a política de cotas e a concretização do princípio da

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A POLÍTICA DE COTAS E A CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO
DA IGUALDADE
Maurício José de Mendonça Júnior1
Resumo: Este artigo tem por objetivo a análise da política de cotas como um direito
fundamental, já que hodiernamente necessário, com vistas a concretização do
Princípio da Igualdade em seu sentido substancial. Isto posto, através do método
dedutivo e firme em meticulosa pesquisa bibliográfica, evidenciam-se as linhas
gerais dos direitos fundamentais, tais como classificação, evolução e características,
demonstrando-se, no desenvolver do trabalho, a fragilidade dos argumentos
contrários à ação afirmativa mencionada.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Princípio da Igualdade. Ações Afirmativas.
Política de Cotas.
THE POLICY IMPLEMENTATION OF QUOTAS AND THE PRINCIPLE OF
EQUALITY
Abstract: This article it has for objective at analyzing the quota politcs as a
fundamental right, in our times as necessary, with a view to implementing the
principle of equality in its substantial sense. That said, through the deductive method
and firm in meticulous bibliographical research will reveal the outlines of fundamental
rights, such as
1
classification, evolution and characteristics, demonstrating,
Advogado, inscrito na OAB/MG sob o n. 114.218, Professor do curso de Direito da Universidade Presidente
Antônio Carlos – campus Araguari, graduado pela Universidade Federal de Uberlândia e pós-graduado em
Direito Público pela Universidade Gama Filho.
developing the work, the weakness of the arguments against affirmative action
mentioned.
Key-words: Fundamental Rights. Principle of Equality. Affirmative Action. Quota
Politics.
2
1. INTRODUÇÃO
A política de cotas, uma das várias modalidades de ações afirmativas por parte
do Estado, mostra-se como eficaz meio para concretizar o Princípio da Igualdade em
seu sentido substancial, e ainda, para realização não só de um direito social, mas de
um objetivo de nossa República.
Nesse sentido, diga-se, a evolução do Estado e da sociedade pressupõem a
conquista de mais direitos considerados fundamentais, eis que cada geração
necessita de proteções diferentes. Essa, inclusive, é uma das características de tais
direitos: a historicidade. Ela demonstra justamente que os mesmos são adquiridos
ao longo do tempo, e uma vez constitucionalizados, não mais podem ser retirados,
em razão da proibição do retrocesso no trato dos direitos fundamentais (método
específico de interpretação da Constituição).
Desta forma, as ações afirmativas, por concretizarem direitos sociais,
fundamentais, devem atender ao objetivo para o qual foram criadas, sob pena de
resultar em retrocesso, ferindo de modo oblíquo mencionado método hermenêutico
constitucional.
Outrossim, saliente-se, são assaz importantes para efetividade da Carta Maior
e para a melhoria e desenvolvimento da sociedade, ainda que sejam consideradas
medidas temporárias e imediatistas.
Conforme se demonstrará, os argumentos contrários à adoção da política de
cotas como realização do Princípio da Igualdade são frágeis e podem ser afastados
em virtude das benesses trazidas por referida ação afirmativa, até porque, é normal
a antinomia aparente num diploma constitucional recheado de direitos, devendo
prevalecer, através de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade, a disposição
que melhor se adéqua ao caso concreto, concretizando a vontade da Carta Magna e
seu valor supremo: a dignidade da pessoa humana.
Isto posto, necessária uma análise da evolução, classificação e características
dos direitos fundamentais, para melhor entendimento da matéria, seguindo-se o
exame perfunctório do tema em espeque.
3
2. DIREITOS
FUNDAMENTAIS:
CONCEITO,
CLASSIFICAÇÃO,
EVOLUÇÃO E CARACTERÍSTICAS
Inicie-se o desenvolvimento deste trabalho lembrando-se que os direitos
fundamentais, isto é, aqueles essenciais à concretização de uma existência humana
digna, estão intimamente ligados aos valores “liberdade” e “igualdade”, com vistas à
proteção da dignidade da pessoa humana.
No entanto, necessário é, a priori, classificar os direitos fundamentais
conforme previsão da nossa Constituição e consoante o faz a Doutrina, para melhor
entendimento do tema.
Nesse sentido, nossa Carta Maior trata os Direitos Fundamentais como
gênero, no “Título II”, que possui as seguintes espécies: “Direitos Individuais”, os
“Direitos Coletivos”, “Direitos Sociais”, “Direitos da Nacionalidade” e “Direitos
Políticos”.
Por sua vez, a Doutrina, de forma majoritária, adota a classificação proposta
pelo professor José Carlos Vieira de Andrade, que com base na Constituição
portuguesa de 1976, divide os direitos fundamentais em “direitos de defesa”,
“direitos a prestações” e “direitos de participação” 2.
Em tal linha, os primeiros seriam aqueles que surgiram para proteção do
indivíduo em face do Estado, esta a finalidade. Trata-se de direitos relacionados ao
valor “liberdade”, tais como direitos civis. Exigem por parte do Estado uma
abstenção, isto é, uma “não prestação”.
Já os “direitos a prestações” são aqueles que exigem do Estado um fazer, ou
seja, exigem prestações. São ligados à Igualdade material, e tem como grandes
exemplos os direitos sociais. Exemplifique-se, nesse diapasão, o direito à saúde,
que exige do Estado a construção de hospitais, a contratação de médicos, a
aquisição de remédios, dentre outras condutas. Por isso direito a prestações, que
tem, portanto, um caráter positivo.
2
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2ª ed.
Coimbra: Almedina, 2001, p. 174-178.
4
Por último, os “direitos de participação”, que não tem um caráter negativo
como os primeiros, nem positivo, como os segundos, de maneira que, possuem, na
verdade, essas duas dimensões equilibradas, não há preponderância. São direitos
que vão permitir a participação do indivíduo na vida política do Estado, tais como os
direitos de nacionalidade e os direitos políticos.
Feita a classificação, passe-se às “Gerações de Direitos”, ou “Dimensões de
Direitos”. Isto porque, como sabido, os direitos fundamentais não surgiram todos ao
mesmo tempo, ao contrário, foram sendo conquistados através de um longo
processo histórico.
Assim, quatro são as dimensões apontadas de forma majoritária pela
Doutrina3, tomando por base determinados critérios, conforme exposição abaixo, e a
época em que surgiram.
São direitos fundamentais de 1ª dimensão aqueles advindos das revoluções
liberais (francesa e norte-americana) ocorridas no final do Século XVIII, quando a
principal reivindicação burguesa era a limitação dos poderes do Estado, e o
conseguinte respeito às liberdades individuais. Desta feita, são exemplos os direitos
civis e políticos, que traduzem o valor “liberdade”.
Os direitos fundamentais de 2ª dimensão surgiram à época da Revolução
Industrial (Século XIX), intimamente ligados à luta do proletariado por melhores
condições de vida e de trabalho, e são, em síntese: direito sociais, econômicos e
culturais. São direitos ligados ao valor “igualdade”.
Já os direitos fundamentais de 3ª dimensão tiveram como causa a
necessidade de diminuição das diferenças entre sociedades desenvolvidas e as não
desenvolvidas, forte nos Princípios da Solidariedade e da Fraternidade. São aqueles
direitos transindividuais, ou seja, cuja titularidade é indeterminada, eis que se
destinam à proteção de todo o gênero humano. Como exemplo, o direito ao meio
ambiente equilibrado e ao patrimônio histórico mundial.
Por derradeiro, os direitos fundamentais de 4ª dimensão, os quais, embora
controverta a Doutrina, são aqueles associados à pluralidade, tratando-se de direitos
como a democracia, a informação e o pluralismo, que foram introduzidos no âmbito
jurídico em razão da crescente globalização política, conforme ensinamentos de
5
Paulo Bonavides4.
No que tange às características dos Direitos Fundamentais5, são as
seguintes: “Universalidade”, eis que visam à concretização da dignidade da pessoa
humana, e esta é um atributo de todo ser humano, independentemente do local que
esteja; “Historicidade”, na medida em que são considerados direitos históricos,
porque surgem em determinado período e se transformam com o passar do tempo;
Inalienabilidade,
“Imprescritibilidade”
e
“Irrenunciabilidade”,
características
jusnaturalistas, que impedem a renúncia total e definitiva de qualquer direito
fundamental; e “Limitabilidade” ou “Relatividade”, haja visto que os direitos
fundamentais não são absolutos, havendo, por vezes, colisões no caso concreto, a
serem resolvidas pela própria Constituição, ou pelo intérprete, através da técnica da
“Ponderação dos Interesses”, sem desprestigiar a máxima observância dos direitos
fundamentais envolvidos.
Este o epítome necessário para entendimento do tema, vez que o direito a
cotas, decorrente de ações afirmativas do Estado, no atual momento histórico
brasileiro, é enquadrado como direito fundamental, consoante se explanará.
3. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AS AÇÕES AFIRMATIVAS
É fundamental para o entendimento da necessidade de ações afirmativas,
que se estude o Princípio da Igualdade, direito fundamental individual, previsto no
“caput” do artigo 5º de nossa Constituição, verbis:
Art.5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...).
3
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p 588-589.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 523.
5
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 409.
4
6
A respeito, veja-se exposição do professor Marcelo Novelino:
Os direitos individuais, enquanto derivações de primeiro grau da
dignidade da pessoa humana, são imprescindíveis ao pleno
desenvolvimento da personalidade, razão pela qual sua violação
acaba por constituir um atentado à própria dignidade.
(...)
No capítulo I do Titulo II, a Constituição consagra os “direitos e
deveres individuais e coletivos”, assegurando a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade6.
Nesse diapasão, então, referido dispositivo constitucional consagra serem
“todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
Essa “Igualdade” implica em isonomia “formal” (chamada ainda de civil ou
jurídica), consagrada no liberalismo clássico, e também “substancial” (denominada
igualmente de material, real ou fática.
A “Igualdade Formal”, isto é, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”, implica na necessidade de tratamento isonômico a todos os
seres de uma mesma categoria essencial. Assim, em situações com iguais
características essenciais, as pessoas devem ser tratadas de maneira igual.
É uma Princípio Jurídico, e assim, a priori, reitere-se, todas as pessoas que
se encontram na mesma situação devem ser tratadas da mesma forma.
Contudo, podem existir situações em que se deve fazer uma diferenciação,
pois como dito, nenhum direito fundamental é absoluto. Essa diferenciação, no
entanto, deve ser justificada em razão de outro Princípio constitucional, com outro
fim também almejado pela Constituição. Até porque, ao implicar em tratamento igual
a todos, está imbuída na isonomia o reconhecimento e a aceitação das diferenças,
sem o que inexistiriam respeito e consideração entre os povos.
Lembre-se ainda, do critério de justiça de Aristóteles, popularizado na
7
seguinte frase: “Justiça é tratar os iguais de forma igual, e os desiguais de forma
desigual, na proporção de sua desigualdade”. Para o professor José Afonso da
Silva7, tal critério relaciona-se justamente com a “Igualdade Formal”, porquanto a
diferença de tratamentos há muito tempo é admitida, a exemplo das diferenciações
seculares entre “escravos” e “senhores”.
No entanto, tal posição não é unânime, defendendo grande parte da Doutrina
que mencionado critério de justiça relaciona-se em verdade, à Igualdade em seu
sentido Material.
Esta, por sua vez, é uma igualdade que consiste na redução das
desigualdades fáticas, a fim de que se possa obter uma “igualização dos desiguais”.
Nesse sentido, devem ser tomadas medidas pelo Estado para reduzir as
desigualdades, não se limitando a, simplesmente, tratar os desiguais de forma
desigual. Essa redução deve se dar através de medidas positivas (“direitos à
prestações), os chamados “direitos sociais” (2ª dimensão), consagrados no artigo 6º
e seguintes de nossa Carta Constitucional, que parte da premissa que nem todas as
pessoas terão acesso àqueles direitos por seus próprios meios, e assim, o terão por
proteção estatal:
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção
à
maternidade
e
à
infância,
a
assistência
aos
desamparados, na forma desta Constituição.
Além disso, a Constituição, em seu artigo 3º, inciso III, traz como objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil “reduzir as desigualdades sociais e
regionais”, o que implica na conclusão de que a “Igualdade Substancial” foi acolhida
de forma expressa pelo texto da Carta Magna.
Celso Antônio Bandeira de Mello aponta o caminho para concretização dessa
Igualdade, no sentido de se tentar equanimidade de indivíduos que não sofreram as
mesmas restrições, sob pena de ofensa à isonomia:
6
7
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Método, 2010, p 387-388.
SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 213-215.
8
a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de
desigualação; b) a segundo reporta-se à correlação lógica abstrata
existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a
disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a
terceira atina à consonância desta correlação lógica com os
interesses
absorvidos
no
sistema
constitucional
e
destarte
juridicizados8.
Isto posto, é estreita a relação da Igualdade com a Dignidade da Pessoa
Humana, eis que está se realiza através daquela, e ambas implicam num atuar do
Estado positivamente, proporcionando, às classes menos favorecidas, igualdade de
condições com as demais.
Assim, as denominadas “ações afirmativas”, tem como fundamento a
Igualdade em seu sentido Material e a Dignidade da Pessoa Humana. Tratam-se de
programas públicos ou mesmo privados, em geral de caráter temporário,
desenvolvidos com a finalidade de redução de desigualdades sociais, culturais e
econômicas. Veja-se definição de Marcelo Novelino a respeito:
As ações afirmativas consistem em políticas públicas ou programas
privados desenvolvidos, em regra, com caráter temporário, visando à
redução de desigualdades decorrentes de discriminações (raça,
etnia) ou de uma hipossuficiência, econômica (classe social) ou física
(deficiência), por meio da concessão de algum tipo de vantagem
compensatória de tais condições.
Desta forma, as ações afirmativas pressupõem a existência de alguma
condição, a exemplo da raça, do sexo, de uma deficiência física, que justifique
alguma vantagem, para que se reduza uma desigualdade fática, real, para que
pessoas em condições inferiores, desiguais, tenham as mesmas chances que as
demais.
Isso não fere a igualdade, ao contrário, a concretiza. Não fosse assim,
9
premiar-se-iam as desigualdades e a própria sorte de ter o cidadão nascido em
família mais abastada, desnecessitando da proteção estatal.
Claro, a adoção de tais políticas não deve ser desmedia ou descontrolada,
por óbvio deve ser precedida de profundo estudo de viabilidade em razão das
condições e peculiaridades locais, necessitando ser comprovada a impossibilidade
de integração de um grupo beneficiário num futuro próximo.
Outrossim, jamais poderão seguir à eternidade, pena de, aí sim, promoverem
a desigualdade. Devem tais políticas serem acompanhadas de um prazo de
duração, ao fim do qual serão extintas, atingidos seus objetivos.
Por fim, esclareça-se que o sucesso de várias das ações afirmativas é
conhecido em vários países do mundo, a exemplo dos Estados Unidos, precursor,
ao lado da Índia, na utilização de tais procedimentos.
Naquele país, inclusive, ficou conhecida a ação afirmativa tangente à política
de cotas em Universidades, o que possibilitou integração da população afrodescendente com os caucasianos, diminuindo os preconceitos e revanchismos
existentes, e ainda, a melhora na situação econômica e cultural dos negros,
comprovada com o passar dos anos.
4. A POLÍTICA DE COTAS
Como já esclarecido, ações afirmativas são programas desenvolvidos pelo
Estado, ou até por particulares, que visam concretizar a igualdade fática entre os
cidadãos.
Contudo, as ações afirmativas não são sinônimas de “política de cotas”. Esta
é apenas uma das formas de realização daquelas, que podem consistir, noutros
exemplos, em bolsas de estudo para alunos carentes, cursos pré-vestibulares para
pessoas que não tem condições de pagar por escola privada, incentivos fiscais para
empresas que contratem deficientes, enfim, várias formas ou programas.
Frise-se, o sistema de cotas é apenas um dos mecanismos de proteção de
8
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed. São Paulo:
Malheiros, 1995, p. 21.
10
minorias desfavorecidas, e isto, ao lado de muitos outros. Tange à reserva de vagas
para negros, pobres, deficientes, etc., sobejamente em Universidades.
A despeito disso, é o sistema de cotas que tem sido objeto de calorosos
debates tanto nos tribunais quanto na própria sociedade, porquanto, diferentemente
das demais ações afirmativas (que tem o ônus dividido por toda a sociedade,
através de tributos por exemplo), a reserva de vagas induz a revolta daqueles que
não foram beneficiados pelo sistema, sendo de fato difícil que se entenda a
importância e a necessidade da restrição em espeque.
Não por outro motivo, passe-se agora aos argumentos favoráveis e contrários
à essa peculiar ação afirmativa, a política de cotas.
5. OS ARGUMENTOS EXISTENTES
Primeiramente, elenquem-se as defesas dos que batalham contra a
possibilidade da política de cotas como ação afirmativa do Estado.
Nessa linha, sustenta-se que, primeiro, a política de cotas, ou seja, a reserva
de vagas em Universidades, viola o mérito da prova, isto é, não possibilita a escolha
dos melhores. O mérito, inclusive, é um critério típico de uma República, onde vigora
a democracia, e permite que as pessoas sejam recompensadas de acordo com seu
esforço e aperfeiçoamento. Outrossim, a Constituição estabelece o acesso àqueles
institutos através da capacidade, de forma expressa, conforme previsão do artigo
208, inciso V, verbis:
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de:
(...)
V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da
criação artística, segundo a capacidade de cada um;
(...).
11
Todavia, trata-se de argumento criticável, já que as pessoas não tem
igualdade de condições. Veja-se, como comparar um estudante que por toda vida
teve acesso às melhores escolas e professores, aos mais caros cursos, com aquele
que sequer possuía condições de se vestir adequadamente para freqüentar o
educandário, não tinha condições para se transportar e muito menos tempo para o
estudo, já que necessitava trabalhar desde criança para ajudar no sustento familiar.
É claro que, via de regra, o primeiro alcançará índices fantásticos e proveitosos, ao
passo que o segundo obterá nota compatível com seu grau de desenvolvimento e
instrução. Isso é igualdade?
Crê-se que a melhor resposta é “não”. Basta-se para tanto, que se lembre do
famoso exemplo de uma corrida entre carros, na qual pode haver pilotos igualmente
capazes, cujo meio, o instrumento, que é o carro, determinará quem chegará na
frente.
Outro argumento apontado por aqueles que criticam a política de cotas é que
a mesma viola o Princípio da Igualdade, criando uma discriminação reversa. Viola o
direito daqueles que não estão inseridos no grupo não beneficiado.
Tal sustentação, também, não se mostra razoável. É que, conforme já
explanado alhures, o Princípio da Igualdade não se resume à vertente “formal”, deve
ser visto também em seu aspecto “material”, “substancial”. Nesse sentido, é
impossível tratar de forma igual pessoas que são desiguais, cidadãos que não
tiveram as mesmas oportunidades e que se encontram em situação oposta
faticamente.
Relembre-se aqui, que as ações afirmativas devem ser temporárias, e tão
logo cesse a sua necessidade, deve ser extirpada a medida. Portanto, no atual
momento histórico brasileiro, uma ação estatal desta natureza não viola a Igualdade,
ao contrário, a concretiza, na medida em que reduz as desigualdades sociais, um
dos objetivos da nossa República.
Um terceiro argumento contrário aponta que a reserva de vagas é uma
medida imediatista e inapropriada, porquanto não resolve o problema de forma
definitiva.
Tal afirmação tange a uma crítica política, e não jurídica. Resolver a questão
definitivamente é medida a ser tomada pelo Executivo, através de investimentos e
12
de outros programas. Ao intérprete do Direito, cabe dizer como se concretiza o
direito fundamental à Igualdade e à Dignidade da Pessoa Humana, tendo por base a
realidade fática atual.
Por óbvio, o problema tem que ser resolvido nas cadeias inferiores, em
especial no ensino fundamental e médio, para que todos cheguem ao vestibular em
igualdade de condições, mas até que tal solução sobrevenha, não pode o Judiciário
e o Legislativo ficarem inertes, de “braços cruzados”, desrespeitando a Constituição.
Portanto, é também um argumento criticável já que as ações afirmativas tem
caráter temporário, e a reserva de vagas faz-se necessária em Universidades, para
melhorar as condições sociais, culturais e econômicas de grande parte da
população, vez que os menos favorecidos não conseguem chegar ao 3º grau,
apesar de terem acesso em regra ao 1º e 2º graus. Por isso, reserva em ensino
fundamental e médio não se faz necessária, a despeito da notória qualidade
péssima das instituições públicas desta natureza.
Em quarto lugar, um argumento específico contra o sistema de cotas para
negros, no sentido de que, tal reserva fomenta o ódio e o racismo, e favorece afrodescendentes de classe média alta. Além disso, inexistiriam critérios objetivos para
definir quem é ou não negro.
Veja-se, sustentar que uma reserva deste tipo fomenta o ódio e o racismo, é
contrariar a lógica e o resultado das experiências práticas realizadas a respeito. Isto
porque, ao incluir afro-descendentes no convívio social universitário, possibilita-se o
conhecimento e o respeito às diversidades, à culturas diferentes, à realidades
distintas.
Cerca de metade da população brasileira é negra, mas como é notório, esse
percentual em Universidades está muito aquém disso. O racismo e o ódio decorrem
do desconhecimento entre as culturas, e são propagados por aqueles que sequer
tiveram contato com as realidades dos ofendidos.
A partir do momento em que se possibilita o convívio, a troca de idéias e de
experiências, permite-se a tolerância e a harmonia, como ocorreu nos Estados
Unidos, país no qual era forte a segregação racial, muito diminuída com a política de
cotas para negros nas Universidades.
Quanto à questão do favorecimento de afro-descendentes com alto poderio
13
econômico, também pode ser refutada. Isto porque, caso a medida apenas beneficie
tal classe, poderá ser extinta, vez que temporária, e mais, nada impede que seja
conjugada com outras exigências, tais como a baixa renda, ou o estudo primevo em
escola pública.
Assim, é também um argumento criticável, porque fácil de ser resolvido.
No que tange à falta de objetividade para definir no Brasil, quem seriam os
negros beneficiados, de fato, é uma dificuldade, mas não pode ser considerada um
óbice ao sucesso da medida, eis que, a exigência poderia ser cumulada por exemplo
com fotos, declarações, fiscalizações, e mesmo com a comprovação da necessidade
econômica para conseguir o benefício.
Por conseguinte, nota-se que nenhum argumento contrário à política de cotas
é forte o suficiente para obstar a medida, com o que, passam-se às alusões
favoráveis.
Primeiro, a questão da “justiça compensatória”. Nesta linha, busca-se a
compensação de alguma injustiça ou falha cometida no passado, e isso tanto pelo
Governo quanto por particulares. Esse inclusive, um dos argumentos utilizados para
a defesa da política de cotas para pessoas negras, compensando-se no presente, as
injustiças da escravidão no passado.
Quando se libertaram os negros, não lhes foi dada oportunidade para
profissionalização, formação, fazendo com que ficassem à margem da sociedade.
Reservar cotas para eles, no presente momento histórico, seria uma maneira de
compensar os danos e maleficências causadas, concretizando plenamente sua
inserção social.
Outro argumento importante é a “justiça distributiva”, que consiste na
promoção de oportunidades para aquelas pessoas que não conseguem se fazer
representar de forma igualitária. Não se busca aqui justiça pelo passado, mas pelo
presente, uma vantagem conferida pelo Estado para possibilitar igualdade de
condições.
Nesse sentido, necessária uma reserva de vagas não em razão da raça, mas
tendo em vista a condição econômico-social, concretizando a Igualdade em seu
sentido substancial.
14
Por último, o argumento concernente à promoção da diversidade, eis que as
cotas contribuem não só com a inclusão das pessoas no meio social, mas permitem
que todos convivam com as diferenças, na medida em que se passa a conhecer de
perto a realidade do outro, entendendo-se o que se passa com ele, o que promove
sem sombra de dúvidas a diversidade.
Mais do que isso, o respeito à diferença.
O sistema se justifica a partir do momento em que contribui para o surgimento
de uma sociedade mais aberta, diversificada, tolerante, miscigenada e multicultural.
Desta feita, uma política adequada de cotas, com critérios sérios e relevantes,
mostra-se um avanço da sociedade, e tende à concretização da Igualdade,
conforme brilhante extrato de Marcelo Novelino:
Em síntese conclusiva, parece-nos que, sob uma perspectiva
jurídica, as ações afirmativas representam uma evolução do princípio
da igualdade em seu aspecto substancial. São medidas tomadas
com o intuito de implementar um dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: a redução das desigualdades sociais
(CF, art. 3º, III). Nessa perspectiva, representam uma tentativa do
Estado no sentido de restaurar o equilíbrio social promovendo a
concretização do princípio isonômico. Com efeito, não há qualquer
impedimento constitucional à adoção das ações afirmativas, desde
que pautadas
por critérios
justificáveis, objetivos,
razoáveis,
proporcionais e adequados aos fins almejados.
Do ponto de vista das políticas públicas, ainda que o sistema de
cotas (reserva de vagas) não seja a solução mais justa e adequada
para resolver o problema de forma definitiva, não se pode fechar os
olhos para a realidade atual daqueles que não tiveram igualdade real
de condições e oportunidades para alcançar determinadas posições
na sociedade9.
6. CONCLUSÃO
9
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Método, 2010, p. 396-397.
15
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a viabilidade da política de
cotas para a efetiva melhora e integração da sociedade, buscando clarificar que tal
medida concretiza o Princípio da Igualdade, na medida em que corrige distorções
sociais fáticas, “tratando-se os desiguais, de forma desigual”.
Além disso, o escopo é esclarecer que mencionada ação afirmativa é a que
melhor solidifica a dignidade da pessoa humana, valor constitucional supremo10 e
fundamento da Republica Federativa do Brasil, devendo ser buscado em qualquer
ponderação feita diante de interesses conflitantes.
Claro, não é uma solução definitiva para os problemas educacionais e de
integração social, mas um remédio que enseja resultados efetivos e em curto prazo,
sendo inadmissível o “cruzar dos braços” do poder público, diante de patente
necessidade social.
Assim, um paliativo, temporário, já que não se consegue resolver de imediato
o problema, de outra maneira.
Desta forma, é medida necessária, até que sobrevenham os competentes
investimentos em ensino público fundamental e médio de qualidade, por parte do
Executivo, possibilitando que todos cheguem num patamar razoável de igualdade
quando da disputa por vagas nas Universidades.
Além disso, nada impede que as cotas sejam condicionadas à questão
econômica, devendo o candidato ao programa comprovar a necessidade de sua
inclusão, o que inclusive ensejaria melhores resultados, dentro das proposições
alhures expostas.
Diga-se, por fim, que tal ação afirmativa, embora não imune a críticas, obteve
sucesso nos países em que foi implementada, gerando importantes resultados como
a melhoria nas condições sociais, a integração da sociedade, conforme já
esclarecido no desenvolvimento do trabalho.
Portanto, conclui-se pela viabilidade de sua utilização no atual momento
10
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
16
histórico brasileiro, sem o que, nossa sociedade estará fadada à manutenção
grotesca e velada da grave marginalização e segregação dos mais carentes.
17
7. REFERÊNCIAS
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976. 2ª. ed. Coimbra: Almedina, 2001.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros,
1996.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2008.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Método, 2010.
SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. 32ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2009.
18
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