A filosofia nos tempos de hoje A Filosofia nos tempos de hoje: algumas questões básicas na formação crítica do sujeito contemporâneo Alex Sander da SILVA1 RESUMO: o artigo discute o ensino da filosofia a partir do debate entre o moderno e o pós-moderno, no espaço educacional. Nesse sentido, desenvolve uma argumentação sobre os deslocamentos paradigmáticos da modernidade, a fim de identificar na crise e na crítica da razão uma tendência à “desrazão”. Todavia, os ideais da racionalidade moderna, que são questionados pelo discurso pós-moderno, ainda preservam elementos de emancipação. Dessa forma, analisamos a importância de reafirmar o caráter emancipador da razão que esteja envolvida na formação crítica dos sujeitos, no processo pedagógico do ensino de filosofia contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: razão; formação crítica; Filosofia. INTRODUÇÃO No limiar desse tempo que se chama “hoje”, a humanidade vislumbra a “apoteose” do progresso técnico-científico com suas transformações organizativas e trazendo seu caráter transitivo em muitas áreas do conhecimento. Supostamente muitos conceitos se alteram, modos de ser e pensar se modificam, gerando um certo malestar nas indicações filosóficas, no processo pedagógico atual. As proclamações teóricas podem estar dissonantes ou não com os aspectos da realidade. Contudo, ao passar um olhar mais atento nas propostas que se apresentam com um tom “salvífico” das crises e dos impasses teóricos, deparamo-nos com as mazelas do capitalismo, e notamos que “todo progresso material e espiritual obtido mediante a divisão social do trabalho não caminhou numa rua de mão única, pois é a mesma humanidade cada vez mais esclarecida que sente o prazer da reincidência da barbárie”. (ZUIN, 1999, p. 43) Zuin (1999) nos lembra que, de qualquer forma, não é muito simples resolver esses impasses teóricos diante da barbárie capitalista. Todavia, limitamo-nos aqui a pensar apenas em alguns elementos sobre o ensino de filosofia, inseridos entre as discussões da modernidade e da pós-modernidade. Tais discussões indicam à atenção nos tipos de mudanças que se focalizam no âmbito educacional e de como participarmos do debate sobre os encaminhamentos da formação crítica dos sujeitos. 1 Mestrando da Universidade Federal de Santa Catarina. Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 9 SILVA, A. S. O que nos interessa é vincular esse debate aos desafios colocados para a educação, nesse tempo, particularmente, no espaço do ensino de filosofia. A perspectiva é reafirmar a atividade crítica da Razão inserida num contexto de complexas relações pedagógicas e no campo das elaborações teóricas contemporâneas, desvelar o florescimento de uma Desrazão. Para tanto se faz urgente uma reflexão sobre as construções teórico-educacionais na busca de sua racionalidade crítica, visando a uma intervenção histórica e formativa adequada frente aos desafios colocados. Iniciamos assim este ensaio com algumas indicações sobre a modernidade, entendendo-a como um modo de ser e pensar que alcançou proporções importantes na reflexão entre a crise e a crítica da razão, isto é, demonstrando seus limites e possibilidades enquanto projeto de racionalidade. Em seguida, referimo-nos à crescente “onda” pós-moderna em seu suposto esfacelamento desse projeto, apelando para os ditames da fragmentação do discurso. Por fim, no conflito dessas indicações, amparamos uma aposta para um direcionamento educacional adequado aos desafios atuais do ensino de filosofia. Que este trave o debate sobre a formação crítica dos indivíduos, em nome de uma racionalidade que “tencione” os projetos educacionais de nosso tempo. Modernidade: entre a crise e a crítica da razão Rostos sem lábio em torno a uma mesa de jogo, Lábios sem cor, tíbias mandíbulas sem dente E mãos convulsas que uma febre deixa em fogo, Palpando o bolso escasso e o seio inda fremente... (Charles Baudelaire) As construções epistêmicas e históricas radicam nas dimensões da existência como uma experiência extravagante de possibilidades e incertezas, clarividência e apreensão de um “jogo”, para usar uma expressão da poesia de Baudelaire. Que tempo é esse? Que espaço temos? Que ciência é essa? Talvez tais indagações trilhem distantes das dimensões pragmáticas que favoreçam o “porto seguro” de um determinado referencial teórico. Porém, tornaram-se singulares as reflexões que pertencem a uma diferente relação com as vivências do cotidiano de cada indivíduo, na experiência chamada modernidade. A modernidade, enquanto expressão de uma modalidade de pensamento, pode ser compreendida de forma dialética, que nos deixa supor um movimento de construção do pensamento, ou seja, nos fazer perceber os limites e as possibilidades da Razão. Entretanto, isso não se caracteriza de modo tranqüilo, uma vez que a forma de racionalidade que se tornou hegemônica no âmbito da discussão filosófica sempre foi problemática, e muito ainda para os dias de hoje. Se, por um lado, nos referimos à modernidade como um modo de ser e pensar que alcançou proporções significativas no projeto de 10 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 A filosofia nos tempos de hoje uma racionalidade secularizada, num saber vinculado a subjetividade, e não mais na autoridade metafísica; por outro, ela se apresenta como um paradoxo de desconstrução, de crise da legitimação histórica, que poderíamos considerar a crise da razão ou ainda do afastamento entre o ideal e o real da proposta iluminista. Pessanha vai alertar que, ao tomar seu caminho, a modernidade se configurou na busca de emancipação do sujeito, liberando-o do jugo da tradição, todavia, seguiu seu caminho cientificista e tecnológico, esquecendo as observações de Bacon, “segundo as quais, quando o objeto de conhecimento for o ser humano, não é possível tratá-lo como coisa” (PESSANHA, 1993, p. 17). De acordo ainda com Pessanha, A razão ocidental se empobreceu a partir da modernidade, quando fez a opção exclusiva pelo modelo matemático. O valor desse modelo é incalculável, mas não pode ser utilizado efetivamente no campo do contingente, do concreto, do histórico e do humano. Nesse terreno, teremos que usar a racionalidade inerente às linguagens não inteiramente formalizadas, e jamais inteiramente formalizáveis, como é a linguagem natural. Não podemos mais querer reduzir a linguagem a uma estrutura apenas sintática, sem levar em conta sua dimensão semântica, pragmática. É a totalidade dessas dimensões que nos permitem construir o discurso da nossa cientificidade sui generis, que é a cientificidade das ciências humanas e sociais (PESSANHA, 1993, p. 28, grifos do autor). De fato, a postulação de um modo da razão enquanto mecanismo do poder e agente de repressão possibilitou o afastamento das intenções iniciais do iluminismo, predominando o modelo matemático de intervenção do real. Esse modo de ser da racionalidade moderna perfaz um caminho que situa uma configuração do conhecimento científico e tecnológico na educação. O que há é uma formalização desse modelo elaborado e desenvolvido nos aspectos da reprodução de uma racionalidade instrumental, que assume o caráter positivista, 2 nas configurações educacionais. Dentro de algumas configurações, de certas reflexões teóricas, pode passar sutilmente despercebida a relação alienante e ideológica do conhecimento, reduzindo o indivíduo a uma peça de uma engrenagem social constituída e compreendida de forma fragmentada em seus interesses. Nesse sentido, as proposições que apontam para uma crise manifestada na modernidade apontam também para uma crise na educação. O caráter educacional moderno, na medida em que assume a configuração fundamentada apenas numa razão instrumentalizada, Para análise sobre a influência do positivismo na educação brasileira, numa visão crítica ver síntese de Sguissardi (1994), Warde (1990, p. 27-33), entre outros. 2 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 11 SILVA, A. S. monológica, demonstra seus aspectos limitados, longe de qualquer forma de aprofundamento crítico nas elaborações pedagógicas. Pedro Georgen vai assinalar: Se a racionalidade e a normatividade encontra-se em crise, educação que ensina saberes e comportamentos é atingida diretamente por isso. Assim como a superação da mitologia e a introdução de um pensar lógico/científico, a adaptação do sistema platônico às verdades judaico/cristãs e o surgimento da modernidade com a substituição do mundo teológico/metafísico da Idade Média pela racionalidade iluminista mudaram a educação, assim também as críticas que de todos os lados recaem sobre a racionalidade moderna devem incidir sobre a teoria e práticas educacionais de hoje. A razão moderna que transformou o ser humano em mônada coisificada, regida, na sua forma de pensar, agir e de relacionar-se com a natureza e seus similares, por uma normatividade utilitarista, positivisada “cientificamente”, continua servindo de parâmetro para a educação, a despeito das criticas. (GEORGEN, 1996, p. 22-23) O projeto iluminista equivalia à pretensão de desenvolver a emancipação do sujeito do jugo da autoridade, libertar os seres humanos do “mito” a partir da capacidade humana de criação e da descoberta científica, ou seja, ampliar o grande ideal de esclarecimento no próprio progresso humano, no seu desenvolvimento dentro da sociedade moderna. Contudo, isso levou a um aprofundamento de um pragmatismo educacional, que foi inserido numa instrumentalização do próprio indivíduo. Sobre isso, os principais representantes da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt3 anotam que os ideais iluministas de racionalidade se desvincularam de sua herança clássica para se transformar em matematização e em funcionalismo, ou seja, tornando-se somente em capacidades de cálculos estatísticos disponíveis na esfera do real (RAMOS, 1989, p.9). Pois, conforme escrevem Adorno e Horkheimer: A redução do pensamento a um aparelho matemático esconde a sanção do mundo como seu próprio instrumento de mensuração. O que parece ser o triunfo da ... racionalidade, a sujeição da realidade toda ao formalismo lógico, é pago pela obediente submissão da razão ao que é dado diretamente. O que é abandonado é a total reivindicação e abordagem do conhecimento: a compreensão do que é dado como tal ... A factibilidade ganha o dia... (ADORNO; HORKHEIMER, 1982, p. 26-7 apud RAMOS, 1989, p. 9) Com o termo Escola de Frankfurt, quer-se designar o trabalho do Instituto de Pesquisa Social criado em 3 de fevereiro de 1923, cujos principais representantes são Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamim, entre outros nomes. 3 12 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 A filosofia nos tempos de hoje Para lembrarmos a visão de Kant,4 o ser humano sem esclarecimento (Aufklärung) se vê impedido de passar da menoridade para a maioridade. Dessa forma, ainda os frankfurtianos vão lembrar que a sociedade moderna e sua racionalidade se transformaram em instrumento disfarçado de perpetuação da repressão social, distanciando-se do sentido de ser da razão. Esse tipo de racionalidade, conforme Adorno e Horkheimer, vinculada ao poder tem como eixo central à dominação da natureza e conseqüentemente do próprio ser humano sobre si e sobre seu semelhante: Mas não se diz que o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade do próprio domínio, é o caráter repressivo da sociedade que se auto-aliena. (ADORNO; HORKHEIMER, 1982, p.160) A partir dessa forma “atrofiada” da razão, algumas problemáticas se tornam evidentes. Mas, ao assumirmos uma forma crítica de análise da modernidade, poderíamos questionar sobre o afastamento total ou não desse modo de ser e pensar o real. Portanto, há uma superação ou um rompimento inevitável que anularia as evidências modernas? Como pensar uma educação nesse tempo em que florescem cada vez mais aspectos de barbárie civilizatória do que aspectos iluministas de esclarecimento da humanidade? As respostas não são tão simples e precisaria de muito mais tempo para apresentar algumas intuições aprofundadas. Não se quer absolutizar ou discutir as posições e oposições profundamente a respeito das formalizações críticas da modernidade, mas, não seria menos importante se posicionar frente às proposições que se colocam como possibilidades e com pretensões críticas ao tentar examinar o estatuto da modernidade, em meio ao advento de um irracionalismo, ou de uma desrazão. PÓS-MODERNIDADE E OS DITAMES DA FRAGMENTAÇÃO DA RAZÃO: A DESRAZÃO Os que afirmam a “desrazão” na (ou da) história partem do suposto de que o mundo social – chamado por alguns de pós-moderno – não se apresenta de forma fragmentária mas, no limite, teria se desmaterializado passando a ser apenas texto, signo, hiper-realidade ou simulacro... (Maria Célia Marcondes de Moraes) De modo que, para Kant (1988, p.11), o Aufklärung é a possibilidade de o ser humano passar da menoridade para a maioridade da razão, ou seja, “O Aufklärung é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele é o próprio responsável. A menoridade é a in capacidade de fazer uso do entendimento sem a condução de um outro... ele (homem) é o próprio culpado dessa menoridade quando sua causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de resolução e coragem para usa-lo sem a condução de um outro – Sapere aude!.” (Kant, 1988, p.11). 4 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 13 SILVA, A. S. As questões do pós-moderno se apresentam em oposição às posições do moderno. Trata-se de um conceito escorregadio para recorrer às posições críticas que buscam reconfigurar o pensamento moderno, colocando a limpo os seus desvios, denunciando o caráter pervertido da própria razão. A pós-modernidade se coloca para efeito desconstrutivo dos sistemas da modernidade, acusada enquanto “palco” extravagante das mazelas da sociedade industrial. Conforme Severino, os autores pós-modernos elaboram uma cerrada crítica à modernidade, buscam o fundamento de uma cientificidade legitima, numa espécie de subjetividade social ou singularidade irredutível de um sujeito meramente socícola, num suposto jogo de linguagem. Com isso, parecem advogar a perda de universalidade do conhecimento científico e da possibilidade de construção de verdade histórica. (SEVERINO, 2001, p. 115) Jean-François Lyotard (1998), em seu livro A condição pós-moderna, ao analisar os efeitos problemáticos da modernidade, examina as condições filosóficas do Iluminismo e do Idealismo, situando esse novo momento de Pós-Modernidade. Lyotard defende a idéia da falência dos sistemas tradicionais de explicação do real, e aposta na “condição pósmoderna” que fará emergir novos elementos em substituição ao abandono das narrativas meta-históricas. Conforme Bordin: A crítica de Lyotard coloca-se em uma perspectiva metahistórica. Isto é, não vê o pós-moderno como uma superação positiva da modernidade iluminista e romântica, mas como categoria que nasce da dissolução interna dos valores da modernidade. Em sua crítica, remete, de um lado, à tradição de Nietzsche e Heidegger, e, de outro, à crítica de Horkheimer e Adorno. (BORDIN, 1994, p. 161) Nesse particular, a pós-modernidade se situa para Lyotard como um momento em que não há mais crédito às “metanarrativas”, no qual está se instaurando um novo modo epistemológico e social. No dizer de Goergen, a “pós-modernidade é para Lyotard a época histórica em que supostamente não se acredita mais na validade destas narrativas (GOERGEN, 1996, p.7). No lugar dessas grandes narrativas, instala-se um modelo que se baseia nos fragmentos lingüísticos em jogo na heterogeneidade, ou seja, “falar é combater, no sentido de jogar, e os atos de linguagem revelam de uma agonística geral” (LYOTARD, 1985, p. 27 apud GOERGEN, 1996, p.10). O evidente abandono das metanarrativas, pelos autores de tendência pós-moderna, leva-os a pensar a realidade histórica, científica e social num imenso baú de migalhas; conforme Moraes, “essas migalhas se constituiriam em novos objetos que, por sua vez, demandariam formas inéditas de tratamento: fragmentos desligados do todo e que 14 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 A filosofia nos tempos de hoje poderiam ser vistos com mais precisão ‘puros’ em sua independência” (MORAES, 1994, p.182). Embora os representantes teóricos da pós-modernidade renunciem à pretensão de universalização da razão nas diversas áreas do conhecimento, poderíamos nos perguntar: que “raízes” filosóficas alimentariam, no âmbito da educação, de modo singular, no ensino de filosofia, a crítica às reconstruções conceituais do projeto da modernidade? Isto é, como recuperar o esclarecimento humano? Se, de um lado, a crítica pós-moderna implica a recusa dos fundamentos racionais, por outro, destrói, talvez um dos caminhos viáveis para um processo de emancipação da razão, ou seja, do próprio esclarecimento. Nesse sentido, é pertinente a observação de Harvey, quando ele afirma: Os pós-modernistas exageram quando descrevem o moderno de maneira tão grosseira, quer caricaturando todo o movimento modernista ... quer isolando uma tendência do modernismo (althusserianismo, brutalismo moderno ou seja o que for) para criticar como se fosse todo o movimento. Houve, afinal, muitas correntes no modernismo, e os pós-modernistas ecoam de maneira bem explícita algumas delas. As metanarrativas [por exemplo] que os pós-modernistas desdenham (Marx, Freud e até figuras como Althusser) eram muito mais abertas, nuançadas e sofisticadas do que os críticos admitem. Marx e muitos marxistas (penso em Benjamin, Thompson, Anderson, entre outros) tinham olho para o detalhe, para a fragmentação e para a disjunção, olho que com freqüência é substituído por uma caricatura nas polêmicas pósmodernas. (HARVEY, 1998) É a partir de análises das conquistas e limites da modernidade que se pode extrair clareza sobre o mundo que se configura. Fazem-se urgentes as críticas mais profundas sobre a modernidade, em seus diversos aspectos, realizando-se separações e construindo definições mais específicas sobre aquilo que se está criticando, ou não se ultrapassarão os limites de uma crítica de enfoque reducionista com objetivos meramente casuísticos e retóricos, como pontua Harvey. Vemos despontar elementos que provocam o que chamaríamos de esvaziamento/morte da atividade educativa. Contudo, percebe-se uma variedade de polêmicas que derivaria muito “fôlego” para tratar da referida “condição pós-moderna”. Optamos por concordar que exista uma “agenda pós-moderna”5 que não se situa como hegemonia teórica e com muitos aspectos delicados para se avaliar, embora já se consiga lançar elementos que influenciam no debate teórico nos encaminhamentos metodológicos, no âmbito educacional. Conforme Sandra Soares Della, GT Filosofia da Educação na 26ª Reunião da ANPED em 2003. 5 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 15 SILVA, A. S. ENTRE RAZÃO E DESRAZÃO NO ENSINO DE FILOSOFIA: IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO CRÍTICA DO SUJEITO [...] concebo como sendo educação [...] não a assim chamada moldagem de seres humanos, porque não temos direito algum de moldar as pessoas a partir do exterior; mas também não a mera transmissão do saber, cuja característica de coisa morta, reificada, já foi suficientemente explicitada; e sim a produção de uma consciência verdadeira [...]. (Theodor Adorno) Afinal de contas, a razão é depurativa ou não? Como fica a formação (Bilgung) do sujeito, em meio à massificação simbólica expressiva nesses tempos de desrazão? Que significa enfrentar “esse mal estar da civilização” a que nos remete Freud? De que forma se pode recuperar as dimensões críticas da própria razão? De fato, são questões complexas. Porém, mesmo que haja controvérsia, o uso da razão ainda é atribuído ao juízo utilizado na definição de posturas diante da realidade, identificadas no entendimento ou na capacidade intelectual do indivíduo de apreender os sentidos das coisas. A questão de que lugar ocupa a razão, em nosso contexto atual ainda é algo de crucial importância para a discussão na educação. A educação, na medida em que se apresente como uma ação proposital, reclama elementos da consciência, que proporcionem uma reflexão e um direcionamento. Exigências essas que vão alem das simplificações do processo e alcançam um nível elevado da complexa relação entre teoria e prática. Como indica Severino: O erro do iluminismo foi considerar que a razão eliminaria todo traço de trevas. Clareia, sim, mas é uma claridade refratada na neblina e ofuscada (...) Ao longo de sua trajetória, desde quando foi observada, a racionalidade humana encontra o maior obstáculo em seu interior, sendo freqüentemente derrotada por si mesma numa implacável luta contra a desrazão (SEVERINO, 2001, p. 10 e 11). O ensino de filosofia, atento às condições desafiadoras da sua realidade, é um espaço que poderia reforçar os encaminhamentos da discussão do papel crítico da razão. Se há uma tentativa de identificar, na crise da razão, o florescimento de um irracionalismo no âmbito das análises educacionais, “se faz também necessário reafirmar um sujeito cognoscente, dotado de racionalidade e capaz de apreender a inteligibilidade do processo histórico e social” (MORAES, 1994, p. 188). Nesse conjunto de circunstâncias, as manifestações contraditórias nos saltam as complexas situações que a educação enfrenta, atualmente. Nesse sentido, admitimos que uma racionalidade crítica se apresenta 16 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 A filosofia nos tempos de hoje ainda como lugar importante na formação dos indivíduos, tanto do ponto de vista da compreensão teórica, quanto das possibilidades práticas que possam, no debate, superar/neutralizar o desmonte do real. Para uma abordagem conseqüente da crise de referências que regulam a prática educativa contemporânea é preciso partir do suposto problemático da relação entre razão e desrazão, face à multiplicidade de orientações. Não se pode tratar simplesmente a racionalidade educacional como um corpo de saberes já à disposição para serem transmitidos de forma mecânica e a-crítica. Trata-se de colocar o conhecimento que será elaborado sob o crivo da reflexão crítica propriamente dita. Se a crise já se passou mais fortemente, nas elaborações teóricas acadêmicas, oscila ainda sua “calda” nos contextos atuais como forma de deslocamentos paradigmáticos nos espaços pedagógicos. A proliferação de teorias e discursos, a diversidade e dispersão da atividade educacional, particularmente no ensino de filosofia, exigem que se tenha clareza dos problemas atuais e se configure uma reflexão sintonizada com esses aspectos, de forma dinâmica e crítica, sem que com isso se caia num “modismo epistemológico”. Se o parâmetro tradicional de racionalidade não corresponde mais ou apenas corresponde a uma determinada postura de dominação, fazse necessário reconstruir as bases filosóficas. Na esteira de Warde, poderia se afirmar: A Filosofia possa dar uma efetiva contribuição a educação se ela for levada a assenhorar, radicalmente, de alguns temas candentes do nosso tempo. Faço coro com aqueles que entendem que duas tarefas indissociáveis estão no horizonte imediato da Filosofia (...): a crítica radical ao positivismo cientificista e o combate corrosivo aos irracionalismos que se anunciam superadores do mal-estar da civilização construída sobre a ciência e a técnica, para que possa chamá-las a razão (WARDE, 1990, p. 32). Para isso, há que se identificar e diferenciar os diversos tipos de “razões” erigidas ao longo da modernidade, apontando suas fragilidades e contradições para se saber a que razão denunciar e recusar. Não se trata de um embate polarizado entre razão e desrazão, em que apenas uma tenha que sair vitoriosa. A razão ainda permanece como elemento importante (porém não suficiente) para se pensar o real e a história. Porém, trata-se de criar novas concepções de razão sobre diferentes bases, redimensionando seu papel na história. É bom lembrar que, quando há o confronto com o paradoxo do moderno e/ou do pósmoderno, se está de frente com o paradoxo da razão. Nesse sentido, é pertinente o que Stein vai considerar: entre aquilo que se organizou em séculos anteriores, na modernidade, contrapondoEducação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 17 SILVA, A. S. se àquilo que se instala (pós-modernidade), existe uma distância considerável que precisa ser levada em conta, na constituição do ideal e do prático. Mas, ao mesmo tempo em que ele (status quo) utiliza as formas exteriores da modernidade e da racionalidade para se estabelecer e se fortalecer, ele recusa os elementos interiores da modernidade, da racionalidade como organização, como respeito à pessoa humana, como processo emancipatório, como um convívio consensual com o poder, como a redução da coerção em nível de direito e de política, etc. (STEIN, 1997, p.19) Levanta-se a suspeita de que o formalismo, a quantificação e o utilitarismo, ainda presentes nas elaborações teóricas, talvez sejam elementos que possam estar inviabilizando o despontar de elementos suficientes para, nos dizeres de Jantsch e Zambiasi, o “redimensionamento da ciência e do conhecimento, bem como a revisão ou ruptura paradigmáticas precisam se infiltrar e fazer parte do cotidiano dos estudos acadêmicos” (2000, p.77), ampliando a formação crítica dos sujeitos. CONCLUINDO: A FILOSOFIA NOS TEMPOS DE HOJE COMO LUGAR DE FORMAÇÃO CRÍTICA A questão da crise da razão apresentada nesse ensaio não é suficiente apenas por fazer a denÚncia em si e por si mesma das dimensões críticas da modernidade. Faz-se necessário a busca do sentido que se queira imprimir às próprias ações emancipatórias, que poderiam auxiliar na realização do ensino de filosofia atualmente. Se, por um lado, tem-se a presença da filosofia no currículo escolar, por outro lado, devese ter o cuidado de que esta se torne realmente espaço de realização formativa dos indivíduos. A discussão sobre o ensinar filosofia está inserida num contexto histórico-social e, além de permear o sentido da formação crítica dos indivíduos, necessita recolocar o debate sobre os aspectos de sua razão epistemológica, do seu existir enquanto disciplina de ensino. A Filosofia, como modalidade crítica do conhecimento, configura-se num conjunto particular de conhecimentos com características próprias no que se refere também à formação. Não é, entretanto, apenas como diz o sentido vocabulário da palavra disciplina,6 a instrução que o aluno recebe do mestre, nem guarda mais o sentido pedagógico de “ginástica intelectual”, mas é, antes de tudo, uma disciplina cultural, pois a formação que propicia diz respeito à significação dos processos culturais e históricos. (1) conjunto das obrigações que regem a vida em certas corporações, em assembléias etc. (2) Submissão a uma regra, aceitação de certas restrições. (3) Ensino, instrução, educação. (4) Matéria de estudo (Dicionário Michaelis). 6 18 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 A filosofia nos tempos de hoje Ao considerar a Filosofia como requisito importante para a elaboração de referências que permitam a articulação entre o conhecimento, a cultura e a formação, seguem as questões: Como situar o ensino de Filosofia no horizonte dos problemas contemporâneos — científicos, tecnológicos, éticos, políticos e artísticos, ou os decorrentes das transformações das linguagens? E, qual crítica filosófica que não destitui os fundamentos referenciais da educação moderna, não deixando somente um caráter cético diante das formulações teórico-práticas? Dentro dessa compreensão, consideramos que o ensino de Filosofia se expressa num espaço educacional como sendo consideravelmente problemático, na medida em que se re-configura nos diversos discursos, mediatizado cada vez mais pela dinâmica contextual nas suas elaborações. A crise educacional vem desenhando novas configurações entre os conceitos de ensino e aprendizagem, sobretudo, a partir da análise do conhecimento contemporâneo marcado pela mudança de referências epistemológicas. Nesse sentido, apontamos a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt como ainda fecunda para a análise da condição humana, nessa conturbada construção epistemológica da educação. Segundo Adorno (1995), a educação não pode ficar presa a modelos ideais, visto que a realidade heterônoma exige reflexão. É necessário questionar a legitimidade de alguém (instituição escolar) determinar o que milhões de pessoas devem e não devem aprender. Isso é extremamente contraditório com a idéia de um ser humano emancipado e autônomo. Para Adorno, a educação não deve ser modelagem de pessoas, mas também não pode reduzir-se à transmissão de conhecimentos. É preciso formar consciências verdadeiras, trabalhar pelo esclarecimento, o que é imprescindível para a formação crítica do indivíduo. De certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade [...]. A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzido nada além do well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente no que em de pior. (ADORNO, 1995, p. 143) A partir do pensamento crítico de Adorno e de suas reflexões sobre a possibilidade de emancipação pela educação, podemos colocar o ensino de filosofia no seu devido lugar, ou seja, a ser um campo fundamental e necessário para a real formação das novas gerações, visto que a reflexão filosófica é um importante caminho possível de resgatar a capacidade de pensamento crítico sobre os problemas contemporâneos. Adorno diz que a adaptação – promovida pela Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 19 SILVA, A. S. instituição escolar – não deve conduzir à perda da individualidade de um conformismo uniformizador. Pois, conforme afirma Adorno: “A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autoreflexão crítica” (1995, p.121). Portanto, uma formação crítica fundamentada numa razão esclarecida urge buscar a emancipação dos indivíduos autoreflexivamente e nos leva a entender que “não é propriamente a razão que está em crise, mas uma forma atrofiada e reducionista de razão que se fez dominante nos últimos séculos” (OLIVEIRA, 1990, 81-82). E Moraes indica: Como se sabe, desde uma perspectiva dialética, o que importa conhecer é o ser real e, nesse sentido, a marcha de um conhecimento que se pretende rigoroso se configura como uma oscilação permanente entre as partes e o todo, entre o abstrato e o concreto, entre o singular e o universal. São precisamente essas relações que o campo da particularidade permite explicitar em toda a sua amplitude, na medida em que é a expressão lógica das categorias de mediação entre um pólo e outro. (MORAES, 1994, p.191) Nesse particular, requerem-se ambientes de reflexão que busquem superar os “devaneios” na forma de compreensão da educação, através de uma racionalidade que assegure espaços de caráter emancipador, que dê conta da pluralidade e das diferenças, bem como formar a identidade de sujeitos capazes de assumir compromissos éticos e também, numa relação dialética, constituir o entendimento de que é preciso estar atento sobre o compromisso pedagógico e social, tanto das instituições, como dos sujeitos envolvidos. No campo educativo, estamos sempre (re)definindo rotas, estratégias e horizontes pedagógicos. Sendo assim, ele (o campo educativo) se apresenta não como um sistema fechado, mas como um vasto campo de desbravação, de descobrimentos, de modo que a busca de melhores caminhos retrata a dimensão dinâmica da educação. Nesse sentido, a filosofia tem uma tarefa urgente, a de resgatar a razão crítica que nada mais é que o resgate de si mesmo. SILVA, A. S. The philosophy in the times of today: some basic questions in the critical formation of the subject contemporary. Educação em Revista (Marília), n. 6, p. 9-22, 2005. ABSTRACT: this article discuss the philosophy teaching is based of the debate about the modern and the post modern in the education space. Meanwhile, discusses about the alteration paradigm of the modernity, in order to identify in the crisis and in the critique of the reason a tendency to “no reason”. But, the ideals of the rationality, yet to preserves elements of the emancipation. For this reason, we analyzed the importance 20 Educação em Revista, n.6, p.9-22, 2005 A filosofia nos tempos de hoje of the to reaffirm the emancipator character of the reason, which has been involved in the pedagogic process of the contemporaneous philosophy teaching. KEYWORDS: reason; critic formation; philosophy teaching. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Iluminismo como mistificação de massas. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Cultura de Massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. BORDIN, Luigi. Razão Pós-Moderna. In: HÜHNE, Leda Miranda (org.). Razões. Rio de Janeiro: Uapê, 1994. CARMINATI, Celso J. O ensino de filosofia no II grau: do seu afastamento ao movimento pela sua reintrodução (a sociedade de estudos e atividades filosóficas-SEAF). 195 fl. Dissertação Mestrado em Educação. Centro de Ciências da Educação – UFSC, Florianópolis, 1997.___. Formação e docência: a trajetória de professores de filosofia. Tese de Doutorado em Educação. 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