Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Autoria: Associação Brasileira de Medicina Física e Reabilitação Elaboração Final: 20 de junho de 2006 Participantes: Quagliato E, Bang G, Botelho LA, Gianini MAC, Spósito MMM, Lianza S O Projeto Diretrizes, iniciativa conjunta da Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina, tem por objetivo conciliar informações da área médica a fim de padronizar condutas que auxiliem o raciocínio e a tomada de decisão do médico. As informações contidas neste projeto devem ser submetidas à avaliação e à crítica do médico, responsável pela conduta a ser seguida, frente à realidade e ao estado clínico de cada paciente. 1 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina DESCRIÇÃO DO MÉTODO DE COLETA DE EVIDÊNCIA: Revisão da literatura GRAU DE RECOMENDAÇÃO E FORÇA DE EVIDÊNCIA: A: Estudos experimentais ou observacionais de melhor consistência. B: Estudos experimentais ou observacionais de menor consistência. C: Relatos de casos (estudos não controlados). D: Opinião desprovida de avaliação crítica, baseada em consensos, estudos fisiológicos ou modelos animais. OBJETIVO: Fornecer as principais recomendações no tratamento medicamentoso da espasticidade. CONFLITO DE INTERESSE: Nenhum conflito de interesse declarado. 2 Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina ASPECTOS GERAIS No tratamento medicamentoso da espasticidade, devemos considerar, em primeiro lugar, a sua real necessidade, uma vez que muitos pacientes a usam para desenvolver uma série de atos motores e outros têm na espasticidade um suporte psicológico importante no sentido da compensação da perda do movimento voluntário. A espasticidade pode ainda prevenir a atrofia muscular intensa, diminuir a perda de massa óssea e o edema, bem como o risco de trombose venosa profunda1(D). Estes fatores devem ser analisados cuidadosamente antes de qualquer planejamento terapêutico. Muito importante também é a análise das condições nas quais houve um aumento da espasticidade, já que esta pode ser influenciada por comorbidades como escaras, infecção urinária, ossificação heterotópica, trombose venosa profunda, urolitíase, impactação de fezes, fratura, luxação, unha encravada, roupas apertadas, etc1, 2(D). Devemos sempre, antes de medidas químicas ou invasivas, eliminar estes fatores agravantes. Aspectos emocionais e cognitivos devem ser considerados, pois é fundamental a participação ativa do paciente no seu processo de tratamento. A espasticidade deverá ser tratada quando acarretar comprometimento funcional (marcha, atividades da vida diária, conforto, cuidados gerais) ou deformidades musculoesqueléticas. O tratamento da espasticidade é determinado por: cronicidade, gravidade, distribuição, local da lesão no sistema nervoso central e comorbidades associadas. Este pode ser local (neurólise por meio de injeções intramusculares ou perineurais de agentes bloqueadores), sistêmico ou intratecal. TRATAMENTOS SISTÊMICOS As drogas que tratam a espasticidade agem por mecanismos que diminuem a excitabilidade dos reflexos medulares. O conceito de função passiva versus ativa deve ser seguido quando selecionarmos um tratamento para a espasticidade. Espasticidade: Tratamento Medicamentoso 3 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina Funções passivas são as atividades que requerem flexibilidade e boa amplitude na movimentação passiva dos membros do paciente. Funções ativas são as que necessitam de força, concentração e atenção2(D). controle da temperatura corporal, dependência química, regulação do humor e do comportamento, mecanismos da dor, visão, audição, vias cerebelares e estriatais, além da inibição présináptica no corno dorsal da medula espinal2(D). O médico deve priorizar tanto as funções ativas quanto as passivas no tratamento da espasticidade, levando sempre em conta as dificuldades relatadas pelos pacientes e cuidadores. O GABA não atravessa a barreira hematoencefálica, e sua administração oral não é eficaz, mas substâncias com estruturas análogas podem estimular seus receptores no SNC. O tratamento farmacológico sistêmico da espasticidade deverá ser indicado quando houver acometimento de vários grupos musculares, não sendo possível o tratamento local. Embora sejam medicamentos administrados oralmente, as drogas se unem a vários receptores no sistema nervoso central (SNC), podendo alterar ou deprimir múltiplas funções, como cognição, humor e personalidade, não podendo ser considerado um tratamento “não invasivo”. Baclofen O baclofeno é um análogo do GABA, sendo absorvido rapidamente após administração oral. Com meia–vida de 3,5 horas (2-6 h), é excretado pelo rim na forma inalterada e 15% dele é metabolizado pelo fígado. Deve-se reduzir a dose nos pacientes com função renal comprometida, recomendando-se avaliar a função hepática periodicamente. Os mecanismos e locais de ação das drogas antiespásticas ainda não foram totalmente elucidados. A maioria delas altera a função de neurotransmissores ou neuromoduladores no SNC e algumas agem no nervo ou músculo. As ações no SNC podem se dar diminuindo a excitação glutamatérgica ou aumentando a inibição dos principais neurotransmissores inibitórios do SNC - ácido gama-aminobutírico (GABA) e glicina. DROGAS GABAÉRGICAS Os neurotransmissores GABA e glicina estão presentes em praticamente todo o SNC. A maioria dos neurônios gabaérgicos são interneurônios, participando de funções como memória, atenção, despertar cortical, sono, 4 Os efeitos colaterais do baclofeno, como sedação, cansaço, sonolência, déficits de atenção e memória, relacionam-se à depressão do SNC, sendo observados principalmente nos idosos e nos pacientes com lesão cerebral. Pode causar confusão mental, náuseas, vertigens, hipotonia axial e fraqueza muscular, dificultando a marcha nos pacientes com esclerose múltipla. Há raras descrições de recidiva de convulsões, ataxia, alucinações, discinesias, parestesias e potencialização do efeito de drogas hipotensoras durante o uso do baclofeno. Apresenta efeitos broncoconstritores, inibe o reflexo da tosse e deprime a função respiratória, devendo ser usado com cautela nos asmáticos e portadores de insuficiência respiratória. O baclofeno deve ser retirado gradualmente, pois sua suspensão abrupta pode causar sintomas semelhantes à síndrome maligna do Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina neuroléptico - convulsões, alucinações, hiperatividade muscular, hipertermia, desorientação, disautonomia, rigidez e aumento da creatina fosfoquinase2(D). Os sintomas da intoxicação aguda pelo baclofeno, que ocorre somente em doses cinco vezes maiores que as indicadas, caracterizam-se por hipoventilação, hipo / hipertensão arterial, miose, hipotermia, arritmia cardíaca, hiporreflexia e coma. As drogas indicadas para seu tratamento são atropina e fisostigmina, entre outras2(D). O baclofeno é eficaz na redução da espasticidade e dos espasmos, nos pacientes com lesões medulares devidas à esclerose múltipla ou a outras etiologias, embora não apresente efeito sobre hiper-reflexia, clônus, nem sobre as funções de deambulação e atividades da vida diária. É a primeira opção para o tratamento medicamentoso sistêmico da espasticidade e tem menos efeitos colaterais que o diazepam e o dantrolene. É ansiolítico, diminui a atividade do músculo detrusor da bexiga e a hiper-reflexia do esfíncter externo da uretra, auxiliando no controle miccional2(D)3(A). Existem poucos estudos que investigam os efeitos do baclofeno nos pacientes com espasticidade de origem cerebral, mostrando nos pacientes com acidente vascular cerebral (AVC) uma incidência elevada de efeitos depressores do SNC2(D). A dose inicial de baclofeno em adultos é de 5 mg administradas três a quatro vezes ao dia, aumentando-se a dose gradativamente (5 mg a cada 7 dias) até que se atinja a dose de relaxamento desejado. A dosagem máxima recomendada é de 80 mg/dia, divididas em 4 tomadas. Em Espasticidade: Tratamento Medicamentoso crianças, a dose inicial deve ser 2,5 a 5 mg/dia, atingindo-se, no máximo, 30 mg (crianças de 2 a 7 anos) a 60 mg (naquelas maiores de 8 anos). Como a vida média é de, no máximo, 6 horas e a absorção é rápida (1-2 horas), as tomadas a cada 6 horas mantêm níveis plasmáticos mais constantes e, assim, se obtém níveis aceitáveis de relaxamento com doses mais baixas2(D). Benzodiazepínicos A ação dos benzodiazepínicos na espasticidade se faz por meio da sua ligação aos receptores GABAa, cujo complexo apresenta locais de ligação para essa droga. Exercem efeito indireto pré e pós-sináptico, aumentando a afinidade desses receptores ao GABA endógeno. São drogas metabolizadas pelo sistema microssomal hepático, cruzam a barreira hematoencefálica e são secretadas no leite materno. Sua duração depende do metabolismo individual, da produção e eliminação dos metabólitos farmacologicamente ativos. Diazepam, clordiazepóxido, clorazepato dipotássico e clonazepam são benzodiazepínicos de longa ação, enquanto oxazepam, alprazolam e lorazepam têm curto período de ação, pois não produzem quantidades significantes de metabólitos ativos2(D). O diazepam é a mais antiga medicação empregada no tratamento da espasticidade de origem medular e cerebral, sendo amplamente utilizado. Seu efeito antiespástico é dose-dependente. Administrado oralmente, atinge o nível sérico máximo após uma hora e sua meia-vida é de 20-70 horas. É metabolizado pelo fígado em dois componentes ativos: N-desmetildiazepam (nordiazepam-meia-vida de 36-96 h) e oxazepam, seu metabólito ativo, que é inativado e excretado na urina. Liga-se a proteínas séricas (98%) e, em condições de hipoalbuminemia, 5 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina seus efeitos colaterais são mais evidentes. Sua ação é principalmente supra-espinal (córtex cerebral, tálamo, núcleos da base, cerebelo, formação reticular do tronco), agindo também nas vias medulares polisinápticas. A eficácia do diazepam é semelhante à do baclofeno, mas seu uso é limitado pelos efeitos colaterais relacionados à depressão do SNC sonolência, comprometimento da atenção, memória, raciocínio e coordenação. Pode piorar, mesmo em doses baixas, a deambulação de pacientes com AVC2(D). Outros efeitos observados são fadiga, taquifilaxia e agitação paradoxal. O diazepam, como os demais benzodiazepínicos, pode ser usado como coadjuvante no tratamento da espasticidade, principalmente nos pacientes que se beneficiarem com seu efeito ansiolítico e sedativo. Na paralisia cerebral, o diazepam melhora a espasticidade e a atetose, sendo grande parte dessa melhora atribuída ao relaxamento muscular4(A). A intoxicação pelos benzodiazepínicos tem como sintomas sonolência excessiva, com evolução para coma, sendo seu antagonista o flumazenil, indicado para tratar a condição de intoxicação. O uso contínuo de diazepam acarreta dependência fisiológica e sua suspensão deve ser gradual -durante 4 a 6 semanas - para atenuar a síndrome de abstinência, que será mais intensa quanto maior for a dose e o tempo de exposição. Esta tem início 2 a 4 dias após a suspensão e se caracteriza por ansiedade, agitação, inquietude, irritabilidade, tremor, fasciculações, hiper-reatividade muscular, náuseas, hipersensibilidade sensorial, febre, convulsões, sintomas psicóticos, podendo, inclusive, levar a óbito. Os sintomas de abstinência podem 6 persistir, de maneira mais atenuada, por até seis meses. Nos benzodiazepínicos de curta ação, a síndrome de abstinência tem início mais precoce (um a dois dias após a suspensão) e se caracteriza pelos mesmos sintomas acima descritos, além de insônia2(D). A dose inicial de diazepam é de 5 mg, administrada ao deitar, podendo chegar a 60 mg/ dia, sempre em doses divididas. Nas crianças, a dose é de 0,12 a 0,8 mg/kg por dia. O clonazepam melhora a espasticidade associada a afecções como paralisia cerebral e esclerose múltipla. Seus efeitos sedativos, fadiga e aumento da secreção brônquica limitam seu uso em alguns pacientes. É geralmente usado à noite, na dose de 0,5 a 1mg, podendo chegar até 3 mg/dia2(D). O piracetam tem estrutura similar ao GABA e ao baclofeno, modula positivamente os receptores de glutamato e aumenta o metabolismo cerebral. Tem atividade antitrombótica e antiagregante plaquetária. Rapidamente absorvido após administração oral, liga-se pouco às proteínas plasmáticas, atravessa a barreira hematoencefálica e é excretado praticamente inalterado na urina. Sua meia-vida é de 4 horas2(D). Um estudo controlado com placebo mostrou melhora da espasticidade e de aspectos funcionais, incluindo marcha, num grupo de pacientes com paralisia cerebral. As crianças que apresentavam movimentos atetóides melhoraram de maneira acentuada. A dose utilizada foi de 50 mg/kg/dia e, apenas um paciente apresentou náuseas e vômitos como efeito colateral. A dose inicial do piracetam é de 2,4 a 4,8 mg/ kg/dia, em três tomadas diárias, variando a dose ideal para cada indivíduo. Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina A gabapentina é um anticonvulsivante que reduziu a espasticidade em pacientes com esclerose múltipla e lesão medular, sendo empregada na dose de 400 mg / 2 a 3 vezes ao dia. Pode causar depressão do SNC, fadiga, agitação, em pacientes com comprometimento cognitivo e redução da capacidade vital, em pacientes com esclerose lateral amiotrófica2(D). Seu efeito também pode ser notado na dor de origem central5(A). O carisoprodol e seu metabólito meprobamato são agonistas gabaérgicos indiretos, com efeito semelhante ao dos benzodiazepínicos nos canais de cloro. Tem sido empregado no tratamento da espasticidade e como analgésico. Seus efeitos colaterais são: depressão do SNC, tonturas, hipotensão ortostática, taquicardia e síndrome de abstinência. Atualmente, sua indicação principal é o tratamento de espasmos musculares de instalação aguda2(D). Dantrolene sódico O dantrolene sódico é um derivado da hidantoína. É a droga de escolha para o tratamento da hipertermia secundária à suspensão abrupta do baclofeno, na hipertermia maligna e na síndrome maligna do neuroléptico, não sendo atualmente utilizado na espasticidade em nosso meio6,7(D). Tizanidina Tizanidina e clonidina são derivados imidazólicos, agonistas alfa 2-adrenérgicos, agindo nos receptores alfa 2-adrenérgicos e imidazólicos da medula. A clonidina age também inibindo a liberação da substância P na coluna dorsal da medula. Diminuem os reflexos polisinápticos provavelmente pelo Espasticidade: Tratamento Medicamentoso decréscimo da liberação dos neurotransmissores excitatórios pré-sinápticos. Mais de 20 trabalhos duplo-cegos foram realizados comparando a eficácia e a tolerabilidade da tizanidina versus baclofeno e diazepam no tratamento da espasticidade de origem medular e cerebral. Os resultados foram analisados e demonstraram que a tizanidina é comparável a esses dois agentes8(A). A tizanidina não produz fraqueza muscular, mas pode causar hipotensão arterial, sedação, boca seca, astenia, tonturas, alucinações visuais e elevação das enzimas hepáticas (5%), que retornam aos níveis normais após seu decréscimo ou suspensão9(D). A dose inicial de tizanidina é de 4 mg/d, podendo chegar a 36 mg/dia, divididos em 2 a 4 tomadas. O pico sérico ocorre após 1 a 2 horas da sua ingestão, durando o efeito de 3 a 6 horas7(D). Clonidina A clonidina tem ação na espasticidade de origem medular, podendo ser associada ao baclofeno. Sua dose inicial é de 0,05 mg / 2 vezes ao dia, podendo chegar a 0,4 mg/dia. Seu efeito colateral limitante é a hipotensão ortostática, devendo ser utilizada com cautela nos pacientes que fazem uso de anti-hipertensivos, e nos lesados medulares com comprometimento autonômico10(C). Nabilone Os canabinóides têm sido utilizados há longo tempo no tratamento da dor e dos espasmos. Os receptores CB 1 de canabinóides 7 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina são encontrados em neurônios do SNC, situando-se nas áreas relacionadas à espasticidade, dor, movimentos involuntários anormais, convulsões e amnésia. Foram relatados efeitos relaxantes dos canabinóides em pacientes com espasticidade devido à esclerose múltipla, lesão medular e AVC. O principal alcalóide da Cannabis sativa é o delta-9tetrahidrocanabinol (donabinol) e o sintético é o nabilone. O auge do efeito antiespástico se dá 3 horas após a ingestão, sendo os efeitos colaterais: hipotensão, taquicardia, hiperemia conjuntival, boca seca, lentificação psicomotora, sedação, despersonalização e crises de pânico. Causam dependência e não são indicados para pacientes com doença psiquiátrica11(B). Glicina A glicina é um neurotransmissor inibitório do SNC e seu receptor é semelhante ao do GABAa. Suas propriedades antiespásticas são demonstradas pelo aumento do seu nível no espaço extracelular, após estimulação epidural da medula (procedimento que acarreta melhora da espasticidade) e pelas altas concentrações de glicina na medula lesada durante a fase de choque, que cursa com flacidez. Pacientes tratados com doses de 3 a 4 g/dia de glicina apresentaram melhora subjetiva da espasticidade e da paresia12(C). A L-treonina, precursora da glicina, foi empregada em alguns estudos abertos e duplocegos, sendo administrada na dose de 4,5 a 7,5 g/dia. Suas propriedades antiespásticas foram confirmadas e não apresentou efeitos colaterais. Entretanto, esses resultados não foram considerados clinicamente relevantes pelos autores13(A). 8 COMENTÁRIOS SO B R E T RATA M E N T O S SISTÊMICOS Os medicamentos usados no tratamento sistêmico da espasticidade, por meio de seus diferentes mecanismos de ação têm como resultado um decréscimo na excitabilidade dos reflexos medulares. A revisão das publicações mostra os resultados referentes à redução do reflexo do estiramento, sem muitas preocupações sobre os resultados funcionais. Os efeitos dos agentes sistêmicos não se fazem sentir apenas na redução dos reflexos do estiramento, pois todos deprimem também outros sistemas neuronais, apresentando efeitos adversos sobre as funções cognitivas ou autonômicas. Os efeitos colaterais mais observados são: depressão, sonolência, comprometimento da memória, hipotensão, bradicardia e depressão respiratória. A maioria das drogas antiespásticas melhora o conforto, algumas melhoram a motricidade passiva, mas podem piorar a motricidade ativa, tendo esses efeitos sido demonstrados através de ensaios com grupo controle. Um estudo com o piracetam evidenciou melhora da motricidade ativa. Há poucos trabalhos que comparem as drogas antiespásticas entre si, não se podendo afirmar sobre a superioridade de uma sobre as demais, em relação à segurança e à eficácia. Estudos controlados com diazepam e clonazepam versus baclofeno e tizanidina mostram eficácia semelhante em relação à espasticidade, com poucas diferenças de efeitos colaterais. Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina Os efeitos colaterais, muitas vezes insidiosos e de difícil percepção, limitam a administração da grande maioria das drogas antiespásticas, devendo-se detectá-los precocemente para permitir redirecionar o tratamento farmacológico sistêmico da espasticidade. Além disso, o custo das medicações deve ser avaliado no momento da escolha da droga a ser utilizada, adequando o tratamento às necessidades terapêuticas e às condições socioeconômicas do paciente. PROCEDIMENTOS LOCAIS E REGIONAIS Os tratamentos locais e regionais são representados pelas neurólises químicas. Estes são procedimentos realizados pelo médico, onde se injeta medicamentos específicos nos nervos e nos músculos, objetivando a interrupção da transmissão nervosa, o que traz como conseqüência o relaxamento muscular. Estes procedimentos, quando adequadamente indicados, podem ser o método de escolha no tratamento da espasticidade. Há muitos anos, as drogas disponíveis para estas intervenções têm sido da família dos álcoois, utilizando-se o álcool etílico a 40% a 60% ou o fenol a 3% a 7,5%. Também se empregam anestésicos, mas no tratamento da espasticidade este recurso só serve como teste terapêutico, pois seu efeito é fugaz. Desde o início da década de 90, temos à disposição a neurotoxina, toxina botulínica do tipo A, que tem se mostrado útil no tratamento da espasticidade em diferentes afecções14(D). A indicação das quimiodenervações está na dependência da necessidade funcional e da possibilidade real de ganhos para o paciente. Este Espasticidade: Tratamento Medicamentoso tipo de procedimento promove relaxamento muscular seletivo dos grupos musculares injetados, podendo ser usado como modalidade medicamentosa única ou em conjunto com outras técnicas terapêuticas15(D). NEURÓLISE COM FENOL O fenol, derivado do benzeno também conhecido como ácido carbólico, é um agente empregado há mais de 50 anos. Acarreta axoniotmese química em concentrações superiores a 3%, agindo apenas como anestésico local nas fibras gama, em concentrações inferiores a esta. Desnatura a bainha de mielina, com preservação axonal, interrompendo a condução nervosa e o arco reflexo, diminuindo assim o tônus muscular. Seu efeito clínico inicia-se vários dias após a aplicação, mas, devido à suas propriedades anestésicas, pode-se observar o resultado parcial logo após a injeção. O bloqueio fenólico tem efeito temporário, de 3 a 5 meses, devido à reversão do processo de desnaturação mielínica16(D). A ação do fenol não é específica, ocorrendo tanto em fibras relacionadas ao tônus, como nas relacionadas à movimentação voluntária e à sensibilidade. As fibras que apresentam bainhas mais espessas são relativamente poupadas, porém fibras pouco mielinizadas como as sensitivas são mais afetadas. Os procedimentos com fenol são indicados na neurólise de nervos motores, como o ramo anterior do nervo obturador, responsável pela inervação dos adutores da coxa e o nervo musculocutâneo, responsável pela inervação dos 9 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina flexores do cotovelo. Em pacientes portadores de lesão medular, a indicação de neurólise com fenol é precisa. Nos nervos mistos, a neurólise com fenol pode gerar estímulo nociceptivo, levando à disestesia em 10% a 30% dos casos; nesta situação, pode-se optar pelo bloqueio do ponto motor16(D). A administração venosa acidental causa tremores, convulsões, parada respiratória e cardíaca, necrose da parede vascular, com formação de trombo. Injeções repetidas de fenol podem causar a formação de tecido fibroso no local da aplicação, potencialmente dificultando a técnica em novos procedimentos. O procedimento com fenol é feito necessariamente sob eletroestimulação, de modo a facilitar a localização exata do nervo ou ponto motor a ser injetado. Utiliza-se um eletroestimulador pulsante, com pulsos a cada 5 segundos e agulhas monopolares revestidas de teflon. A profundidade da penetração e a orientação direcional da agulha requerem um conhecimento técnico e anatômico precisos. A estimulação elétrica é ajustada observando-se a contração muscular. Quando existe uma aproximação do nervo motor, a intensidade de estímulo é menor. O nervo motor é injetado quando com mínina corrente percebe-se a contração muscular. Na experiência dos autores e na literatura, a utilização de microestimulação elétrica entre 0 e 1 mA é suficiente para localizar o nervo e entre 1 e 2 mA, o ponto motor15(D). Para tanto, se recomenda um aparelho digital que permite esta precisão. Esta técnica permite a utilização de doses menores por procedimento, evitando as possíveis complicações. A dose letal é aproximadamente de 8,5g. Uma solução a 6% contém 0,06g/ml; raramente utiliza-se mais do que 15ml num mesmo procedimento, garantindo assim a sua segurança 16(D). A neurólise com fenol pode ser repetida, caso haja necessidade, sem restrições quanto ao intervalo de tempo entre as aplicações. A relação custo-benefício indica a neurólise com fenol no tratamento da espasticidade de grandes grupos musculares. A neurólise com fenol é uma técnica muito útil no tratamento da espasticidade que se instala durante o período imediatamente após uma lesão cerebral, prevenindo contraturas, que neste caso ocorrem precocemente. O fenol é muito barato, sua aplicação pode ser repetida sem maiores danos, logo é uma droga de fácil manejo. NEURÓLISE POR TOXINA BOTULÍNICA TIPO A As doses recomendadas variam de 3-7ml de solução aquosa de fenol, entre 5% a 7%, por ponto injetado. Para efeitos mais prolongados, maiores concentrações e volumes podem ser usados16(D). Os efeitos colaterais mais freqüentes são tonturas, náuseas, vômitos e fraqueza muscular. Em doses maiores, pode-se notar, logo após a aplicação, sintomas semelhantes à embriaguez. 10 A toxina botulínica A (TBA) emergiu na última década, como o mais novo tratamento da espasticidade. Numerosas pesquisas têm sido publicadas desde o trabalho pioneiro de Koman et al.17(C). A aplicação da TBA no músculo inibe a liberação de acetilcolina na junção neuromuscular, causando neurólise parcial, dose-dependente no Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina músculo injetado. O mecanismo de ação se dá por duas vias, afetando as fibras musculares esqueléticas extrafusais e intrafusais, influenciando o feedback aferente e o influxo ao motoneurônio alfa18(D)19(B). Existem 7 subtipos de toxina botulínica (A,B,C,D,E e F), todos com mecanismo de ação semelhante e produzidos pela bactéria anaeróbia Clostridium botulinum. A TBA é um polipeptídeo complexo de 150 kDa, composto por uma cadeia pesada de 100 kDa e uma leve de 50 kDa. A cadeia leve é a ativa, liga-se à pesada por uma ponte dissulfídica, cuja integridade é imprescindível para o efeito da toxina. Ao ser aplicada nos músculos-alvo, a TBA une-se a receptores de membrana e é internalizada na extremidade do axônio. Uma vez no citoplasma, as cadeias sofrem cisão e a cadeia leve desnatura as proteínas sinápticas SNAP-25, impedindo a formação do complexo necessário para a liberação da acetilcolina na junção neuromuscular20(C). A TBA não interfere com a produção ou armazenamento da acetilcolina e seu efeito é transitório, devido ao brotamento de novos terminais axonais, que restauram a função das fibras musculares desnervadas18(D). O retorno da função muscular coincide também com a recuperação funcional das placas motoras, seguido da involução dos brotamentos axonais20,17(C). de toxina que injetada intraperitonialmente em um grupo de camundongos mata 50% deles (DL50). Dependendo da formulação, um nanograma pode conter, por exemplo, 4U ou 40U, e apesar desta diferença, clinicamente pode se obser var atividade aproximadamente equivalente18(D). Existem estudos mostrando a formação de anticorpos relacionados com as aplicações de toxina botulínica. A formação de anticorpos parece estar ligada à carga proteica das formulações. As cargas antigênicas podem ser diferentes, porém a relação da formação de anticorpos e da resposta imune não está definida21(D). Qualquer antígeno injetado promove uma resposta que ativa o sistema imune. O intervalo curto entre injeções atua como estimulante ao sistema imunológico, sendo potencialmente ativador da formação de anticorpos. A literatura e a experiência dos autores recomendam que as injeções independentemente das doses não sejam repetidas a intervalos menores que 3 meses 22(D). Em caso de formação de anticorpos, onde o paciente torne-se não respondível, uma alternativa é o uso da toxina B23(D). O raio de difusão da TBA depende da formulação. Outros fatores que afetam a magnitude da ação da TBA são dose, volume, técnica de injeção e localização da injeção em relação à junção neuromuscular. O efeito farmacológico da TBA é observado, geralmente, a partir do terceiro dia, atingindo o máximo em duas semanas e persistindo por 3 a 6 meses; o efeito terapêutico, porém, depende de outros fatores, podendo se manter por períodos maiores24(B). A droga é bem tolerada e tem poucos efeitos colaterais. A unidade padrão para a medida da potência da TBA é a “unidade mouse” – quantidade A indicação da neurólise com TBA é promover o relaxamento da hipertonia em Espasticidade: Tratamento Medicamentoso 11 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina músculos ou grupos musculares, o que interfere nas atividades funcionais ou dificulta o posicionamento e favorece as contraturas. O conhecimento da anatomia, neurofisiologia e a correta avaliação funcional é pré-requisito para se obter bons resultados nas neurólises. As contra-indicações para este tipo de procedimento podem ser observadas no Tabela 1, e as complicações na Tabela 2. As complicações relativas são evitáveis ou facilmente resolvíveis, as raras realmente têm freqüência muito baixa e a formação de anticorpos requer cuidados por parte do médico. O principal cuidado é espaçar as aplicações, o máximo possível, caso seja necessário repeti-las. Um tempo mínimo de três meses é necessário para que o sistema imunológico “esqueça” a forma da molécula da toxina e, assim, não complete a formação da molécula básica de anticorpo anti-toxina. Tabela 1 Contra-indicações para o neurólise com toxina botulínica do Tipo A Absolutas Relativas 1- Alergia conhecida ao medicamento 1- Doença neuromuscular associada 2- Infecção no sítio do bloqueio 2- Coagulopatia associada 3- Gravidez e lactação 3- Falta de colaboração do paciente para o procedimento global 4- Uso de potencializadores como aminoglicosídeos Tabela 2 Complicações Relativas Raras Descritas 1- Dor 1- Alergia (anafilaxia não descrita) 1- Formação de anticorpos 2- Hematoma 2- Atrofia focal 3- Sensação de perda de força 3- Sudoração alterada 4- Infecção local 12 Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina Para a aplicação da toxina botulínica, devemos tomar alguns cuidados do ponto de vista técnico: • Cuidados e tratamento reabilitacional pósbloqueio; • Efeitos e eventuais efeitos adversos. 1 - Utilizar sempre solução salina sem conservantes, soro fisiológico, para a diluição. O uso de água destilada torna a injeção muito dolorosa; O compromisso reabilitacional por parte do paciente é muito importante. O tratamento com toxina botulínica, em pacientes espásticos, possibilita uma reeducação neuromuscular e, com isto, um reequilíbrio entre agonistas e antagonistas, de modo a evitarmos a gênese das deformidades e controlarmos o componente espástico. Isto, porém, só será conseguido através de um processo global de reabilitação, que requer a colaboração do paciente e, muitas vezes, também de seus familiares18(D). 2 - Evitar o borbulhamento ou a agitação do conteúdo do frasco durante a diluição e recuperação do medicamento para a seringa de injeção. Por ser a molécula da toxina muito grande, o borbulhamento ou a agitação do líquido poderá, eventualmente, quebrar a molécula antes da injeção e, assim, desativá-la; 3 - Nunca utilizar o conteúdo de frascos que tenham perdido o vácuo. Nesta condição, eventualmente, a toxina poderá estar imprópria para o uso. Ainda devemos considerar: 1- O que se deve saber: • Indicação e objetivo do tratamento; • Alterações possíveis nos padrões de movimento que poderão ser conseqüentes ao tratamento; • O que se deve orientar para a equipe de reabilitação; • Planejamento do procedimento; • Planejamento do tratamento reabilitacional pós-neurólise; • Procedimento realizado efetivamente; • Cuidados e condutas reabilitacionais pós-bloqueio, incluindo uso de órtese e contenções. 2- O que se deve orientar ao paciente e a seus familiares: • Indicação, contra-indicação, cuidados e objetivos reais do tratamento; Espasticidade: Tratamento Medicamentoso O período em que o paciente está sob o efeito do medicamento, 3-6 meses, deve representar uma corrida contra o relógio, onde deveremos intensificar o processo reabilitacional e o reequilíbrio muscular. Utilizamos, no processo de fortalecimento dos antagonistas aos músculos tratados, técnicas de eletroestimulação neuromuscular. Esta medida tem acelerado muito a aquisição de força nestes pacientes25(B). Em relação às doses, devemos considerar as características abaixo: • Tipo de músculo, trofismo e massa muscular; • Grau de espasticidade; • Padrões sinérgicos de movimento presentes; • Potencial de recuperação neurológica e prognóstico funcional; • Intensidade e duração da resposta individual em caso de repetição do procedimento. As doses preconizadas variam de 10-20 U/ kg/procedimento para Botox e de 30U/kg/ procedimento para Dysport26(D). 13 Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina A toxina botulínica A é a droga de escolha para o tratamento da espasticidade grave envolvendo os músculos distais dos membros e em grupos musculares isolados27,18(D). Uma década de experiências e pesquisas validam o uso da toxina botulínica para a prevenção de deformidades e a promoção de melhoras funcionais através do alívio da espasticidade22(D)25(B). As injeções de toxina botulínica ainda abrem a possibilidade de uma janela terapêutica, durante a qual a cinesioterapia deve ser intensificada, aproveitando o momento de relaxamento para criação de novos padrões de movimento levando a uma melhora funcional dos pacientes tratados28-30(D)31,32(C). A toxina botulínica é considerada, atualmente, o tratamento de escolha para a espasticidade de membros inferiores após doença vascular encefálica, com manutenção de parâmetros funcionais por mais de 4 meses33(D). Trabalhos mostram que as injeções guiadas resultam em benefício clínico significativo em pacientes selecionados34(A)7(D). A aplicação da toxina botulínica pode ser feita sob eletroestimulação e/ou eletromiografia, de modo a localizarmos os pontos motores com precisão, especialmente em músculos de difícil acesso. As técnicas de localização possíveis são: anatomia topográfica e palpação, eletroestimulação, 14 eletromiografia, ultra-sonografia e fluoroscopia18(D). A técnica de aplicação em múltiplos pontos parece promover melhores resultados. Em músculos grandes ou distais, devemos injetar em pelo menos dois pontos. Podemos injetar mais de um músculo no mesmo procedimento, desde que as doses de medicamento disponíveis sejam adequadas para cada músculo injetado. A critério médico, o procedimento deve ser realizado sob sedação ou anestesia geral. A colocação de gessos pode ser considerada após a neurólise com TBA, com o objetivo de alongar o músculo relaxado, sendo utilizada em associação aos procedimentos cinesiológicos35(D). C OMENTÁRIOS LOCAIS SOBRE TRATAMENTOS E REGIONAIS Este grupo de trabalho recomenda a utilização de procedimentos mistos de neurólise química com fenol e TBA, pois, dessa forma, podem ser tratados vários grupos musculares com doses plenas de ambas as drogas, dentro dos limites de segurança, otimizando os resultados terapêuticos, evitando reinjeções freqüentes e possibilitando a aquisição de praxias funcionais, mostrando assim vantagem também em relação a custo-benefício e farmacoeconomia16(D) 31,32(C)36(B). Espasticidade: Tratamento Medicamentoso Projeto Diretrizes Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina REFERÊNCIAS 1. Lima CLA, Fonseca LF. Paralisia cerebral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2004. p. 55. 2. Gracies JM, Elovic E, McGuire JR, Nance P; Simpson DM. Traditional pharmacologic treatments for spasticity part II: systemic treatments. In: Mayer NH, Simpson DN, eds. Spasticity – we move self-study activity. 2002. p.65-93. 3. 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