T ema 4 - Revista de Medicina Desportiva

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Tema 4
Rev. Medicina Desportiva informa, 2012, 3 (5), pp. 21–24
Qual a duração do intervalo
QT a partir da qual se
deve proibir o desporto de
competição?
Prof. Dr. Ovídio Costa1, Dra. Patrícia Costa2, Dr. André Pereira3
Cardiologista e professor da Faculdade de Medicina; 2Cardiologista pediátrica do Hospital de S. João;
3
Cardiopneumologista do Centro de Medicina Desportiva. Porto.
1
Resumo ABSTRACT
A SQTL congénito deve suspeitar-se quando o ECG mostra alterações típicas ou quando há
história de síncope ou “convulsões” mal definidas nos antecedentes pessoais ou familiares
do atleta. Nos atletas com intervalo QTc> 500 mseg é prudente a recomendação de proibição dos desportos de competição. Os atletas com valores “borderline” (460 a 500 mseg)
devem ser exaustivamente estudados, dando particular atenção aos sintomas de síncope
não explicada e antecedentes familiares de morte súbita, sendo aconselhável, nestes
casos, a realização de um ECG para rastreio da doença nos familiares do 1.º grau. O estudo
da variação do intervalo QT durante o teste de esforço, bem como a realização de Holter e
de ecocardiograma estão indicados.
The congenital LQTS should be suspected when the ECG shows typical changes or when there is
a history of syncope or ill-defined “seizure” disorder in the personal or in the family history of the
athlete. In the presence of a QTc> 500 mseg is prudent the disclosure from the sports competitions.
Athletes with ​​borderline values (460 to 500 mseg) should be thoroughly studied, with particular
attention to the symptoms of unexplained syncope and family history of sudden death. It is advisable, in these cases, to perform a rest ECG to screen the disease in the 1st degree relatives. The study
of the variation of the QT interval during exercise testing, as well as an Holter monitoring and an
echocardiography should accomplish the study.
Palavras chave Key-words
Morte súbita, síndroma do QT longo, SQTL.
Sudden death, long QT syndrome, LDTS.
Introdução
As causas de morte súbita de atletas
jovens associada á prática desportiva são hoje bem conhecidas, bem
como as dificuldades do seu diagnóstico e prevenção. São doenças
cardíacas raras, muitas vezes de
causa genética, sendo o acidente
terminal provocado por paragem
cardíaca em sístole, isto é, fibrilação
ventricular1,2.
Embora na prática corrente ainda
seja frequente não se encontrar a
causa de morte em quase 30-40%
das autópsias realizadas, a utilização de recursos mais específicos,
como sejam o estudo do coração
realizado por patologista cardíaco,
o recurso às técnicas de genética
molecular (autópsia molecular) e
o rastreio cardíaco dos familiares
da vítima, permitem identificar as
causas de morte em cerca de 95%
dos casos3,4.
Os sinais a partir dos quais o
diagnóstico se pode fazer em vida
são escassos e subtis. Assim sendo, o
rastreio da SQTL a partir do eletrocardiograma de 12 derivações
(ECG) está recomendado nas guidelines europeias para a prevenção
da morte súbita de atletas. Neste
âmbito, a definição dos critérios de
anormalidade para o ECG (ECGs
“positivos”) tem sido objeto de revisões sucessivas desde 20051,2,6,7.
feminino. Estes valores constituíam,
por si só, motivo de preocupação
e justificavam a recomendação
médica para a realização de testes
adicionais. A 36.ª Conferência de
Bethesda, publicada também em
20052, recomendava o uso de intervalos um pouco mais longos: QTc
> 470 mseg no sexo masculino e >
480 mseg no sexo feminino. A partir
destes limites a participação deveria
ser reservada aos desportos de baixa
intensidade física.
A medida do intervalo QT e a
correção deste valor em função da
frequência cardíaca (QTc) apresentam algumas dificuldades no que se
refere á correta identificação do fim
da onda T e á escolha da fórmula utilizada no cálculo do QTc. O intervalo
QT deve corrigir-se pela frequência
cardíaca, mas não há acordo sobre
a fórmula de correção ideal a usar
nas frequências cardíacas abaixo
de 60 batimentos por minuto (bpm).
Utiliza-se, em regra, a fórmula de
Bazett, mas existem outros métodos,
porventura mais eficazes para os
valores de frequência cardíaca fora
do intervalo 60 – 100 bpm, como
sejam as fórmulas de Fredericia e de
Framingham (Tabela 1). Acredita-se
que se frequência cardíaca não for
nem muito rápida nem muito lenta
os efeitos de hipercorreção ou de
hipocorreção originados intrinsecamente pela fórmula de Bazett não
são muito importantes.
A duração do intervalo QT e
correção do intervalo QT pela
frequência cardíaca (*)
Tabela 1. Fórmulas para
correção da frequência cardíaca
Fórmula de
Bazett
QTc = QT ⁄ √RR
Em 2005 o Grupo de Estudos de
Cardiologia Desportiva da Sociedade
Europeia de Cardiologia1 recomendou valores específicos para definir
o intervalo QT corrigido prolongado
(QTc): QTc > 440 mseg no sexo
masculino e > 460 mseg no sexo
Fórmula de
Fredericia
QTc = QT / [RR] 1/3
Fórmula de
Framingham
QTc = QT + 0.154 [1-RR]
O intervalo QT deve medir-se
nas derivações DII e V5-6. Medem-se vários complexos sucessivos,
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registando-se o intervalo máximo.
As ondas U de grande dimensão
que estão fundidas com a onda T
devem ser incluídas na medição
(Fig. 1, centro). As ondas U de menor
dimensão e que estão bem individualizadas devem ser excluídas (Fig.
1, á direita). A este respeito, Viskin
concluiu, num artigo com o título
Inaccurate electrocardiographic interpretation of long QT, que a maioria dos
médicos, incluindo muitos cardiologistas, não consegue calcular com
precisão o valor do QTc e, como tal,
podem não identificar corretamente
um QT longo5.
É fundamental validar manualmente os valores calculados automaticamente pelo eletrocardiógrafo
computadorizado e efetuar medições corretas nas situações em que o
fim da onda T é pouco definido. Nestes casos deve identificar-se o fim da
T através da interceção da tangente
da onda T com a linha isoelétrica
ou então eliminando a cauda da T
(figura 1).
Os efeitos do treino intenso e
prolongado
Os atletas de alta competição são
um grupo único de indivíduos com
massa ventricular esquerda frequentemente aumentada e valores
de frequência cardíaca de repouso
por vezes inferiores a 60 bpm. A
bradicardia e, consequentemente, o
aumento do intervalo R-R, prolonga
o intervalo QT em valor absoluto.
O aumento da massa ventricular
esquerda origina o atraso fisiológico
da repolarização ventricular e também prolonga o intervalo QT.
A presença de uma arritmia
sinusal muito marcada, frequente
em atletas, é um bom exemplo das
dificuldades deste tipo de cálculo
neste grupo de indivíduos. Embora
o valor absoluto do intervalo QT
possa estar sempre prolongado, a
escolha do valor do intervalo QT
que se segue ao intervalo R-R mais
curto tenderá a encontrar um valor
de QTc mais prolongado (hipocorreção) e, pelo contrário, a escolha
do valor que se segue ao R-R mais
longo ocasionará um valor de QTc
mais curto, podendo esta diferença
ser muito significativa em termos da
interpretação final dos resultados.
Em geral utiliza-se o intervalo R-R
médio. A presença de alterações da
repolarização ventricular com ondas
T/U proeminentes pode também
dificultar a medição do intervalo QT
(ver Fig. 1).
Classificação
Conhecem-se duas formas de SQT: a
forma congênita e a forma adquirida.
Dois fenótipos clínicos foram descritos, na forma congénita:
·a
forma autossómica dominante,
mais comum, denominada síndroma de Romano-Ward, tem um
fenótipo puramente cardíaco;
·a
forma autossómica recessiva,
mais rara, síndroma de Jervell e
Lange-Nielsen, está associada a
surdez neuro-sensorial.
Na forma adquirida o prolongamento do QT foi induzido pelo uso
de diferentes drogas (quinidina,
procainamida, amiodarona, fenotiazinas, antidepressivos tricíclicos
e outras), ou então por distúrbios
metabólicos (hipocalemia, hipomagnesemia), distúrbios nutricionais
(anorexia, dieta líquida) ou lesões
do sistema nervoso central, entre
outras causas. A longa lista de medicamentos e outros fatores capazes
de prolongar o intervalo QTc pode
Fig. 1. – O intervalo QT é definido a partir do início do complexo QRS até ao fim da
onda T. O método das tangentes define o fim da onda T como a interceção entre a
linha de isoelétrica com a tangente traçada através do máximo declive da onda T.
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ser consultada no website: http://
www.azcert.org/medical-pros/drug-lists/drug-lists.cfm.
Este efeito secundário deve ser
tomado em conta, pois acredita-se
que em determinados indivíduos
poderá existir uma suscetibilidade
individual aumentada para induzir
torsades de pointes quando sujeitos a
determinados medicamentos (anti-histaminicos, macrólidos…).
Sabemos que podem existir
portadores da SQTL com QT normal (SQTL oculto), assim como
elevado número de indivíduos com
QT anormalmente prolongado sem
doença cardíaca, factos que dificultam simultaneamente o diagnóstico
desta síndroma e a sua exclusão.
São três os fatores principais que
podem contribuir para o aparecimento da síncope ou da morte
súbita: o exercício físico (LQT1),
especialmente a natação, as emoções ou stress emocional (LQT2),
como por exemplo, um ruído intenso
(despertador) ou um susto, e na
variante LQT3 o sono ou o repouso.
O diagnóstico
O diagnóstico da síndroma do QT
longo não pode assentar exclusivamente na identificação do valor
anormalmente aumentado do intervalo QT e deve basear-se na tríada
clássica:
. intervalo QTc prolongado,
. síncope inexplicada ou taquicardia ventricular polimorfa,
. história familiar de morte súbita
ou da SQTL.
Com base nestes critérios, a prevalência da SQTL tem sido referida entre 1:2.500 e 1:10.000, o que
contrasta com a maior prevalência
do QTc prolongado referida para
a população de atletas de 0.4% a
0.69%. A comparação destas taxas
sugere que a maioria das mutações SQTL poderiam ser benignas
ou, então, que a maioria dos atletas com QTc prolongado não têm
esta doença. Vimos ainda que um
intervalo QT prolongado num atleta
pode resultar do efeito do atraso da
repolarização em consequência do
aumento fisiológico da massa ventricular esquerda.
A prevalência de QTc prolongado
na população de atletas parece não
ser significativamente maior do
que na população geral. Em valor
absoluto o intervalo QT é , como
vimos, maior nos atletas do que em
não atletas, devido á menor frequência cardíaca de repouso6. O valor de
QT corrigido situa-se, no entanto,
dentro de valores normais, embora
com valores médios perto do limite
superior – 0,42 segundos.
A estratificação do risco
Deve usar-se o score de Schwartz,
que permite classificar os doentes
em risco baixo, intermédio e elevado
(Tabela 2).
pacemaker cardioversor-desfibrilador
ou a ablação do gânglio estrelado9.
Quando desqualificar o atleta para
a participação competitiva?
Basavarajaiah et al8, num estudo
observacional, considera o valor do
QTc apenas um marcador da repolarização ventricular. O autor concluiu
sugerindo que o prolongamento do
intervalo QTc para valores borderline (460 mseg < QTc> 500 mseg),
em atletas bem treinados, não deve
condicionar a desqualificação dos
desportos de competição na ausência de outros achados indicativos da
SQTL ou doença cardíaca estrutural.
Tabela 2. Diagnóstico da síndrome do QT longo na ausência de teste
genético – o Score de Schwartz
Caraterísticas
Eletrocardiografia
Pontos a)
b)
Intervalo QT corrigido (QTc) > 480 mseg
3
QTc 460 a 470 mseg
2
QTc 450 mseg (homens)
1
Torsades de pointes
2
Alternância da onta T
1
Onda T com entalhes (3 derivações)
1
Baixa frequência cardíaca (para a idade)
0,5
História clínica c)
Síncope com o esforço ou emoção
2
Síncope (outra)
1
História familiar c)
História familiar de síndroma de QT longo definido
História familiar de morte cardíaca súbita não esperada antes dos 30
anos de idade em familiar do 1.º grau b)
1
0,5
4 = probabilidade muito alta; 2-3 = probabilidade intermédia; 1 = probabilidade baixa
QTc prolongado na ausência de drogas que afetem o QTc
c)
Síncope e os items da história familiar podem apenas incluir 1 entrada na categoria
a)
b)
Devido á não homogeneidade
desta síndroma os testes genéticos
podem ser úteis no diagnóstico e nas
decisões terapêuticas individualizadas como, por exemplo, evitar os
despertadores de quarto no LQT3
(“morrer de susto”) e a restrição
do exercício físico, em particular a
natação no LQT1.
Tratamento
Como regra geral, está indicada a
medicação com bloqueador beta dos
probandos e dos familiares afetados.
Quando um doente sob medicação
beta bloqueadora é acometido por
síncope ou paragem cardíaca abortada justifica-se a implantação de um
Nos atletas com QTc> 500mseg,
pelo contrário, parece razoável e
prudente a recomendação de não
participação nos desportos de competição. Mesmo assim, os atletas
com valores de QTc situados entre
460 e 500 mseg devem ser exaustivamente estudados, com particular
atenção aos sintomas de síncope não
explicada, antecedentes familiares
de morte súbita e à realização de um
ECG para rastreio de familiares do 1.º
grau, bem como o estudo da variação
do intervalo QT durante o teste de
esforço. No estudo atrás citado, foi
permitida a prática de desportos de
competição aos atletas com valores
borderline de QTc, não se tendo registado nenhum acidente cardíaco no
follow up de quase 3 anos.
Revista de Medicina Desportiva informa Setembro 2012 · 23
Para além da duração do intervalo
QT alguns aspetos da morfologia da
onda T podem sugerir a presença da
SQTL, como sejam a alternância da
onda T e alguns padrões morfológicos
que parecem correlacionar-se, bem
com um genótipo específico (base
alargada no LQT1, onda T com entalhe, no LQT2 e QT prolongado com
onda de inicio T tardio, no LQT3).
Conclusão
A síndrome do QT longo congénito
deve suspeitar-se quando o eletrocardiograma mostra alterações típicas ou
existe história de síncope ou de “convulsões” mal definidas nos antecedentes pessoais ou familiares do doente.
O diagnóstico faz-se na presença dos
sintomas e sinais típicos da doença
(score de Schwartz). Nos atletas com
intervalo QTc > 500 mseg é prudente
a recomendação da proibição dos
desportos de competição. Os atletas
com valores de QTc borderline (460 a
500 mseg) devem ser exaustivamente
estudados. Os testes genéticos podem
ser uteis para a confirmação do diagnóstico e para a tomada de decisões
terapêuticas individualizadas.
(*) Nota sobre a correção do QT:
O conceito de QTc surgiu em 1920
quando Bazett apresentou a sua
fórmula. Esta fórmula obtida a partir
de dados sobre 39 homens jovens tem
sido questionada porque hipercorrige
o QT quando existe taquicardia e
hipocorrige quando existe bradicardia. Assim, nas frequências cardíacas
lentas, que é um dos fatores predisponentes da “torsade de pointes”, a
correção de Bazett pode facilmente
mascarar o prolongamento do
intervalo QT de forma substancial
por subcorrigir o valor absoluto do
intervalo QT. Este efeito pode também
ocultar a toxicidade de drogas pró-arrítmicas que induzem bradicardia
ou mascarar o valor de QTc em atletas com bradicardia marcada. Uma
alternativa poderá ser a correção pela
raiz cúbica de Fridericia, que corrige
melhor que Bazett nos ritmos lentos
mas não é confiável para as frequências cardíacas elevadas. Comparativamente com as fórmulas de correlação
não linear, a fórmula de Framingham
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obtida a partir de dados populacionais parece ser a mais eficaz.
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