A IDENTIDADE DA MUDANÇA Fernando Pedrão1 Professor e presidente do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) A rebeldia historicamente necessária Em boa hora o debate sobre os destinos do Nordeste aparece com novos espaços que sinalizam mudanças no plano federal e no sistema educativo na região, com maior disponibilidade dos centros de pesquisa e educação aptos para refletir sobre transformações sociais. A concentração do capital no setor educativo privado, sua subseqüente internacionalização e empobrecimento da capacidade de pesquisa encontram uma curva ascendente de recuperação da presença do ensino público que é um aspecto a ser valorizado. A expansão do sistema educativo público pode ser tomado como um indicativo indireto de fortalecimento de elementos de cidadania na vida política. É o principal sinal palpável de contestação da reprodução das oligarquias modernizadas que continuaram ocupando um espaço desproporcional na vida política da região. O pleito de fortalecimento de uma atividade cidadã significa que haja aparelhos de poder que funcionem fora da esfera de poder das oligarquias e da alienação imposta pelas multinacionais. Mas o rumo das transformações do Nordeste deve deixar de ser um tema local, tratado com um olhar exclusivamente interno, por isso paroquiano, para ser colocado como parte do sistema mundial de poder econômico e político2. Há um compromisso histórico com uma ruptura com o sistema de poder que se arrasta perpetuando combinações de interesses pessoais. É bom lembrar que o olhar nordestino é o mais crucial no weltanschauung brasileiro. E é isso que qualifica o discurso pelo Nordeste e não seu localismo. O estreitamento da visão política às condições partidárias não 1 Docente livre pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Veja-se de Celso Furtado Globalização das estruturas econômicas e identidade nacional, em A nova configuração mundial de poder (org. Dupas, Lafer e Lins da Silva, Paz e Terra, 2008) 2 1 ideológicas, isto é, a subordinação da vida política ao fisiologismo e ao personalismo rebaixa as possibilidades de formação de um pensamento político historicamente significativo. A desqualificação do regional como local implica, tacitamente, em que os nordestinos se ocupam apenas do Nordeste, renunciam a pensar o Brasil que será assunto das luminárias do eixo Rio – São Paulo ou da burocracia desregionalizada de Brasília. Mas o Nordeste fornece as raízes de uma presença resistente e será parte inevitável da identidade da mudança e é sobre essa qualidade que surge um discurso histórico da política. O olhar interno terá que ser reconstruído sobre uma visão do contexto mundializado de relações maiores. Hoje são relações cruzadas em que se intersectam interesses privados e públicos. O Nordeste perdeu sua internacionalidade quando se tornou região problema, isto é, quando passou a uma posição secundária no contexto brasileiro. Hoje avança em outro tipo de internacionalização que se baseia em duplicidades do poder e em mudanças no tecido das relações entre a esfera econômica e a política. Entrada maciça de capitais internacionais, internacionalização do mercado de trabalho, substituição de objetivos e metas localmente definidos por outros externamente estabelecidos. A falta de uma estratégia de desenvolvimento gerada na região conflita com os fatos de maior atividade reflexiva dos centros de pensamento da região e de um melhor aparelhamento de alguns dos governos estaduais para avançarem nessa direção. No entanto, essa não é uma tarefa que pode ser levada a cabo, como em décadas anteriores, tratando os problemas do Nordeste apenas por sua objetividade local. Falta uma fundamentação em uma revisão das condições internacionais em que se move esta região que substitua a que se perdeu, ou que nos foi retirada na redemocratização do país sob a avalanche do desmanche neoliberal. Antes mesmo de fecharem a SUDENE houve um indiscutível esvaziamento da capacidade da região para formular propostas próprias de política de desenvolvimento. O desenvolvimento tornou-se um problema apenas técnico ou perito, como diz Giddens (1989). Os desencontros entre objetivos estaduais e a falta de um trabalho consistente de cooperação na sociedade nordestina levou a uma passividade perante projetos federais e iniciativas do grande capital que passam por alto as relações de poder estruturadas na região. Depois de ter sido relegado a uma posição acessória na década de 1990, o Nordeste volta a poder ser pensado como sujeito de processos de desenvolvimento, entretanto, surpreendentemente, com uma visão empresarial que é 2 a própria negação do desenvolvimento. Tudo isto requer uma visão panorâmica do imperialismo. Os novos rumos do imperialismo A combinação inesperada de crise européia e ascensão do Brasil em um quadro marcado por contradições do imperialismo norte-americano e pela ascensão da China obriga a uma reavaliação do contexto de desenvolvimento do país. As novas condições de internacionalidade da economia brasileira compreendem uma complexidade a ser melhor explicada, em que novos movimentos de capitais internacionais se cruzam com uma real expansão da capacidade produtiva. Há uma questão relativa ao quanto e ao modo de crescimento do produto social e da formação de capital e outra relativa à relação entre o sistema político e o sistema econômico. Será preciso reconhecer que o desenvolvimento do país não pode ser tratado fora de um contexto internacional que é o mesmo que incide sobre seu tecido regional. Este questionamento torna necessário substituir a antiga visão interna do processo por uma outra capaz de registrar as inter-relações entre os movimentos internos e as articulações externas. O olhar interno, que se identificou com a construção do Estado nacional, surgiu da necessidade de poderes locais se defenderem das visões imperiais, mas tratava com uma distinção entre o que se incorpora no campo do nacional e o que lhe é estranho. Essa visão de resistência foi um traço comum das rebeliões da primeira metade do século XIX, que foi apagada na República. Assim, o dado fundamental desta nova discussão é a penetração das empresas multinacionais, agora associadas a governos, no tecido econômico dos Estados nacionais. Legitimadas pela agressividade das multinacionais brasileiras, as empresas de outros países entram a participar no jogo interno de poder. Todos querem automotoras e estão dispostos a dar quaisquer vantagens a elas – tal como ser fez com a Ford – sem perceber que seu efeito emprego final é próximo de zero. A política de atração indiscriminada de investimentos sem controle torna-se o principal veículo de um perfil de subalternidade voluntária que confunde o sucesso das multinacionais com o da economia nacional. Com esta percepção é preciso distinguir o que são ações inerciais, isto é, aquelas determinadas por tendências vigentes, de ações deliberativas, isto é, resultantes de escolhas independentes. As ações inerciais são indicadas pelo poder econômico real e carregam a lógica da reprodução do sistema. Em cada momento as 3 decisões estão condicionadas por situações anteriores e são partes de encadeamentos de efeitos para as empresas. Mas as ações deliberativas são as que descolam da simples reprodução e ativam as possibilidades de transformação do sistema. A relação entre esses dois tipos de ações indica como e quanto o sistema se capacita para mudar. A questão inicial em que se pensa consiste em saber se há tendências vigentes sustentadas que garantem ações inerciais, ou seja, se o ambiente da economia é organicamente incerto, incompatível com essa possibilidade. Tal sensibilidade demanda uma análise capaz de perceber mudanças e identificar ações necessárias em tempo útil. A hipótese de perda de representatividade da análise econômica para detectar mudança ou perda de validade de tendências tem que ser aceita como dominante quando o sistema capitalista central se mostra incapaz de superar uma tendência recorrente à estagnação e à crise. O fundamento militar do problema não pode ser negligenciado. Com a engenharia mundial do poder norte-americano submetida a novas tensões pelo crescimento do poder da China e com o monopólio nuclear de Israel chegando ao fim, a política de sobressalto é acionada. Não é algo incidental. O sobressalto é um modo preventivo de contenção de divergências maiores no âmbito liderado pela potência hegemônica. Ele brota da insegurança do mundo econômico do centro, agora sujeito a crises recorrentes vindas do acirramento de contradições internas. É a produção de uma repressão financeira que também revela a fratura da trilateral inaugurada em 1983 3. Essa política agora encontra óbices novos na decadência da economia da Europa ocidental e na penetração da influência chinesa em peças essenciais do sistema liderado pelos Estados Unidos, como são a Austrália e o Canadá. A supremacia norte-americana se encontra com o fato desagradável de depender do mercado controlado pela China. Esses países, que funcionaram como tropas auxiliares do Império Britânico, continuaram nessa função secundária no âmbito da supremacia norte-americana, apresentando-se agora como componentes não imperiais do império. 3 O aspecto de repressão financeira foi exposto por Elmar Altvater (O fim do capitalismo como o conhecemos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010) indicando como as economias capitalistas mais ricas rejeitam o peso das menos ricas no tecido internacional. 4 A inércia do poderio militar como sustentação da hegemonia não pode ser descuidada. O discurso do poder se fundamenta em defesa a ultranza do grande capital, que perde sua internacionalidade para ser uma representação do poderio norte-americano. O poder militar torna-se salvaguarda da hegemonia “saxônica”4 produzida pelo Império Britânico. Os Estados Unidos latinizados e negrificados, absorvendo a vulgaridade política da direita caribenha, sob um ambiente de desemprego, recuam para uma nova equação multirracial que desperta o desespero dos republicanos mais primários5. Numa visão histórica civilizacional aquele sistema de poder se reproduz mediante uma associação de seus herdeiros, que cultivam uma reverência ao conservadorismo imperial britânico. É nesse quadro sombrio que se coloca o curso da mudança no Brasil. Enfrentando duas colunas de obstáculos que são os interesses dos grupos dos muito ricos6, que correspondem a uma internacionalidade exclusiva e a uma defesa dos interesses do sistema político reproduzido sobre as bases da corrupção e da dependência. A corrupção sempre foi essencial ao capitalismo7 mas ganhou nova escala com a concentração do poder das multinacionais. Este passou a criar um ambiente de concorrência restrito, manejado por megacontratos exclusivos e por vantagens milionárias de localização que concluem a negação do falso paradigma da liberdade de mercado. Junto com a denúncia da superação das propostas de desenvolvimento nacional autônomo, que leva água ao pote dos neoliberais, define-se um estilo de dominação institucional8 que ganha nova funcionalidade no sub-sistema europeu do bloco hegemônico. Na verdade há duas linguagens dessa internacionalidade, que se sobrepõem parcialmente mas representam situações diferenciadas. De um lado está a lógica do equilíbrio financeiro da esfera globalizada e de outro estão os conflitos sociais despertados por esta versão aprimorada do controle imperial. O capitalismo 4 Quanto as sociedades mistas de hoje podem reivindicar que representam um mundo saxônico? O componente saxônico detém o controle do bloco hegemônico, mas passou a depender desses outros elementos da sociedade de imigração, que se tornam mais culturais que éticos. A recusa em reconhecer o fundamento de relações de classe na engrenagem discriminatória nessas sociedades apenas ressalta um preconceito no relativo a relações de trabalho. 5 A incapacidade do legislativo norte-americano para definir uma política de austeridade tributária suficiente para fazer frente a sua crise de endividamento revela um impasse no sistema de poder, cujo menor efeito aparecerá nas eleições, e afeta as condições de exercício internacional de poder militar. 6 Adotamos aqui a premissa de uma diferença crucial entre os muito ricos e os apenas ricos. 7 A utilidade da corrupção aparece indiretamente 8 Vejam-se as declarações da Sra. Lagarde, presidente do FMI, colocando-se acima dos governos nacionais europeus em sua cobrança ameaçadora de desempenho. 5 avançado se volta sobre seus próprios fundadores e como as regras do controle internacional resultam em custos incompatíveis com a renda nacional de países abertos às multinacionais 9, instala-se uma verdadeira crise sistêmica cercada de características novas, tendente a demolir as vantagens sociais acumuladas pelos países europeus liderados da União Européia. À medida que os interesses estratégicos dos EUA se deslocam para a Ásia e diante da gradual desabilitação do Japão como seu aliado estratégico, tornou-se inevitável um maior rigor no controle do subsistema europeu em que surgiram novos fatores de associação, por exemplo, com a ascensão da Turquia e o poderio econômico e militar da Rússia. Nesse sentido todos os conflitos locais terão que ser avaliados por seu significado geral, pelo que o encarniçamento de Israel perde peso estratégico perante preocupações mais mundiais dos norte-europeus e dos norteamericanos. Esses movimentos correspondem a deslocamentos nos fluxos mundiais de comércio e na capacidade de exportar mercadorias e capitais, transformando a economia internacional em um ambiente volátil em que ascenderam novos países exportadores com tecnologia e definham-se outros como mais dependentes. Por exemplo, é inegável que a Coréia do Sul ganhou uma posição importante como vendedora de automóveis, campo no qual a China agora entra. Nesse sentido, o paradigma adotado nos anos 80 de estabilidade financeira para definir limites às despesas dos governos, foi solapado pelo próprio mercado financeiro e ressurgiu no novo século como uma política restritiva generalizada descobrindo o novo confronto entre indignados e indignantes. A incapacidade dos países europeus para lidarem com suas contradições mostra a incongruência de tomar suas orientações como norma para cuidar de nossa sociedade. O novo contexto para o Nordeste O Nordeste ficou com o lado negativo do populismo modernizante instalado por Vargas, que combinou renovação de classes no sul com aliança com oligarquias 9 A distinção entre produto social ou produto interno bruto e renda nacional disponível volta a ser uma referência essencial para visualizar os efeitos do controle privado internacionalizado dos meios de produção, em contraste com a responsabilidade dos Estados nacionais sobre sua economia. O controle sobre as transações das multinacionais seria um requisito necessário para que os Estados nacionais fiquem capacitados para responder por seu endividamento. Veja-se o exemplo da China. 6 tradicionais no Nordeste10. Esse trato com estruturas oligárquicas de poder foi renovado pela ditadura 11 , agora com um outro conceito de criação de empresas empreiteiras multifuncionais que vieram a capitanear a formação de capital. O poder delas transcende ao cenário nacional e se projeta ao internacional, enquanto tornamse representantes do novo capitalismo no país. A ascensão do Brasil no plano internacional corresponde, sem dúvida, a resultados alcançados na economia e na política e, por extensão, suscita uma questão relativa ao papel do Nordeste. No novo contexto de desenvolvimento do país, com sua internacionalidade e suas contradições, as transformações em curso nesta região demandam uma visão de conjunto que se perdeu por um conjunto de fatores, desde as disputas políticas das elites nordestinas, com aparelhamento de órgãos de desenvolvimento, à concentração de capital e ao perfil passivo da maior parte das políticas estaduais sempre reverentes aos investimentos de grandes capitais internacionais. Não se trata apenas de questionar quanto seja conveniente ou inevitável que o litoral do NE fique em mãos de portugueses, espanhóis e outros – que nem são realmente grandes capitais –, mas da postura passiva de aceitar a alienação de recursos naturais em condições quase coloniais. O essencial é que prevalece o modelo passivo de formação de capital, à falta de uma proposta própria, que aceita como positivas quaisquer entradas de capital, sobre justificativas miríficas de criação de emprego que quase nunca se confirmam. Na realidade são empreendimentos que captam capital no mercado brasileiro, às vezes financiados com recursos públicos nacionais. No entanto, o mesmo raciocínio que levou a reverter a imagem de que o semiárido é apenas uma região pobre que nada tem a oferecer, leva a contemplar o desafio central da valorização social. Frente ao modelo passivo de formação de capital, coloca-se a centralidade de esforços de desenvolvimento fundados na valorização da sociedade como sujeito de propostas de desenvolvimento autônomo. É o saber ativo que deve guiar projetos de educação, de seleção de investimentos e de defesa dos recursos naturais. 10 Vale ver a leitura de Antonio Negri sobre esse movimento em Glob(AL) ( Rio de Janeiro: Record, 2005). 11 Um estudo significativo é o de Ronald Chilcote Transição capitalista e a classe dominante no Nordeste (São Paulo: EDUSP,1991) 7 De volta à reflexão central A questão central sobre o modelo ou modo de desenvolvimento foi posta de lado, em principio, por uma atitude pragmática de considerar que no momento atual do alto capitalismo não há como escapar do estilo de gestão macroeconômica representado pelo Fundo Monetário Internacional. Esse instrumento de controle que foi amplamente utilizado demarcando distância entre os países centrais e os periféricos, torna-se agora a referência central de controle das economias mais frágeis da Europa pelas mais fortes12. Sua vigência será proporcional à fragilidade dos países. Mas, como ficará quando seu principal acionista está em crise? Como resposta é preciso dar corpo a uma visão ativa de proposta de valorização social e autonomização do desenvolvimento. 12 A declaração do Sr. Junckers cobrando do governo agora eleito na Espanha está nessa linha de uso de poder financeiro internacional para condicionar políticas nacionais. 8