Clínica-escola de psicologia: técnica e ética Ubirajara Cardoso de Cardoso A fundação de uma clínica-escola de psicologia está sempre considerando dois fins que são convergentes: um serviço de atendimento psicológico disponibilizado e a formação prática de terapeutas estagiários. Que essas duas finalidades sejam bem esclarecidas, resta interrogar sua relação com o estabelecimento dos meios para que sejam alcançadas. Estes são as atividades através das quais a instituição clínica realiza seus fins e elabora suas ações. Vamos postular de início que são três os predicados de uma clínica-escola de psicologia formada pelas suas atividades. Em primeiro lugar está sua viabilidade, portanto se são, e como são possíveis os meios para a realização dos seus atos. Em segundo lugar sua ética, ou seja, se o ato que realiza está de acordo com aquilo que pretende, tendo em vista suas finalidades. Em terceiro lugar sua validade, quando é necessário comprovar o valor de seus atos ao longo do tempo. Verifica-se que esses três predicados são distintos entre si, mas não podem ser considerados sem inter-relação, pois na essencialidade da instituição clínica determinam o que se pode chamar de sua autenticidade. Considerar a formação da clínica-escola de psicologia, sua autenticidade, implica interrogar seus saberes técnicos e éticos, respectivamente um saber da situação geral, precipitado do acúmulo da experiência e um saber da situação particular, que leva a abordar cada caso clínico como novidade de experiência e, então, é necessário estabelecer a relação entre esses dois tipos de saber. A questão de um saber técnico e de um saber ético não é nova e na história do pensamento e foi abordada por Aristóteles de uma maneira cuja atualidade cabe lembrar aqui, pois pode orientar nosso argumento sobre as atividades da clínica-escola de psicologia. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles é levado a interrogar como se pode constituir um saber sobre o ser ético do homem. Que tipo de saber é esse que pode permitir o discernimento do que é bom diante de uma situação concreta que exige a ação. Primeiramente é distinto de um saber científico, que vale para o que é eterno e imutável como as leis da natureza (physis), já que o campo dos assuntos humanos não é regido por regras invariáveis de máxima exatidão. Isso determina que quem age precisa deliberar consigo próprio sobre sua ação, e sem permitir que nada lhe arrebate sua autonomia: assim é o campo específico da ação ética. Mas se o saber ético não é um saber epistêmico, ainda assim o filósofo grego considera que é um saber o que deve orientar o agir. Dessa maneira, ganha relevância para nós que Aristóteles considere o saber técnico. A techne, que dessa tradição é o campo mais próprio para a consideração de um saber que dirige o fazer, é a habilidade do artesão que, manipulando uma matéria, fabrica coisas a partir do planejamento e da idéia antecipada do objeto determinado de sua arte. Assim, é um saber real que pode ser aprendido e ensinado, e que vale geralmente quando guia a experiência de sua finalidade particular, mesmo quando as circunstâncias não possibilitam sua aplicação perfeita. Se há uma técnica, deve ser aprendida e com isso aprenderemos também os meios adequados de sua utilização na condução do fazer. Será então o saber ético um saber no mesmo modelo da techne? A resposta é negativa. A deliberação que conduz ao agir também trata das coisas que são variáveis, que poderiam ser de outra forma do que são, mas o saber que possibilita tais deliberações não é um saber geral para ser aplicado a cada situação particular. Diante da situação concreta que exige do homem o agir, para que este tome uma posição é necessário um discernimento, seja em relação aos fins ou aos meios, que não é um saber prévio aprendido ou ensinado. É assim porque o homem não pode dispor de si, de outro ou da matéria de suas deliberações da mesma forma como o artesão dispõe da matéria e do material de seu saber e da experiência prática anterior, não há como possuir o saber ético como um conhecimento ideal de maneira a aplicá-lo na emergência variável das exigências da situação concreta. Aristóteles chega a ponto de nomear esse saber ético de “saber-parasi”, uma capacidade diferente da do artesão e do teórico, e que determina por acionar sua aplicação na imediatez da situação dada a cada momento, um saber do que é em cada caso. Assim podemos indagar se essas formulações aristotélicas ainda podem nos ajudar quando pensamos nas atividades clínicas numa instituição clínica-escola. Isso porque podemos perguntar como seus meios e fins constituem um saber, ou se constituem através de um saber. Creio que não seria imoderado afirmar que sim. Mas, então, o saber clínico é de que tipo: um saber técnico ou um saber ético? Minha resposta a essa questão, nesse texto, sugerirá que essa é uma interrogação que se situa na mesma tensão da interrogação aristotélica, e que, em certa medida, não se conclui de uma forma definitiva. Afirma-se que existe sim uma experiência prática cuja acumulação precipita a elaboração, o postulado de um saber confiável que permite a abordagem da novidade da experiência que vem, ao mesmo tempo em que esse saber não pode ser dogmático e é sempre apenas para a abordagem que permitirá a emergência do evento que solicitará a formação do saber do que será em cada caso, ou seja, um saber cuja formulação não é a priori porque não é sem relação com o variável da situação real do que se apresenta. Com Lacan, poderíamos afirmar que se trata do fato de que não existe Outro do Outro, que não há no significante garantia da verdade da articulação significante1. Lacan dizia que a cada tratamento toda a psicanálise precisa ser reinventada, assim como Freud afirmava a necessidade de abordar cada novo caso como se não se soubesse nada ainda da teoria psicanalítica. Não podemos deixar de lembrar que Freud se dedicou a escrever textos que foram chamados de técnica psicanalítica. Os mais paradigmáticos nesse sentido são talvez os produzidos entre os anos de 1911-1915, e algumas passagens escolhidas servirão para ilustrar a afirmação que tentamos demonstrar, qual seja, de que na psicanálise também o saber técnico e ético não são saberes do mesmo tipo, mas mantêm uma tensão de relacionamento entre si. Vejamos: em seu texto Conselhos ao médico sobre o tratamento psicanalítico (Freud, 1912e), o autor sugere uma série de regras que, como diz antecipadamente, foram decantadas de sua experiência e que devem servir também aos mais jovens, salvaguardada a individualidade de cada um, haja vista que tais regras metodológicas resultaram da especificidade de sua personalidade2. A primeira sugestão 1 O que é uma boa sugestão de retorno sobre esse texto de Aristóteles, retomando-o sobre o aspecto de que o saber que Aristóteles tenta formular, sua causa formal só pode se escrever como “significante de uma falta no Outro” 2 Tal observação sempre me evocou as primeiras páginas do Discurso do Método, quando Descartes, ao começar a apresentar seu método da dúvida, também observou que ele é próprio da forma como conduziu sua razão envestigativa, o que pode servir a outros, mas que seu desígnio não é o de ensinar um método geral. conferida é sobre a técnica de escutar, a disposição da escuta. A regra aconselhada confere com a regra fundamental da associação livre, pois também o psicanalista deve se ajustar a ela, renunciando a uma seleção do material significante que escuta, pois “nessa seleção obedeceria a suas próprias expectativas ou inclinações. Mas isso, justamente, é ilícito; se na seleção alguém segue suas expectativas, corre o risco de não achar nunca mais do que já sabe; (...) não se deve esquecer que (...) tem que escutar coisas cujo significado somente discernirá a posteriori”. Não é possível um comentário extenso da passagem, mas interessa observar a relação estabelecida entre os termos “inclinação”, “saber” e “discernimento”. O conselho técnico versa sobre a suspensão das inclinações subjetivas que antecipam o saber do psicanalista, porque da modulação de sua escuta depende o discernimento que só lhe será disponível no a posteriori da situação concreta dos momentos do tratamento. Não se trata de um saber prévio, a regra não é sobre um saber positivo, não diz tecnicamente como se faz, mas diz o que não fazer, e se pode convencionar que o conselho de suspender uma inclinação em nome do melhor discernimento é menos uma regra técnica do que um princípio ético. Um outro conselho também nos parece ilustrar o que afirmamos. Esse trata da relação entre o trabalho de tratamento e sua elaboração científica. O aconselhado é que enquanto dure o tratamento o psicanalista renuncie e afazer dele sua teoria, postergando essa atividade do pensamento para depois que o tratamento encontre sua finalização, caso contrário, corre-se o risco de fazer no tratamento uma condução que vá ao encontro das necessidades da elaboração científica, as quais terão a função de acentuar preconceitos. Melhor será que o psicanalista se guie sem premissas, deixando-se surpreender pelas novidades que o tratamento possa aportar à experiência psicanalítica e que submeta tal material a um trabalho de síntese somente depois de concluído. Nesse ponto, Freud faz uma observação que aproxima o saber psicanalítico do saber teórico: “seria irrelevante distinguir entre ambas atitudes [elaboração durante e após conclusão do tratamento] se já possuíssemos todos os conhecimentos, ou ao menos os essenciais, que o trabalho psicanalítico é capaz de brindar-nos sobre a psicologia do inconsciente (...). Hoje estamos muito longe dessa meta e não devemos fechar os caminhos que nos permitiriam reexaminar o já discernido e achar aí algo de novo”. Aqui nos parece exemplar a relação entre saber técnico, teórico e ético. Freud não deixa de estar afirmando que o saber psicanalítico produz uma formulação teórica, à qual sempre está associada uma técnica ou conhecimento, entretanto, se ela existe e deve ser aprendida, sugere que na lida com o caso particular a síntese desse conhecimento seja suspensa para que novas oportunidades da capacidade do discernimento analítico possam acontecer. Bastam esses dois exemplos para ilustrar a tensão que permanece sempre entre saber técnico-teórico e ético, também quando lidamos com a psicanálise. Provavelmente todos os outros conselhos fornecidos por Freud nesse contexto teriam assim também seus desdobramentos. Voltemos então à questão da clínica-escola de psicologia, uma vez que ela já seja decidida a pautar seus trabalhos pela orientação psicanalítica. O que podemos concluir? Afirmaremos que a imbricação viável, ética e válida das atividades que forma a autenticidade de uma instituição clínica-escola de psicologia se realiza através da ação de seus agentes; a reunião destes numa equipe e em um espaço físico constitui o que chamaremos a phronesis, o discernimento, a sagacidade da instituição no trato dos assuntos clínicos de sua competência: acolhimento, encaminhamento, tratamento e formação. Essa constituição phronética é a formação clínica que age e se transmite, ou seja, que permite que sua ação possa ser realizada de novo em outras circunstâncias. Como podemos vislumbrar, não é a transmissão técnica de um saber fazer sabido, mas não deixa de ser um tipo de saber fazer, saber fazer algo frente à situação concreta que exige a intervenção do clínico em relação ao retorno da verdade na falha de um saber. Relance.