelência possuída somente por aqueles que obedecem à lei de Deus. Quando o cristão não obedece à lei de Deus, isto é, quando ele age contra a razão, ele é – de qualquer maneira – menos que humano e certamente menos que cristão. Age duma forma que não combina nem com sua própria natureza, nem com sua nova 26 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 16. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 16. 28 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 16. 27 dignidade em Cristo. Por isso, às vezes, ouvimos expressões como “ele não tem dignidade”, “ele tem muita dignidade” ou “ela é uma pessoa digna da sua posição”. Gaudium et Spes afirma que o: “homem consegue esta dignidade quando, liberado de todo o cativeiro das paixões, caminha para o seu fim pela escolha livre do bem e procura eficazmente os meios aptos com diligente aplicação”.29 A pessoa humana atinge a dignidade moral quando ele vence as suas paixões e age duma maneira que é verdadeiramente virtuosa. V. O BEM COMUM A SERVIÇO DA PESSOA Começamos este artigo afirmando que a doutrina sobre a dignidade da pessoa é a chave para entender a vida social. Chegou o momento para examinar o papel da sociedade no processo da “dignificação” da pessoa humana. A tarefa principal de qualquer sociedade é o bem comum. Os homens se organizam em forma de comunidade sabendo que somente assim terão as condições de atingirem a realização mais plena de suas potencialidades. Neste sentido Gaudium et Spes nos oferece uma definição do bem comum. Ele é: “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”.30 Surge a pergunta: o que está incluído neste “conjunto das condições” que favorecem a perfeição dos pequenos grupos e de seus membros individuais? É evidente que este “conjunto de condições” inclui coisas como o asfalto, o esgoto, o hospital, a biblioteca e as escolas do município ou do estado. Porém, além destes elementos matérias devemos incluir elementos mais espirituais, tais como a honestidade e a competência administrativa do prefeito, dos políticos e dos funcionários públicos. Pensando no bem comum da Igreja de Cristo podemos pensar naquelas condições que favorecem nosso crescimento espiritual, como, por exemplo, a Igreja bem ventilada e com um bom sistema de som, salas de catequese bem equipadas, etc. Porém, aqui também é necessário incluir elementos mais espirituais no bem comum da Igreja. A sabedoria e a santidade dos sacerdotes e do Bispo pertencem ao bem comum da Igreja. Fazem parte do “conjunto das condições” que favorecem nossa perfeição. Além disso, podemos incluir a capacidade que nossos pastores têm de pregar não somente com clareza intelectual, mas com verdadeira paixão. A capacidade de pregar o 29 30 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 17. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 26. Evangelho com paixão é uma condição que ajuda os fiéis a chegar à perfeição cristã. Oferecemos estes exemplos para pôr em realce que o conceito bem comum não se limite às condições materiais que a comunidade oferece a seus membros. Tanto a sociedade humana como a sociedade cristã (a Igreja) devem fornecer aquelas condições que servem para as comunidades menores e – ultimamente – que servem a pessoa humana e cristã. Assim vemos que o bem comum está a serviço da perfeição e da felicidade da pessoa humana. Para ver como a mesma pessoa deve estar a serviço do bem comum – e por meio dele, a serviço de um número maior de pessoas – será muito útil explicar o termo solidariedade. VI. SOLIDARIEDADE O documento Gaudium et Spes aborda o tema da solidariedade de uma forma teológica. Começa constatando que Deus “não criou os homens para viverem isolados, mas para se unirem em sociedade” e continua afirmando que Ele quis “santificar e salvar os homens, não individualmente... mas fazendo deles um povo que o reconhecesse em verdade e o servisse santamente”. Ele escolheu os homens “não só como indivíduos, mas como membros de determinada comunidade” e com seu povo “estabeleceu aliança no Sinai”.31 Olhando para o Novo Testamento, o Vaticano II ensina: Esta índole comunitária aperfeiçoa-se e completa-se com a obra de Jesus Cristo. Pois o próprio Verbo encarnado quis participar da vida social dos homens. Tomou parte nas bodas de Caná, entrou na casa de Zaqueu, comeu com os publicanos e pecadores. Não somente pelo exemplo, mas também pela pregação, oração e redenção, Ele mostrou a necessidade da solidariedade: Na sua pregação expressamente mandou aos filhos de Deus que se tratassem como irmãos. E na sua oração pediu que todos os seus discípulos fossem “um”. Ele próprio se ofereceu à morte por todos, de todos feito Redentor... Na própria constituição da Igreja, vemos a solidariedade: E mandou aos apóstolos pregar a todos os povos a mensagem evangélica para que o gênero humano se tornasse a família de Deus, na qual o amor fosse toda a lei. 31 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 32. Primogênito entre muitos irmãos, estabeleceu, depois da sua morte e ressurreição, com o dom do seu Espírito, uma nova comunhão fraterna entre todos os que o recebem com fé e caridade, a saber: na Igreja, que é o seu corpo, no qual todos, membros uns dos outros, se prestam mutuamente serviço segundo os diversos dons a cada um concedidos.32 A partir destes textos parece que o conceito “solidariedade” se refere á caridade fraterna. Termos como “uma nova comunhão fraterna”, “membros uns dos outros” e “prestam mutuamente serviço” parecem indicar que a melhor maneira de explicar o conceito solidariedade seria em termos de caridade fraterna. Este número de Gaudium es Spes termina com uma exortação: Esta solidariedade deve crescer sem cessar, até se consumar naquele dia em que os homens, salvados pela graça, darão perfeita glória a Deus, como família amada do Senhor e de Cristo seu irmão. 33 Com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja recebemos uma explicação ulterior deste conceito. A solidariedade é também uma verdadeira e própria virtude moral, não “um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos”. A solidariedade eleva-se ao grau de virtude social fundamental, pois se coloca na dimensão da justiça, virtude orientada por excelência para o bem comum... Desta doutrina parece muito claro que a solidariedade é mais justiça que caridade. É a virtude moral pela qual cada pessoa se dedica ao bem comum. Contudo, para que a solidariedade atinja seu ponto culminante deve ser imbuído pela caridade ao ponto de ser pronto de sacrificar a própria vida. Por isso, o Compêndio continua falando de uma aplicação em prol do bem do próximo, com a disponibilidade, em sentido evangélico, para “perder-se” em benefício do próximo em vez de o explorar, e para “servi-lo” em vez de o oprimir para proveito próprio.34 Pela solidariedade, cada pessoa se empenha em prol da comunidade e assim cada um se coloca a serviço da “dignificação definitiva” de seus irmãos. A solidariedade significa a justa contribuição que cada pessoa faz em prol do bem comum. Por meio desta contribuição, cada pessoa cresce na sua dignidade moral e facilidade o mesmo crescimento nos outros. Com já constatamos, este esforço moral tem como fim último, a nossa comunhão eterna com a Santíssima Trindade. 32 Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 32. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, 32. 34 Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 193. 33 CONCLUSÃO A dignidade humana é a excelência que cada pessoa humana possui por ser criada com inteligência e livre arbítrio, isto é, por ter sido criada à imagem de Deus. Todos têm esta dignidade por que todos têm a mesma vocação à comunhão com a Santíssima Trindade. Esta comunhão com Deus é iniciada pela nossa inserção em Cristo, isto é, pela nossa incorporação no Corpo Místico de Cristo no batismo. Isto nos confere uma nova dignidade, a dignidade cristã. Tanto a nossa dignidade humana como a nossa dignidade cristã estão em potência a uma dignidade moral, isto é, à dignidade que adquirimos pela obediência ao plano de Deus. É precisamente por esta vida de virtude que alcançamos a nossa dignidade definitiva, nossa comunhão perfeita com Deus e isto, na sociedade perfeita, na Comunhão dos Santos. SUMMARY Human dignity is an excellence that each human person possesses in virtue of his or her being created with intelligence and free will. We are created in the image and likeness of God in order to attain to communion with God. Communion with God is the raison d’être of human dignity, it is the common vocation of all human persons. This communion with God begins with our incorporation into the Mystical Body of Christ through Baptism. This sacrament confers on us a new dignity, Christian dignity. Both our human and our Christian dignity are in potency to moral dignity, that is, to the dignity that we acquire through obedience to the plan of God. It is precisely through a life of virtue that we arrive at our definitive dignity, our perfect communion with God in the most perfect society, the Communion of Saints. The common good of any human society is at the service of smaller groups and of individuals. This common good exists in order to facilitate a life of human and Christian virtue. While it is true that the common good it at the service of the individual human person, it is through the virtue of solidarity that he or she contributes to the common good and thereby facilitates, for a greater number of persons, the achieving of the supreme good of communion with God. KEY-WORDS: Human dignity. Christian dignity. Communion. Common good. Solidarity.