5 Avaliação

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FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO E NEGÓCIOS DE SERGIPE
NÚCLEO DE POS-GRADUAÇAO E EXTENSAO
CURSO DE ESPECIALIZAÇAO EM
PROGRAMA DA DISCIPLINA
DISCIPLINA: TEORIA GERAL DO DIREITO DO TRABALHO
PROFESSOR: Fernanda Duarte
CARGA HORÁRIA: 12 horas/aula
DATAS: 28 E 29 DE JANEIRO 2006
1 Ementa: Pós-Positivismo. Princípios. Regras. Dworkin, Alexy
2 Objetivos
a) construir um panorama geral sobre o debate contemporâneo sobre o tema proposto;
b) identificar as conseqüências fundamentais e repercussões práticas da adoção de uma concepção
pós-positivista sobre o Direito;
c) estabelecer os elementos necessários mínimos para a elaboração de uma futura reflexão crítica
sobre as diferentes concepções sobre o Direito e suas respectivas derivações.
3 Conteúdo Programático:


As visões clássicas sobre o Direito e o Pós-Positivismo: mudanças de paradigmas?
A estrutura normativa do ordenamento jurídico:
o a problemática dos Princípios e Regras
o alguns princípios em especial


Pós-positivismo e neoconstitucionalismo
A repercussão da adoção de uma concepção pós-positivista para metodologia da
interpretação do direito
Destaques sobre as obras de Dworkin e Alexy
Balanço crítico: entre ganhos e perdas


4 Procedimentos Metodológicos: Sessões expositivas e análise de caso (dinâmica de grupo).
5 Avaliação
Relatório sobre o desenvolvimento do Curso, descrevendo –se as atividades desenvolvidas, os
debates realizadas e consignando-se uma pequena
análise crítica sobre o conhecimento
apresentado.
6 Bibliografia (básica recomendada)
ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, Universidad de
Alicante, no. 5: p. 139-156, 1988.
_____. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
_____. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais,
mimeo [Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de
Janeiro, em 11.12.98]
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo
tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 851, 1 nov. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 26 jan. 2006
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional . 17.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
CASALMIGLIA, Alberto. Postpositivismo. Doxa, n. 21-I, p. 209-220, 1998. Disponível em: <
http://www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA/>. Acesso em: 25 jan. 2006.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina,
1998.
CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.
CRUZ, Luis M. La constitución como orden de valores. Granada: Comares, 2005.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério.São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3.ed. São Paulo: Malheiros,
1997.
REIS, Jane Moreira dos. Breves notas sobre as implicações para a teoria do direito da adoção de
uma perspectiva pós-moderna de ciência. Revista da Faculdade de Direito da UCP, Rio de Janeiro,
n.01, p. 49-58, 1999
SANCHÍS, Luis Prieto. Sobre principios y normas: problemas del razonamiento juridico. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1992.
SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. 2.ed. Rio de
Janeiro: Lumen Iuris, 2004.
__________ . Jusnaturalismo e Juspositivismo: As Primas-Irmãs da Modernidade. Revista da Ajufe,
Rio de Janeiro, v. 66, p. 109-121, 2001.
SILVA, F. D. L. L. ; REIS, J. M. . A estrutura normativa das normas constitucionais. Notas sobre a
distinçaõ entre princípios e regras. In: Manoel Messias Peixinhos; Isabella Franco Guerra. (Org.).
Os princípios da Constituição de 1988. 1 ed. Rio de Janeiro, 2001, v. 1, p. 3-24.
Suporte bibliográfico:
A ESTRUTURA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
notas sobre a distinção entre princípios e regras1
JANE REIS GONÇALVES PEREIRA2
FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA3
"Quando comecei a escrever, sempre dizia a mim mesmo que minas idéias eram
bastante superficiais - que se um leitor as desvendasse, me desprezaria. E, assim
me disfarcei."
Jorge Luis Borges, Esse ofício do verso
SUMÁRIO
Introdução.
I) A estrutura normativa das normas constitucionais:
1) sobre princípios, regras e positivismo.
2) a distinção lógica ou qualitativa (forte) entre princípios e regras.
3) a distinção quantitativa ou de grau (fraca) entre princípios e regras.
II) Palavras Finais: os critérios de identificação de princípios.
Bibliografia.
Introdução.
As normas constitucionais encontram-se estruturadas normativamente sob a forma
de princípios e de regras. Essa afirmação, em sua aparente simplicidade, pressupõe tomada de
posição quanto a diversas questões, tendo implicações diretas no âmbito da interpretação
constitucional.
1
Referência bibliográfica: SILVA, F. D. L. L. ; REIS, J. M. . A estrutura normativa das normas
constitucionais. Notas sobre a distinçaõ entre princípios e regras. In: Manoel Messias Peixinhos; Isabella
Franco Guerra. (Org.). Os princípios da Constituição de 1988. 1 ed. Rio de Janeiro, 2001, v. 1, p. 3-24.
2
Jane Reis Gonçalves Pereira é professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro ; Doutora em Direito Público - UERJ; Juíza Federal.
3
Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva é professora do Programa de Pós Graduação em Direito da
Universidade Gama Filho e dfa Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis; Doutora em
Ciências Jurídicas - PUC/RJ; Juíza Federal.
De fato, embora haja concordância razoável quanto ao caráter normativo dos
princípios, o problema da sua conceituação e dos critérios de distinção com as regras envolve muita
dúvida, sendo de capital importância para o delineamento do aspecto morfológico das normas
constitucionais, o qual, por sua vez, tem repercussão direta na solução dos problemas hermenêuticos
que as envolvem.4
É possível, entretanto, afirmar que as discussões se desenvolvem a partir de certas
concepções que são compartilhadas pelas diversas teorias sobre o conceito e a natureza dos
princípios. Os debates partem, como regra, do consenso acerca da normatividade e do maior grau
de abstração dos princípios.
Nesse contexto, o presente estudo pretende sistematizar, em linhas gerais, o debate
sobre a diferença entre princípios e regras, abordando as vertentes de pensamento mais
representativas sobre o tema, tendo em vista o aporte da doutrina contemporânea.5
I. A estrutura normativa das normas constitucionais:
1. Sobre princípios, regras e positivismo6.
Já não é novidade afirmar que a concepção que apresenta o Direito como um
sistema puro de regras é insuficiente para explicar todas as dimensões do fenômeno normativo. O
tema dos princípios - e, especialmente, da força jurídica a eles atribuída -, retomou, a partir do
constitucionalismo pós-guerra, lugar de prestígio na teoria do direito e da constituição.7
É interessante observar que essa nova idade de ouro8 dos princípios surge num
4
Veja-se, a propósito, Alexy, Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos
fundamentais, mimeo [Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa,
Rio de Janeiro, em 11.12.98], que destaca as implicações para o problema dos conflitos entre direitos da
adoção de um modelo de princípios ou de um modelo de regras. Como afirma o autor, “Princípios e
ponderação são dois lados de um mesmo fenômeno [...] quem empreende ponderação no âmbito jurídico
pressupõe que as normas entre as quais se faz a uma ponderação são dotadas da estrutura de princípios e quem
classifica as normas como princípio acaba chegando ao processo de ponderação”p.10. (tradução livre)
5
Ressalte-se que eventuais repetições de conceitos, promovidas ao longo do texto, objetivaram conferir
maior clareza aos temas tratados.
6
Sobre o que é o positivismo, veja-se REIS, Jane Moreira dos. Breves notas sobre as implicações para a
teoria do direito da adoção de uma perspectiva pós-moderna de ciência. Revista da Faculdade de Direito da
UCP, Rio de Janeiro, n.01, p. 49-58, 1999.
7
Associando a importância dos princípios ao pós-positivismo, veja-se, por todos, Paulo Bonavides, Curso de
Direito Constitucional. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.237 : “A terceira fase [referindo-se as fases da
positivação dos princípios], enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos
constituintes das últimas décadas deste século. As novas constituições promulgadas acentuam a hegemonia
axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos
novos sistemas constitucionais”.
A metáfora é de Luis Prieto Sanchís, referindo-se tanto “ao ambiente teórico da filosofia do direito como ao
mundo mais limitado do direito espanhol a partir da Constituição de 1978”. Sobre principios y normas:
8
contexto de superação da concepção formalista que não reconhecia em todas as disposições
constitucionais valor normativo9, e que negava eficácia jurídica precisamente àqueles dispositivos
que veiculavam princípios, apresentando abertura semântica e menor densidade jurídica. De fato, é
lícito supor que há estreitas relações entre o reconhecimento da normatividade dos princípios e a
aceitação da idéia de que todas as normas constitucionais são dotadas de imperatividade e eficácia.
As duas concepções inserem-se em um processo de questionamento das premissas do positivismo
clássico, que concebia o direito exclusivamente como um sistema de regras, destinando aos
princípios o papel secundário de colmatação de lacunas e de orientação da atividade interpretativa.
O destaque atribuído aos princípios na atualidade não pode também ser apartado da
progressiva importância que os direitos fundamentais assumiram nas últimas décadas. A
positivação constitucional dos direitos deu-se sobretudo por meio de disposições dotadas de alto
grau de abertura e forte carga valorativa, apresentando a estrutura que é peculiar aos princípios.
Nessa perspectiva, direitos fundamentais e princípios são elementos indissociáveis na teoria
constitucional.
No plano teórico, a posição de relevo conferida aos princípios no direito
contemporâneo está normalmente relacionada a ataques ao positivismo jurídico, sendo produto das
reflexões de uma corrente de pensamento que, por contextualizar-se dogmaticamente como
contrária às concepções positivistas clássicas, convencionou-se denominar de pós-positivista10.
Esta matriz teórica, denunciando a insuficiência da subsunção como método de aplicação das
normas, concebe o sistema jurídico como um conjunto de regras e princípios, sendo estes últimos a
porta de conexão entre o Direito e a Moral. Pode-se citar, como representantes importantes dessa
corrente - e sem qualquer pretensão de esgotamento - Ronald Dworkin11, Chaïm Perelman12 e
Gustavo Zagrebelsky13.
Vale destacar que a concepção de que a normatividade dos princípios é
incompatível com o positivismo jurídico, aliada à identificação do caráter principiológico de grande
parte das normas constitucionais, teve por resultado a contraposição - feita por alguns teóricos entre constitucionalismo e positivismo. Nessa ordem de idéias, passou-se a falar no Estado
Constitucional como modelo superador do Estado de Direito, e na substituição do princípio da
legalidade pelo princípio da constitucionalidade14.
Entretanto, a oposição estabelecida entre o caráter normativo dos princípios e o
positivismo jurídico é apresentada como uma evidência apenas para os antipositivistas. Assim, nem
sempre o recurso à idéia de princípios relaciona-se com uma abordagem não-positivista do direito.
problemas del razonamiento juridico. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p.17.
9
CRISAFULLI, Vezio. La constituizione e la sua disposizione di princípio. Milan: Giuffrè, 1952.
A expressão, contudo, não é imune a ambigüidades.
10
11
Taking rights seriously. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1978.
12
La lógica jurídica y la nueva retórica. Civitas: Madrid, 1979, p. 103.
13
El derecho dúctil. Lei, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 1995.
14
Nesse sentido, veja-se ZAGREBELSKY, op. cit. Em sentido contrário, visando a conciliar constitucionalismo
e positivismo, confira-se SANCHÍS, Luis Prieto. Constitucionalismo y positivismo. México: Fontammara, 1997
e PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Sobre o positivismo jurídico. In: Positivismo jurídico y derechos
sociales. Madrid: Dykison, p. 83-89, 1999.
Os positivistas contemporâneos, sem discrepar da idéia de normatividade dos princípios e sem
negar que desempenham relevante papel no constitucionalismo, afirmam que tais premissas não são
incompatíveis com o positivismo jurídico, mas, ao contrário, são plenamente adaptáveis àquele,
sendo viável falar em um positivismo de princípios15. Afirma-se, ainda, que o ataque promovido
contra o positivismo não tem seu ponto central na afirmação da normatividade e na força
obrigatória dos princípios, mas na distinção que se faz entre estes e as regras16. A discussão crucial
a respeito dos princípios deixa, então, de referir-se à sua força obrigatória - hoje indiscutível -,
passando a envolver sua morfologia e a extensão de sua função no processo hermenêutico.
Essa nova postura positivista é bem retratada na crítica formulada por Gregorio
Peces-Barba ao livro de Gustavo Zagrebelsky17:
“Não posso [...] compartilhar da impossibilidade de passar de um
positivismo das regras a um positivismo dos princípios, destacada por
Zagrebelsky no capítulo sexto de sua obra. A partir da unidade, coerência e
completude, com esta leitura que fazemos, não só o positivismo não
desaparece, como é a chave da explicação que permite que as normas
principiais possam funcionar em um sistema, e não no caos inseguro que
existia no Direito pré-moderno. Dentro do sistema, e na concepção
positivista, com a primazia da Constituição, cabem e são integráveis esses
elementos tópicos”18.
De fato, o recurso aos princípios, por si só, não é inconciliável com o positivismo
jurídico. G. Carrió, após listar uma série de usos possíveis da palavra princípio, menciona duas
acepções que são compatíveis com o positivismo: “a) o entendimento dos princípios como pautas
de segundo grau, que indica como devem entender-se e, às vezes, complementar-se as regras de
primeiro grau; e, b) o recurso aos princípios como propósitos, objetivos metas ou policies de uma
regra ou conjunto de regras do sistema, certas exigências fundamentais e moral positiva e certas
máxima da sabedoria jurídica tradicional”19.
Assim, embora seja bem aceita na teoria do direito a idéia de que princípios e regras
são tipos de normas20, ambos dotados de imperatividade, a distinção entre as duas categorias
15
PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Desacuerdo y acuerdos con una obra importante. In: Positivismo
jurídico y derechos sociales. Madrid: Dykison, p. 111-130, 1999.
16
SANCHÍS, Sobre principios y..., op. cit.
17
El derecho dúctil. Lei...., op. cit.
18
PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Desacuerdo y acuerdos ..., op. cit. p. 126.
19
Princípios y positivismo juridico. Argentina: Abeledo-Perrot, [s.d.], p. 42. (tradução livre)
O consenso é apenas relativo, havendo ambigüidades terminológicas. Embora a idéia de que os princípios
são categorias normativas seja bem acolhida na doutrina, há ainda muita imprecisão semântica quanto à
dicotomia princípios e regras, ou princípios e normas. De fato, há quem empregue a distinção princípios/
normas atribuindo à expressão norma o significado que aqui se confere à expressão regra. Outrossim, não há
uniformidade terminológica mesmo quando se trata de traduções. Note-se que Ronald Dworkin, em seu
“Taking Rights Seriously”, fala em “principles” e “rules”. op. cit., p. 22 e ss. A tradução espanhola da
referida obra, porém, refere-se a “principios y normas” (Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1984). Não
obstante, há autores espanhóis que fazem menção à distinção de Dworkin como de “principios y reglas”.
ANSUÁTEGUI, Fancisco Janvier. El derecho como norma. In: PECES-BARBA, Gregorio et al. Curso de teoria
del derecho. Barcelona: Marcial Pons, 2000. cap. 6, p. 147-173. A propósito do tema veja-se, também ESSER,
20
normativas varia substancialmente em função das diversas matrizes teóricas. Alexy, identificando
duas grandes categorias de distinções, classificou-as como distinções fortes ou distinções fracas a
respeito dos princípios e das regras, segundo o tipo de critério utilizado21. As distinções fortes
pressupõem uma diferença qualitativa ou lógica entre princípios e regras, enquanto as fracas
orientam-se no sentido de que a diferença entre as duas espécies normativas é apenas quantitativa
ou de grau22.
A diferença fundamental no que tange ao conceito de princípio e ao lugar que ocupa
no sistema jurídico decorre, hoje, exatamente da adoção de uma distinção forte ou de uma distinção
débil. Vejam-se as peculiaridades de cada uma delas.
2. A distinção qualitativa ou lógica (forte) entre princípios e regras.
Os principais representantes da concepção forte quanto à distinção entre princípios
e regras são Ronald Dworkin e Robert Alexy. Ambos apontam aspectos lógicos e substanciais que
diferenciam princípios e regras, os quais tem implicações diretas na forma de interpretação das duas
categorias normativas.
Ronald Dworkin, sucessor de Herbert L. Hart na cadeira de Filosofia do Direito da
Universidade de Oxford, formulou sua distinção entre princípios e regras no quadro de uma severa
crítica à versão do positivismo jurídico representada por Hart.
Para Dworkin, o positivismo jurídico, ao conceber o direito exclusivamente como
um modelo de regras, ignora uma importante dimensão do fenômeno jurídico, que consiste no papel
relevante que princípios desempenham no sistema jurídico, e, especialmente, na solução dos casos
difíceis (hard cases). Os princípios, segundo Dworkin, são diferentes das regras do ponto de vista
estrutural e lógico, representando ponto de aproximação entre o direito e a moral. Na concepção do
autor, um princípio é um “standard que deve ser observado, não porque favoreça ou assegure uma
situação econômica política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência da justiça,
da eqüidade ou de alguma outra dimensão da moralidade”23. Assim, a presença dos princípios no
Direito impede que o fenômeno jurídico seja identificado a partir de processos meramente formais e
alheios a considerações morais substantivas, fazendo cair por terra a tese positivista que pressupõe a
Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona: Bosch, 1961,
p.183-287, que aparta a distinção princípio-norma dos sistemas fechados (Direito Civil Codificado) da
distinção “principle-rule” dos sistemas abertos (Common Law).
21
ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, Universidad de Alicante, n. 5,
p. 139-156, 1988.
22
Identificam-se as distinções fortes, normalmente, como contrárias ao positivismo. Assim, Sanchís
considera que a teoria forte dos princípios - que dá lugar a distinção forte dos princípios e regras - supõe que
“o horizonte de normatividade não se esgota nos standards de conduta que contam com respaldo institucional,
mas se abre ao mundo da moralidade, da política e das exigências da justiça que se supõe objetivas e
suscetíveis de conhecimento, compondo assim uma ordem não diferenciada da moral e do Direito, onde os
princípios, situados na cúspide do sistema, dotariam de sentido e coerência valorativa cada uma das regras
particulares”. op. cit. p. 67. (tradução livre)
23
op. cit., p. 22. No texto original: “I call a principle a standard that is to be observed, not because it will
advance an economical, political, or social situation deemed desirable, but because it is a requirement of
justice or fairness or some other dimension of morality”.
separação estanque entre o Direito e Moral24.
Como foi dito, a distinção entre princípios e regras no quadro teórico de Dworkin é
de natureza lógica. Segundo o autor:
“ambos estabelecem standards que apontam para decisões particulares
relativas a obrigações jurídicas em determinadas circunstâncias, mas
diferem quanto ao caráter da orientação que estabelecem. As regras são
aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Se os fatos que a regra estipula estão
dados, então ou a regra é válida, caso em que a resposta que fornece deve
ser aceita, ou então não é, caso em que em nada contribuirá para a
decisão”25.
Enquanto as regras são aplicadas na forma de disjuntivas (tudo ou nada) - a partir
da aferição de sua validade - os princípios incidem de forma diferente, porque não estabelecem
conseqüências jurídicas que devem ocorrer automaticamente quando determinadas condições se
apresentem. Por essa razão, quanto aos princípios, não há como prever todas as possíveis formas de
aplicação que podem ensejar, pois estes enunciam razões que indicam determinada direção, sem
exigir uma decisão particular.
Dessa diferença entre as regras e os princípios decorre uma outra: os princípios
possuem uma dimensão de peso ou de importância, que não está presente nas regras. Essa
característica se torna visível nos casos de conflito. Quanto dois princípios opostos colidem incidindo no mesmo caso concreto - a solução do conflito tem que ser encontrada levando-se em
conta o peso relativo de cada um deles.
24
Para Sanchís,. "o positivismo sustenta que as normas ou modelos de conduta que se impõem aos cidadãos e
que são tomadas em consideração pelo juiz na hora de valorar o comportamento daqueles, podem ser
normalmente identificados através de alguma regra ou critério do próprio sistema jurídico e que, ao final,
encarnam alguma prática social verificável. A institucionalização dos meios de produção normativa facilita,
sem dúvida, a identificação das normas do sistema (leis, regulamentos, sentenças, etc.), porém, tão pouco,
resulta imprescindível: o positivismo, ao menos em sua versão, mais evoluída e "realista", não encontra
nenhuma dificuldade em considerar como normas jurídicas aqueles modelos de conduta que contam com
certo respaldo social, em concreto, com um respaldo suficiente para impor-se mediante o uso da força; em
qualquer sistema jurídico, mesmo num sistema primitivo, as normas podem carecer de institucionalização (o
costume), porém, pelo menos, hão de gozar desse respaldo social que nos permita afirmar que em caso de
desvio por parte dos destinatários deverá produzir-se, de acordo com a prática desse ordenamento, uma reação
jurídica, ou seja, um ato de coação.” op. cit. p. 69-70 (tradução livre). Porém, isto não quer dizer que a
concepção positivista ignore que por trás de cada norma ou decisão jurídica se ache uma opção moral ou
política. Ou seja, "o positivismo aceita sem dificuldades que as disposições legislativas descansem em uma
certa filosofia política e encarnem princípios morais, porém, nega que sua validade seja dada por aquela
filosofia ou por estes princípios, senão pela decisão de um órgão que assume a responsabilidade de dar
respaldo a estes critérios extrasistemáticos, combinando-os de forma variável com as prescrições que derivem
de normas superiores, isto é, combinado-os com os padrões de comportamento identificáveis segundo alguma
regra de reconhecimento.” .” op. cit. p. 72-73 (tradução livre)
op. cit., p. 24. No original: “The difference between principles and legal rules is a logical distinction. Both
sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances, but they
differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in all-or-nothing fashion. If the facts a
rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it suplies must be accepted, or
it is not, in which case it contributes nothing to the decision”.
25
Em relação às regras, por não possuírem a dimensão de peso, a solução de um
conflito aparente não pode ser que uma ceda espaço à outra em função de possuir maior peso. O
afastamento de uma das regras só pode ocorrer a partir da aplicação do critério hierárquico,
cronológico ou da especialidade. É possível, também, a prevalência de determinada regra em razão
de estar amparada por um princípio mais importante26.
O que releva notar quanto ao modelo de Dworkin é que o que determina a
aplicabilidade das regras são critérios de natureza formal (validade) - daí a identificação do modelo
de regras com o positivismo -, enquanto o que determina a incidência de um princípio são aspectos
materiais ou substantivos, pois o peso dos princípios nos casos concretos é identificado a partir de
processos de valoração que não envolvem procedimentos puramente formais, mas demandam
considerações de natureza moral.
Robert Alexy também estabelece um critério que diferencia regras e princípios sob
o aspecto qualitativo ou lógico, embora o faça em um contexto teórico diverso daquele que orienta
Dworkin. Segundo o autor:
“O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os
princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na melhor
medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.
Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão
caracterizados pelo fato que podem ser cumpridos em diferentes graus e
que a medida de seu cumprimento depende não só das possibilidades reais
mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídica é
determinado pelos princípios e regras opostos.
De outro lado, as regras são normas que só podem ser cumpridas ou
não. Se uma regra é válida, então deve fazer-se o que ela exige, nem mais
nem menos. Portanto, as regras contém determinações no âmbito do fática
e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e
princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra ou é um
princípio”27.
Como se vê, o ponto crucial da teoria de Alexy é a qualificação dos princípios como
mandados de otimização, ou seja, como normas que podem ser cumpridas em diferentes graus.
Como consigna Peczenik “esse modo de qualificação não é binário, mas por graus, de mais ou
menos”28.
A concepção de que os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus
significa que se trata de mandados prima facie, e não de mandados definitivos. Isso decorre do fato
de que os princípios apresentam razões que podem ser afastadas por razões opostas, não trazendo
em si determinações acerca da forma que deve ser resolvida a tensão potencial entre a razão que
contém a as que eventualmente se apresentem opostas. Assim, “os princípios carecem de conteúdo
op. cit. p. 27. No original: “A legal system may also prefer the rule supported by the more important
principles”. A posição de Robert Alexy, a esse respeito, é diferente - não obstante seu modelo de regras e
princípios seja semelhante: “Un principio es soslayado cuando en el caso concreto el principio opuesto tiene
um peso maior. En cambio, una regla todavía no es soslayada cuando en el caso concreto el principio opuesto
tiene um maior peso que el principio que apoia a regra”. op. cit., p. 100.
27
Teoria de los derechos.... op. cit. p. 86-87 (tradução livre).
26
28
Dimensiones morales del Derecho, Doxa, no. 8, 1990, p. 92 (tradução livre).
de determinação com respeito aos princípios contrapostos e às possibilidades fáticas”29.
Para Alexy, assim como para Dworkin, a diferença existente entre princípios e
regras evidencia-se a partir da forma de solução demandada para os casos de colisão.
Nas hipóteses em que entram em conflito duas regras só pode haver duas formas de
solução: introduzindo-se uma cláusula de exceção que elimina o conflito ou declarando inválida
uma das regras. Isso ocorre porque a o conflito de regras se dá na dimensão da validade, e a
validade jurídica não é graduável pois, “se uma norma existe, é válida e aplicável a um caso
concreto significa que vale também sua conseqüência jurídica”30.
Quanto às colisões de princípios, devem ser solucionadas de forma completamente
diversa. A solução não se encontra em declarar a invalidade de um dos princípios, ou em entender
um deles como uma exceção ao outro. Sempre que dois princípios, aplicáveis a um mesmo caso,
entram em conflito - por conterem mandamentos opostos - um dos princípios tem que ceder em face
do outro. E a determinação sobre qual princípio deve ceder - e em que medida - é feita a partir de
um processo de ponderação do peso que cada um deles no caso concreto. Segundo Alexy, a lei de
ponderação determina que “a medida permitida de não satisfação ou de afetação de um dos
princípios depende do grau de importância da satisfação do outro”31.
Assim, na hipótese em que algo é permitido por um princípio mas vedado por outro,
um dos princípios deve recuar, sem que algum deles seja declarado inválido, ou inserida cláusula de
exceção. Dessa forma, o problema do conflito de regras se resolve na dimensão de sua validade,
enquanto que dos princípios é solucionado na dimensão do valor.
As concepções de Alexy e Dworkin sobre a distinção entre princípios e regras,
como se vê, são bastante semelhantes. As diferenças expressivas existentes podem ser atribuídas,
talvez, ao fato das teorias haverem sido formuladas em contextos jurídicos diversos, e não
propriamente a questões de fundo.
3. A distinção quantitativa ou de grau (fraca) entre princípios e regras
As distinções fracas de regras e princípios identificam-se, essencialmente, com as
abordagens positivistas do Direito. O que as diferencia das teorias de distinção forte é a concepção
de que os princípios não guardam diferença de ordem lógica ou substancial em relação às regras,
sendo apenas as normas fundamentais do sistema, cuja marca é o maior grau de generalidade e
abstração.
Um paradigma dessa corrente é R. Guastini32, que caracteriza os princípios jurídicos
a partir de três critérios: a) as relações com outras normas. b) o tipo formulação lingüística, c) a
generalidade. A primeira nota distintiva dos princípios deriva do fato de servirem de fundamento
29
30
Alexy, op. cit., p. 99.
idem, p. 88.
31
idem, p. 161.
32
Principi di diritto, In: Dalle fonti alle norme. Turim: Giappichelli, 1992.
às outras normas, seja pelo fato de aquelas consistirem em especificações do princípio, seja porque
o princípio constitui um fim para cuja consecução as outras normas estabelecem meios. Quanto ao
segundo aspecto, o autor considera princípios as normas formuladas em termos vagos e gerais que,
por isso mesmo, dão lugar a ampla margem de discricionariedade. Entretanto, afirma Guastini que
o critério de generalidade não é muito preciso, pois que mesmo as regras possuem uma “zona de
penumbra”. Assim, o que determina a diferença entre princípios e regras é de grau de abertura, na
medida em que o conceito de generalidade, assim como o de incerteza, é relacional.
Distinção semelhante é defendida por Norberto Bobbio, para quem os princípios
gerais nada mais são que “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais
gerais”.33
Outro exemplo dessa linha de pensamento é a tese perfilhada por Luis Prieto
Sanchís, que defende uma distinção débil entre princípios e regras partindo de formulações críticas
acerca das distinções fortes ou qualitativas. Segundo Sanchís, a noção de princípio está muito mais
ligada a um determinado modelo de argumentação do que a uma certa classe de normas.
O autor espanhol defende a distinção débil pontificando diversas insuficiências que,
na sua óptica, encontram-se subjacentes às teorias da distinção forte. Critica, assim, os dois pontos
cardeais da distinção forte: a) a idéia de a colisão entre os princípios se opera de forma diversa da
colisão entre regras; e b) a noção de princípios como mandados de otimização, que podem ser
cumpridos em diferentes graus.
Quanto ao primeiro aspecto, Sanchís afirma que há pontos obscuros na concepção
de que os conflitos entre regras são solucionados no campo da validade, enquanto os conflitos entre
princípios pressupõem a ponderação de seu peso34.
Assim, no que se refere aos princípios, argumenta que embora possa considerar-se
certo que, nos casos de colisão, a aplicação de um princípio não leva necessariamente à perda de
validade do princípio contraditório, isso não significa que jamais vá ocorrer uma antinomia total
entre princípios, de modo que não possam coexistir no mesmo ordenamento. Destaca como
exemplo, para ilustrar seu raciocínio, a hipótese de “reconhecimento - não meramente retórico - dos
princípios da igual dignidade humana e do apartheid”35. Quanto às regras, Sanchís alega que nem
todo conflito normativo se resolve com a declaração de invalidade de uma delas. Pondera que nos
casos em que o Tribunal Constitucional aplica a técnica da interpretação conforme à Constituição, o
conflito é solucionado sem exclusão da regra do sistema36. Sublinha, ainda, que a aplicação do
critério da especialidade para a solução dos conflitos de regras não se diferencia, em nada, da idéia
de peso ou importância que se atribui aos princípios37.
Quanto à caracterização dos princípios como mandados de otimização, Sanchís
assinala:
“me parece duvidoso que este seja um critério de todo acertado para traçar
33
BOBBIO, Norberto, Teoria do Ordenamento Jurídico. 6.ed. Brasília: Ed. UNB, 1995.
34
35
op. cit.
idem, p. 41.
36
ibidem.
37
idem.
um nítida diferenciação entre duas classes de entidades normativas, como se
desde essa óptica pretendem formular-se as regras e os princípios: a meu
juízo, se trata mais de um peculiar técnica de interpretação do que de uma
característica inafastável que acompanhe certos standards (princípios), e
que esteja ausente em outros (regras). De um lado, porque, como já
sabemos, não cabe rechaçar por hipótese a colisão total de princípios em
que, como ocorre com as regras, se excluam mutuamente, de modo que uma
delas deva considerar-se como pertinente ao ordenamento. [...]
A segunda observação que se deve fazer a caracterização de Alexy é que,
embora as idéia de mandado de otimização e do conseqüente juízo de
ponderação no caso concreto são acertadas, me parece que isso não ocorra
só (nem sempre) em relação aos princípios, mas também com relação às
regras”38.
Partindo dessas premissas, Sanchís defende que é impossível estabelecer uma
distinção entre princípios e regras que seja anterior ao processo interpretativo. Assim, averba,
“antes da interpretação existiria um mundo indiferenciado de prescrições e só a argumentação
jurídica faria de cada uma delas e em cada caso concreto um princípio ou uma regra; o que pode ser
certo se apenas se quer afirmar que as técnicas argumentativas de “peso”(Dworkin) ou do juízo de
otimização (Alexy) devem ser usadas em qualquer momento pelo juiz e em relação a qualquer
disposição normativa”39.
Nota-se, pois, que, na concepção de Sanchís, os princípios não são um determinado
tipo de norma identificável abstratamente, mas quaisquer normas que assumam posição de
fundamentalidade no processo da argumentação jurídica. Segundo o autor, essa conclusão aponta
no sentido de uma distinção fraca entre princípios e regras, pois qualquer regra pode ser elevada à
categoria de princípio, dependendo do uso que dela faça o operador jurídico. Conclui, nessa
perspectiva, que “os princípios são uma noção relacional ou comparativa; dizemos que uma norma
é um princípio quando, nem mesmo idealmente, temos presente outra norma ou grupo de normas a
respeito das quais aquela se apresenta como fundamental, geral, etc.”40
II) Palavras finais: os critérios de identificação de princípios.
De fato, a doutrina, especialmente entre nós, não tem dado a devida atenção às
implicações teórico-metodológicas que a adesão a uma teoria (forte) ou à outra (fraca) gera.
Limita-se, no mais das vezes, a apontar os critérios diferenciadores de forma indiscriminada, sem
tomar em conta que os fatores indicados podem eventualmente inserir-se em um plano qualitativo
(substancial) ou em uma dimensão quantitativa (formal) – o que ao cabo pouco contribui para uma
compreensão mais adequada da própria distinção.
38
op. cit., p. 45-46 (tradução livre)
39
idem, p. 54.
40
idem, p. 63 (tradução livre)
A propósito, verifique-se a enumeração apontada por Canotilho41 42.e que tem sido
utilizada como referência para o assunto, pela doutrina pátria43, na qual não se percebe uma
preocupação mais minuciosa com os planos substancial e formal. São eles:
“a)Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de
abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem
uma abstracção relativamente reduzida.
b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios,
por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras
(do legislador? do juiz?), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação
directa.
c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os
princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no
ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das
fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante
dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).
d) ”Proximidade” da idéia de direito: os princípios são “standards”
juridicamente vinculantes radicados nas exigências de “justiça” (Dworkin)
ou na “idéia de direito” (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas
com um conteúdo meramente funcional.
e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é,
são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas,
desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.” 44
Canotilho registra a complexidade dessa distinção e aponta que essa complexidade “deriva, muitas vezes,
do facto de não se esclarecerem duas questões fundamentais: (1) saber qual a função dos princípios, ou seja,
se têm uma função retórica-argumentativa ou são normas de conduta; (2) saber se entre princípios e regras
existe um denominador comum, pertencendo à mesma ‘família’ e havendo apenas uma diferença do grau
(quanto à generalidade, conteúdo informativo, hierarquia das fontes, explicitação do conteúdo, conteúdo
valorativo), ou se, pelo contrário, os princípios e as regras são susceptíveis de uma diferenciação qualitativa.”
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p.
1034-1035
41
42
Veja-se também, o estudo exaustivo de Rodolfo Vigo, Los principios jurídicos. Buenos Aires: Depalma,
2000, que chegou a listar vinte e quatro critérios distintivos. São eles :o conteúdo; a origem; a validade; a
capacidade explicatória e justificatória; a aplicação; os tipos de razão; a identificação; a derrogação; o esforço
que exigem; as exceções; os destinatários; a resolução de contradições; seu cumprimento; a estrutura lógica; a
incorporação ao sistema jurídico; compromisso histórico; localização
no ordenamento jurídico;
operatividade com a lógica formal; a contribuição para a completude do sistema; componentes; funções; a
coatividade; a formulação lingüística ; e a capacidade sistematizadora do direito.
43
Vide FARIA, Edilsom de. A colisão dos direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem versus a
liberdade de expressão e informação. Dissertação (Mestrado em Direito, área de concentração “Direito e
Estado”) - Universidade de Brasília, 1995 e SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio
constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001.
44
Canotilho, op.cit. p. 1034-1035
Entretanto, enumerações como esta - sem embargo de sua inequívoca utilidade
didática – se mostram insuficientes quando se trata de solucionar problemas hermenêuticos.
Ao se partir da idéia de que – considerados sob sua dimensão lógica, qualitativa ou
substancial – os princípios são distintos das regras, a concepção forte coloca de forma evidente a
relevância e essencialidade da elaboração de uma distinção definida, com implicações no âmbito da
interpretação. Se faz necessário, por conseguinte, o estabelecimento de critérios mais precisos que
se prestem a identificar as normas-princípios e as normas-regras.
Considerando-se a produção doutrinária sobre a questão, acima sumariada, e em
especial as contribuições de Ronald Dworkin e Robert Alexy45, é possível sintetizar as diferenças
qualitativas que traduzem-se, fundamentalmente, em dois grandes aspectos46.
O primeiro diz respeito à forma de aplicação. Os princípios são normas jurídicas
impositivas de otimização, compatíveis com vários graus de concretização, circunscritos às
condições fáticas e jurídicas. Já as regras são normas que prescrevem imperativamente uma
exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida.47
Registre-se que a expressão “mandado de otimização” é sugestão de Alexy. Para o
autor:
“[...] os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na
maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais
existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão
caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e
45
As obras referências desses autores sobre o tema são , respectivamente, Taking rights seriously e Teoria de
los derechos fundamentales, op. cit. Vale registrar também que a sistematização desses posicionamentos
elaborada por Canotilho op. cit. , embora breve, é bastante interessante.
46
Zagrebelsky apresenta a questão sob um ângulo distinto, já que, sem negar os dois critérios apontados,
complementa-os. Confira-se: “ [...] talvez a diferença mais importante possa ser sugerida pelo ‘tratamento’
distinto que a ciência do direito outorga às regras e aos princípios. [...] em poucas palavras, às regras ‘se
obedece’ e, por isso, é mais importante determinar com precisão os preceitos que o legislador estabelece por
meio das formulações que as regras contêm; aos princípios, ao contrário, ‘se presta adesão’ e, por isso, é
importante compreender o mundo de valores, as grandes opções de cultura jurídica das quais tomam parte e
às quais as palavras não façam simples alusão. [... A] distinção essencial parece ser a seguinte: as regras nos
proporcionam um critério para nossas ações, nos dizem como devemos, não devemos, podemos atuar em
determinadas situações específicas previstas pelas próprias regras; os princípios, diretamente, não nos dizem
nada a esse respeito, mas nos proporcionam critérios para tomar posições frente situações concretas, mas que
a priori aparecem indeterminadas. Os princípios geram atitudes favoráveis ou contrárias, de adesão e apoio
ou de dissenso e repulsa em relação a tudo que pode estar implicado na sua salva-guarda no caso em
concreto. Vez que não demandam ‘pressupostos de fato’, aos princípios , diferentemente do que se passa com
as regras, só se pode dar algum significado operativo fazendo-os ‘reagir’ frente a um caso concreto. Seu
significado não pode ser determinado em abstrato, mas apenas nos casos concreto, e é apenas nos casos
concretos que se pode entender seu alcance. Se poderia indicar a diferença assinalando simplesmente que as
regras, e apenas as regras, são as que podem ser observadas e aplicadas mecânica e passivamente.”
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1995. p. 110
(tradução livre)
Nos termos de Dworkin as regras são aplicada na forma do tudo ou nada (“applicable in all-or nothing
fashion”) op. cit.
47
que a medida devida de seu cumprimento não só depende das
possibilidades reais, mas também das jurídicas.
O âmbito das
possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos.” 48
O segundo diz respeito ao problema do conflito e suas formas de solução49. A
convivência dos princípios é conflitual, ao passo que a convivência de regras é antinômica. Isto
significa que os princípios coexistem50, enquanto as regras antinômicas excluem-se.
Consequentemente, os princípios, ao constituírem-se em exigências (mandados) de otimização,
permitem o balanceamento de valores e interesses, consoante o seu peso e a ponderação de outros
princípios eventualmente conflituantes51. Portanto, não obedecem, como as regras, à ‘lógica do
tudo ou nada’.
“Isso significa que, em cada caso, armam-se diversos jogos de princípios,
de sorte que diversas soluções e decisões, em diversos casos, podem ser
48
op. cit. p. 86 (tradução livre)
Nas palavras de Alexy: “Se se constata a aplicabilidade de duas regras com conseqüências reciprocamente
contraditórias, no caso em concreto, e esta contradição não pode se eliminada mediante a introdução de uma
cláusula de exceção, deve-se, então, declarar inválida, pelo menos, uma das regras. [...] Quando os princípios
entram em colisão – tal como no caso em que algo é proibido por um princípio e permitido por outro - um
dois princípios deve ceder frente ao outro. Porém, isto não significa declarar inválido tal princípio preterido,
nem que ao princípio preterido tenha-se de introduzir uma cláusula de exceção. Mais bem, o que acontece é
que sob certas circunstâncias um dos princípios precede ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da
precedência pode ser solucionada de maneira inversa. É isto que se quer dizer quando se afirma que nos casos
em concreto, os princípios têm peso diferente e que prima o princípio com maior peso. Os conflitos de regras
se desenvolvem na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão
princípios válidos – tem lugar mais além da dimensão da validade, na dimensão de peso.” op. cit. p. 89
(tradução livre)
49
50
Esta leitura é bem aproximada da visão sustentada por Gianformaggio. Para a autora italiana, os princípios
são entendidos como juízos de concorrência. “Porque os princípios não são entre si incompatíveis: são sempre
concorrentes, e aplicar um significa, simultaneamente, aplicar todos os concorrentes, buscando a maneira de
sacrificar cada um deles na menor medida possível
compatível com cada uma dos demais.”
GIANFORMAGGIO, Letizia. L'interpretazione della costituzione tra applicazione di regole ed
argumentazione basata su principi. Rivista internacionale di filosofia del diritto, IV, serie-LXII, n. 1, p. 65103, gen./mar. 1985. (tradução livre)
Como esclarece Ricardo Lobo Torres : “Karl Larenz defende que ‘a ponderação de bens em cada caso é
um método de complementação do direito, que visa a solucionar as colisões de normas’. Anota que o
Tribunal Constitucional se serve do método da ‘ponderação de bens no caso particular’(‘Güterabwägung in
Einzellfall’) para determinar o alcance concreto dos direitos fundamentais (Grundrechte) ou princípios
constitucionais (Verfassungsprinzipien) que colidam entre si nos casos particulares. A colisão pode ocorrer
em virtude de os conceitos e princípios serem abertos (offen) e móveis (beweglich), não estando a sua
amplitude previamente fixada. Para a ponderação de bens deduzem-se das sentenças da Corte Constitucional
os princípios da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit), do melhor meio (schönendsten Mittels) e da menor
restrição possível (geringstmöglichen Eisnschränkung). ‘Quanto ao princípio da proporcionalidade
(Grundsatz der Verhältnismässigkeit), trata-se de um princípio jurídico material (ein materiales
Rechtsprinzip)’.” TORRES, Ricardo Lobo. Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação. In:
ZILLES, Urbano (Coord.). Miguel Reale. Estudos em Homenagem a 90 anos. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2000, p. 643-651. Veja-se também SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000
51
alcançadas, umas privilegiando a decisividade de certo princípio, outras a
recusando.
Cada conjunção ou jogo de princípios será informada por determinações da
mais variada ordem52: é necessário insistir, nesse ponto, em que o
fenômeno jurídico não é uma questão científica, porém uma questão
política e, de outra parte, a aplicação do direito é uma prudência e não uma
ciência.”53
Já as regras não admitem outra solução. Se uma regra é válida54, deve ser cumprida
na medida exata de suas prescrições, nem mais, nem menos. A regra se aplica de forma automática
e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para a sua aplicação se
manifestam55. São portanto determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível.
Para Eros Roberto Grau,
[as] “regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo
absoluto, aplicáveis. Trata-se de um tudo ou nada. Desde que os
pressupostos de fato aos quais a regra refira – o suporte fáctico hipotético, o
Tatbestand – se verifiquem, em uma situação concreta, e sendo ela válida,
em qualquer caso, há de ser aplicada.”56
No particular, Eros Roberto Grau, respaldado em Jean Boulanger, adverte que “tanto o aplicador quanto o
intérprete do direito, ao comporem tais jogos de princípios, atuam sob impacto, também, de valores
ideológicos. Há aí, definidamente, uma escolha entre princípios [...].”op. cit. p. 99.nota 38
52
53
idem op. cit. p. 99
Para Bobbio, Teoría general del derecho. Madrid: Debate, 1996. p.34: “O problema da validade é um
problema da existência da regra enquanto tal, independentemente o juízo de valor sobre seu conteúdo de
justiça. Enquanto este se resolve com um juízo de valor, o problema da validade se resolve com um juízo de
existência ou de fato. Isto é, se trata de comprovar se uma regra jurídica existe ou não, ou melhor, se aquela
determinada regra, tal como é, é uma regra jurídica. Validade jurídica de uma norma eqüivale a existência
dessa norma como norma jurídica. Enquanto para se julgar a justiça de uma norma é necessário medi-la
segundo um valor ideal, para se julgar sua validade deve-se realizar investigações de caráter empíricoracional, investigações que se fazem quando se trata de estabelecer a entidade e a dimensão de um sucesso.”
(Observe-se que no particular, o autor se utiliza das expressões norma e regra como sinônimas) (tradução
livre) Para se verificar a validade de um norma (isto é, “se existe como regra jurídica que pertence a um
determinado sistema”), Bobbio indica três comprovações a serem feitas, que podem ser assim resumidas: a)
determinar se autoridade que a promulgou era detentora de poder legítimo para expedir normas jurídicas; b)
comprovar que ela não está derrogada; c) comprovar que não seja incompatível com as outras normas do
sistema.
54
“É que as regras jurídicas não comportam exceções. Isso é afirmado no seguinte sentido: se há
circunstâncias que excepcionem uma regra jurídica, a enunciação dela, sem que todas essas exceções sejam
também enunciadas, será inexata e incompleta. No nível teórico, ao menos, não há nenhuma razão que impeça
a enunciação da totalidade dessas exceções e quanto mais extensa seja essa enunciação (de exceções) , mais
completo será o enunciado da regra. Se a regra – exemplifica Dworkin – define que um testamento não é
válido senão quando assinado por três testemunhas, não é possível tomar-se como válido um testamento
firmado por apenas duas testemunhas.” Grau , op. cit. p. 90. Para uma crítica da idéia de “tudo ou nada”,
negando que em tese seja possível conhecer todas as exceções às regras cfr. Sanchís, op. cit., p. 38.
56
idem p. 89-90
55
Por outro lado, quanto à teoria da distinção fraca, a precisão de critérios já não se
revela tão necessária e o debate toma outros contornos. É que o critério da generalidade parece dar
conta de forma satisfatória da distinção, já que os princípios não se apresentam, em nada,
substancialmente diferentes das normas, caracterizando-se simplesmente por possuírem certos
traços (generalidade, vagueidade, fundamentalidade ...) que não se configuram na forma do “tudo
ou nada” (all-or-nothing). Tal qual ao resto das outras normas, podem ter sua existência aferida
quando resultam válidos à luz de uma regra de reconhecimento ou quando uma prática dos
operadores jurídicos assim o reconheça.
Desta forma, o problema da estrutura ou morfologia dos princípios perde relevo
pois não há como traçar uma separação nítida entre eles e as regras e a questão se remete ao âmbito
da teoria da interpretação ou da lógica dos juristas. Como esclarece Vigo:
“[...] e é aí onde se procura mostrar que um mesmo standard pode funcionar
como norma [regra] ou como princípio; por conseqüência, não existe
nenhuma característica que identifique a priori ou em si mesmas as normas
[regras] dos princípios, mas sim que uma mesma disposição pode ser usada,
no momento da interpretação, como norma [regra] ou como princípio.”57
São os operadores jurídicos que identificam a norma como regra ou como princípio,
identificando, nos casos concretos, o papel que desempenham no processo de interpretação.58
Do que foi abordado, infere-se que a principal conseqüência da adoção de uma
distinção qualitativa entre princípios e regras ou de uma distinção fraca situa-se no âmbito da
interpretação.
Quanto à distinção forte, como se viu, o mecanismo de solução de conflitos entre
princípios e entre regras não é o mesmo. Por outro lado, partindo-se de uma distinção fraca entre
princípios e regras, não há como falar em duas categorias de normas que requeiram, a priori,
soluções interpretativas diferentes. Quando se trata de interpretação constitucional, porém, a
admissão dessa tese apresenta problemas.
As constituições contemporâneas albergam valores antagônicos, o que faz que os
preceitos constitucionais tenham uma tendência natural a colidir.
57
58
Vigo op. cit. p. 06 (tradução livre)
Sanchís apresenta alguns exemplos bastante interessantes que teriam por finalidade evidenciar esse caráter
relacional e gradual dos princípios e das regras. Verifique-se: [os exemplos se referenciam no contexto da
Constituição Espanhola] “o quadro é mais complexo e se compõem de três normas, a saber: A) ‘Todos os
espanhóis são iguais perante a lei’; B) ‘Se proíbe a discriminação por razões de sexo; C) ‘O empresário está
obrigado a pagar salários iguais a homens e mulheres’. Pois bem, onde está aqui o princípio e onde está a
regra? ... pode-se dizer que a norma A é um princípio em relação a regra B, porém esta se converte em
princípio frente a regra C? Creio que a resposta deve ser afirmativa : a norma B acrescenta uma condição de
aplicação à norma A, pois especifica um dos possíveis casos de discriminação, o sexo; e a norma C, a seu
turno, acrescenta outras duas especificações em relação a norma B, as relações empregatícias e o salário.” op.
cit. p.39 (tradução livre)
No que se refere aos critérios de solução para as hipóteses de conflito entre normas
constitucionais, a teoria da distinção débil não admite que se adote soluções hermenêuticas
diferentes quanto às regras e aos princípios, já que não há diferença substancial ou qualitativa entre
as duas espécies de normas. Por essa razão, a distinção fraca só admite duas ordens de respostas: ou
se aplicam, tanto aos princípios como às regras, apenas os critérios clássicos de solução de conflitos
de normas (hierárquico, da especialização e cronológico); ou se a técnica da ponderação, que
permite afastar a incidência da norma nos casos concretos, é adequada tanto para as regras como
para os princípios59.
Em outras palavras, sob a perspectiva de uma distinção débil, ou a ponderação é um
método válido para a solução de todo tipo de conflito entre normas constitucionais ou não é para
nenhum60.
A idéia de que os critérios clássicos de solução de conflitos são adequados e
suficientes no âmbito da interpretação constitucional já está superada61. De fato, não há como
conceber a hermenêutica constitucional sem o recurso à técnica da ponderação, que permite
conciliar os valores constitucionais que se mostrem antagônicos sem comprometer a noção de
unidade da ordem constitucional62.
Por outro lado, admitir que todas as normas constitucionais estão sujeitas à
ponderação, ou que todas possuem uma dimensão de peso implica, em última análise, o substancial
comprometimento da força normativa da Constituição, já que pressupõe que é possível afastar a
aplicação de uma norma constitucional mesmo quando esta traga em si todos os elementos
necessários à sua aplicação.
A adoção de uma distinção forte entre regras e princípios, ao revés, estabelece
soluções diferenciadas para a interpretação das duas categorias de normas, determinando, assim, um
razoável equilíbrio entre vinculação e flexibilidade63. Fica estabelecido, a partir do aspecto
estrutural da norma, um parâmetro de atuação para o intérprete: se tratar-se de uma regra, sem
previsão de exceção, e ocorrer a hipótese que a esta se subsume, deverá o juiz aplicá-la (já que no
Na lição de Luís Roberto Barroso, “A ponderação de valores é a técnica pela qual o intérprete procura lidar
com valores constitucionais que se encontrem em linha de colisão. Como não existe um critério abstrato que
imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de
modo a produzir-se um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou
direitos fundamentais em oposição. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo. In: Temas
de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.68.
59
É o que se infere da seguinte abordagem de Sanchís: “así, pues, a mi juicio, la idea del mandato de
optimización representa más bien uma técnica argumentativa que puede ser útil en la aplicación de cualquier
estándar normativo, ya sea una regra o un principio, cuando entra en colisión cin outro estándar.” op. cit. p.
48.
60
61
Sobre o tema , veja-se BARROSO, Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 1996;
PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais. Rio de Janeiro:
Lumen Iuris, 1999 e SARMENTO, op. cit..
62
Veja-se, a propósito da insuficiência dos critérios clássicos para a solução de conflitos entre normas
constitucionais e da técnica da ponderação: Sarmento op. cit.
Sobre vinculação e flexibilidade como atributos da constituição veja-se Alexy , “Colisão e ponderação
....”, op.cit.
63
âmbito da Constituição não há como questionar-lhe a validade64). Se tratar-se de princípios, de outra
forma, poderá aplicar ambos de forma parcial ou mesmo deixar de aplicar um dos princípios,
dependendo do peso que assumam. Essa concepção parece melhor conciliar os antagonismos
presentes nos textos constitucionais, sem, contudo, comprometer o caráter vinculativo das normas
contidas na Constituição.
BIBLIOGRAFIA
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Alicante, no. 5: p. 139-156, 1988.
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Janeiro, em 11.12.98]
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Ed. UNB, 1995.
_____. Teoría general del derecho. Madrid: Debate, 1996
BARROSO, Luís Roberto. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo. In: Temas de
direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
64
Averbe-se , contudo, que Dworkin, embora alinhado à teoria forte, sustenta que uma regra pode ser
afastada em detrimento de outra que esteja amparada por princípios mais importantes. op. cit., vide nota 24
supra. Sem embargo, essa proposição de certa forma, contraria a idéia de os conflitos entre regras se soluciona
na dimensão de validade, pois o critério que informa a solução acaba por ser de peso. Diversamente, Alexy,
nessa situação, oferece solução distinta, afirmando que a regra não é afastada, no caso concreto, mesmo que
se oponha a um princípio com maior peso do que o princípio que a sustenta. op.cit.
_____. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 1996
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GIANFORMAGGIO, Letizia. L'interpretazione della costituzione tra applicazione di regole ed
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JUSNATURALISMO E JUSPOSITIVISMO JURÍDICO:
as primas-irmãs da MODERNIDADE65[1]
Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva
"É esta a ambiguidade e a complexidade do tempo
presente, um tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além
ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que o habita"
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
in Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pósmoderna
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A história da produção de conhecimento da humanidade é marcada por
modelos de racionalidade que determinam o ritmo, os parâmetros e as estruturas de saber
produzidos numa determinada época.
Neste sentido, pode-se apontar que à visão holística que predominou na
antigüidade clássica, deu-se, mais tarde, lugar a chamada Modernidade, cujo modelo racional,
presidiu à ciência moderna.
Por outro lado, sendo o DIREITO, inegavelmente, uma manifestação de
saber -- desconsiderando-se aqui as dificuldades encontradas pelos autores para delinear o seu rigor
de seus pressupostos, método e objeto , de modo a lhe conferir o estatuto de ciência , (ou para
concluir, ao cabo por sua falta) 66[2] -- a Modernidade, nele, também imprimiu suas cores.
65[1]
Trabalho de conclusão de curso apresentado, em fevereiro de 1997, para a disciplina SEMINÁRIO DE
ESTUDO DE AUTORES, ministrada pelo Prof. CARLOS ALBERTO PLASTINO , como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, PUC/RJ.
Posteriormente publicado : SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Jusnaturalismo e Juspositivismo: As
Primas-Irmãs da Modernidade. Revista da Ajufe, Rio de Janeiro, v. 66, p. 109-121, 2001.
66[2]
Para melhor se fixar a discussão, vide DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo, Saraiva,
Na realidade, distante de pretender esgotar o tema complexo e tortuoso,
oferecendo soluções para encerrar o debate acerca da prevalência entre Jusnaturalismo e
Juspositivismo Jurídico (ou mesmo oferecer uma terceira possibilidade) - o que é objeto de muitas
páginas dos mais variados autores, numa polêmica que não chega a seu fim - este trabalho busca,
simplesmente, dedicar algumas poucas linhas a identificar nas duas grandes correntes do
pensamento jurídico, essas mesmas colorações modernas , como que a indicar que o
JUSPOSITIVISMO JURÍDICO E O JUSNATURALISMO podem ser considerados como primasirmãs da Modernidade.
E assim, hoje, se encontrariam também em crise, como que numa reação em
cadeia, já que os limites de tensionamento do paradigma dominante cada vez mais apontam para
rupturas que parecem ser insuperáveis.67[3]

Embora ressalte-se: o recorte dado o tema não reside, especificamente, em
analisar esta crise ou ruptura do paradigma moderno, e, por conseqüência apontar os caminhos a
serem daí percorridos, mas apenas a aproximar o Jusnaturalismo e o Positivismo dos pressupostos
impostos pela Modernidade.
2. A MODERNIDADE COMO PARADIGMA DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO
Modernidade.
O que é a Modernidade?
As dificuldades em se responder a esta aparentemente singela indagação já
se fazem surgir.
1995, 3. ed.
67[3]
Sobre o tema da crise do paradigma moderno , SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso sobre as
ciências na transição para uma ciência pós-moderna, Estudos Avançados.
Não é fácil de se apontar um consenso, o termo gera uma variedade de
idéias, conceitos e preconceitos, entretanto, força é esclarecer o que se toma por Modernidade,
como pressuposto antecedente a maiores considerações.
A Modernidade, como aqui entendida, representa uma certa ordem que,
deste a revolução científica do século XVI, vem moldando a produção do conhecimento científico
da humanidade.
Como explica BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, desenvolvido
basicamente no domínio das ciências naturais, "[...] ainda que com alguns prenúncios no século
XVIII, é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais
emergentes. A partir de então pode-se falar de um modelo global de racionalidade científica que
admite variedade interna mas se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e
ostensivamente policiadas de duas formas de conhecimento não-científico (e, portanto, irracional)
potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos
humanísticos [...]".68[4]
Separando em compartimentos estanques sujeito cognoscente e objeto
cognoscível , a Modernidade alija, radicalmente, o homem da natureza, independentes e afastados
entre si, como que por um foço intransponível, onde apenas a razão transita investigando e
"conhecendo".
69[5]
A metáfora moderna pode se representar como um relógio, onde cada um
de seus mecanismos é regido por leis, racionalmente apreendíveis e experimentalmente
68[4]
SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pósmoderna, Estudos Avançados, p. 49.
69[5]
"Essa nova visão do mundo e da vida reconduz-se a duas distinções fundamentais, entre conhecimento
científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. [...]
Por outro lado, é total a separação entre a natureza e o ser humano. A natureza é tão-só extensão e
movimento: é passiva, eterna e reversível, mecanismos cujos elementos se podem desmontar e depois
relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar
seus mistérios, desvendamento , mas antes ativo, já que visa conhecer a natureza para dominar e controlar.
Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana o senhor e o possuidor da natureza." - SANTOS, p. 49.
comprovadas, e que pode ser compreendido em todas as suas particularidades, separadamente dos
outros componentes, e ao final , a soma do conhecimento separado de cada uma das peças levaria a
compreensão final do próprio relógio.70[6]
Esta visão de mundo se assenta na formulação de leis que traduziriam a
realidade de forma irremediável, à luz de regularidades observadas, com fito de prever o
comportamento futuro dos fenômenos, comprovadas pela via experimental.
Como adverte SANTOS, o "conhecimento baseado na formulação de leis
tem como pressuposto metafórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o
passado se repete no futuro."71[7]
Neste diapasão, conhecer implica em dois grandes momentos: a) quantificar
e, b) dividir para classificar ; e só então se determinar as relações sistêmicas entre o que se separou.
As chamadas "leis da natureza" revelam a redução da complexidade do
mundo, evidenciando um processo de simplificação, posto que afastando as "condições inicias" ,
onde residiria a complicação, permite à razão humana apreender a realidade.72[8]
Desta forma as ciências naturais passam a ditar os parâmetros científicos,
como ponto de referência, para as demais formas de conhecimento, se pretendentes a ser
reconhecidas como tal.
Dotado o homem do aparelho necessário para formular as leis da natureza a razão - seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade.
No século XVIII, com as
70[6]
SANTOS: "Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se
podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas , um mundo estático e eterno a flutuar
num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição
nos elementos que o constituem. Esta idéia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar
na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo." idem ibidem p. 51
71[7]
72[8]
ob. cit. p. 51
SANTOS: "A divisão primordial é a que distingue entre "condições iniciais" e "leis da natureza" . As
condições iniciais são o reino são o reino da complicação, do acidente e onde é necessário selecionar as que
estabelecem as condições relevantes dos fatos a observar ; as leis da natureza são o reino da simplicidade e
da regularidade onde é possível observar e medir com rigor." ob. cit. p. 50.
idéias iluministas, se vão gerando as condições para o surgimento das ciências sociais no século
XIX.
Para SANTOS , "a consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no
racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensarse no positivismo oitocentista. Dado que, segundo este, só há duas formas de conhecimento
científico - as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o
modelo mecânicista das ciências naturais - as ciências sociais nasceram para ser empíricas."73[9]
Encaminhando-se neste mesmo sentido, CARLOS ALBERTO PLASTINO
observa que "o conceito central da cosmologia moderna - isto é da compreensão que a modernidade
produz sobre o mundo e o homem - é o de racionalidade. Esta racionalidade possui dupla face, a da
ontologia e da gnoseologia. Pela primeira, o real é conhecido `a semelhança da máquina, cujo
dinamismo é determinado por leis rigorosas , passíveis de serem conhecidas. É o reino do
determinismo e da causalidade suficiente, potencialmente exprimível na linguagem exata das
matemáticas. A segunda face do racionalismo da modernidade se situa no homem e na sua
capacidade de conhecer. O homem é definido como um ser racional, capaz de aceder ao
conhecimento real e de sua organização e leis de movimento. É esta confiança na capacidade da
razão para conhecer as leis que regem o real - e, em conseqüência, na capacidade do homem para
dominá-lo - que inspira o projeto prometeico da modernidade, sustentando a idéia-força de
progresso."74[10]
Por fim, "desta perspectiva da cosmovisão moderna, de sua concepção da
matéria, do determinismo que rege seu movimento, do processo de conhecimento, deriva a
73[9]
74[10]
ob. cit. p. 52
PLASTINO, Carlos Alberto. Os horizontes de Prometeu - Considerações para uma crítica da
modernidade. Cadernos - Teoria Política Moderna, PUC-RJ, ano II, n. 01, 1996, p. 07
interpretação do mundo e do homem da modernidade, e consequentemente seu sentido e sua
ética"75[11], bem como sua concepção das regras que pautariam a vida em sociedade.
Assim, embora longe de abarcar e esgotar a matéria, imagino que os
contornos básicos do que se chama, aqui, de Modernidade já estejam suficientemente traçados, de
modo a permitir um avanço no desenvolvimento deste trabalho.
3. JUSNATURALISMO
O direito natural tem sido um tema recorrente no campo da Filosofia do
Direito, por vezes negado, por outras até sacralizado.
Entretanto, também aqui, é preciso marcar suas fronterias, de modo que
seja possível estabelecer uma correlação plausível com o tema apresentado.
Fazendo-se uma retrospectiva, é possível identificar que a idéia ao redor do
direito natural já havia sido concebida na Antigüidade e difundida no período medievo, mas foi no
limiar da Idade Moderna, a partir de Hugo Grócio, que sucedeu uma marcante evolução na
matéria.76[12]
O Jusnaturalismo alçou seu apogeu no século XVIII, ao inspirar as
declarações de direitos dos Estados Unidos e da França, além de se refletir nas codificações dos
direitos austríaco, prussiano e francês.
75[11]
76[12]
PLASTINO, ob. cit. p. 08
"O ius naturale já não seria identificado com a natureza cósmica, como fizeram os filósofos estóicos e a
jurisprudência romana, nem imaginado como produto da vontade divina. A valorização da pessoa, que se
registrou com a Renascença , atingiu o âmbito da Filosofia Jurídica, quando então o Direito Natural passou a
ser reconhecido como emanação da natureza humana." NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro,
Editora Forense, 1995, 4. ed, p. 131
É de se registrar que esta corrente de pensamento , a medida que se
difundia, foram surgindo suas diferentes vertentes
77[13]
, entretanto como ponto básico pode-se
apontar a visão da existência de uma ordem jurídica imanente da própria natureza humana.
VICENTE RÁO afirma que existe uma concepção geral do direito, "que a
todos os povos se impõe, não pela força da coerção material, mas pela força própria dos princípios
supremos, universais e necessários, dos quais resulta, princípios estes inerentes à natureza do
homem, havido como ser social, dotado, ao mesmo tempo, de vida física, de razão e de
consciência."78[14]
"Não são, portanto, apenas as suas exigências físicas, ou sociais, nem
tampouco apenas os preceitos éticos, morais ou espirituais, nem, ainda, exclusivamente , a razão,
que definem a sua natureza; ao contrário, são todos estes elementos reunidos que integram a
unidade natural da pessoa humana.
A razão extrai e declara os princípios gerais que do concurso de tais
elementos resultam e, pois, da natureza humana decorrem; mas nesta e não naquela se encontra o
fundamento do direito natural, que não é um super-direito mas
- um conjunto
de princípios supremos, universais e necessários que,
extraídos da natureza humana pela razão, ora inspiram o direito positivo, ora por este direito são
imediatamente aplicados, quando definem os direitos fundamentais do homem."79[15]
A concepção dos jusnaturalistas80[16] admitia " a existência de um estado de
natureza, isto é, uma sociedade em que existiam apenas relações intersubjetivas entre os homens,
77[13]
78[14]
NADER, ob. cit., dá conta destes ramos do Jusnaturalismo.
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo, Editora Resenha Universitária, 1976. v. I, t. I,
p. 45
79[15]
80[16]
idem ibidem, p. 45-6
A obra de JOHN LOCKE (1632-1704), Segundo Tratado sobre o Governo - Ensaio Reflexivo Relativo a
Verdadeira Origem , Extensão e Objetivo do Governo Civil, revela com clareza essa concepção de uma
ordem natural, como a seguir, os trechos reproduzidos evidenciam:
"Para compreender corretamente o poder político e depreendê-lo de sua origem, devemos considerar em que
sem um poder político organizado. Nesse estado, que teria precedido a instauração da sociedade
política (ou Estado), admitiam a existência de um direito que era, exatamente, o direito natural.
Nessa sociedade, os homens cultivavam a terra e escambavam os produtos, constituíam famílias e o
chefe de família tinha servos à sua disposição; com a morte do pai os seus haveres se transmitiam a
seus descendentes. Todas essas relações sociais eram reguladas por normas jurídicas (tinha-se,
assim, os direitos reais, o direito das obrigações, o direito de família e aquele das sucessões). "81[17]
"Segundo os jusnaturalistas a intervenção do Estado limita-se a tornar
estáveis tais relações jurídicas. Por exemplo, segundo Kant, o direito privado já existe no estado de
natureza e a constituição do Estado determina apenas o surgimento do direito público; contrapõe o
modo de ser do direito privado no estado de natureza àquele característico do mesmo direito da
sociedade política, afirmando que no primeiro momento tem-se um "direito provisório" (isto é,
precário) e no segundo momento um "direito peremptório" (isto é, definitivamente afirmado graças
ao poder do Estado)."82[18]
PLASTINO afirma que "para além das significativas diferenças existentes
entre os fundadores da reflexão política da modernidade, todos eles sustentam a existência de um
direito natural acessível à razão humana. Este direito exprime que o homem é conforme a sua
natureza, devendo-se, a partir da consideração dessa natureza, estabelecer a forma de associação
estado os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as
ações e regular-lhes as posses e as pessoas tal como acharem conveniente, nos limites da lei da natureza, sem
pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem. [...]
O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo e que a todos submete; e a razão, que é essa lei,
ensina a todos os homens que apenas a consultam que, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve
prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses.[...]
E para evitar que todos os homens invadam os direitos dos outros e que mutuamente se molestem, e para que
a lei da natureza seja observada, a qual implica na paz e na preservação e toda a humanidade, coloca-se,
naquele estado, a execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens, [...]"
81[17]
BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico - lições de filosofia do direito. São Paulo, Ícone Editora,
1995, p.29
82[18]
idem ibidem
mais racional, isto é, mais adequada à natureza do homem. Essas formas de associação e de
organização da vida social não deveriam se motivo de opiniões - e de conflitos - mas conseqüências
necessárias e irrefutáveis de um saber sobre o homem e a sociedade, que poderia reivindicar o
mesmo nível de certeza que as ciências matemáticas."83[19]
Na realidade , esta concepção jusnaturalista
reflete a mentalidade
humanista da Filosofia das Luzes, que acompanhou a própria Modernidade.
A ordem natural que regeria a vida em sociedade não mais residiria numa
verdade transcendente ao ser humano , fruto da revelação divina, mas na própria natureza do
homem, que passava a ser o sujeito de conhecimento, tornando-se o ator principal, detentor de seu
destino. A razão, na expressão de ERNST CASSIRER, deixa de ser a "criada da revelação", como
foi durante a Idade Média, para se tornar a vedete.
Com os ventos da Modernidade, o direito natural proclama sua
independência das esferas divinas, passando a valer por si só, como produto exclusivo da razão
humana, e a ciência jurídica dá seus primeiros passos para adquirir o estatuto de "engrenagem da
máquina moderna", e como tal ter o seu saber reconhecido como ciência.84[20]
"Há, pois, a crença em uma natureza humana imodificável, cujas
características principais, acessíveis à razão, permitem a formulação das normas que, por serem
naturais, devem reger a convivência entre os homens. Esta crença faz parte da cosmovisão da
modernidade e se harmoniza com a sua lógica."85[21]
83[19]
ob. cit. p. 09
84[20]
CASSIRER , ao analisar a idéia de direito e o princípio dos direitos inalienáveis, insere o Jusnaturalismo
na matriz moderna. Cria um paralelo entre Grocius e Galileu, pois aquele vai realizar no domínio do direito a
mesma revolução que este realizou na física. "[...] Trata-se de definir uma fonte de conhecimento jurídico
que não provenha da revelação divina, mas pelo contrário, por sua própria "natureza" e evite assim toda
mácula e toda falsificação. Tal como Galileu proclama e defende a autonomia da física matemática, também
Grocius luta pela autonomia da ciência jurídica. Parece que o próprio Grocius tinha uma noção perfeita desse
parentesco ideal: manifesta por Galileu a sua mais profunda admiração e chama-o, numa carta, de o maior
gênio do século. " - CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. São Paulo, Editora da Unicamp, 1994, 4.
ed., p. 325
85[21]
PLASTINO, ob. cit. p.09
E mais, é a Modernidade, que desde o século XVI já se fazia anunciar,
especialmente com a idéia de leis da natureza, acessíveis pela razão, que injeta novo ânimo ao
Jusnaturalismo, esculpindo suas
novas feições, diversas do Jusnaturalismo conhecido pela
Antigüidade Clássica e reforçado pelos filósofos medievais , de modo a distinguí-lo como outra
corrente de pensamento, já que seus fundamentos divergiam: o direito de origem divina, passa a ser
criação da própria criatura, o homem.
4. JUSPOSITIVISMO JURÍDICO
A expressão "positivismo jurídico" não deriva de "positivismo", no sentido
filosófico do termo, muito embora no século passado tenha havido uma certa correlação, já que
alguns positivistas jurídicos eram igualmente positivistas, na acepção da escola fundada por Comte.
De fato, o termo deriva da locução "direito positivo" em contraposição
àquela de "direito natural." E portanto, para compreender o seu significado, é necessário apontar o
sentido da expressão direito positivo.
Neste particular, a definição elaborada por RÁO cumpre seu papel:
"A concretização do direito em normas ou preceitos legislativos, ou
simplesmente costumeiros, ou jurisprudenciais, mas sancionados e impostos pela autoridade do
Estado, revela, em relação a cada comunidade nacional, uma concepção peculiar do que é justo, ou
injusto nas relações humanas e no modo de solução dos conflitos que destas relações surgem; assim
é que se caracteriza e nasce o direito positivo, por natureza contingente e variável de povo a povo e
em cada povo, como contingentes e incessantemente variáveis são as ações, reações, relações e
conflitos, que formam o seu objeto. É pois, o direito positivo um direito declarado, praticado e feito
valer, materialmente, pela proteção-coerção a cargo do Estado." 86[22]
Por outro lado, muito embora a dicotomia direito natural e direito positivo
tenha permeado a história da evolução do pensamento jurídico é apenas a partir do século passado
86[22]
ob. cit., p. 45
que a tradição jurídico-positivista se firma como corrente de pensamento, de forma quase
hegemônica, fazendo ainda sentir hoje sua influência. 87[23]
BOBBIO explica que o positivismo jurídico "é uma concepção do direito
que nasce quando "direito positivo" e "direito natural" não mais são considerados direito no mesmo
sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do
positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é
excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir
deste momento o acréscimo do adjetivo "positivo" ao termo "direito" torna-se um pleonasmo
mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina
segundo a qual não existe outro direito senão o positivo."
88[24] 89[25]
Daí resulta claro que o positivismo jurídico surge como reação ao
Jusnaturalismo, repelindo tudo aquilo que extravasasse os
limites do que não fosse posto e
aprovado pelo Estado, surgindo como conseqüência da formação do Estado moderno.90[26]
Com ele, o juiz, livre orgão da sociedade, se torna um orgão do Estado,
autêntico funcionário do Estado. De acordo com a análise histórica realizada por EHRLICH, em sua
87[23]
Norberto Bobbio nos dá a notícia de que a distinção entre direito natural e direito positivo já era
encontrada em Platão e Aristóteles, passando pelos latinos e doutrinadores medievais - vide ob. cit.
88[24]
ob. cit. p. 26
89[25]
Ou na lavra de PAULO NADER "o positivismo jurídico constitui um grande pólo doutrinário na área
da Filosofia do Direito, que reúne diversas correntes que se unem por alguns pontos comuns e se diversificam
em outros.º [...] "O denominador comum das correntes positivistas registra afirmações e negativas. Afirma-se
que o método jurídico é o empírico, pelo qual o investigador deve observar a realidade concreta. Dado real ao qual o cientista deve ater-se - é o núcleo onde se processam as dissensões. Norma jurídica, código, fato
social, fato natural, psicológico, decisão judicial, eis algumas de suas identificações. Nega-se a validade de
princípios metafísicos, de valores absolutos, de princípios que sejam eternos, imutáveis e universais." - ob. cit.
p. 193
º Sobre as diversas correntes positivistas, vide BOBBIO, ob. cit.
90[26]
"Enquanto, de fato, num período primitivo, o Estado se limitava a nomear o juiz que dirimia as
controvérsias entre os particulares, buscando a norma a aplicar ao caso sob exame tanto nos costumes quanto
em critérios de equidade, e a seguir, adicionando à função judiciária aquela coativa, providenciando a
execução das decisões do juiz, com a formação do Estado moderno é subtraída ao juiz a faculdade de obter as
normas a aplicar na resolução das controvérsias por normas sociais e se lhe impõe a obrigação de aplicar
apenas as normas postas pelo Estado, que se torna, assim, o único criador do direito." BOBBIO, ob. cit. p. 29
obra
La logica dei giuristi, "este fato transforma o juiz no titular de um dos poderes estatais, o
judiciário, subordinado ao legislativo; e impõe ao próprio juiz a resolução das controvérsias
sobretudo segundo as regras emanadas do orgão legislativo ou que, de qualquer modo (tratando-se
de normas consuetudinárias ou de direito natural), possam ser submetidas a um reconhecimento por
parte do Estado. As demais regras são descartadas e não mais aplicadas nos juízos: eis por que, com
a formação do Estado moderno, o direito natural e positivo não mais são considerados no mesmo
nível; eis por que sobretudo o direito positivo (o direito posto e aprovado pelo Estado) é tido como
o único verdadeiro direito: este é o único a encontrar, doravante, aplicação nos tribunais."91[27]
E como encaixar o positivismo jurídico no projeto da Modernidade?
Tal não requer um esforço muito grande.
Se o Jusnaturalismo é o primeiro passo em direção a independência do
Direito, como forma de conhecimento individualizada, já que o desvinculou da Teologia; o
Positivismo Jurídico é o esforço final de avocação para o Direito do estatuto de ciência, e portanto,
de ganhar seu lugar ao sol na comunidade científica moderna.
Pode-se dizer, em última análise, que ele representa uma tentativa de
"cientifização" do direito, de modo a aproximá-lo, o máximo possível, do paradigma das
matemáticas, num esforço de trazer maior rigor e exatidão para seus postulados.
Num outro aspecto, inspirado no racionalismo moderno exacerbado, o
Positivismo Jurídico acaba se tornando "o produto da razão humana",
mais até do que o
Jusnaturalismo.
Se neste ela é apenas um instrumento de captação de uma ordem natural
predeterminada; naquele a razão humana, na concepção de que o homem por ser racional (em
função da razão) é capaz de definir para cada sociedade qual o regime político e a melhor forma de
mantê-lo racionalmente, é a própria força motriz do direito. Em outras palavras, o Positivismo é
fruto da própria razão, como derivação do racionalismo político.
91[27]
BOBBIO, ob. cit. p. 29
Enfim, tendo florescido o Juspositivismo Jurídico, no ápice da Modernesse
(e sendo o homem fruto de seu tempo) não poderia ele se furtar dos fundamentos modernos.
5. REFLEXÕES FINAIS
Se olharmos nosso mundo de hoje, às portas do novo milênio, soturno, triste e
lamentável é o panorama que nos apresenta.
Fome, miséria, guerras locais, desemprego em níveis alarmantes, avanços da
tecnologia acessíveis a tão poucos, desastres nucleares, ameaças ecológicas de extinção da própria
vida, poluição, violência no campo e na cidade, extermínio dos indesejáveis, conflitos étnicos,
intolerância religiosa, consumo alarmante de drogas ... As mazelas são tantas!
Surge um sentimento de desorientação, reconheço alarmista, e nos perguntamos:
para onde vamos? para quê?
Os questionamentos são muitos.
As certezas já se foram e , talvez, não voltem mais.
A crise do paradigma dominante ressalta aos olhos ante as evidências que o próprio
aprofundamento do conhecimento, permitido pela ciência moderna, revela.
A teoria da relatividade, a mecânica quântica, o teorema da incompletude, os
avanços da microfísica, da química, da biologia corroboram para compor esse panorama de crise da
Modernidade, implodindo seus alicerces.92[28]
E nesse emaranhado de dúvidas, nascem
pequenas questões, mas de grandes
respostas (que deixo aos sábios para responder):
Qual o papel a ser desempenhado pelo Direito, nesta história do homem, escrita a
sangue e lágrimas?
92[28]
Uma visão mais aprofundada desta crise se encontra em SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso
sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna, Estudos Avançados
Onde buscar sua legitimidade, se o Jusnaturalismo e o Juspositivismo Jurídico já
não atendem mais aos reclames de uma sociedade sedenta de Igualdade, Humanidade e Justiça (e
que, talvez, nunca o tenham feito)?
A concepção de direitos inalienáveis à natureza humana
queda desamparada
quando a própria natureza humana, em sua mesma existência é questionada, em face do papel
desempenhado pela cultura, na formação do ser humano. O que, realmente, pode ter-se como
natural, e não como produto da história?
E se a natureza humana está em cheque, como sustentar a idéia de direitos
universais e necessários, pertinentes a todos humanos e aplicáveis a todos nós?
O quê pôr em seu lugar?
Ademais, os ordenamentos jurídicos não puderam trazer uma eficácia real a estes
supostos direitos, quando a mera declaração formal dos mesmos já atenderia a estes reclames da
natureza humana, como entendeu o Estado Liberal.
O outro reverso da medalha também não resta incólume.
Confiando que a razão traria
a luz, revestida do mito da infalibilidade, o
Positivismo Jurídico fez coincidir a legalidade com a legitimidade, afastando a ética do Direito, que
frio, respondia "dure lex, sede lex".
Onde está a exatidão matemática da operação de adequar o fato concreto à norma
hipotética, se os fatos reais nunca apresentam a simplicidade da norma descrita em abstrato, pois
não se dão de forma desconecta de todo um conjunto de circunstâncias, sem elementos de
subjetividade?
Se o ordenamento jurídico de Kelsen, escalonado numa pirâmide, apresenta uma
lógica interna irretocável, impondo obediência do escalão inferior ao superior, como vencer o
sofisma da Grundnorm hipotética, sem conteúdo definido?
A experiência nefasta da Alemanha nacional-socialista revelou a fragilidade do
argumento positivista, desmascarando as ameaças que se podem esconder em seus subterrâneos.
E muito mais poderia ser dito ...
Mas para encerrar - o que talvez não tenha fim - a constatação é clara: se
admitirmos que Modernidade está em crise, o que foi forjado em seu ventre também estará.
Novos rumos esperam o Direito no amanhã...
6. BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico - lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone,
1995.
CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. 4.ed. São Paulo: Unicamp, 1994.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Os Pensadores . São Paulo: Abril, 1973.
NADER, Paulo. Filosofia do direito. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995.
PLASTINO, Carlos Alberto. Os horizontes de Prometeu - Considerações para uma crítica da
modernidade. Cadernos - Teoria Política Moderna, Revista da PUC-RJ, Rio de Janeiro, ano II, n.
01, 1996
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Resenha Universitária, 1976. v. I, t. I
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pósmoderna, in mimeo.
Material para Estudo de Casos:
os dois casos apresentados encontram-se analisados na obra SILVA, Fernanda Duarte Lopes
Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004.
CASO A
SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - DÉCIMA VARA FEDERAL
PROCESSO N.º 93.0007947-6 - ACÃO ORDINÁRIA - SENTENÇA TIPO 2
AUTOR
:
JAIRO GOLTARA E OUTROS
RÉU
:
UNIÃO FEDERAL
JUIZ
:
JOSÉ CARLOS GARCIA
SENTENÇA
Vistos etc.
JAIRO GOLTARA E OUTROS ajuizaram a presente ação de rito ordinário em face da
UNIÃO FEDERAL, objetivando suas promoções em igualdade de condições com as cabos do
corpo feminino, a percepção das parcelas atrasadas daí decorrentes acrescidas de juros e correção
monetária e mais doze prestações vincendas.
Na inicial de fls. 02 e 06 alegam que ingressaram na Força Aérea Brasileira há mais de dez
anos através de processo de seleção para o serviço inicial na condição de recrutas, concluindo os
cursos de Formação de Soldados e Formação de Cabos. Após o término do referido curso, foram
distribuídos de acordo com suas especialidades em diversos órgãos do Ministério da Aeronáutica.
Ao completarem dez anos de efetivo serviço militar, adquiriram estabilidade. Todos têm Segundo
Grau completo, sendo que alguns completaram ou cursavam curso de nível superior.
A Lei n.º 6.924, de 29 de junho de 1981, criou o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica,
restando prevista para as integrantes de tal Corpo a mesma sistemática de promoções estabelecida
para os cabos varões, conforme traçado nos arts. 7º, III, e 20, da referida Lei, e ainda pelo art. 30 do
Decreto n.º 86.325, de 1º de setembro de 1981, que a regulamentou; tal sistemática consistiria em
concurso específico para ingresso no Círculo de Graduados, que começa em 3º Sargento e termina
em suboficial, inexistente hipótese de promoção automática de Cabo a 3º Sargento. O então
Ministro da Aeronáutica, através da Portaria n.º 120/GM3/84, criou um acesso direto das cabos a 3º
Sargento mediante simples apresentação de certificado conclusão do 2º Grau, permissão esta
inexistente na Lei n.º 6.924/81 e no decreto que a regulamentou. Entendem que a previsão de
mecanismo distinto para a promoção de integrantes do Corpo Feminino fere os princípios
constitucionais e hierárquicos, dando causa a preterição dos Autores quanto as suas promoções,
especialmente à luz dos arts. 50, IV, “m”, 59 e 60 da Lei n.º 6.880/81.
Requerem, assim, que a União, através do Ministério da Aeronáutica, seja compelida a
expedir os atos necessários às suas promoções em igualdade de condições com os cabos do Corpo
Feminino, dentro de suas respectivas especialidades, retroativamente à data em que a 3º Sargento
mais antiga dentre as ex-cabos foi promovida nos termos da Portaria n.º 120/GM3/84, o pagamento
de parcelas atrasadas corrigidas monetariamente desde quando devidas e juros de lei, e ainda “12
prestações vincendas à época do cálculo a base de 20% dado a complexidade da causa e o tempo
necessário à sua completa finalização”(sic).
Juntaram documentos de fls. 07 a 40.
Custas recolhidas a fls. 41 e certificadas a fls. 42.
Contestação da União Federal a fls. 45/47, acompanhada dos documentos de fls. 48 a 55.
Sustenta-se: que a isonomia somente pode ser deferida quando haja identidade de condições
funcionais, o que inocorreria na hipótese, vez que o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica
rege-se por norma legal distinta da que rege os Autores; que a finalidade da criação do CFRA foi o
atendimento às necessidades do setor, com aproveitamento dos militares homens para o serviço
propriamente militar, no qual a condição física é mais necessária que em serviços meramente
administrativos; que, nestes termos, a criação do CFRA é ato discricionário da Administração; que
os Tribunais têm decidido contrariamente à pretensão dos Autores; que as normas infralegais
ditadas pelo Ministério da Aeronáutica relativamente ao CFRA somente disciplinaram os exames de
conhecimentos especializados, traçando os critérios a serem estabelecidos dentro dos estreitos
limites da norma legal aplicável à espécie. Requer a improcedência dos pedidos.
Réplica a fls. 57/59, sustentando existência de identidade de condições funcionais no caso
vertente, concorrendo as integrantes do Corpo Feminino à mesma escala de serviço, portando e
manejando com
perícia armamento pesado; que o sistema constitucional atual e anterior já
assegurava igualdade entre homens e mulheres, com o que a Portaria n.º 120/GM3, de 20 de janeiro
de 1984, é discriminatória e viola tal dispositivo constitucional.
Instadas as partes à especificação de provas (fls. 60), disseram ambas não terem outras provas
a produzir que não as já constantes dos autos (fls. 61 e 62), com o que vieram estes conclusos para
sentença.
É o relatório.
DECIDO
O núcleo da controvérsia reside em matéria de âmbito nitidamente constitucional : o princípio
da isonomia consagrado no art. 5º da Constituição, em especial no que respeita à igualdade de
tratamento entre homens e mulheres. Sustentam os Autores que o estabelecimento de critérios
próprios para a promoção das integrantes do Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica violaria tal
comando constitucional, causando sério prejuízo a sua esfera jurídica.
Nosso ordenamento jurídico, à semelhança de vários outros em todo o mundo, avançou no
sentido de excluir de seu âmbito normas discriminatórias que pretendiam constituir a mulher com
cidadã de segunda classe, subordinando-a sempre a uma figura masculina, fosse o pai, fosse o
marido. Fruto das importantes transformações observadas nos costumes nos últimos trinta anos, e
como decorrência da crescente atividade dos grupos feministas e do movimento de mulheres em
geral, esta parcela que conta hoje a maior parte da população brasileira vem galgando espaços cada
vez mais significativos, ainda que não condizentes com sua verdadeira importância no cenário
nacional e mundial. Tal atuação tem determinado mesmo decisivas alterações nas relação homemmulher e na redefinição de papéis sociais e da divisão social do trabalho doméstico, contribuindo
para a construção de uma humanidade menos opressiva, mais solidária e mais aberta a seus próprios
afetos.
As diversas alterações normativas neste campo, consolidando a igualdade jurídica entre
homens e mulheres, devem ser compreendidas, portanto, no bojo de um tal processo que não é,
como se vê, apenas normativo, mas fundamentalmente civilizacional; e o mundo do direito não é
indiferente ao tratamento ativo da superação das desigualdades. O direito não se conforma, hoje, em
manifestar no corpo dos textos legislativos uma igualdade formal e abstrata, também importante
mas não mais suficiente. O mundo do pós-II Guerra exige ainda a adoção concreta de medidas
ativas para a superação fática das desigualdades, como uma conseqüência necessária das normas
gerais de reconhecimento.
A isto se tem denominado, tanto na doutrina quanto na atuação político-institucional dos
grupos de interesse respectivos, de “discriminação positiva”, ou “políticas de ação afirmativa”.
Trata-se de conjunto de medidas de cunho constitucional e legal que, interferindo diretamente na
realidade, pretendem superar o marco das desigualdades sociais no que concerne a certos grupos
sociais, realizando a igualdade genericamente reconhecida no Texto Constitucional, sejam estes
grupos minorias oprimidas, sejam maioria excluídas ou alijadas dos processos sócio-políticos como
um todo. A própria Constituição estabelece algumas normas visivelmente com esta natureza ou com
esta orientação - não é outra a finalidade de dispositivos como o constante do art. 37, VIII, ao
determinar reserva de certo número de vagas no serviço público para portadores de deficiência,
devendo a lei dispor sobre os critérios de sua admissão. O caso das mulheres, maioria em nossa
sociedade, não é diferente, expressando-se mesmo em recente legislação que obriga os partidos
políticos a comporem nominatas com percentual mínimo obrigatório de candidatas.
É aristotélica a clássica noção de que realizar a justiça é tratar desigualmente os desiguais nos
limites da sua desigualdade. Tratar identicamente os desiguais não pode gerar senão a injustiça, a
segregação e a iniquidade.
As forças armadas são historicamente espaço reservado aos homens. Mas esta realidade tem
sido alterada a passos ágeis em vários países do mundo. Há não muitos anos viu-se pela televisão
imagens da participação ativa de mulheres norte-americanas na invasão do Iraque promovida pelos
EUA e seus aliados, inclusive em missões de combate, tendo-se ciência mesmo das repercussões de
tal fato no choque entre a cultura norte-americana e a fundamentalista islâmica.
Neste sentido, o estabelecimento de normas próprias para promoção e acesso a certos níveis
da carreira para as integrantes do corpo feminino de qualquer Força deve ser analisado no âmbito
das chamadas discriminações positivas, a fim de verificar se o discrímen estabelecido na norma
jurídica encontra-se dentro dos limites constitucionalmente aceitáveis para tal desnivelamento. Vale
dizer : se o tratamento desigual em cada caso corresponde de forma razoável ao atendimento da
norma geral de igualdade, incidindo sobre o mundo da vida de forma a realizar tal igualdade fática,
e não só abstrata, ou se, ao contrário, excede estes limites constitucionais e viola ela própria a
norma garantidora de igualdade.
Dentre as várias formas de proceder-se à análise desta adequação, uma delas é a proposta
pelo jusfilósofo alemão Robert Alexy, notadamente em sua obra Teoria de los derechos
fundamentales (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997). Para este Autor, a máxima
aristotélica acima mencionada (tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais)
caracteriza-se como conteúdo mesmo do princípio de igualdade constitucional. Daí que a igualdade
deve ser considerada a partir de duas outras máximas complementares, uma relativa ao comando de
tratamento igual, outro pertinente ao comando de tratamento desigual. A primeira poderia ser
traduzida pela seguinte fórmula: “Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um
tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual” (ob. cit., p. 395). À segunda
corresponderia a fórmula “Se há uma razão suficiente para ordenar um tratamento desigual, então
está ordenado um tratamento desigual” (idem, p. 397). Ambas estas formulações, entretanto, estão
submetidas a uma orientação geral em favor da igualdade, que se expressa na assimetria das
referidas fórmulas. Ou seja: a realização do princípio constitucional da igualdade exige, prima facie,
um tratamento igual e só permite um tratamento desigual se pode ser justificado com razões opostas
(p. 398).
No caso concreto, insurgem-se os Autores contra o estabelecimento de normas para
promoção das integrantes do corpo feminino distintas daquelas relativas à promoção de cabos
homens. A norma em comento seria a constante da Portaria n.º 120/GM3/84, do Ministro da
Aeronáutica, notadamente os arts. 1º e 2º :
“Art. 1.º - Autorizar o Comandante-Geral do Pessoal a baixar as normas para a realização
do exame de conhecimentos especializados para as atuais cabos do QFG, que o requererem e
comprovem ter habilitação profissional correspondente ao ensino de 2º grau.
Art. 2º - Autorizar que os aprovadas no exame de que trata o art. 1º desta Portaria
sejam promovidas à graduação de Terceiro-Sargento, satisfeitas as demais condições legais e
regulamentares aplicáveis ao Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica.”
Alegam que tais normas estabeleceriam acesso direto das integrantes do QFG ao posto de
Terceiro-Sargento, com preterição deles próprios, vez que a eles seria exigido o concurso público
para a escola de especialistas.
Não procedem as alegações autorais. Nos termos da Lei n.º 6.924, de 29 de junho de 1991, o
Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica é criado para atender às necessidades do Ministério da
Aeronáutica relacionadas com atividades técnicas e administrativas, exercendo suas funções na
forma da respectiva lei (art. 1.º e seu parágrafo único). O aludido Corpo Feminino da Reserva da
Aeronáutica é composto pelas alunas dos Quadros do CFRA, na condição de praças especiais, pelo
Quadro Feminino de Oficiais - QFO e pelo Quadro Feminino de Graduados - QFG. A mesma Lei
dispõe sobre condições de recrutamento, seleção inicial, matrícula, condições de habilitação e
outras matérias específicas, determinando a existência, tanto fatual quanto jurídica, de um Corpo
próprio, integrado por Quadros específicos. O Decreto n.º 86.325, de 1º de setembro de 1991,
regulamentou a referida Lei.
Ora, em primeiro lugar, como já salientado, há a conformação de Quadro específico, com
atribuições específicas, distintas daquelas pertinentes ao corpo masculino da Aeronáutica. Além
disso, não há promoção automática a Terceiro-Sargento no âmbito do QFG, tanto assim que a
Portaria referida pelos Autores (n.º 120/GM3/84) autoriza exames de conhecimentos especializados
para cabos do CFRA. As normas são, de fato, distintas, mas isto se dá porque há quadro próprio de
graduados no Corpo Feminino, não havendo competição direta com a promoção dos cabos homens,
integrantes de outros quadros da Força; logo, não há preterição. Por fim, a Lei n.º 6.924 estabeleceu
que as promoções no QFO e no QFG ocorreriam nas mesmas épocas e nas mesmas condições
previstas para os Oficiais e Graduados da Ativa do Ministério da Aeronáutica, respeitados os
interstícios previstos na regulamentação da Lei (art. 20), estatuindo assim orientação geral de
igualdade; mas tal dispositivo deve ser entendido sistematicamente, integrado ao conjunto da
mesma Lei que criou o CFRA como Corpo próprio e com atribuições próprias. Tanto é assim que as
especialidades necessárias ao desempenho das atividades técnicas e administrativas do CFRA
deveriam ser estabelecidas por ato do Ministro de Estado da Aeronáutica, consoante o que prevê o
art. 22 da Lei n.º 6.924.
Assim, sob o ponto de vista infraconstitucional não há ilegalidade a ser corrigida pelo
Judiciário, posto que tanto o Decreto 86.325/91 quanto a Portaria n.º 120/GM3/84 atenderam a seus
requisitos próprios de validade jurídica, não excedendo os limites traçados pelas normas
hierarquicamente superiores. Restaria, então, a crítica à constitucionalidade da própria Lei 6.924 ao
estatuir Corpo Feminino distinto do masculino da Aeronáutica.
Aqui, todavia, também merecerá desacolhimento a pretensão autoral. É que, como salientado
anteriormente com base em Alexy, a realização do princípio constitucional da igualdade exige,
prima facie, um tratamento igual e só permite um tratamento desigual se pode ser justificado com
razões opostas. Estas razões, entretanto, residem no fato de que às mulheres, em que pese o fato de
corresponderem à maior parte da população brasileira, eram vedados inúmeros espaços sociais,
inclusive no que tange à participação e ao desenvolvimento na carreira militar. Textos legislativos
com a Lei 6.924/84 visam reverter parcialmente tal situação, ao mesmo tempo que sanar problemas
de falta de efetivo, de forma a integrar as mulheres em tal espaço, antes exclusivamente masculino,
e melhor compor as necessidades das Forças Armadas.
É sem dúvida criticável, em tese, se a forma escolhida pelo legislador foi a melhor ou não, se
o ideal não seria uma integração efetiva e em todos os níveis das mulheres no cotidiano militar, em
absoluta igualdade de condições com os homens (podendo atingir as patentes superiores a TenenteCoronel, por exemplo), mas não foi esta a opção legislativa. Tal debate, de resto, é apenas de lege
ferenda, porque insconstitucionalidade não há no diploma normativo. A integração parcial das
mulheres nas Forças Armadas, ainda que demandando provisoriamente especificação de condições
e procedimentos um tanto distintos daqueles previstos para os militares homens, é razão suficiente
para comandar o tratamento diferenciado, ampliando a capacidade de atração de maiores
contingentes femininos para a área militar, tanto quanto a exigência legal de número mínimo de
candidaturas femininas nas eleições proporcionais é útil e necessária ao respectivo fim para a
composição das casas legislativas. Não se trata, na hipótese, de norma violadora do princípio de
igualdade, mas sim de norma que tende a realizá-la, como já mencionado, através da promoção de
políticas de ação afirmativa e de tratamento diferenciado em face daqueles que ainda são
factualmente diferentes, no caso concreto, apesar da cláusula constitucional de proclamação e
reconhecimento jurídico de igualdade.
No futuro certamente tais normas desaparecerão, permitindo que as mulheres ocupem
integralmente, e sem necessidade de quaisquer normatizações específicas, todos os postos que sua
capacidade presente já lhes permitiria alcançar, mas que as vicissitudes da vida social ainda
entravam, mesmo que menos do que antes. A título exemplificativo, já é mais do que tempo para
que houvesse mais de uma mulher nos tribunais superiores, em especial no STJ e STF, sendo de
todo inadmissível a alegação de que inexista mulher com capacitação para tanto, tese que somente
poderia ser explicitada pela ignorância ou pelo preconceito.
Lícitas as regulamentações da Lei 6.924, portanto, e constitucional esta própria à luz do
princípio isonômico, não houve a preterição alegada pelos Autores na inicial, sendo portanto
improcedentes tanto o pedido de promoção dos Autores, quanto todos os demais que dele são meros
consectários (parcelas atrasadas, correção monetária, juros e parcelas vincendas).
ISTO POSTO, julgo IMPROCEDENTES os pedidos autorais, na forma da fundamentação
supra.
Custas e honorários pelos Autores, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da
causa.
P.R.I.
Rio de Janeiro, 29 de abril de 1998.
JOSÉ CARLOS GARCIA
CASO B
30ª VARA FEDERAL
AÇÃO ORDINÁRIA N.º: 93.0013105-2
Autor : NELI DE BRITO LUNA
Ré
: UNIÃO FEDERAL
Juíza : Dra. FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA
SENTENÇA
I
Vistos etc.
NELI DE BRITO LUNA, qualificada na inicial, ajuíza a presente Ação Ordinária, contra a
UNIÃO FEDERAL objetivando a reversão da pensão militar, deferida a sua mãe, viúva do General
de Brigada R/1 Alfredo Luna, com o pagamento das respectivas pensões atrasadas desde 08 de
outubro de 1991. Para tanto, alega que, na condição de filha, está amparada na Lei 4242/63, art. 30,
pela qual é devida pensão especial aos herdeiros igual à estipulada no art. 26 da Lei 3.765/60.
Procuração e documentos às fls. 06/26.
Regularmente citada, a União Federal responde, alegando que a recusa ao pedido de reversão
da pensão foi legal e baseada na Lei 8216/91, porquanto a lei estava em vigor quando do
requerimento da autora e que não contempla com pensão militar as filhas casadas do militar
falecido.
Réplica às fls. 36.
Sem outras provas, vieram os autos conclusos para sentença.
É o relatório.
Passo a decidir.
II
Ainda que por mera hipótese, o juízo admitisse a tese sustentada pela Autora, de que a Lei
8216/91 ao modificar o artigo 7º, II da Lei 3765/60 estaria a atingir direito adquirido, melhor sorte
não lhe caberia.
A questão das pensões concedidas a filhas mulheres de militar falecido não tem sua solução a
nível infraconstitucional legal, mas sim a nível constitucional.
É a partir da Constituição de 1988, com seus valores abraçados, a serem efetivados, que a
moldura desse benefício se viu reformulada.
O fato do indeferimento da reversão do benefício, em razão do estado civil da Autora, não se
justifica primordialmente em lei, mas tem seu fundamento de validade na Constituição como a
seguir se evidenciará.
Logo, despicienda é a discussão sobre a lei que se faria incidir no caso em concreto, vez que
é no grau supremo da hierarquia das leis que se manifesta a controvérsia. Pelo que, me reservo o
direito, em homenagem ao princípio da economia processual, de não adentrar nesta seara.
Pois bem.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O tema da seguridade social sempre foi - e o será - ponto nevrálgico, para uma sociedade
complexa - traçada sob os auspícios de um Estado de Direito - cujos conflitos se manifestam das
mais variadas formas e são permeados pelos mais diversos interesses, acabando suas águas por
desembocar e confluir no Poder Judiciário.
E, ao fim, é ele, Judiciário, chamado a solucioná-los. Sendo inclusive, muitas vezes, lhe
exigidas decisões salomônicas, que “confortem a todos” -
gregos e troianos (como que numa
fórmula mágica) - não importando que, para assegurar a satisfação de uns poucos, a própria
Constituição Federal pereça -- convenientemente esquecida.
Entretanto, cabe ao mesmo Judiciário, na figura do juiz, como aplicador da lei, em especial,
velar para que a ordem constitucional seja eficaz, preservando-a intacta, íntegra; não rebaixandoa, como diz Luiz Roberto Barroso, a uma simples folha de papel que aceita tudo, admitindo que
seu potencial jurídico se dilua na convivência com abstrações implausíveis.
Como ensina HESSE, há que se cultivar a vontade de constituição.
“A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar
‘a força que reside na natureza das coisas’, tornado-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa
que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva
quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte
mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a
intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão
de vontade de Constituição (Wille zur Verfassung).
(Konrad Hesse, A Força Normativa da
Constituição. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p.24).
E é a partir dessa vontade de constituição que a pretensão de eficácia constitucional se
realiza.
A MOLDURA LEGAL DO BENEFÍCIO
Considerando-se o período anterior à vigência da Constituição de 1988, basicamente, o
benefício da pensão de dependente, em razão da morte de militar e ex-combatente, tinha sua
fundamentação legal, entre outros diplomas, na Lei 3765/60 e na Lei 4242/63.
Quanto aos filhos, de qualquer natureza, - varões e mulheres - a legislação erigiu uma
sistemática diferenciada (vide arts. 7, II e 23, II, da Lei 3765/60), criando, ao fim, pensões vitalícias
e temporárias, concedidas mediante os seguintes critérios:
Ao filho homem seria devida pensão, enquanto menor, e alcançada a maioridade, a mesma
cessaria.
Com relação a filhas mulheres, independentemente de idade ou estado civil, a pensão não
estaria sujeita a termo fixado para a sua extinção, sendo portanto, concedida em caráter vitalício.
Cumpre observar que aos filhos (independentemente de sexo, idade, ou estado civil)
interditos ou inválidos era dispensado o mesmo tratamento dado às mulheres, isto é, concessão de
pensão vitalícia.
Assim, o ordenamento legal regulava a matéria de forma diferenciada, elegendo dois grandes
critérios de classificação legislativa: o sexo e incapacidade.
E gozando a filha mulher do mesmo tratamento dispensado aos inválidos e interditos,
subentende-se o reconhecimento de uma maior fragilidade e dependências femininas, as mesmas
que ostentam os incapazes (ainda que a mulher fosse maior), exigindo amparo legal.
O EXAME DA INCOMPATIBILIDADE DO BENEFÍCIO
FACE A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL
A compatibilidade de uma norma frente ao texto constitucional, e por conseqüência sua
validade, indica duas linhas de análise: uma de cunho formal e outra material.
A primeira cinge-se à aferição da regularidade formal do ato (forma de expressão) frente ao
ordenamento constitucional.
Já a segunda, a material, verifica-se se a norma corresponde ao espírito da Constituição.
No particular, os princípios constitucionais, definidos por CELSO ANTONIO BANDEIRA
DE MELLO, como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério
para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” (apud José Afonso da
Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. 10º ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1995, p.93)
desempenham papel vital para a análise de compatibilidade entre o ato normativo e o Texto Maior,
alvejando a efetividade da ordem constitucional.
Neste diapasão, são inafastáveis algumas considerações sobre o PRINCÍPIO DA
ISONOMIA.
GERALDO ATALIBA esclarece: “Princípio constitucional fundamental, imediatamente
decorrente do republicano, é o da isonomia ou igualdade diante da lei, diante dos atos infralegais,
diante de todas as manifestações do poder, quer traduzidas em normas, quer expressas em atos
concretos. Firmou-se a isonomia, no direito constitucional moderno, como direito público subjetivo
a tratamento igual, de todos os cidadãos, pelo Estado.
Como essencialmente, a ação do Estado reduz-se a editar a lei ou dar-lhe aplicação, o fulcro
da questão jurídica postulada pela isonomia substancia-se na necessidade de que as leis sejam
isonômicas e que sua interpretação (pelo Executivo ou pelo Judiciário) levem tais postulados até
suas últimas conseqüências, no plano concreto da aplicação (...)
Igualdade diante do Estado, em todas as suas manifestações.
Igualdade perante a
Constituição, perante a lei e perante todos os demais atos estatais. A isonomia, como quase todos
os princípios constitucionais, é implicação lógica do magno princípio republicano, que o fecunda e
lhe dá substância. Embora tenha larguíssima fundamentação histórica e provectas raízes culturais, o
princípio da isonomia só pode ser compreendido em toda sua dimensão e significado, juntamente
como o princípio da legalidade. É que a teleologia do direito constitucional - tal como plasmado ao
longo da evolução do mundo ocidental - foi expressando-se por esses princípios, guardando porém,
essencialmente a mesma substância. Esta tem inúmeras dimensões, as quais, por isso que partícipes
da mesma raiz, são harmônicas, coerentes entre si e solidárias” ( apud Carlos Ari Sundfeld,.
Fundamentos de Direito Público. 2ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1993, p.161).
Para CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “a lei não deve ser fonte de privilégios
ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente
todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e
juridiscizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas
normativos vigentes.” (apud José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª
ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1995, p. 93).
Pois bem.
Surge então a pergunta:
"Quem são os iguais e quem são os desiguais?"
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO entende que só respondendo a esta indagação
“poder-se-á lograr adensamento do preceito, de sorte a emprestar-lhe cunho operativo seguro, capaz
de converter sua teórica proclamação em guia de uma praxis efetiva, reclamada pelo próprio ditame
constitucional.
Como as leis nada mais fazem senão discriminar situações para submetê-las à regência de tais
ou quais regras - sendo esta mesma sua característica funcional - é preciso indagar quais as
discriminações juridicamente intoleráveis “ (ob. cit. p . 11)
Ou seja, o Estado pode dispensar um tratamento desigual aos particulares, desde que o faça
JUSTIFICADAMENTE.
É o próprio BANDEIRA DE MELLO quem indica o caminho a seguir: “Com efeito, por via
do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de
desequiparações fortuitas ou injustificadas. Para atingir este bem, este valor absorvido pelo Direito,
o sistema normativo concebeu fórmula hábil que interdita, o quanto possível, tais resultados, posto
que, exigindo igualdade, assegura que os preceitos genéricos, os abstratos e os atos concretos
colham a todos sem especificações arbitrárias, assim proveitosas que detrimentosas para os
atingidos.” (ibidem)
Assim, “a lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que
não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e
poderá ser uma tirania.” (ibidem)
Num outro giro, ao se tratar de igualdade, impõe-se reflexão
sobre o princípio da
proporcionalidade.
Ainda que de escasso estudo, o princípio da proporcionalidade já vem sendo reconhecido
pelos nossos Tribunais, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal.
O princípio da razoabilidade - dirigindo-se ao legislador - pressupõe uma correlação precisa
entre meio adotado e fim a ser atingido, de modo que a solução mais satisfatória, coerente e menos
gravosa seja a escolhida.
Desta forma, o princípio da razoabilidade é utilizado com o intuito de aferir se as distinções
de tratamento, considerando o resultado perseguido, são ou não compatíveis com a igualdade, logo
a proporcionalidade assume feições de parâmetro e não de uma medida em si.
Assim, quando o legislador institui disparidade de tratamento, buscando disciplinar situações,
o faz dentro de certos critérios discricionários, MAS SEMPRE SEM CONTRARIAR VALORES
CONSTITUCIONAIS, sob pena de instituir tratamento incompatível com o Texto Constitucional.
“HOMENS E MULHERES SÃO IGUAIS EM DIREITOS E OBRIGAÇÕES..." (CF, art. 5 º,
inciso I)
A propósito, esclarece JOSÉ AFONSO DA SILVA que “não é sem conseqüência que o
Constituinte decidiu destacar em um inciso específico (art. 5º, I), que homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Era dispensável acrescentar a cláusula
final, porque, ao estabelecer a norma, por si, já estava dito que seria ‘nos termos desta
Constituição’. Isso é de somenos importância. Importa mesmo é notar que é uma regra que resume
décadas de lutas das mulheres contra discriminações. Mais relevante ainda é que não se trata aí de
mera isonomia formal. Não é igualdade perante a lei, mas igualdade em direitos e obrigações.
Significa que existem dois termos concretos de comparação: homens de um lado e mulheres de
outro. Onde houver um homem e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito
de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional.” (ob. cit. p .
212)
Retomando ao texto de lei examinado, percebe-se que há tratamento mais benéfico e
complacente, dispensado às filhas mulheres, vez que sua pensão seria vitalícia, independentemente
de suas condições pessoais.
E a questão que se coloca é:
Tal tratamento diferenciado - em que mulheres gozam de mais direitos que homens - se
justifica? Se mostra razoável? Perante a ordem constitucional vigente, se sustenta como legítimo,
tal discrímen?
E a resposta que aflora, naturalmente, indica um caminho negativo.
Com o movimento de liberação feminina e novos espaços sendo conquistados, as mulheres
saíram de casa, deixaram as asas protetoras de pais e maridos, passando a assumir identidade e
vontade próprias.
Hoje o mercado de trabalho é disputado entre homens e mulheres quase em mesmas
proporções.
As universidades não são mais redutos masculinos.
Até mesmo atividades
tradicionalmente masculinas são desempenhadas por representantes do sexo feminino, tais como: o
futebol, o policiamento, a condução de veículos de massa, o trabalho de frentista, e muitos outros
mais.
É claro que, não se quer afirmar que não existem mais discriminações - o que revelaria uma
visão naive da realidade - mas a moldura legal que legitimaria tais situações (como o foi no
passado) não mais persiste.
A questão, agora, mudou de oitava, passando-se ao campo da
efetividade dos mandamentos constitucionais.
E por um lado, se houve bônus, também os ônus correspondentes devem ser assumidos, sob
pena de se admitir situações extremamente injustas e inadequadas, não apenas face aos filhos varões
de ex-combatente, mas também em relação a outras mulheres, não desfrutantes do privilégio.
Imagine-se, ad argumentandum, que numa situação extremada, uma beneficiária desta lei,
vivendo em união estável, e sendo profissional liberal de grande sucesso, ainda continuaria
percebendo a pensão deixada por seu pai.
Hipótese que não se justifica!
O discrímen não se coaduna com o princípio da razoabilidade, acabando por macular,
consequentemente, o princípio da igualdade.
Logo, o disposto no art. 7º, II, da Lei 3.765/60, configura-se em violação ao valor
constitucional da isonomia.
Restando superada a questão do discrímen irrazoável do dispositivo em exame, que acaba por
determinar um tratamento anti-isonômico entre homens e mulheres, não se coadunando aos
desideratos constitucionais, a própria ordem constitucional desenvolve mecanismos para que a sua
integridade seja garantida, de modo que essas violações sejam rechaçadas, por força de sua
supremacia.
Sendo o ato anterior à Constituição, seguindo-se orientação do STF, o fenômeno que se dá é
o da RECEPÇÃO ou não, pela nova ordem, da legislação que a precedeu; resolvendo-se pelas
regras da revogação.
Exatamente a situação em tela, já que o regime em questão foi instituído em 1960, e portanto,
superveniente é a Constituição.
Como acima verificado, salta aos olhos que, por sustentar tratamento discriminatório
desarrazoado entre homens e mulheres, o dispositivo que concede privilégio às filhas mulheres,
apresenta-se materialmente em desacordo com a nova ordem jurídica constitucional; e, portanto, por
ela não é acolhido, restando REVOGADO.
Entretanto, apenas a tese da revogação da norma pode não vir a solucionar a controvérsia em
sua completude, já que fixa a ausência de escorço legal, apenas, para aquelas filhas de ex-militar
falecido, que viessem a pleitear pensão, depois do advento da Constituição de 1988.
Como se resolve a questão daquelas pensões que já vinham sendo deferidas, e acabaram
suspensas ou cortadas?
Poderiam ser argüidas como "direito adquirido" e conseqüentemente protegidas, por força do
art. 5º, inciso XXXVI, da CF, que determina que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato
jurídico perfeito e a coisa julgada" ?
Em que pese a sedução desse raciocínio, o mesmo não se sustém perante uma reflexão mais
aprofundada.
A orientação é de NAGIB SLAIBI FILHO:
“Como norma jurídica mais elevada, a
Constituição nova não respeita a ordem jurídica anterior - isto é, não há direito adquirido oponível
em face à nova ordem constitucional, a não ser que a nova Constituição assim disponha
expressamente ( o art. 49, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é um exemplo
de tal previsão).
Tal conclusão decorre, tão-somente, da aplicação do princípio da supremacia da Constituição
perante todos os outros atos jurídicos." (in NAGIB SLAIBI FILHO, Anotações à Constituição de
1988, 4ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense, 1993, p. 66)
Por outro lado, se o direito adquirido, ainda que contrário à nova Constituição,
fosse
preservado - sem qualquer referência a sua manutenção, no novo texto, simplesmente por ser
direito adquirido - se reconheceria que a nova ordem constitucional, estaria sempre atada ao velho
ordenamento, por grilhões inquebrantáveis, que jamais admitiriam uma renovação total.
E a nova Carta Política, simplesmente, se transmudaria em veículo de repetição, cuja força
criadora originária estaria seriamente comprometida, seu poder de transformação impotente. O que,
por si só, descaracteriza a própria Constituição como instrumento fundador do Estado.
Daí o direito adquirido, que materialmente violar norma constitucional, só será preservado,
se houver EXPRESSA DETERMINAÇÃO, no novo texto constitucional - o que, aí sim, gozará
de legitimidade já que oriundo do poder constituinte.
Logo, a invocação de direito adquirido, para preservar a percepção de pensão por aquelas
filhas beneficiárias - MAIORES DE 21 ANOS, NÃO INVÁLIDAS E NÃO INTERDITAS - fenece
frente a proibição de tratamento discriminatório por motivo de sexo.
No confronto entre a regra do art. 7º, inciso II, da Lei 3765/60 e a norma constitucional do
art. 5º, inciso I, PREVALECERÁ SEMPRE O MANDAMENTO CONSTITUCIONAL.
Em outras palavras, não é possível que privilégio -- ainda que aparentemente benéfico -decorrente de norma legal antecedente, não-recepcionada pela Constituição superveniente, seja
mantido.
Inclusive, neste particular não há de se invocar o art. 53, inciso III, dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias - ADCT - como norma constitucional há
recepcionar o direito
adquirido a pensão, posto que a dicção da regra se refere a "DEPENDENTE", e portanto, os filhos
(homens ou mulheres) maiores de 21 anos e capazes, evidentemente, não se enquadram nesta
categoria.
É de se lembrar que as normas constitucionais devem ser interpretadas num todo harmônico,
cujos vetores são os princípios que dão esteio ao ordenamento.
Por outro lado, como indicam as regras de interpretação constitucional, sendo o princípio da
isonomia um direito fundamental, se o constituinte almejasse perpetuar a situação das pensionistas
filhas de militares, o teria ter feito de forma expressa, já que autorizaria norma de exceção ao
cânone da igualdade. Não o fazendo, prevalece a interpretação que favorece a integridade e maior
eficácia do princípio.
EM SÍNTESE
As reflexões quanto a legitimidade da pensão vitalícia para filhas mulheres, maiores de 21
anos, a despeito de seu estado civil, perante a Constituição Federal de 1988, apontam para a
violação da ordem constitucional, pela norma ordinária, que macula o princípio da isonomia, por
estabelecer tratamento diferenciado desproporcional, entre filhos homens e mulheres.
Desta forma, tem-se que, no mundo da vida, a questão a ser enfrentada, principalmente pelo
Judiciário, agente mediador entre a vontade constitucional e sua efetivação, quando chamado a
solucionar lide a este respeito, pode se apresentar sob dois aspectos principais.
Num primeiro momento, a argüição, no sentido da confirmação do recebimento da pensão
temporária, por aquelas pessoas, que, implementando as condições exigidas na lei, já
dela
usufruíam, antes do advento da Carta Política de 88; e que pretendem manter seu status quo
inalterável, sob a alegação de direito adquirido.
O segundo aspecto a ser considerado, diz respeito à filha - que teria apenas mera expectativa
de direito, quando da vigência do dispositivo discutido - e que, por ocasião da morte de seu pai ou
mãe,
funcionário público, mesmo após a promulgação da nova Constituição,
pretenderia
concretizar essa expectativa, em direito subjetivo, visto que a condição para a aquisição do direito,
como estabelecido em lei, teria se implementado.
Em ambos os casos, quer na impossibilidade de invocação de direito adquirido perante a
Constituição, quer pela não-recepção do dispositivo infraconstitucional, e sua consequente
revogação,
caem por terra estas pretensões, por ausência de fundamentação jurídica, como,
previamente, demonstrado.
III
Do exposto, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos formulados pela Autora.
Custas processuais e honorários advocatícios - estes fixados em 5% (cinco porcento) do
valor da causa, devidamente corrigido - pela Autora, nos termos do art. 20, § 4º do CPC.
P.R.I.
Rio de Janeiro, 19 de março de 1997.
FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA
Juíza Federal Substituta - 30ª Vara/RJ
REPRODUÇÃO DO CAPÍTULO 4 DA OBRA SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da.
Princípio constitucional da igualdade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 101-110
Nesse último capítulo, busca-se evidenciar , com o estudo de dois casos em concreto,
CASO A e CASO B, mediante a análise da fundamentação das respectivas decisões judiciais,
algumas das possibilidades de utilização e aplicação prática do princípio da isonomia, através da
prestação jurisdicional . E portanto, deixar-se em evidência, a potencialidade de utilização efetiva
do mandamento constitucional de igualdade.
Entre todas as aplicações possíveis do princípio da igualdade, com efeito, considerando-se
sua relação com a atividade jurisdicional, o grande papel contemporâneo desse princípio
constitucional - em qualquer de suas manifestações - é justamente o de coibir o abuso do poder
normativo governamental, em todas as suas manifestações, abrindo espaço para a concretização de
uma sociedade mais humana, justa e solidária.
Assim, servindo de suporte argumentativo, fundamentando e informando as decisões tomadas
pelo juiz, o princípio da isonomia se erige como freio ao destempero e arbitrariedade legislativas,
repelindo as mazelas da irracionalidade e da irrazoabilidade.
Tanto que, para Siqueira Castro (1983: 72) , nesse sentido, como controle meritório da
legislação, o princípio da isonomia desempenha papel semelhante ao desempenhado pela teoria
francesa do desvio de poder (détournement de pouvoir), no que toca ao controle da legalidade dos
atos discricionários praticados pela Administração Pública.
A exata percepção da cláusula da igualdade abre ao órgão judicial um enorme potencial de
fiscalização da regularidade material entre a disciplina constitucional e a classificação adotada pelo
legislador, e portanto, sua legitimidade perante a ordem constitucional vigente, quer reforçando a
possibilidade de ações que visem a uma maior igualdade material (ações afirmativas), quer alijando
privilégios desqualificados.93
93
Muito embora o debate dos limites da atividade judicial não seja parte do objeto em exame, são
pertinentes as colocações de Mélin-Soucramanien (1997), sobre questão tão delicada, em que o juiz deve se
Por outro lado, há de ser considerado que a atividade jurisdicional, como veículo de aplicação
da lei, no caso em concreto, tem como pressuposto lógico a interpretação94 da norma constitucional
considerada, lhe dando concretização.
La interpretación constitucional es “concretización” (Konkretisierung). Precisamente
lo que no aparece de forma clara como contenido de la Constitución el lo que debe ser
determinado mediante la incorporación de la “realidad” de cuya ordenación se trata
[...]. En este sentido la interpretación constitucional tiene carácter creativo: el
contenido de la norma interpretada sólo queda completo com su interpretación; ahora
bien, sólo em esse sentido posee carácter creativo: la actividad interpretativa queda
vinculada a la norma. (Hesse:1992,40-1)
Ao final,
a interpretação deve estar compromissada com a produção do resultado
constitucionalmente “correto” através de um procedimento racional e controlável
e com a
fundamentação desse resultado, de modo igualmente racional e controlável, criando deste modo,
defrontar com os limites de sua atuação : “De fait, il est certain que le principe constitutionel d’égalité, s’il
est strictement entendu par le juge, peut représenter une menace pour pratiquement tous les choix effectués
par le Parlement puisque l’activité législative qui comporte
nécessairementl’etablisssement de
différenciations de traitement selon les catégories est, par essence, discriminatoire. En ce sens, on peut
considérer que le mise en œuvre du principe d’égalité par le Conseil constitucionnel recèle en germe une
potencialité d’anéantissement de la quasi-totalité de l’ œuvre législative ce qui pose un problème délicat au
juge constitucionnel qui se trouve partagé entre l’exigence d’assurer la plénitude de son rôle de gardien de la
Constitucion et l’impérieuse nécessité de préserver une marge suffisante de pouvoir discrétionnaire au profit
du législateur.” (p.125)
Para F.Rubio Llorente: “El principio de igualdad el foca de la tensión entre legislador y juez, entre
política y Derecho, y es, en consecuencia, su aplicación la que más frecuentemente suscita acusaciones de
activismo judicial o de abdicacíon del juez ante la arbitrariedad del legislador. “ (citado por MélinSoucramanien , 1997:125)
94
Quanto à questão da interpretação constitucional, Hesse (1992) faz uma distinção entre interpretação
no sentido estrito e no sentido amplo, que no presente estudo não é abordada eis que extrapolaria o objeto
escolhido. Para o autor, só há interpretação propriamente dita (no sentido restrito) quando deve-se dar uma
resposta a uma questão constitucional que a Constituição não permite solução de forma concludente. “Allí
donde não se suscitam dudas no se interpreta, y com frecuencia no hace falta interpretación alguna. No toda
realización de normas constitucionales es “interpretación”, en tanto que en el curso de la interpretación
constitucional la Constitución resulta siempre “actualizada”.
Así, no estaremos ante un supuesto de interpretación, aunque sí de actualización, cuando se cumple
el contenido de las normas constitucionales, sin que, posiblemente exista conciencia del acto de ejecución:
cuando se funda una asociación, cuando se elige el Parlamento, cuando se dictan leyes, actos administrativos
o resoluciones judiciales, en ejercicio todo ello de competencias constitucionalmente delimitadas. Igualmente
tampoco resulta necessário interpretar cuando la las disposiciones son terminantes, por más que aquí
también se asista a un acto – estructuralmente simple – de “comprensión” y, com ello, de “interpretación”
en sentido amplio.” (p.33-4)
certeza e previsibilidade jurídicas, e não se ter, simplesmente, a decisão pela decisão. (Hesse: 1992,
35)
No
particular, portanto, a atividade jurisdicional, informada por uma interpretação
constitucional compromissada, ao aplicar a norma constitucional lhe atribui efetividade. E para
tanto é essencial que os princípios constitucionais sejam adequadamente percebidos e
compreendidos de modo que o resultado constitucionalmente “correto” seja atingido.
É neste contexto, visando dar uma visão da aplicação prática do princípio da isonomia, que
foram selecionadas duas decisões proferidas, em 1° grau, nas ações ordinárias, processos n°
93.0007947-6 e 93.0013105-2,
com trâmites na 10° e 30° Varas Federais, respectivamente, da
Justiça Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, ainda não transitadas em julgado.
A escolha se deu por ter sido o princípio da igualdade a linha mestre da fundamentação para
invalidar ou validar a legislação infraconstitucional questionada.
Ademais, por conta
das diferentes estruturas argumentativas
adotadas pelos juizes,
prolatores das decisões, é possível se aquilatar a grandeza de compreensão da igualdade, em suas
diversas manifestações e a extensão que pode ser dada ao princípio, e sua importância na relação do
cidadãos entre si e com o próprio Estado.
Ambos os casos tratam de questões que colocam em cheque as relação mantidas entre as
mulheres, quer como membro ativo da corporação, quer como membro da família de um militar e às
Forças Armadas; e o tratamento normativo dispensado às mesmas, a partir da condição que
apresentam,
em relação ao efetivo masculino e a própria posição ocupada pelo homem na
sociedade.
Nos dois casos são dispensados tratamentos diferenciados, mais benéficos,
à situação
feminina, que frente ao princípio da isonomia assumem colorações diversas. Como se verá, em uma
situação a normatividade tem abrigo no mandamento constitucional ; na outra, ao contrário, a
disciplina legal viola o princípio da isonomia, e portanto se revela inconstitucional.
É interessante observar que os dois exemplos selecionados, apresentam pontos de
coincidências sem que as decisões sejam uniformes, ao revés, as mesmas são diametralmente
opostas - o que revela a textura aberta do princípio, permitindo uma aplicação mais ponderada,
maleável e flexível da norma constitucional.
Por outro lado, se colocadas num mesmo plano, não é a divergência de decisões que se faz
ressaltar; é a complementariedade das mesmas que exsurge de imediato, eis que abordam e
reconhecem o princípio da isonomia em suas diversas facetas: a vocação para diminuir o fosso das
desigualdades fáticas e a vedação de privilégios de uns em detrimento de outros.
Em razão de maior objetividade metodológica, as sentenças selecionadas, doravante, serão
chamadas de CASO A e CASO B, sem referência expressa às partes que integraram a lide, ainda
que no Anexo I possam ser encontradas em sua íntegra.
O CASO A trata do processo 93.0007947-6.
Nele se discute a constitucionalidade da legislação (especificamente , Lei n.º 6.924, de 29 de
junho de 1991 e Portaria n.º 120/GM3/84, do Ministro da Aeronáutica) que atribui tratamento
diferenciado ao Corpo Feminino da Força Aérea,
destinando-lhe regras mais benéficas de
promoção nos quadros das Forças Armadas, em preterição dos cabos varões.
A Lei n.º 6.924 foi a responsável pela criação do Corpo Feminino da Aeronáutica, dispondo
sobre condições de recrutamento, seleção inicial, matrícula, condições de habilitação e outras
matérias específicas, determinando a existência, tanto fatual quanto jurídica, de um Corpo próprio,
integrado por Quadros específicos, sendo regulamentada pelo
Decreto n.º 86.325, de 1º de
setembro de 1991.
A Portaria n.º 120/GM3/84, por sua vez, determinou que:
“Art. 1.º - Autorizar o Comandante-Geral do Pessoal a baixar as normas para a
realização do exame de conhecimentos especializados para as atuais cabos do QFG,
que o requererem e comprovem ter habilitação profissional correspondente ao ensino
de 2º grau.
Art. 2º - Autorizar que os aprovadas no exame de que trata o art. 1º desta Portaria
sejam promovidas à graduação de Terceiro-Sargento, satisfeitas as demais condições
legais e regulamentares aplicáveis ao Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica.”
Assim, discute-se, a constitucionalidade da regra mais favorável às mulheres, em face do art.
5°, I que prescreve a igualdade, entre homens e mulheres, de direitos e obrigações.
Ao analisar os argumentos apresentados, basicamente, o juiz entendeu, em síntese, que:
1.Em razão dos novos espaços que a mulher vem assumindo na sociedade contemporânea, ela
não pode mais ser vista como um cidadão de segunda categoria.
2. Tal percepção não afasta a existência de nichos sociais onde a dominação masculina se
encontra nitidamente presente, e a presença feminina é de difícil aceitação e integração naquele
ambiente - histórica e tradicionalmente as Forças Armadas tem sido entendidas como o baluarte do
poderio masculino.
3. A consolidação da igualdade jurídica entre homens e mulheres, deve ser compreendida
no bojo de um tal processo que não é apenas normativo, mas fundamentalmente civilizacional.
4. A determinação da igualdade tem alterado as estruturas normativas cujo esforço vem no
sentido do tratamento ativo da superação das desigualdades, com incidência na realidade fática.
5. O direito não se conforma, hoje, em manifestar no corpo dos textos legislativos apenas
uma igualdade formal e abstrata, exige-se a adoção concreta de medidas ativas para a superação
fática das desigualdades, chamadas de “discriminação positiva”, ou “políticas de ação afirmativa”.
6. O estabelecimento de normas próprias para promoção e acesso a certos níveis da carreira
para as integrantes do corpo feminino de qualquer Força deve ser analisado no âmbito das
chamadas discriminações positivas. Deve-se verificar se o discrímen estabelecido na norma jurídica
encontra-se dentro dos limites constitucionalmente aceitáveis para tal desnivelamento,
correspondendo de forma razoável ao atendimento da norma geral de igualdade, incidindo sobre o
mundo da vida de forma a realizar tal igualdade fática, e não só abstrata, ou se, ao contrário, excede
estes limites constitucionais e viola ela própria a norma garantidora de igualdade.
7. As razões do tratamento diferenciado residem no fato de que às mulheres, em que pese o
fato de corresponderem à maior parte da população brasileira, eram vedados inúmeros espaços
sociais, inclusive no que tange à participação e ao desenvolvimento na carreira militar. Textos
legislativos com a Lei 6.924/84 visam reverter parcialmente tal situação, ao mesmo tempo que sanar
problemas de falta de efetivo, de forma a integrar as mulheres em tal espaço, antes exclusivamente
masculino, e melhor compor as necessidades das Forças Armadas.
8. A integração parcial das mulheres nas Forças Armadas, ainda que demandando
provisoriamente especificação de condições e procedimentos um tanto distintos daqueles previstos
para os militares homens, é razão suficiente para comandar o tratamento diferenciado, ampliando a
capacidade de atração de maiores contingentes femininos para a área militar, tanto quanto a
exigência legal de número mínimo de candidaturas femininas nas eleições proporcionais é útil e
necessária ao respectivo fim para a composição das casas legislativas.
9. A própria Lei 6.924 ao estatuir Corpo Feminino distinto do masculino da Aeronáutica, o
fez para atender às necessidades do Ministério da Aeronáutica relacionadas com atividades técnicas
e administrativas, exercendo suas funções na forma da respectiva lei, e havendo atribuições
específicas, distintas daquelas pertinentes ao corpo masculino da Aeronáutica, não há competição
direta com a promoção dos cabos homens, integrantes de outros quadros da Força, não
há
preterição.
10. A Lei n.º 6.924 estabeleceu que as promoções no QFO e no QFG ocorreriam nas mesmas
épocas e nas mesmas condições previstas para os Oficiais e Graduados da Ativa do Ministério da
Aeronáutica, respeitados os interstícios previstos na regulamentação da Lei , estatuindo assim
orientação geral de igualdade; mas tal dispositivo deve ser entendido sistematicamente, integrado ao
conjunto da mesma Lei que criou o CFRA como Corpo próprio e com atribuições próprias.
11. Sob o ponto de vista infraconstitucional não há ilegalidade a ser corrigida pelo Judiciário,
posto que tanto o Decreto 86.325/91 quanto a Portaria n.º 120/GM3/84 atenderam a seus requisitos
próprios de validade jurídica, não excedendo os limites traçados pelas normas hierarquicamente
superiores, assim como a Lei n°. 6.924 não padece de inconstitucionalidade; eis que o tratamento
aplicado tem abrigo na isonomia constitucional, quando, almeja, faticamente, facilitar o acesso de
contingente feminino à espaço tradicionalmente masculino.
12. Em conclusão, não se trata, na hipótese, de norma violadora do princípio de igualdade,
mas sim de norma que tende a realizá-la, , através da promoção de políticas de ação afirmativa e de
tratamento diferenciado em face daqueles que ainda são factualmente diferentes, no caso concreto,
apesar da cláusula constitucional de proclamação e reconhecimento jurídico de igualdade.
O CASO B trata do processo 93.0013105-2.
Nele se discute a constitucionalidade da legislação (Lei 3765/60 e na Lei 4242/63) que
disciplina as pensões devidas pelo Estado, aos beneficiários dos servidores militares, em especial, a
suas filhas mulheres, em razão de falecimento.
A legislação observada erigiu uma sistemática diferenciada, para o deferimento e
permanência do benefício (pensão), entre os filhos varões e mulheres , criando, ao fim, pensões
vitalícias e temporárias.
A concessão do benefício e sua duração são informadas pelos seguintes critérios: a) ao filho
homem seria devida pensão, enquanto menor, e alcançada a maioridade, a mesma cessaria; b) às
filhas mulheres, independentemente de idade ou estado civil, receberiam pensão não sujeita a termo
fixado para a sua extinção, sendo portanto, concedida em caráter vitalício; c) aos filhos
(independentemente de sexo, idade, ou estado civil) interditos ou inválidos era dispensado o mesmo
tratamento dado às mulheres, isto é, concessão de pensão vitalícia.
Desta forma, o ordenamento legal regulava a matéria diferenciadamente, elegendo dois
grandes critérios de classificação legislativa: o sexo e incapacidade.
Assim, discute-se, a constitucionalidade da regra mais favorável às mulheres, (que lhes
concede pensão vitalícia) em face do art. 5°, I que prescreve a igualdade, entre homens e mulheres,
de direitos e obrigações.
Ao analisar os argumentos apresentados, basicamente, o juiz entendeu, em síntese, que:
1. O princípio constitucional da isonomia pressupõe tratamento igualitário se as situações
consideradas
apresentarem circunstâncias iguais, e autoriza
tratamento diferenciado, se as
situações forem diversas. O Estado está autorizado a estabelecer tratamento normativo desigual aos
particulares, desde que o faça JUSTIFICADAMENTE, sem a agressão dos valores constitucionais,
sob pena de instituir tratamento incompatível com o Texto Constitucional.
2. A constitucionalidade do discrímen adotado fica condicionada a um “teste” de
razoabilidade, onde a proporcionalidade assume feições de parâmetro e não de uma medida em si.
Desta forma, o princípio da razoabilidade é utilizado com o intuito de aferir se as distinções de
tratamento, considerando o resultado perseguido, são ou não compatíveis com a igualdade.
3. O princípio da razoabilidade - dirigindo-se ao legislador - pressupõe uma correlação
precisa entre meio adotado e fim a ser atingido, de modo que a solução mais satisfatória, coerente e
menos gravosa seja a escolhida.
4. O papel assumido pela mulher moderna, evidencia espaços conquistados, com a
reivindicação de identidade e vontade próprias, sendo assim dispensada e descabida a tutela
protetora e inibidora do pai ou marido.
5. Por um lado, se a liberação feminina trouxe bônus, também os ônus correspondentes
devem ser assumidos, sob pena de se admitir situações extremamente injustas e inadequadas, com
nítidos contornos de privilégio.
6. A previsão legal de concessão de pensão vitalícia à filha mulher de militar
(independentemente do estado e capacidade civis) evidencia que tratamento dispensado à filha
mulher
é o mesmo dispensado
aos filhos inválidos e interditos, subentendendo-se o
reconhecimento de uma maior fragilidade e dependências femininas, as mesmas que ostentam os
incapazes.
7. Esta concepção, mais benéfica e complacente, não mais se ajusta à sociedade moderna,
evidenciando a falta de razoabilidade no discrímen adotado, que institui fonte de privilégios
inconstitucionais.
8. As reflexões quanto a legitimidade da pensão vitalícia para filhas mulheres, maiores de 21
anos, a despeito de seu estado civil, perante a Constituição Federal de 1988, apontam para a
violação da ordem constitucional, pela norma ordinária (art. 7º, II, da Lei 3.765/60), que macula o
princípio da isonomia,
por estabelecer tratamento diferenciado desproporcional, entre filhos
homens e mulheres.
9. Em conclusão, por sustentar tratamento discriminatório desarrazoado entre homens e
mulheres, o dispositivo que concede privilégio às filhas mulheres, apresenta-se materialmente em
desacordo com a nova ordem jurídica constitucional; e, portanto, por ela não é acolhido, restando
REVOGADO, devendo a Administração Pública indeferir os pleitos nesse sentido.
10. Quanto às pensões que vêm sendo pagas devem as mesmas serem cessadas, eis que o
direito adquirido, que materialmente violar norma constitucional, só será preservado, se houver
EXPRESSA DETERMINAÇÃO, no novo texto constitucional quando gozará de legitimidade já
que oriundo do poder constituinte; portanto, a preservação da percepção de pensão por aquelas
filhas beneficiárias - MAIORES DE 21 ANOS, NÃO INVÁLIDAS E NÃO INTERDITAS - fenece
frente à proibição de tratamento discriminatório por motivo de sexo.
Por fim, nesse capítulo, buscou-se, mediante o estudo dos dois casos selecionados – CASO
A e CASO B – estabelecer uma ponte entre a teoria e a práxis efetiva do princípio da isonomia.
Pretendeu-se ressaltar as diferentes possibilidades de utilização e aplicação prática do princípio da
isonomia, colocando-se em evidência sua versatibilidade exegética – o que pode ser visualizado, em
síntese,
da seguinte forma:
DECISÕES
FUNDAMENTOS DA ARGUMENTAÇÃO
CASO A
Igualdade material e discriminação positiva
CASO B
Igualdade formal e discriminação odiosa
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