Número 2 – Janeiro / Julho – 1994 - ISSN 2179 5215 RAÇA TRAÍDA Prof.º Gilmar Luiz Provensi Quando notícias nos chegam de que o supertenista alemão Boris Becker teve que abandonar a Alemanha com sua noiva negra, devido a agressões neonazistas; de que na África do Sul 150 pessoas, todas negras, foram assassinadas em uma semana; de que no Brasil crianças são mortas barbaramente todos os dias, a maioria delas negras; de que nos Estados Unidos certas escolas vetam o acesso a negros, nossa reação é de indignação, de revolta e de vergonha. Mas, o que significa racismo? Qual o motivo que leva raças a segregarem raças? Uma raça pode ser considerada melhor que a outra? Uma análise mais apurada e menos emocional nos leva à questão: o racismo é um grande equívoco da humanidade. Difícil é encontrar justificativas para o racismo. Talvez diferenças culturais possam justificar algum antagonismo, nunca, porém, diferenças biológicas. Esse é o grande equívoco: não existe uma “raça superior”, o padrão genético é o mesmo para qualquer raça. A espécie humana (Homo sapiens sapiens) é detentora de um “pool gênico” que diferencia de todos os outros seres vivos e que permite que chamemos os indivíduos dessa espécie de seres humanos (não seres brancos, seres negros, seres judeus, seres indígenas, seres pobres,...), fisicamente diferentes, sim, mas com a mesma qualidade, HUMANOS. As características de cada espécie estão impressas em forma de uma informação genética, no núcleo de cada célula, em corpos coráveis denominados cromossomos. As unidades de informação genética (genes) estão codificadas no ácido desoxirribonucleico (DNA) dos cromossomos. Cada espécie tem uma constituição cromossômica característica (cariótipo) quanto ao número e à morfologia dos cromossomos. O mapa genético para o conjunto de cromossomos também é característico da espécie. Os genes estão dispostos linearmente ao longo do cromossomo, cada gene ocupando uma posição precisa, ou locus. As células somáticas dos seres humanos possuem 46 cromossomos numerados aos pares de 1 até 22 e mais o par sexual (XY) (fig.1). Os 46 cromossomos das células somáticas normais humanas constituem 23 pares homólogos. Cada membro de um par homólogo carrega a mesma informação genética, isto é, apresenta os mesmos loci gênicos na mesma sequência, embora possa conter alelos iguais ou diferentes em qualquer locus. Um membro de cada par cromossômico é herdado do pai, o outro da mãe e um membro de cada par é transmitido para cada filho. Vinte e dois pares são iguais em ambos os sexos e por isso são chamados de autossomos. Os dois cromossomos sexuais, o par restante, diferem nos homens e mulheres, sendo na maior importância na determinação do sexo. Normalmente, os membros de um par de autossomos são microscopicamente indistinguíveis, o mesmo acontecendo com os cromossomos sexuais femininos, os cromossomos X. 27 Número 2 – Janeiro / Julho – 1994 - ISSN 2179 5215 No sexo masculino, os membros do par de cromossomos sexuais diferem um do outro; apresentam um X idêntico ao X do sexo feminino, herdado da mãe e passado para as filhas, e o outro, conhecido como cromossomo Y, é herdado do pai e passado para os filhos. Essa pequena explanação sobre os cromossomos e genes pode ser ampliada com a leitura de um bom livro sobre Genética Humana. O que pretendo ressaltar aqui é que esse padrão genético não tem variações em todas as raças humanas, em qualquer região do mundo, o que muda de raça para raça e de indivíduo para indivíduo é a expressão genética. Que, em algumas vezes, depende até do meio ambiente. O “pool gênico” da espécie humana, desde milênios, interagindo com o meio ambiente e sofrendo modificações, permitiu que houvesse grandes variações em suas características iniciais: pigmentação da pele, constituição física, feições, cor dos olhos, textura dos pelos etc. Assim, é natural a grande complexidade e o imenso potencial de variabilidade dos grupos humanos. A pretensão do rótulo “raça pura” é própria da ignorância em relação à nossa herança biológica. O racismo é, repito, um grande equívoco, fruto do desconhecimento dos padrões genéticos que regem a nossa espécie. O jornal de agosto/93 da Associação Paulista de Cirurgiões Dentistas traz um artigo sobre discriminação: “Cientistas americanos vão gastar 25 milhões de dólares, nos próximos 5 anos, num esforço internacional de pesquisa para provar definitivamente que as diferenças genéticas entre as raças são apenas cosméticas. O objetivo é provar que as variações entre as raças são desprezíveis quando se analisa o coração molecular das pessoas, o DNA, a matriz microscópica que define todas as características físicas dos indivíduos. Segundo esse ponto de vista, um chinês pode ser mais diferente de outro chinês, do que de um americano. Da mesma forma, dois suecos podem divergir mais entre si do que em relação a um africano”. Todo estudo básico em Biologia tem por finalidade direta ou indireta compreender a evolução como um fenômeno fundamental aos seres vivos. A evolução é conceituada pelos geneticistas como uma mudança nas frequências genéticas de sua população ancestral é tida como mais evoluída. Na prática, quando dizemos que um organismo é mais evoluído que outro estamos considerando apenas determinados aspectos que julgamos mais importantes. Assim, um organismo com uma certa complexidade genômica é tido como mais evoluído que outro genomicamente mais simples (ex.: lêvedos em relação as bactérias). Os organismos mais especializados são também tidos como mais evoluídos que seus parentes mais especializados (ex.: plantas com flores que são polinizadas por uma única espécie de inseto em relação àquelas que são polinizadas por várias espécies diferentes de insetos). Em todos esses casos, as formas mais evoluídas (mais complexas, especializadas ou modernas) representam populações que divergiam fortemente das frequências gênicas de suas populações originais. 28 Número 2 – Janeiro / Julho – 1994 - ISSN 2179 5215 A evolução do Homem começou há cerca de 4,5 milhões de anos. Durante essa longa História, houve drásticas modificações, tanto no meio ambiente quanto no Homem. O que sabemos acerca da vida do Homem primitivo provém principalmente do estudo do pequenos grupos de povos modernos – tais como os bosquímanos e os pigmeus da África, os esquimós, os aborígenes da Austrália e alguns índios sul-americanos – que continuam a ser usuários de instrumentos primitivos. Uma outra fonte de estudos do Homem primitivo, que é a única direta, compõe-se dos vestígios deixados por ele – instrumentos, sítios de habitação e seus próprios ossos. Nessa longa História, como já dissemos, houve grandes modificações no gênero Homo: Homo habilis, Homo erectus, Homo sapiens arcaico, Homo sapiens neanderthalensis e Homo sapiens sapiens (o Homem moderno). O grande tronco da espécie humana, tal qual nós a conhecemos hoje, se diferenciou há cerca de 120.000 anos. Herdou uma carga genética que a fez única. E foram as grandes migrações humanas ocorridas de lá para cá que permitiram que a espécie fosse exposta a novos ambientes, e consequentemente a ocorrência de modificações em algumas particularidades físicas. O lamentável equívoco que produz o racismo seria menos doloroso se não fosse suas implicações éticas, como vimos ao início desse trabalho. O fato é que de um lado, o racismo fere a ética e a existência humana, e de, outro, o ser humano é eminentemente ético. Em Barchifontaine encontramos: “Todas as vezes que o Homem entra em conflito com a Ética ou tenta abandoná-la, ele se sente perdido. O Homem está, pois, mergulhado na experiência Ética ou Moral. Vive-se no meio de ambiguidades e conflitos. Poderá adotar esta ou aquela Moral, mas jamais poderá viver sem ela. Por isso, o fenômeno ético é universal por ser humano”. Assim, há urgente necessidade de que tão absurdo equívoco seja desfeito, e isso passa pelo conhecimento do Homem. Aprendemos com Sócrates que o conhecimento do Homem é fundamental para qualquer consideração de ordem ética: “Conhece-te a ti mesmo para agires bem, para seres pelos teus atos o que és por essência, isto é, Homem”. Essência essa que nos faz todos irmãos genética, física e filosoficamente. Gilmar Luiz Provensi, Prof. De Biologia Geral da FFBS Prof. De Patologia Geral, Genética e Evolução da FOJOP Prof. De Anatomia Humana e Genética da UNIANA 29 Número 2 – Janeiro / Julho – 1994 - ISSN 2179 5215 BIBLIOGRAFIA CURTIS, Helena. Biologia. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1977. 836-73 p. JORNAL DA APCD. Discriminação. Ano 28, Agosto/93, nº 436. 12-3 p. BURNS & BOTTINO. Genética. 6.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1991. 308-20 p. THOMPSON, James S., THOMPSON, Margareta W. Genética Médica. 4.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. 5-20 p. BARCHIFONTAINE, Cristian de Paul e PESSINI, Leocir. Ética, Existência Humana e Profissão. In: Bioética e Saúde. 2.ed. São Paulo: CEDAS, 1989. 101-8 p. 30