Classificação e Base Molecular das Miocardiopatias Introdução Em 1995, a OMS definiu as miocardiopatias como um conjunto de doenças intrínsecas do miocárdio, heterogéneas na apresentação clínica, muitas vezes resultantes de doenças cardíacas específicas ou de doenças sistémicas, outras vezes, idiopáticas, sem causa estabelecida1. Na última década, a investigação molecular nesta área permitiu a identificação de numerosas anomalias genéticas associadas ao aparecimento das diferentes formas de miocardiopatias (dilatada, hipertrófica, restritiva). Recentemente, foram publicadas duas propostas de reclassificação das miocardiopatias, uma pela American Heart Association (AHA)2 e outra, posterior, pela European Society of Cardiology (ESC)3, ambas realçando a importância clínica da identificação da origem genética (hereditária ou familiar) das miocardiopatias. Os algoritmos de classificação, propostos pelas duas Sociedades Científicas, constituem dois modelos algo distintos, mas não antagónicos, de integração dos achados da genética na prática clínica (Figura 1). Este exercício de integração encontra-se numa fase inicial de aplicação prática, uma vez que a maioria dos diagnósticos moleculares é ainda obtido em centros especializados de referência. Elisabete Martins Assistente Hospitalar de Cardiologia do Hospital de São João. Mestre em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina do Porto. Assistente Convidada de Semiótica Clínica da Faculdade de Medicina do Porto. Coordenadora do Grupo de Estudos de Biologia Celular e Genética Cardiovascular da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. I – Propostas recentes de classificação Das miocardiopatias Resumo do artigo Discutem-se as recentes propostas de classificação das miocardiopatias apresentadas pela American Heart Association e pela European Society of Cardiology. Revêem-se as causas genéticas e não genéticas das miocardiopatias hipertrófica, dilatada e restritiva, bem como da displasia arritmogénica do ventrículo direito e do ventrículo esquerdo não compactado. Conclui-se que, numa era em que se utilizam terapêuticas de substituição enzimática em que a farmacogenética assume crescente relevância, o diagnóstico das miocardiopatias ultrapassa a simples diferenciação macroscópica. American Heart Association (AHA) A ocorrência de mutações nos mesmos genes como, por exemplo, da cadeia pesada da b-miosina (MYH7), ou da α-actina cardíaca (ACTC), pode estar na génese de miocardiopatias distintas, como a hipertrófica, dilatada ou mesmo do ventrículo esquerdo não – compactado4,5. Assim, é provável que estejamos muitas vezes a lidar com doenças morfologicamente diferentes, mas idênticas na base molecular. A diferente expressão fenotípica estará dependente de outras variáveis que não conhecemos, incluindo outros factores genéticos ou ambientais. De acordo com a AHA, a definição de miocardiopatia inclui um grupo muito heterogéneo de doenças, em que ocorre disfunção mecânica e/ou eléctrica do miocárdio e que têm frequentemente uma causa genética. Nessa perspectiva, uma manifestação arrítmica de causa genética, mesmo sem evidência de envolvimento muscular cardíaco, pode ser classificada como uma miocardiopatia, uma vez que é apenas uma das possibilidades dentro do espectro possível de fenótipos. Na abordagem diagnóstica inicial, e com o objectivo de orientar o ulterior diagnóstico molecular, será importante distinguir as formas primárias de miocardiopatia, quando 50 Revista Factores de Risco, Nº10 JUL-SET 2008 Pág. 50-56 a doença afecta apenas ou predominantemente o músculo cardíaco, das formas secundárias, em que o miocárdio é apenas um dos múltiplos órgãos atingidos pela doença. Mutações nestes genes podem ser identificadas actual­ mente em cerca de 30-60% dos casos familiares ou esporádicos de MCH, sendo os mais frequentemente envolvidos os da MYH7 - 35-50%, da proteína C de ligação à miosina (MYBPC3) - 20-40% e da troponina T (TNNT2) -5-20%8. Geralmente são mutações do tipo missense, isto é, substituição de um aminoácido por outro. Numa minoria de casos podem identificar-se mutações noutros genes9, como o da titina, proteína ligada à linha Z (TTN), ou da vinculina dos discos intercalados (VCL). Recentemente foram descritas mutações nos genes fosfolamban (PLN) e calreticulina (CALR3), que codificam duas proteínas reguladoras do fluxo do cálcio intracellular10. Embora algumas mutações estejam associadas à ocorrência precoce de hipertrofia grave, a risco acrescido de morte súbita, ou a evolução para a dilatação e disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, em geral, a relação entre a mutação e a expressão clínica da doença permanece pouco esclarecida. Particularmente em famílias com fenótipos graves, é possível identificarem-se, no mesmo indivíduo, 2 mutações distintas no mesmo ou em diferentes genes. Este conceito é importante na prática clínica, uma vez que identificação de uma mutação pode não bastar para um diagnóstico molecular conclusivo. A MCH caracteriza-se por uma penetrância incompleta, dependente da idade, em que a expressão morfológica tende a ocorrer no final da maturidade física (pelos 1718 anos)11. São frequentes as queixas de dispneia, dor torácica, palpitações ou síncope com o esforço. Por vezes são as alterações do ECG, como ondas Q patológicas, critérios de voltagem de HVE ou alterações marcadas da repolarização ventricular, que conduzem ao diagnóstico da MCH em assintomáticos. Embora a mortalidade anual em doentes com MCH seja da ordem dos 0,7%, é possível identificar um subgrupo de indivíduos que reúne critérios clínicos e moleculares de risco12,13, que podem beneficiar da implantação de um cardiodesfibilhador, para prevenção primária da morte súbita. Aliás, a MCH é a causa mais frequente de morte súbita em atletas jovens14. Nestes casos, a histolopatologia do músculo cardíaco mostra as alterações características desta doença, como a hipertrofia dos cardiomiócitos, o desarranjo das miofibrilhas e a presença de fibrose, na ausência de um processo infiltrativo ou de armazenamento. European Society of Cardiology (ESC) Este modelo de classificação privilegia o diagnóstico clínico, morfo-funcional, especialmente útil para a orienta­ ção terapêutica das miocardiopatias. De acordo com a ESC, as miocardiopatias são doenças do músculo cardíaco em que este é morfológica e funcionalmente anormal, sendo possível identificar, com recurso a técnicas de ima­gem não-invasivas, 5 subtipos: miocardiopatia hiper­trófica (MCH), miocardiopatia dilatada (MCD), miocardiopatia arritmogénica do ventrículo direito (MAVD), miocardio­ patia restritiva (MCR) e formas menos comuns, “nãoclassificáveis”. Subsequentemente, cada caso deve ser considerado como familiar ou genético quando a miocardiopatia, ou outra característica fenotípica atribuída à mesma mutação, ocorre noutro elemento da família. Os casos não familiares poderão ser idiopáticos ou adquiridos. Nesta proposta de classificação não está contemplada a subdivisão em formas primárias ou secundárias, assim como não se incluem na definição de miocardiopatia as doenças primariamente arrítmicas. Em comum com a AHA, não é considerada miocar­dio­ patia a disfunção miocárdica secundária a doença valvular, isquemia miocárdica, HTA ou cardiopatia congénita. II – Miocardiopatia hipertrófica MCH é geralmente diagnosticada, através da ecocardiografia bidimensional, quando existe um aumento inexplicado da espessura das paredes do ventrículo esquerdo. A hipertrofia pode ser ligeira (13-15 mm) ou maciça (> 30 mm) e é muitas vezes assimétrica, ao nível do septo interventricular ou região apical do ventrículo esquerdo6. A designação de MCH inclui uma variedade de doenças genéticas e adquiridas, em que o diagnóstico diferencial é fundamental para o tratamento, mas nem sempre fácil na prática clínica. Miocardiopatia hipertrófica de causa genética a) Doença do sarcómero Com uma prevalência fenotípica estimada em 1:500 na população adulta7, a maioria das MCH representa uma doença genética, com padrão de transmissão hereditária autossómico dominante, devida a mutações em genes que codificam proteínas do sarcómero. b) Doenças genéticas do metabolismo Em doentes com MCH, nos quais não se encontraram mutações nos genes das proteínas sarcoméricas, os estudos moleculares conduziram à identificação de outras causas 51 Classificação e base molecular das miocardiopatias genéticas de hipertrofia cardíaca. Algumas destas doenças são raras na população adulta, mas deve suspeitar-se da sua presença quando existe envolvimento multiorgânico, história de crianças ou jovens afectados pela doença, padrão de hereditariedade ligado ao cromossoma X ou recessivo, ou alterações típicas do ECG. Da enorme lista de doenças, são de destacar 3 em particular, devidas a mutações nos genes da subunidade·-γ2 da proteína cinase dependente do AMP (PRKAG2), da proteína-2 da membrana lisossómica (LAMP-2) e da α-galactosidase A (GLA) (15,16). Nestes casos a hipertrofia ventricular deve-se à acumulação de material intramiocárdico anormal. As mutações no gene PRKAG2 geralmente aumentam a actividade da proteína cinase, originando um subtipo de doença de armazenamento do glicogénio. A hipertrofia pode mimetizar a miocardiopatia hipertrófica “clássica”, sendo a presença de pré-excitação no ECG (intervalo PR curto, ondas delta ou ambos) uma pista fundamental para o seu diagnóstico. A pré-excitação é rara nas miocardiopatias devidas a mutações em genes de proteínas do citosqueleto ou do sarcómero. Clinicamente, para além da pré-excitação ventricular, é comum a ocorrência de fibrilhação auricular, seguida mais tarde por disfunção do nó sinoauricular e auriculoventricular, requerendo muitas vezes a implantação de pacemaker. A morte súbita pode resultar da condução rápida anterógrada pelas vias acessórias. Na histopatologia do rato transgénico portador da mutação PRKAG2 N488I, foi possível mostrar que a interrupção do anel fibroso, que geralmente isola os ventrículos das aurículas, é produzida pelos miócitos preenchidos por glicogénio, assim criando o substrato anatómico para a pré-excitação17. A doença de Danon deve-se a mutações no gene LAMP-2, sendo também uma doença rara, transmitida pelo cromossoma X. O espectro fenotípico é muito alargado, incluindo a MCH, a MCD, a presença de pré-excitação no ECG, miopatia esquelética, envolvimento cognitivo e retinite pigmentar, esta última manifestação sendo particularmente frequente nas mulheres afectadas. É muito variável a cronologia e o tipo de associação das manifestações clínicas. Geralmente as mutações no LAMP-2 estão associadas a mau prognóstico, ocorrendo hipertrofia signifi­­cativa, arritmias refractárias ou insuficiência cardíaca grave. Para além da pesquisa de mutações no gene LAMP-2, outra forma de obter o diagnóstico, consiste na realização de uma biopsia muscular esquelética ou cardíaca, para avaliação por microscopia electrónica (acumulação de vacúolos autofágicos) e para estudo imunohistoquímico (ausência de marcação da proteína LAMP-2)15,18. A doença de Fabry, também transmitida pelo cromossoma X, resulta de mutações no gene da GLA. Por 52 deficiência da actividade desta enzima lisossómica, ocorre acumulação progressiva de glicoesfingolipídeos nas células da pele, rins, células ganglionares do sistema nervoso periférico, endotélio vascular e coração19. Apesar da forma clássica da doença ser caracterizada pelo envolvimento multissistémico, com acroparestesias, angioqueratomas, hipohidrose, envolvimento renal, gastrointestinal, cardíaco ou neurológico, existem formas atípicas, em que a lesão renal ou cardíaca ocorre isolada e tardiamente. A doença de Fabry constitui cerca 6% dos casos isolados de MCH em homens20 e 12% em mulheres21. Um estudo recente estima uma prevalência inferior, de 1%, em doentes da população geral com MCPH22. Geralmente a hipertrofia é concêntrica, mas pode ser assimétrica. A nível cardíaco, a acumulação de glicoesfingolipídeos ocorre também nas válvulas e tecido de condução, pelo que, os defeitos de condução, as arritmias e as anomalias valvulares são outras das possíveis manifestações clínicas. O diagnóstico precoce da doença de Fabry é especialmente importante uma vez que pode haver indicação para tratamento específico com a enzima recombinante23. c) Amiloidose hereditária A amiloidose pode causar MCH ou MCR e deve-se, não a uma verdadeira hipertrofia dos cardiomiócitos, mas sim à acumulação de proteína amilóide no espaço intersticial. A amiloidose cardíaca pode ser familiar, frequentemente devida a mutações na proteína transtirretina24. Na região Norte do nosso país é particularmente prevalente a mutação Met30, associada à polineuropatia periférica, embora possa ocorrer envolvimento cardíaco isolado, muitas vezes precedido por defeitos de condução, que podem requerer a implantação de pacemaker25. Na ausência de outras manifestações sistémicas da amiloidose, alguns aspectos eletrocardiográficos (baixa voltagem no ECG, ondas Q de pseudo-necrose) e ecocardiográficos (aspecto hiperecogénico, granulado e brilhante do miocárdio) podem sugerir o diagnóstico de amiloidose cardíaca. O diagnóstico definitivo passa pela realização de uma biopsia tecidular, cardíaca ou da gordura subcutânea abdominal, que revela a presença de material birrefringente com o Vermelho do Congo, e a ulterior caracterização imunohistoquímica e molecular das miofibrilhas. III – Miocardiopatia Dilatada Nesta forma de miocardiopatia ocorre dilatação das cavidades ventriculares e disfunção sistólica do ventrículo esquerdo, esta última geralmente definida pela fracção de ejecção inferior a 45% e/ou fracção de encurtamento inferior a 25%. Tem uma prevalência estimada em 1:2500, Revista Factores de Risco, Nº10 JUL-SET 2008 Pág. 50-56 constituindo uma importante causa de insuficiência cardíaca e de transplante cardíaco2. Miocardiopatia dilatada de causa genética Em trabalhos efectuados na década de 90, em que foram rastreados os familiares de doentes com miocar­ diopatia dilatada considerada “idiopática”, foi possível identificar uma percentagem significativa de casos de MCD de origem hereditária – cerca de 20-35%26,27. Para além de uma história familiar sugestiva ou a presença de determinadas associações fenotípicas, nenhuma outra característica clínica permite, a priori, reconhecer a origem genética da MCD. Face a esta dificuldade, a Sociedade Europeia de Cardiologia, publicou, em 1999, as orientações clínicas para o diagnóstico da MCD familiar28. Segundo estas recomendações, deve suspeitar-se da origem genética quando, perante um caso idiopático de MCD, existe história familiar de MCD (ou de sintomas compatíveis com a mesma, como a dispneia ou edemas), de morte súbita cardíaca inexplicada ou de AVC em idades jovens. Nesses casos, está recomendado o rastreio familiar da doença, incluindo a realização de ECG e de ecocardiograma. A avaliação da família, para além de ser útil para o diagnóstico molecular, pode permitir identificar indivíduos assintomáticos com MCD, possibilitando a instituição precoce da terapêutica médica com inibidores dos sistemas renina-aldosterona e/ou adrenérgico. Do ponto de vista molecular, a MCD é uma doença muito heterogénea. É enorme a diversidade de genes implicados na doença (mais do que 30), sendo o padrão de transmissão hereditária mais comum o autossómico dominante. Um dos genes frequentemente envolvido, sobretudo quando a MCD se associa à presença de perturbação do sistema de condução cardíaco ou a miopatia esquelética, é o da lâmina nuclear A/C. Nalguns casos, os defeitos de condução podem preceder em décadas o aparecimento da MCD. A lâmina nuclear é um componente estrutural importante da membrana nuclear, que também influencia a expressão genética. Algumas das mutações neste gene associam-se a um risco acrescido de morte súbita ou de evento trombo-embólico, provavelmente relacionado com a ocorrência de arritmias auriculares29. Outros genes da MCD familiar são comuns aos da MCH, como os das proteínas sarcoméricas30, ou de doenças neuromusculares, que geralmente codificam proteínas do citoesqueleto celular (ex. distrofina, δ-sarcoglicano)31. Mutações no fosfolamban32, ou mesmo na sub-unidade α do canal de sódio cardíaco (SCN5A)33, podem também ser a causa de MCD. Mutações no ADN mitocondrial cursam geralmente com manifestações multiorgânicas. Embora seja necessário excluir a agressão miocárdica produzida por inúmeros factores exógenos ou a presença de algumas doenças sistémicas para considerar a MCD como de origem hereditária, actualmente começam a ser conhecidos outros factores genéticos, de susceptibilidade individual, importantes para a ocorrência de MCD. Como exemplos, são de realçar os estudos, em modelos animais, que evidenciaram a relação entre a deficiência de distrofina e a susceptibilidade à miocardiopatia induzida pelo enterovírus34 e do gene que codifica o ErbB2 e a toxicidade das antraciclinas35. IV - Miocardiopatia restritiva A MCR é muito menos frequente que as MCD ou MCH, com uma prevalência de 0,2 /100 000 no Japão e de 0,6% em receptores de transplantes cardíacos em Itália36,37. Do ponto de vista ecocardiográfico, caracteriza-se pela normal espessura das paredes ventriculares, com volumes e função sistólica preservadas e dilatação das cavidades auriculares. Ocorre aumento da rigidez do miocárdio, com o consequente aumento das pressões intraventriculares. A “resistência” ao enchimento ventricular pode ser evidenciada pela análise Doppler do fluxo transmitral. A maior perturbação do enchimento ventricular associa-se à maior prevalência de sintomas como a dispneia, palpitações, dor torácica com o esforço e maior risco de AVC por fibrilhação/flutter auriculares ou de morte por insuficiência cardíaca. Só raramente o ECG é normal38. Miocardiopatia restritiva de causa genética a) Doença do sarcómero Mutações na troponina I cardíaca (TNNI3)39, troponina T cardíaca (TNNT2)40 e MYH741 foram recentemente descritas em indivíduos com MCR. Num trabalho recente em famílias com MCH, foi possível identificar 1,5% de indivíduos com fenótipo restritivo, sem hipertrofia significativa42. Neste caso, a fisiologia predominantemente restritiva, parece corres­ ponder a uma variante fenotípica, onde se detectam as alterações histológicas típicas da MCH nas biopsias do músculo cardíaco. Mais uma vez, o facto de, na mesma família, existirem indivíduos com formas distintas de miocardiopatia, aponta para a importância de outros factores, genéticos ou ambientais. b) Desminopatias Variadas doenças neuromusculares podem associar-se à presença de MCR, incluindo a distrofia muscular de Emery-Dreifuss, devida a mutações no gene da lâmina A/C, ou as miopatias mitocondriais43. As miopatias associadas à desmina têm em comum a acumulação intracitoplasmática 53 Classificação e base molecular das miocardiopatias de desmina e podem resultar ou não de mutações no gene da desmina. A maioria destes casos tem transmissão autossómica dominante, mas uma minoria é recessiva ou causada por mutações de novo. A desmina é um filamento intermediário presente nos músculos esquelético, liso e cardíaco, e que estabelece a ligação entre as miofibrilas e o sarcolema, sendo crucial para a integridade estrutural e funcional dos cardiomiócitos. Mutações no gene da desmina podem originar uma variedade de fenótipos onde se inclui a MCR, frequentemente associada a perturbações do sistema de condução cardíaco, com bloqueios aurículoventriculares, com ou sem miopatia esquelética concomitante44. O diagnóstico das miopatias relacionadas com a desmina obriga ao estudo por microscopia óptica e electrónica de amostras de tecido muscular, onde se pode observar a presença de depósitos anómalos de material grânulo-filamentoso, que são imunoreactivos para os anticorpos antidesmina. Apesar de não existir tratamento específico para as desminopatias, o diagnóstico molecular possibilita o rastreio familiar da doença. c) Outras causas genéticas A hemocromatose, a amiloidose ou doenças meta­ bólicas, como a doença de Fabry, são outras possíveis causas genéticas de MCR. Nestes casos, a pista para o diagnóstico reside na associação de características clínicas. Como exemplo, será de suspeitar de hemocromatose se existir, para além da miocardiopatia, hiperpigmentação, artrite, diabetes mellitus ou disfunção hepática. Na hemocromatose a deposição cardíaca de ferro pode ser evidenciada através da ressonância magnética nuclear, técnica que pode obviar a necessidade de realização de biopsia endomiocárdica45. V - Miocardiopatia (displasia) arritmogénica do ventrículo direito Nesta forma rara de miocardiopatia, com uma fre­ quência estimada em 1:5000, predomina o envolvimento do ventrículo direito (VD). Deve-se a uma progressiva perda de miócitos, com substituição regional ou global por tecido fibro-adiposo. Estas alterações são mais frequentes nas câmaras de entrada, de saída e ápex do VD, região designada por triângulo da displasia. O ventrículo es­ querdo é afectado de forma menos exuberante, embora possa evoluir para MCD. Clinicamente, são frequentes as taquiarritmias ventriculares, monomórficas, com padrão de bloqueio de ramo esquerdo, muitas vezes desencadeadas pelo exercício físico, sendo uma causa de morte súbita ou de síncope em idades jovens. 54 No ECG basal, podem estar presentes as ondas épsilon, diferentes graus de bloqueio de ramo direito ou ondas T negativas em V2-3. O ecocardiograma e, mais recentemente, a ressonância magnética, podem mostrar a presença de disfunção global ou regional do ventrículo direito, por vezes, com o aparecimento de dilatações aneurismáticas3,46. A MAVD é uma doença genética em que predomina o padrão hereditário autossómico dominante, tendo sido identificadas mutações em genes que codificam proteínas dos discos intercalados, como a placoglobina ou a desmoplaquina, mas também no receptor rianodinico cardíaco47 ou nas sequências reguladoras do TGF-β348. A doença de Naxos é uma variante fenotípica, em que ocorre a associação da MAVD, com cabelo encaracolado e queratodermia palmoplantar, e deve-se muitas vezes a delecções no gene da placoglobina49. VI-Ventrículo esquerdo não – compactado O desenvolvimento recente de novas técnicas de imagem como o ecocardiograma com contraste, o Doppler tecidular ou a ressonância magnética cardíaca têm permitido um maior reconhecimento e caracterização desta entidade. A designação desta miocardiopatia deriva do aspecto morfológico característico, em que existe um espessamento segmentar do ventrículo esquerdo com uma estrutura de dupla camada: uma epicárdica, compacta e fina, e uma camada interna, não – compactada, com numerosas tra­ beculações e recessos intertrabeculares, que comunicam com a cavidade ventricular. A não compactação é mais frequente ao nível dos segmentos apicais do ventrículo esquerdo, embora o ventrículo direito também pode ser afectado. Para além destes achados morfológicos característicos, pode existir dilatação e/ou diferentes graus de disfunção sistólica do ventrículo esquerdo ou mesmo uma fisiologia restritiva. A disfunção ventricular esquerda parece não ter relação com a extensão da não -compactação, o que indica que, esta última alteração morfológica, considerada classicamente como o resultado da interrupção da embriogénese normal, pode ser apenas um marcador da presença de uma miocardiopatia mais difusa. Clinicamente pode manifestar-se na forma de insuficiência cardíaca, morte súbita, arritmias ou fenómenos tromboembólicos50. O ventrículo esquerdo não-compactado é mais frequente na população pediátrica (9%), do que em adultos (0,014% das miocardiopatias em centros de referência). Pode ser uma compatação “não-isolada” do ventrículo esquerdo, isto é, coexistir com outras malformações congénitas/ Revista Factores de Risco, Nº10 JUL-SET 2008 Pág. 50-56 anomalias estruturais cardíacas, como os defeitos dos septos interventricular ou auricular, a anomalia de Ebstein ou a estenose pulmonar51. Devido à frequente associação familiar desta miocar­ diopatia, os parentes em primeiro grau devem ser rastreados por ecocardiografia, sendo possível identificar, na mesma família, formas distintas de miocardiopatia, como a dilatada ou a hipertrófica. Em adultos predomina a transmissão autossómica dominante tendo sido identificadas mutações nos genes da α-distrobrevina (proteína do citoesqueleto associada ao complexo glicoproteico associado à distrofina), lâmina nuclear A/C52, e mais recentemente nos genes da ACTC e MYH7. A não-compactação pode existir em doentes com distrofias musculares, como as de Becker (distrofinopatia, ligada ao cromossoma X) ou das cinturas. Em crianças pode estar envolvido o gene da tafazina (Xq28), também responsável pelo síndrome de Barth. Conclusão As miocardiopatias são frequentemente doenças mono­ génicas, causadas primariamente por factores genéticos. A possibilidade de transmissão hereditária faz com que, na avaliação clínica destes doentes, se deva incluir o acon­ selhamento genético e o rastreio ecocardiográfico dos familiares. Numa era em que se utilizam terapêuticas de substituição enzimática, e em que a fármacogenética assume uma relevância crescente, torna-se cada vez mais importante o diagnostico diferencial das miocardiopatias, sendo que, para tal, é muitas vezes necessária a referenciação a centros especializados. O diagnóstico das miocardiopatias ultrapassa, portanto, a simples diferenciação macroscópica, ideia esta realçada nas últimas recomendações da AHA e ESC para a classificação das miocardiopatias. Elisabete Martins Bibliografia 4. Monserrat L, Hermida-Prieto M, Fernandez X, et al. Mutation in the alpha-cardiac actin gene associated with apical hypertrophic cardiomyopathy, left ventricular non-compaction, and septal defects. Eur Heart J. 2007; 28: 1953-1961 5. Hoedemaekers Y, Caliskan K, Majoor-Krakauer D et al. Cardiac β-myosin heavy chain defects in two families with non-compaction cardiomyopathy: linking non-compaction to hypertrophic, restrictive, and dilated cardiomyopathies. 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