Sistema Acusatório - SOL

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Sistema Acusatório
A Conformidade Constitucional
das Leis Processuais Penais
EDITORA LUMEN JURIS
EDITORES
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Freitas Câmara
Antonio Becker
Augusto Zimmermann
Eugênio Rosa
Firly Nascimento Filho
Geraldo L. M. Prado
J. M. Leoni Lopes de Oliveira
Letácio Jansen
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Marcello Ciotola
Marcos Juruena Villela Souto
Paulo de Bessa Antunes
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Humberto Dalla Bernardina de Pinho
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José Maria Pinheiro Madeira
José Ribas Vieira
Marcellus Polastri Lima
Omar Gama Ben Kauss
Sergio Demoro Hamilton
GERALDO PRADO
Sistema Acusatório
A Conformidade Constitucional
das Leis Processuais Penais
3a Edição
EDITORA LUMEN JURIS
Rio de Janeiro
2005
Copyright © 2005 Geraldo Prado
SUPERVISÃO EDITORIAL
Antonio Becker
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Maanaim Informática Ltda.
Telefone: (21) 2242-4017
CAPA
Márcia Campos
A EDITORA LUMEN JURIS
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Printed in Brazil
―O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer
paraíso‖.
Para Giselle, com amor.
Sumário
APRESENTAÇÃO .......................................................................
PREFÁCIO..................................................................................
NOTA DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO ................................................
NOTA DO AUTOR À 2ª EDIÇÃO ...............................................
NOTA DO AUTOR À 3ª EDIÇÃO ...............................................
1. INTRODUÇÃO ........................................................................
2. -O DIREITO PROCESSUAL PENAL E A CONFORMIDADE
CONSTITUCIONAL ....................................................................
2.1. Introdução ..........................................................................
2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Fundamentais ........
2.3. Direito, Processo e Democracia ........................................
2.4. Constituição e Processo Penal ..........................................
2.5. Sistema e Princípios: Uma Aproximação Tipológica ......
3. SISTEMAS PROCESSUAIS .....................................................
3.1. Histórico: método aplicado ao objeto. Um acerto semântico
3.1.1. Situação na Antigüidade ............................................
3.1.2. Direito Medieval e da Época Moderna .....................
3.1.3. O Common Law ........................................................
3.1.4. O Direito da Época Contemporânea ........................
3.2. Características do Sistema Acusatório .............................
3.2.1. Princípio e Sistema Acusatório: Diferenciação........
3.2.2. Características do Princípio Acusatório ..................
3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo:
Poderes, Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades
dos Sujeitos Processuais.............................................
I. Do Juiz .....................................................................
II. Da Acusação ...........................................................
III. Da Defesa ..............................................................
3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo:
Da Atuação dos Sujeitos Processuais ........................
I. O Estatuto da Defesa em Movimento: O
Conflito entre os Interesses do Defensor
e do Acusado e o Limite às Soluções de
Consenso .................................................................
II. O Estatuto da Acusação em Movimento: A
Oportunidade Regulada na Ação Pública e a
Vedação Ordinária à Investigação Direta .............
A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública ..
B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta ..
III. O Estatuto do Juiz em Movimento: Livre
Convencimento e os Poderes de Investigação
do Juiz — A Mutatio Libelli ...................................
A. Livre Convencimento e os Poderes de
Investigação do Juiz ........................................
A.1. Do livre convencimento e a
confissão do acusado — soluções
consensuais ...............................................
A.2. Das Provas Legais Negativas ...............
B. Alteração dos Fatos ........................................
3.2.3. Características do Sistema Acusatório .....................
3.2.3.1. Da Oralidade ......................................................
3.2.3.2. Da Publicidade ...................................................
I. Da Publicidade Tradicional ....................................
II. Dos Juízos Paralelos da Imprensa ........................
3.2.4. A Título de Conclusão ...............................................
4. A ELEIÇÃO CONSTITUCIONAL DO SISTEMA ACUSATÓRIO
4.1. Breve Histórico do Processo Penal Brasileiro ..................
4.2. Características do Sistema Processual Brasileiro ............
5. -O SISTEMA ACUSATÓRIO E A LEGISLAÇÃO PROCESSUAL
POSTERIOR À CONSTITUIÇÃO .................................................
5.1. A Lei de Controle do Crime Organizado e a Lei das
Interceptações Telefônicas .................................................
5.2. A Lei dos Juizados Especiais ............................................
5.2.1. Da Transação Penal ....................................................
5.2.2. Da Suspensão Condicional do Processo ...................
5.2.2.1. Da Natureza Jurídica (Primeira Parte) .............
5.2.2.2. Da Natureza Jurídica (Segunda Parte).............
5.2.2.3. Da Natureza Jurídica (Terceira Parte) .............
6. A EXECUÇÃO PENAL E O SISTEMA ACUSATÓRIO ...........
7. CONCLUSÃO .........................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................
ANEXO: Da Lei de Controle do Crime Organizado: crítica às
técnicas de infiltração e escuta ambiental.................
Apresentação
Há boas razões para festejar o lançamento deste livro.
Em primeiro lugar, ele se inscreve afirmativamente na
militante produção teórica através da qual os juristas
brasileiros efetivamente comprometidos com o estado de
direito democrático, vencendo a perplexidade pela crítica,
resistem à desafortunada conjuntura político-criminal que a
implantação do projeto neoliberal estabelece entre nós.
Em segundo lugar, ele se incorpora a um renascimento
dos estudos processuais penais no Rio de Janeiro. Com
efeito, e sem embargo de valiosas contribuições individuais
que mantiveram aceso o fogo votivo, o processo penal — a
gata borralheira que Carnelutti entreviu humilhada entre
suas irmãs, o direito penal e o processo civil — não atraiu em
terras cariocas, logo após a Constituição, o interesse
imediato dos jovens juristas, com o entusiasmo e a
intensidade que, por exemplo, observou-se em São Paulo.
Hoje, constata-se que a gata borralheira vem sendo aqui
perfilhada por inúmeras e capacitadas vocações acadêmicas.
Em terceiro lugar, o livro merece ser festejado por seu
próprio conteúdo e método; ia escrever caráter. Sim, é de
caráter que se fala quando a investigação define claramente
seu marco teórico, e a ele guarda fidelidade em todos os seus
passos. Sob a generosa influência do pensamento
ferrajoliano, Geraldo Prado se filia ao garantismo, e a partir
daí pode questionar tanto a legitimidade do decisionismo
judicial, este fâmulo de chapa-branca do eficientismo penal,
quanto a lenda da verdade real, cuja overdose costuma
despertar o inquisidor que ainda dormita sob a toga de
tantos magistrados.
Não opera o Autor, contudo, com um garantismo de
fachada, conceitualmente reconstruído a partir da sonolência
dogmática. Nas fundações constitucionais do processo penal,
descarta os pilares puramente ideológicos de ―uma
democracia qualquer, fulcrada na mera declaração formal de
respeito aos direitos fundamentais‖, e busca a referência de
uma ―real democracia participativa, integradora e solidária‖;
interessa-lhe, portanto, a prática e o discurso dos operadores
político-jurídicos que, na (des)proteção daqueles direitos
fundamentais, se comprazem com ―sua positivação‖, atuando
―precisamente sem implementá-los (às vezes mesmo
negando-os)‖. Não por acaso, a história dos sistemas
processuais ocupa um precioso capítulo.
No eixo da investigação está o princípio acusatório, com
todas as suas múltiplas consequências, que vão das provas
até a sentença, resultante final das equilibradas e sincrônicas
contribuições do autor da ação penal, do réu e do juiz. Num
escrito admirável, no qual preconiza o retorno a uma
concepção substancialmente jurisdicional — e não
meramente instrumental — do processo penal, Gaetano
Foschini recusava ―a tradição que restringe o ofício judiciário
apenas ao juiz ou, pior ainda, ao juiz e ao ministério público,
numa autoritária contraposição ao réu e a seu defensor‖.
Este é o tema central que Geraldo Prado, com argúcia e
probidade intelectual, retoma e estuda a partir do quadro
normativo e das práticas judiciais brasileiras.
Apesar de clara opção constitucional, ainda estamos
distantes de uma acusatoriedade máxima, assinala lisamente
o Autor. Não só no campo do processo penal, vivemos a
contradição entre um texto constitucional democrático
formal e procedimentos reais que respiram a cultura
discriminatória, racista e exterminadora da característica de
nossa formação social. O projeto neoliberal requer um
sistema penal capilarmente repressivo, para o controle dos
contingentes humanos que ele mesmo massivamente
marginaliza. A legitimação dessa repressividade tem nos
métodos investigatórios arbitrários e invasivos um
ingrediente estratégico, como se pode ver nos meios de
comunicação ou na indústria cultural do crime.
A pesquisa do ―ponto diabólico‖, continua seduzindo a
alma ocidental, e um bom inquisidor — seja este Kenneth
Star das manchetes obscenas, seja aquele juiz-verdugo do
seriado Justiça Final — alcança em segundos a fama que
Nicolau Eymerich angariou em séculos.
Na eleição de seu objeto, todo pesquisador se revela de
corpo e alma e, portanto, cabe, por fim, festejar que Geraldo
Prado ofereça ao juristas brasileiros a oportunidade de
refletir, nesses tempos difíceis, sobre o princípio acusatório e
as múltiplas opressões que, no espaço processual, decorrem
de sua violação.
Nilo Batista
Prefácio
Em boa hora, o amigo Geraldo Prado publica sua
excelente dissertação de mestrado, onde estuda
profundamente a estrutura acusatória do processo penal.
Talvez em razão da ―inflação legislativa‖ dos últimos anos,
muitos importantes autores de Direito Penal e Processual
Penal têm se limitado à produção de obras de cunho
meramente exegético, procurando, já num primeiro
momento, dizer qual a melhor interpretação para este ou
aquele novo dispositivo legal.
Na verdade, esta década não tem sido muito fértil para a
doutrina penal e processual penal no Brasil, fazendo-nos
lembrar a ultrapassada época do procedimentalismo.
Principalmente no processo penal, sentimos falta de novas
obras de cunho mais sistemático, doutrinário e,
especialmente, crítico. Parece que o livro de Geraldo Prado
rompe com este ciclo e nos apresenta trabalho acadêmico do
mais alto valor científico.
Consoante o leitor comprovará, cuida-se de uma
monografia que, praticamente, esgota o tema pesquisado.
Restou demonstrada a excelência do sistema acusatório
moderno, que consegue criar condições que preservam a
imparcialidade do juiz sem prejuízo do caráter publicístico
do processo penal, como instrumento da atividade
jurisdicional do Estado. As características deste processo e os
princípios que o fundamentam são estudados de forma
densa e moderna, buscando-se sempre uma interpretação
que incorpore os valores que se possa extrair do nosso
sistema constitucional. O chamado Juizado de Instrução não
tem guarida em nosso sistema constitucional.
Desta forma, Geraldo Prado critica vários diplomas
recentes que se apresentam em descompasso com as
premissas teóricas que são estabelecidas durante o
desenvolvimento do trabalho. Faz uma verdadeira ―filtragem
constitucional‖ das novas leis que regulam matéria
processual penal. Já na leitura dos originais dos primeiros
capítulos desta excelente dissertação de mestrado, percebi
que seria produzida uma obra importante para a
compreensão de nosso sistema processual penal. Sua leitura
se apresenta útil não só para os estudantes, mas também
para os especialistas da matéria. Muito lucrei em lê-la, por
isso ouso recomendá-la.
Por derradeiro, quero dizer que fiquei honrado com o
convite de Geraldo Prado para ser o prefaciador de mais um
de seus livros. Cuida-se hoje de magistrado criminal que,
novo ainda, já ingressava no Ministério Público, sempre
através de disputados concursos públicos. Professor já
experiente, Geraldo Prado tem se salientado como
conferencista admirado. Assim, esta minha tarefa somente se
justifica em razão de ter começado primeiro, já que
possuidor de mais idade. Temos muitos pontos em comum,
inclusive na forma de pensar o Direito e a sociedade em
geral. Invocando o direito de resposta para que o leitor
possa, desde logo, perceber quem é Geraldo Prado, quero
publicamente rebater ―ofensa‖ que recentemente ele me fez,
chamando-me afetivamente de ―conservador‖, após painel de
que participamos na Escola da Magistratura do RJ. Em
verdade, Geraldo e eu desenvolvemos uma visão crítica em
face do ―sistema penal‖, apenas me afasto um pouco de seu
pensamento mais liberal na medida em que, ideologicamente
socialista, caminho na direção do chamado ―uso alternativo
do Direito‖. Sem me afastar da perspectiva ―garantista‖,
percebo a dimensão política do ―sistema penal‖ e quero usálo também politicamente na busca do socialmente justo.
Julgo, entretanto, que os nossos caminhos chegam ao
mesmo lugar, vale dizer, a busca de uma sociedade e, por
consegüinte, de um Direito radicalmente democrático.
E isto está retratado no livro que o afortunado leitor ora
começa a ler.
Rio de Janeiro, outubro de 1998
Afrânio Silva Jardim
Nota do Autor à 1ª Edição
A primeira reação dos operadores jurídicos, logo em
seguida à edição de uma lei processual penal, consiste em
examinar-lhe a conformidade constitucional, investigando as
concordâncias e harmonias entre seus sentidos e formas e os
princípios e normas que constituem o ponto mais alto do
ordenamento jurídico.
Concluída a tarefa de exame da constitucionalidade do
novo diploma, passam os operadores à pesquisa da
concordância com o sistema. Diz-se de uma lei processual
penal que ela pode estar de acordo ou divorciada do sistema
processual no qual, inserida, está destinada a atuar.
Articular a conformidade constitucional com a simetria
do sistema processual penal, em face do fundo cultural sobre
o qual se erguem ambos os valores, é a pretensão deste
trabalho. A hipótese sobre a qual se baseia a obra pressupõe
a tensão real entre normatividade e facticidade do sistema
jurídico processual penal, em virtude da qual são
perceptíveis dimensões reais e contraditórias de atuação de
atores e funcionamento de instituições, cujo fim consiste na
adjudicação de soluções tanto quanto possível legítimas aos
conflitos de interesses travados no ambiente do direito
penal.
O perímetro traçado, porém, não exaure todas as
possíveis faces da aproximação constituição—sistema, mas
se inclina, tão-somente, ao exame dos laços entre a
Constituição e o Processo Penal, naquilo que resume a sua
vocação comum, isto é, o equilíbrio no exercício do Poder e a
tutela de direitos e garantias indispensáveis à consideração
da dignidade do ser humano. Alinha estas duas grandes
vertentes — direitos fundamentais e princípio da separação
dos poderes — à vista da conformação de um processo penal
inspirado no princípio democrático, fundado na soberania
popular e na legitimidade não só das instituições como dos
procedimentos eleitos, em virtude do que, no seu aspecto
mais doloroso, qual seja, o do processo penal condenatório,
sustenta-se como única estrutura condizente àquela
pertinente ao sistema acusatório.
A afirmação da eleição constitucional do sistema
acusatório, contudo, não é suficiente, haja vista a polissemia
que envolve a expressão e os limites mais ou menos estreitos
que se verificam na prática, determinados pela herança
histórica romano-canônica.
Por essa razão, o trabalho evoluiu em direção ao estudo
do encadear histórico dos sistemas processuais, a validade
constitucional deles a partir de considerações de um sistema
geral de garantias, e à definição dos seus elementos
essenciais, concluindo, no tocante ao sistema acusatório, que
a sua base está fincada sobre um princípio do qual recebe a
designação e que representa o mínimo redutor, na linha
perspectivada na obra, passível de engendrar a ligação entre
o modelo normativo de processo penal e o modelo
democrático de Estado e sociedade. As expectativas de uma
confluência ideal entre o sistema processual preconizado e
aquele efetivamente adotado, pelo primado do direito, ou,
em outras palavras, pela crença no primado do Estado de
Direito — Estado Constitucional Democrático — está em que,
como salienta Habermas, o direito extrai a sua força muito
mais da aliança que a positividade do direito estabelece
com a pretensão à legitimidade,1 mas pode muito bem,
havemos de recear, conferir aparência de legitimidade ao
poder ilegítimo.
Portanto, compreender a peculiar realidade do processo
penal brasileiro, que, a par das influências externas, diz
muito do jeito de um povo ser e estar no mundo e de projetar
valores e expectativas, como afirmam os portugueses, é o
resultado natural do desenvolvimento do estudo, sem perder
de vista, todavia, a noção exata das relações que vão se
estabelecendo entre a promessa de democracia, inclusive no
1
Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 60.
processo, elaborada pelos constituintes de 1988 e a visão da
persecução penal entranhada na alma da maioria dos
operadores jurídicos. Essa é a razão de compararmos as
conclusões que nos pareceram naturais, sobre o modo como
se expressa a fidelidade ao princípio e ao sistema acusatórios
e a forma pela qual, principalmente, os dois mais expressivos
tribunais do país, o Supremo Tribunal Federal, guardião da
Constituição, e o Superior Tribunal de Justiça, enfrentam a
questão, ainda que de maneira discreta se comparados a
tribunais de outros lugares, como é o caso dos espanhóis,
norte-americanos e alemães.
De tudo restava, por derradeiro, afastarmo-nos do leito
do processo penal ordinário e, com o instrumental técnico
deduzido ao longo da obra, a consciência da relevância das
inclinações culturais e a crença nas promessas
constitucionais, comparar recentes disposições especiais do
Processo Penal, nascidas para cuidar de manifestações
diferentes da criminalidade, com o princípio e o sistema
acusatórios.
O resultado, a nosso juízo, exprime o reconhecimento
de que há grandes espaços a percorrer, muita disposição
cultural estranha à Constituição a ser enfrentada e um
aparente sistema acusatório operando, aguardando o
esforço da doutrina e da jurisprudência para vencer esta
etapa e transformar-se em um sistema acusatório real, capaz
de articular segurança e direitos fundamentais, controle
social e dignidade humana.
Quero expressamente agradecer a Afrânio Silva Jardim
pela oportunidade de desfrutar de sua amável e profícua
companhia intelectual na composição da dissertação de
mestrado que deu origem ao livro. Dos eventuais acertos o
crédito, por justiça, pertence ao excepcional processualista e
amigo. Agradeço também, expressamente, aos juristas Luiz
Flávio Gomes e Alberto Silva Franco pelas oportunas
indicações bibliográficas; a Weber Martins Batista, este por
haver despertado em mim, com suas aulas inesquecíveis, a
paixão pelo estudo do Processo Penal; e ao corpo docente do
curso de mestrado em Direito da Universidade Gama Filho.
Dedico o trabalho aos estagiários da Escola da Magistratura
do Estado do Rio de Janeiro — EMERJ, onde certamente
aprendo mais do que ensino, aos estudantes dos cursos de
graduação em Direito das Universidades Gama Filho e Veiga
de Almeida, aos queridos advogados Marcia Dinis, Carlos
Roberto Barbosa Moreira, Ilídio Moura, Luiz Guilherme
Martins Vieira e José Miranda de Siqueira, a meus filhos,
Gabriela e Felipe, e meus pais, todos cotidianos habitantes
do meu coração. Por fim, mas não por último, agradeço à
paciente Emília, da Universidade Gama Filho, às
funcionárias da biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro e aos companheiros do Instituto Carioca
de Criminologia e do Fórum de Execuções Penais da EMERJ.
Nota do Autor à 2ª Edição
Certamente distante de ter conseguido realizar o
propósito anunciado na primeira edição, de submeter ao
teste de conformidade ao sistema acusatório parte da
legislação processual penal brasileira, apresento esta
segunda edição.
Os leitores logo perceberão que se trata de trabalho
modificado e acrescido, com ênfase especial às questões que
atormentam o profissional do direito em seu cotidiano. Os
acréscimos não afetam seu conteúdo original — e as idéias
que sigo defendendo — ou perturbam sua forma acadêmica.
Pelo contrário, marcam a aliança que reputo indispensável
entre teoria e prática, a fim de demonstrar que o mito, fraco
em todos os sentidos, de que há um abismo entre a academia
e o foro, nada mais é do que posição ideologicamente
orientada no campo do processo penal a fomentar a
descrença na validade das garantias fundamentais
conquistadas e mantidas a duras penas por nossos
antepassados.
Insisto em reafirmar os postulados do Garantismo,
muito embora reconheça, em trabalhos mais recentes, a
necessidade de pensar uma teoria do processo penal voltada
à realidade brasileira e latino-americana. As linhas mestras
dos princípios liberais dos séculos XVIII e XIX, na Europa
Ocidental, não devem ser abandonadas. Porém, a articulação
das garantias aos projetos de emancipação das sociedades
periféricas certamente não poderá ter lugar sem adaptações e
sem o reconhecimento das peculiaridades das nossas
sociedades no tabuleiro pós-moderno imposto no jogo
(jugo?) da globalização.
O Garantismo não é uma religião e seus defensores não
são profetas ou pregadores utópicos. Trata-se de um sistema
incompleto e nem sempre harmônico, mas sua principal
virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade,
baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de
conter os abusos do poder e criar condições para que este
mesmo poder possa integrar as pessoas, eliminando dentro
do possível todas as formas de discriminação.
Na era pós-moderna, o processo penal vai cada vez mais
assumindo posturas pré-modernas e, por essa razão, a
análise crítica das categorias processuais é indispensável.
Este continua sendo o meu objetivo.
Em vista disso, aceitei o desafio de tratar da oralidade e
da publicidade, enfrentando os problemas derivados da forte
interferência dos meios de comunicação de massas nas
questões relativas ao crime e à punição de seu autor. Sobre o
tema havia muito mais a dizer, no entanto preferi restringir a
abordagem aos pontos de conexão com o sistema acusatório.
Acrescentei um capítulo, dedicado ao processo de
execução, zona sombria onde o que acontece parece não
interessar à comunidade. A medida da nossa civilização será
futuramente apreciada pelo modo como, no presente,
cuidamos do controle social punitivo.
Pesei longamente as críticas e, salvo pela intransigente
defesa da imparcialidade do juiz como premissa de que a ele
compete julgar as causas e não tomar a si a aplicação do
direito penal, procurei aperfeiçoar o texto e corrigir
eventuais equívocos.
Não seria sincero se dissesse que não estou feliz com o
resultado. Muitas vezes nos colocamos um desafio superior
às nossas forças justamente para tentarmos nos superar e
oferecer aquilo que há de melhor em nós. Penso que, no meu
caso, a profissão de fé que me anima e me faz juiz e professor
consiste em acreditar que, por meio do meu trabalho, presto
contribuição para tentar melhorar a vida das pessoas.
Devo muito ao Curso de Mestrado em Direito da
Universidade Estácio de Sá — UNESA, pois as pesquisas que
desenvolvi no projeto Defesa Penal, incentivado pela referida
Instituição, foram incorporadas ao texto desta segunda
edição, lançando luz sobre aspectos fundamentais do
trabalho.
Por fim, anoto uma correção necessária e uma enorme
frustração. Ao dedicar a primeira edição deste livro à mulher
que amo, aconteceu de serem omitidas as aspas à poesia de
Fernando Pessoa. Muitos imaginaram em mim uma veia
poética que, lamentavelmente, não possuo. Eduardo
Galeano, frustrado por não saber pintar, registrou um dia
que lhe deram o dom de escrever para que pudesse pintar em
forma de prosa. Gostaria de ser músico mas me faltam as
qualidades para isso. Escrevo inspirado em harmonias ideais
e ritmos imaginários, intuições que só conhece quem
verdadeiramente ama. E isso eu devo a Giselle.
Nota do Autor à 3ª Edição
O leitor tem em mãos a terceira edição do Sistema
Acusatório.
Trata-se de uma obra concebida originalmente em
circunstância precisa: a defesa de uma dissertação de
mestrado, ao fim dos anos 90, dez anos depois da
promulgação da Constituição da República de 1988.
Toda a estrutura do livro foi pensada no contexto criado
pela tensão entre uma Constituição rica em garantias no
processo penal e a realidade de uma sociedade ainda não
acostumada com os ares da liberdade conquistada com o fim
do regime militar.
A experiência acadêmica e a prática cotidiana, como juiz
criminal no Rio de Janeiro, foram decisivas na fixação das
fronteiras do trabalho. A certeza de que só muito
timidamente a doutrina do Processo Penal no Brasil
conseguia empreender vôos teóricos audazes, enquanto em
outros lugares a reconquista da liberdade política vinha
associada a mudanças estruturais do processo penal,
principalmente através do abandono dos modelos
inquisitórios, motivou a escolha do tema e a eleição do
orientador, Afrânio Silva Jardim, a quem até hoje sou grato
por tudo.
Sistema Acusatório, portanto, tinha tudo para ser um
livro datado. E em alguma medida ainda tem. Há capítulos
que investigam o Direito estrangeiro e também algumas leis
penais especiais brasileiras. Não ficaram ―congelados‖ nesta
terceira edição. Por óbvio que no tocante ao direito de fora
há um limite de atualização, estabelecido por diversas razões.
E neste particular sou grato a Aury Lopes Jr., que me sugeriu
investiir em uma última e moderada atualização, advertindo
o leitor interessado neste aspecto da matéria para que
sempre confira o estado do tema em fontes atualizadas do
País escolhido.
Sobre as leis especiais brasileiras o que posso dizer é
que de tal modo a pesquisa empreendida para apreenderlhes o conteúdo foi estimulante que, posteriormente, no
doutorado e em outras atividades da vida acadêmica,
terminei produzindo obras centradas com exclusividade
nelas. Estas obras são citadas no livro, todavia mesmo neste
tópico o Sistema Acusatório mantém interesse, pois permite
a quem se inicia em processo penal ter visão panorâmica da
matéria, abragente de algo maior que o Código de Processo
Penal brasileiro, hoje de aplicação quase residual.
Estes pontos foram profundamente modificados, assim
como tudo o que compreende os cinco primeiros capítulos,
em suma, o cerne da obra.
Não se trata de um livro novo, muito embora quem o
tenha escrito seja hoje alguém bastante diferente do autor da
edição original. O importante é que a linha mestra, a espinha
dorsal, consistente na compreensão do sistema processual
penal eleito em 1988, pelos constituintes, tenha sido
mantida.
O aprofundamento da abordagem tem vários motivos.
A começar pelo sucesso da obra, que é motivo de
orgulho para mim. Adotado em cursos de pós-graduação
stricto sensu, o livro abriu espaço para diálogo entre escolas
brasileiras de processo penal que coexistiam, porém não
conviviam.
E foi um diálogo rico, retratado, por exemplo, no debate
acerca da existência de um terceiro gênero: o sistema
adversarial, defendido por aqueles doutrinadores que
reconhecem a existência de poderes supletivos de
investigação judicial (o juiz estaria autorizado a produzir
provas de ofício e isso não afetaria a natureza do sistema
acusatório). O sistema adversarial seria uma espécie
(remanescente) de sistema acusatório puro, em que o juiz
permanece inerte, isto é, não produz provas. O leitor terá a
oportunidade de acompanhar esse debate, que é central
quando se pensa na reformulação completa ou mesmo na
substituição do quase-morto Código de Processo Penal de
1941.
Além do(s) diálogo(s) flagrado(s) nas páginas dessa
nova edição, sempre com respeito pelos pontos de vista
contrários aos que se defende aqui, houve também alguma
mudança de conceitos.
A constituição nos últimos anos de uma espécie de
Escola Crítica de Processo Penal brasileiro, integrada por
juristas de várias partes do país, sem lideranças intelectuais
verticalizadas, mostrou como é possível avançar em temas
difíceis e tentar descomplicá-los, recorrendo a outras
disciplinas. Nesta Escola Crítica é possível identificar muitos
pontos de partida diferentes e perceber a convergência do
destino: melhorar o processo penal do Brasil para que ele
não seja instrumento de perpetuação da desigualdade e da
injustiça.
E vários conceitos foram aperfeiçoados graças a essa
extraordinária (para mim) convivência. Ao jurista Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho, do Paraná, eu devo a
apresentação a Franco Cordero (falha grave em minha
bibliografia original, que assumo integralmente, porque
Afrânio já chamara atenção para a singularidade da ótica de
Cordero).
Pelo menos uma conseqüência deriva disso: quando
passei a trabalhar também com Michele Taruffo e Alberto
Binder pude divisar diferenças funcionais entre o processo
penal fundado na apuração do fato (e solução do caso) e o
processo penal, dirigido pela idéia de composição de
conflitos, que permeia o modelo de justiça penal consensual.
As conclusões são minhas, com os riscos de erro e acerto
inerentes. A matriz teórica sofreu, todavia, influência desses
autores e, por certo, Cordero foi um dos mais importantes.
Garantindo desde logo aos não versados em filosofia
que isso não impede a leitura e o aproveitamento da obra,
quero ressaltar ainda a importância dessa invasão (limitada,
infelizmente) da história e, principalmente, da filosofia.
Com efeito, no prólogo da edição argentina do trabalho
extraordinário de James Goldschimidt, denominado
Problemas Gerais do Direito, obra publicada postumamente,
Eduardo Couture chama atenção para o estado de angústia
que atinge o jurista, quando percebe as limitações de uma
ciência construída sobre bases estritamentes dogmáticas.
São palavras de Couture, traduzidas livremente: ―É que
na vida de todo jurista há um momento em que a intensidade
do esforço em torno aos textos legais conduz a um estado
particular de insatisfação. O direito positivo se vai
despojando de detalhes e fica reduzido a uma ciência de
grandes planos. Por sua vez, estes grandes planos reclamam
um sustento que a própria ciência não lhes pode dispensar. O
jurista adverte então, como se a terra lhe faltasse aos pés e
clama pela ajuda da filosofia. A maior das desditas que pode
ocorrer ao jurista é a de não haver sentido nunca sua
disciplina em um estado de ansiedade filosófica.‖
O encontro com a interdisciplinaridade facilitou a
minha forma de lidar com o processo penal. Creio que será
igualmente útil ao leitor.
No plano da simplificação devo ao prof. Décio Alonso
Gomes e a pesquisadora Laila Guimarães Ferreira talvez a
mais importante contribuição desta terceira edição. Ambos
mostraram a penetração do livro junto ao público de
estudantes de graduação e identificaram trechos em que a
linguagem pesada das teses dificultava a compreensão. Aliás,
Giselle já me havia advertido para isso e nesta terrceira
edição eu me dediquei a aliviar o peso da escrita mais
hermética, na tentativa de fazer chegar aos alunos da
graduação as razões do meu entusiasmo, quanto vezes
identificado por eles em palestras e conferências.
Espero ter atingido o objetivo, até porque as maiores
alegrias que o magistério me proporcionou eu devo aos
alunos da graduação. Nestes últimos anos são os da
Faculdade Nacional de Direito e da Universidade Estácio de
Sá. Em outras épocas foram os da UNIG, Universidade Gama
Filho, Veiga de Almeida e Cândido Mendes, sem contar os do
CEPAD. E pelo Brasil afora há os de Campos dos Goytacazes,
Recife, Curitiba, Porto Alegre...
Laila Guimarães Ferreira e Aline de Souza Siqueira,
ambas da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, cooperaram, ainda, na atualização da
pesquisa de jurisprudência e doutrina. Sou muito grato a
ambas.
Entre me decidir por reeditar o Sistema Acusatório e
trazê-lo de volta às livrarias quase dois anos se passaram.
Muitas histórias também. Desde a história da namorada, que
não é da área do direito, mas extraiu de mim o último
exemplar da segunda edição para presentear o namorado
paranaense, estudante de graduação da Faculdade de Direito
da Universidade Federal do Paraná (essas coisas de coração
sempre produzem efeito, espero que o presente tenha
agradado!), até a dos dias que eu, Giselle, Gabriela, Felipe e
Luis Fernando (o Lula, de nove anos, primo do Felipe)
passamos em Búzios, no ínicio de 2005, hospedados pelo
estimado Fábio Andrade, quando pude (quase) concluir essa
terceira edição de frente para o mar e em paz com Deus.
O que posso dizer é que fiquei muito feliz com o resltado
e espero que você também fique.
Geraldo Prado
[email protected]
www.direitosfundamentais.com.br
1. Introdução
No julgamento do Habeas Corpus no 73.338-7, no
Supremo Tribunal Federal, em decisão publicada no Diário
da Justiça de 19 de dezembro de 1996, assinalou-se,
enfaticamente, que a persecução penal rege-se, enquanto
atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões
normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis,
traduzem limitações significativas ao poder do Estado.1
Assim é que, contemporaneamente, não mais se concebe a
atuação do Estado em busca da imposição da sanção penal
aos autores das infrações penais, fora dos marcos
processuais estabelecidos pelas leis e, principalmente, pela
Constituição. Nulla poena sine judicio.
Trata-se, pois, de assegurar que o exercício legítimo do
poder punitivo, reservado com exclusividade ao Estado, seja
implementado de acordo com princípios éticos adotados
expressa ou implicitamente na Carta Constitucional2. Dessa
maneira, o que se pretende é fazer valer em concreto os
direitos e garantias proclamados pelo legislador constituinte
e evitar, justamente no exercício daquela expressão de poder
mais danosa ao conjunto das mínimas condições de
dignidade da pessoa humana, que se opere indevida e
desproporcional limitação aos denominados direitos
fundamentais. O princípio mencionado — nulla poena sine
judicio — não se exaure assim na mera legalidade dos
procedimentos penais, como será visto adiante,
fundamentando-se, para além da simples legalidade formal
dos modos de proceder, em uma perspectiva ética que vai
cimentar-se na legitimidade constitucional da atuação dos
principais personagens envolvidos com a persecução penal e
na estrutura e funcionamento das instituições próprias desta
atividade.
Tal ordem de coisas não é, certamente, nova, pois pelo
menos desde a Magna Charta, de 1215, que inspirou o
1
2
Habeas Corpus nº 73.338-7, impetrado em favor de José Carlos Martins
Filho em face do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator:
Celso de Mello. Acórdão da 1ª Turma, publicado no Ementário nº 1.855-02,
do Supremo Tribunal Federal.
Ada Pellegrini Grinover salienta, em O Processo Em Evolução (Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 9), que os processualistas da
última geração estão hoje envolvidos na crítica sociopolítica do sistema,
que transforma o processo, de instrumento meramente técnico, em
instrumento ético e político de atuação da justiça substancial e garantia
das liberdades.
princípio do due process of law, ou, antes, o julgamento
conforme às leis da terra, segmentos significativos da
comunidade, do ponto de vista político, econômico ou
cultural, têm se preocupado com a limitação ao arbítrio dos
governantes e a proteção e preservação da dignidade da
pessoa humana.
A questão que se impõe investigar, neste trabalho, diz
respeito aos aspectos normativos da estrutura sobre a qual se
estabelece e desenvolve a atividade persecutória, conforme a
Constituição e a realidade do processo penal. Exame dessa
natureza considera em que medida a própria Constituição é
confrontada com a legislação ordinária e com a ação concreta
de juízes, membros do Ministério Público, advogados e
acusados, e integrantes das forças públicas de perseguição
penal. Salienta Ferrajoli, a propósito da ingente tarefa que
culminou com a constituição teórica de um Sistema
Garantista, que o exame do sistema penal (no caso o
italiano) há de considerar uma tríplice diferenciação interna,
que corresponde a uma tríplice divergência entre princípios
garantistas codificados e constitucionalizados e seu modelo
teórico e normativo, além do modo efetivo como se
apresenta em consideração às realidades legislativa e
jurisdicional.3
Também aqui será perspectivada essa tríplice
diferenciação, em relação ao Sistema Penal e, em particular,
ao sistema processual vigente, porque importa ressaltar o
confronto entre idéias e práticas funcionalistas voltadas à
cultura da eficiência punitiva, como propósito da atuação dos
agentes do Estado, e a doutrina e as práticas garantistas,
herança do Iluminismo, que relevam os vínculos
estabelecidos para tutelar as pessoas frente ao arbítrio
punitivo.
Logo na introdução é importante destacar que as
ferramentas teóricas a serem empregadas combinam a
metodologia da análise funcional e, em parte, da teoria dos
3
Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, Madrid:
Trotta, 1997, p. 25.
sistemas com categorias e conceitos desenvolvidos pela
dogmática do processo penal e pelas diversas correntes da
criminologia crítica.
É curial colocar em relevo os métodos e instrumentos da
pesquisa. No estudo cotidiano do Direito, no Brasil, não é
comum encontrar indicações de método nos manuais
adotados nas Faculdades e usados pelos profissionais. Pode
parecer questão menor, cujo conhecimento é perfeitamente
dispensável.
Não é assim! O estudioso das questões penais deve
saber, desde o início, que não há neutralidade em termos de
Direito e Processo Penal. Estas matérias são atravessadas
pela política e quando os procedimentos tomam corpo nas
Delegacias de Polícia e nos fóruns a teoria ―neutra‖ da
maioria dos Manuais não reflete os conflitos apreciáveis a
olho nu.
Conhecer, portanto, o processo penal implica conhecer
as razões de fundo, políticas, que orientam escolhas tais
como não termos Juizados de Instrução, preferindo atribuir
ao Ministério Público a tarefa de acusar. Isso é aspecto
manifesto de um sistema que traz latente, fora do campo de
visão da simples prática forense, outras tantas escolhas –
acertadas ou não -, como, por exemplo, facultar-se ao juiz
produzir provas de ofício.
Para o estudioso responsável, que almeja exercer com
competência qualquer profissão na área penal, afigura-se
obrigatório estar dotado de conhecimento teórico que o
torne apto a entender o funcionamento do aparato
repressivo do Estado.
Este é um livro de processo penal. Trata-se de obra
elaborada a partir da dogmática jurídica. Da dogmática
crítica, é certo, pois sem os intrumentos da crítica a iniciação
ao processo penal levaria o estudioso a ficar perdido em um
mundo de teorias desencontradas da prática. Porém, é a
dogmática jurídica que possibilita a investigação do sistema
de justiça penal e esta dogmática jurídica é bastante
diferente do conjunto de conceitos e categorias que os
autores brasileiros se acostumaram a produzir nas décadas
de 70 e 80 do século XX.
O que, afinal, o leitor pode esperar? Caso seja estudante
de direito, acostumado a ―aprender‖ pela leitura e
―interpretação‖ do Código de Processo Penal, este estudante
irá se deparar com uma forma completamente distinta de
compreensão do Direito Processual Penal.
O leitor verá que somente o contexto histórico permite
entender porque o processo penal de cada país tem as
características que tem e, ainda, porque a Constituição e as
leis dizem uma coisa e a prática mostra outra.
Saberá, também, que há modelos diferentes de Processo
Penal, que o próprio modelo em vigor no Brasil balança entre
exigências normativas garantistas e práticas autoritárias e
que leis editadas basicamente na mesma época, depois da
Constituição de 88, reproduzem esta contradição.
Para tanto este leitor exigente entenderá que há nova
dogmática jurídica, isto é, que o conjunto de conceitos e
categorias empregados pelo jurista não é mais o mesmo das
décadas precedentes.
Esta dogmática crítica que na atualidade, vale repetir,
deve ser conhecida pelo profissional competente, é fruto da
combinação, do diálogo, entre diversas disciplinas.
A malograda separação entre disciplinas, que relegava a
sociologia e a filosofia, sem falar na criminologia, a postos
secundários na estrutura do aprendizado do Direito, pois
que, supostamente, no futuro não serviriam ao profissional
dessa área, ruiu. A análise jurídica dos fenômenos só obtém
status de apreciação científica quando considera a relação
inevitável entre o que se quer conhecer – o funcionamento
do Sistema de Justiça Penal – e quem quer conhecer. Não
existe conhecimento ―objetivo‖ e asséptico dos fenômenos da
vida em sociedade.
A escolha do Sistema Acusatório é clara! Introduzir o
estudo do processo penal por meio da investigação do
funcionamento concreto dos sistemas. A isso a doutrina
chama análise funcional.
Para os que estão mais avançados no estudo jurídico é
preciso ter cuidado com os preconceitos. No Brasil, durante
os anos 90 e mesmo no início deste século XXI, um
determinado tipo de funcionalismo esteve em voga.
Mais precisamente no âmbito do Direito Penal
importaram-se conceitos funcionalistas herdados, porém
nem sempre fiéis, ao pensamento de Niklas Luhmann. Não
que a fidelidade às posições originais de Luhmann
represente qualquer garantia de ―acerto teórico‖. Não é isso.
O que se deseja sublinhar é a existência de interpretações
funcionalistas de variada espécie, centradas em uma
ideologia: a ideologia funcionalista.
Em síntese, nesta introdução, é necessário frisar que
por ―ideologia funcionalista‖ entende-se ―uma ‗filosofia
social‘ ou uma ‗teoria global da sociedade‘, que tende a
formular explicações ontológicas, aprioríticas e até
metafísicas, no que diz respeito às funções desenvolvidas
num sistema social por seus elementos‖4. Esta ideologia
como outra qualquer, tomada a palavra ideologia em sentido
negativo (encobrimento da realidade), impõe: a) certo grau
de adesão acrítica aos conceitos e valores ―revelados‖ pela
ideologia; b) o convencimento (muitas vezes a fé mesmo) de
que somente obedecendo com fidelidade aos paradigmas da
ideologia o sistema social funcionará adequadamente.
A conseqüência prática disso é colocar o sistema acima
das pessoas, na realidade acima do interesse da maioria das
pessoas. E esta maioria é formada por pessoas que não se
beneficiam da manutenção do status quo. A ideologia
funcionalista é a ideologia da manutenção das coisas como
estão, ou, de acordo com Zaffaroni e Nilo Batista, é a
ideologia da estabilidade5.
Para o leitor eventualmente satisfeito com o estado
atual das coisas, trata-se da ideologia ―ideal‖. Para aquele
leitor, porém, convicto de que a ordem constitucional
brasileira está orientada a melhorar a condição de vida da
4
ARNAUD, André-Jean e DULCE, María José Farinas, in Introdução à análise
sociológica dos sistemas jurídicos, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 141-2.
5
BATISTA, Nilo, ZAFFARONI, Eugenio Raúl, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR,
Alejandro in Direito Penal Brasileiro – I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 622.
maior parte das pessoas, parece óbvio que há de se rechaçar
esta ideologia.
Esta última é a posição adotada no Sistema Acusatório.
Em nenhum momento o livro toma partido da ideologia
funcionalista. Sistema Acusatório serve-se, tão-só, da análise
funcional para entender o Sistema de Justiça Penal.
É preciso, pois, distinguir análise funcional de ideologia
funcionalista.
Recorrendo outra vez a Arnaud, entende-se por análise
funcional: ―uma forma ou método de conhecimento
científico que, concretamente – e para o que aqui nos
interessa -, analisa e explica o direito – assim como outros
fenômenos normativos -, estudando as ‗funções‘ ou as tarefas
que o direito realiza para a sociedade, as que ele deveria
realizar, e como ele as realiza ou deveria realizá-las‖6.
Assim, nem toda análise funcional é devedora da
ideologia funcionalista. Pelo contrário, é possível trabalhar
com esta ferramenta para negar a validade da ideologia
funcionalista e revelar como, porque e para quem funciona o
Sistema de Justiça Criminal. Novamente Nilo Batista e
Zaffaroni irão nos lembrar que até certos textos marxistas
podem corresponder a este tipo de análise. Assinalam os
mencionados autores que ―disso resulta que, embora toda
concepção orgânica de sociedade tenda a ser antidemocrática
e reacionária, não é possível dizer a mesma coisa das análises
funcionais, que representam apenas um método paralelo às
explicações causais e intencionais nas ciências sociais‖7.
Nesse sentido, eleita a realidade dos fatos como o pano
de fundo da investigação normativa, a força desta
investigação deve residir na disposição de elaborá-la
criticamente, ou seja, livre dos conceitos que, difundidos
doutrinariamente, denunciam posições apriorísticas nem
sempre compatíveis com o modelo real da base de
sustentação institucional do processo penal vigente. A
6
7
Op. cit., p. 141.
BATISTA, ZAFFARONI et alli. Op. cit., p. 622.
incoerência de determinadas explicações acerca do Direito
Processual Penal, no Brasil, decorre da tentativa de conciliar
o inconciliável, de conferir às práticas processuais penais, ao
menos no âmbito do discurso, foro de legitimidade
constitucional quando algumas não o têm, escondendo-se
desse modo a verdadeira tensão estabelecida em razão da
discrepância entre o preceito jurídico e a sua implementação.
Com efeito, cumpre fazer da crítica o predominante
método deste trabalho, assim entendida a expressão, na
concepção de Michel Miaille, como sendo a possibilidade de
fazer aparecer o ―invisível‖.8
Significa dizer não apenas que o objeto do nosso estudo,
tal seja, o sistema acusatório, conforme posto pela
Constituição9 e a estrutura processual estabelecida nas
principais leis que se seguiram à promulgação da Carta, deve
ser visto na perspectiva do seu dever ser mas,
8
9
Miaille, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Estampa,
1989, p. 21.
Em um dos seus últimos artigos, o eminente professor José Frederico
Marques assinalou que a nova ordem constitucional optou pelo sistema
acusatório, salientando que a estrutura processual fundada em um
contexto de relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos — autor, réu e
juiz — prestigia o ―fundo político democrático-liberal de suas origens‖, de
sorte a constituir a essência do processo penal atual, na linha de
pensamento coerente com aquela modelar, paradigmada nas lições de
Giuseppe Bettiol (Marques, José Frederico. ―O Processo Penal na
Atualidade‖, in Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo:
Acadêmica, 1993, p. 17). Assim também entende o culto professor e
Promotor de Justiça Afrânio Silva Jardim, como se vislumbra da seguinte
passagem da sua conhecida obra Direito Processual Penal (6ª ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1997, p. 197), comentando acórdão da 4ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: Destarte,
podemos asseverar que, pelo sistema processual acusatório, adotado pelo
vigente Código de Processo Penal e depurado pela nova Constituição,
descabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público quando e
como deve ser proposta a ação penal pública. E. Magalhães Noronha
(Curso de Direito Processual Penal, 25ª ed., atualizada por Adalberto José
Q. T. de Camargo Aranha, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 307), José Lisboa da
Gama Malcher (Manual de Processo Penal Brasileiro, vol. I, Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 68), Julio Fabbrini Mirabete (Processo
Penal, São Paulo: Atlas, 1993, p. 42) e, naturalmente, Fernando da Costa
Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I, 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p.
90) sustentam que o sistema processual em vigor no Brasil é o acusatório.
principalmente, na ótica do seu ser real, verdadeiro. Por isso,
não se abrirá mão da incursão histórica e seu componente
ideológico que, no Brasil de 1988, fundaram o pensamento
dos que produziram a Constituição,10 ultimando a transição
em direção à democracia.
É curial assinalar de início que a estrutura processual
penal está inserida não só em um contexto normativo, cujas
linhas mestras são ditadas pela Constituição da República,
como também se encontra situada em um plano político
integrado a todo o sistema penal.
Por sistema penal entendemos, como Sandoval Huertas,
al conjunto de instituciones estatales y a sus actividades,
que intervienen en la creación y aplicación de normas
penales, concebidas estas en su sentido más extenso, valga
decir,
tanto
disposiciones
sustantivas
como
procedimentales.11 Saliente-se por oportuno que este
entendimento de sistema penal não é concebido
exclusivamente à luz das pretensões normativas e das regras
programáticas que o ordenamento jurídico consagra. Antes,
pelo contrário, como é perseguida a visão crítica, é preciso
ter os pés na terra e a vista posta nas ações institucionais dos
organismos de repressão penal para, deste modo, atestarmos
quanto à implementação verdadeira das balizas legais e
constitucionais e não ficarmos presos a estéreis e infundadas
suposições.
Por isso Nilo Batista e Zaffaroni falam em agências
penais. Os gestores da criminalização, os entes encarregados
de levar ao termo a ―seleção penalizante‖, funcionam de uma
10
11
Salienta Miaille que o método crítico está alicerçado no pensamento
dialético, tal seja, parte-se da experiência de que o mundo é complexo: o
real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer ela
seja consciente quer inconsciente. Destaca o pensador portanto que um
pensamento dialético é precisamente um pensamento que ―compreende‖
esta existência contraditória e conclui dizendo que o pensamento crítico
ou dialético é dinâmico, apreendendo a realidade não só no seu estado
actual, mas na totalidade da sua existência, quer dizer, tanto naquilo que
o produziu como no seu futuro. (Miaille, ob. cit., pp. 21-22).
Huertas, Sandoval Emiro. Sistema Penal y Criminología Crítica, Bogotá:
Temis, 1994, p. 6.
determinada maneira, com independência de como os
professores e doutrinadores de Processo Penal imaginam a
―atuação do processo penal‖ à luz da Constituição e das leis12.
Zaffaroni,13 a propósito, aduz que o sistema penal deve
ser
entendido
como
controle
social
punitivo
institucionalizado,
atribuindo-se
à
expressão
―institucionalizado‖, como ressalta Nilo Batista, ―a acepção
de concernente a procedimentos estabelecidos, ainda que
não legais‖.14
Portanto, não bastará ao estudo definir em que consiste
um sistema acusatório e depois sublinhar que a nossa
Constituição o adotou se, confrontada a Constituição com a
estrutura processual ordinária, resultante das novas e velhas
leis, concluirmos que na prática muitas vezes não se
observam os elementos essenciais do sistema acusatório.
Não custa lembrar a advertência de Ferrajoli, para
quem, considerando a diferenciação dos vários níveis de
normas agregadas no ordenamento jurídico (leis,
regulamentos, resoluções etc.), é comum observar no nível
normativo superior (a Constituição da República) um estado
de coisas refutado por disposições de níveis normativos
inferiores (leis e até regulamentos) e da prática judicial,
ensejando a tendência de não efetividade do primeiro e
ilegitimidade dos segundos.15
É evidente que da problemática proposta algumas
questões antecedentes e conseqüentes deverão ser
necessariamente extraídas, enfrentadas e vencidas, isto é, se
há realmente uma estrutura normativa acusatória no
processo penal brasileiro, como frisamos, e, em caso
afirmativo, se essa estrutura revela um princípio de natureza
constitucional e/ou um sistema.
Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, em obra versando
12
13
14
15
Idem, p. 43.
Eugenio Raul Zaffaroni, apud Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito
Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 25.
Idem.
Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, p. 104.
sobre Direito Penal, Estado e Constituição,16 assinala com
razão que a estipulação das categorias jurídicas submetidas
ao trabalho de classificação do jurista não deve desvincularse por completo dos parâmetros normativos instituídos
especialmente pela Constituição. Assim é que, salienta o
doutrinador, se reconhecemos que não há consenso
classificatório na doutrina e precisão terminológica dentro
da própria Constituição, também é verdade que pelo menos
cinco categorias jurídicas básicas são identificáveis à luz do
texto maior: direitos, garantias, normas, princípios e
remédios.17
É necessário debater a questão delicada da afirmação da
existência de uma outra categoria,18 isto é, daquela definida
como sistema, com todas as conseqüências derivadas desta
positivação, sem olvidar que em diversas hipóteses é possível
enquadrar o mesmo instituto jurídico em modelos
diferentes.
Além disso, releva destacar a premissa de uma eleição
constitucional de valores, pesquisando-se os aspectos que
resultam predominantes ou devem predominar no contraste
entre a Constituição jurídica e a Constituição real,19 uma vez
16
17
18
19
Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Direito Penal, Estado e Constituição, São
Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 3, 1997.
Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Ob. cit., p. 73.
Aproprio-me, aqui, da definição de categoria jurídica utilizada por Lopes
(ob. cit., p. 71), tal seja, conhecimento não hermético. Vale frisar que a
expressão será empregada com objetivo descritivo, conforme opera a
Sociologia do Direito, e não visando alguma identificação ontológica, típica
da filosofia jurídica, embora não haja como distinguir por completo os dois
campos e não se olvide que o conjunto de significados idealizados pelos
vocábulos característicos de uma época serve igualmente ao propósito
cognitivo e aos de ordenação e orientação da realidade. Acresça-se a isso
que também a expressão estrutura, já diversas vezes mencionada, tem seu
sentido científico fortemente determinado. Para Verdú, a cujo pensamento
nesse tópico vamos aderir, compreende-se por estrutura o conjunto de
elementos interdependentes que configuram, organizam e produzem, com
relativa permanência, os diferentes procedimentos (Verdú, Pablo Lucas.
Princípios de Ciencia PolíticaI, tomo II, Madrid: Tecnos, 1979, pp. 24 e 21).
Constituição real aqui mencionada à vista da definição que lhe atribui
Konrad Hesse, in A Força Normativa da Constituição, traduzida por
Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.
que, como se sabe, a realidade da persecução penal pode
distanciar-se concretamente da promessa constitucional.
Isso acontece, por exemplo, não só quando a tortura é
empregada como método de investigação, na busca da tão
propalada (profanada) verdade real, como ainda quando os
tribunais admitem a aplicação de institutos jurídicos
incompatíveis com o paradigma constitucional da estrutura
processual.
Para ilustrar, resgatando nossa história recente, vale
dizer que, em pesquisa que resultou na publicação do livro
Brasil: Nunca Mais,20 constatou-se, apesar dos imperativos
da ordem constitucional então vigente no regime autoritário
— 1964 a 1988 —, que em vários julgamentos dos tribunais
superiores, princípios como o da imparcialidade do juiz, da
presunção da inocência (versus in dubio pro condenação),
do contraditório (versus decisão calcada exclusivamente em
elementos de convicção colhidos no inquérito policial) e
motivação das decisões de natureza jurisdicional21 foram
repudiados, pura e simplesmente.
Fica portanto a interrogação: é correto afirmar que há
um princípio acusatório a inspirar a ordem constitucional?
E, em caso afirmativo, é também correto dizer que do
confronto entre a estrutura processual desejada pela
Constituição da República e aquela disposta nas leis
ordinárias que serão examinadas, o princípio ou sistema
acusatório está realmente assegurado?
Finalmente, convém ainda explicitar em que
circunstâncias
históricas,
determinados
valores
estruturantes do processo penal constituíram objeto da
atenção e da regulação constitucional, em contraposição ao
fundo cultural que posteriormente veio alicerçar a maior
parte das leis processuais, densificando-se interpretações
doutrinárias aparentemente distintas dos caminhos
apontados pela Lei Maior. A análise crítica conecta ao estudo
jurídico das diversas categorias processuais o exame das
20 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
21 Idem, pp. 176-199.
condições historicamente verificadas por ocasião da edição
das normas. Fora do contexto histórico não se explicam
eleições de instituições, que se expressam sempre por meio
de uma estrutura, institutos e valores, em detrimento de
outros da mesma natureza ou não, porém de conteúdo
diferenciado ou até mesmo oposto.22
Este é, pois, nosso plano de trabalho, voltado ao final à
aspiração de que o momento constitucional de 1988 não
pode nem deve ser esquecido ou amesquinhado por uma
interpretação da Constituição Jurídica conforme modelos
criminais dela divorciados mas aparentemente consagrados
na Constituição real.
22
O direito, enquanto fenômeno cultural, é de certa forma vassalo da história
e não pode ser ‗compreendido‘ como algo (a)histórico. Novamente, cumpre
realçar a lição de Miaille (ob. cit., p. 55), na refutação à prática de redução
da importância da História para o Direito: Assim, apesar de algumas
tentativas para ―situar‖ as questões de direito historicamente, raramente
os juristas falam uma linguagem histórica. Ainda acrescenta o pensador
que, no fundo, a história não interessa realmente o jurista, porque uma
óptica idealista-universalista é precisamente oposta a uma tal reflexão.
2. -O Direito Processual Penal e a Conformidade
Constitucional
2.1. Introdução
Afirma Luhmann que toda convivência humana é
direta ou indiretamente cunhada pelo direito.1 As
implicações do direito na sociedade, particularmente desde o
século XVIII, serão observadas mais à frente, porém, sem
dúvida, é possível dizer que dos primórdios da socialização
do ser humano, com seu agrupamento em comunidades
rudimentares, até os dias de hoje, nos quais não se concebe a
vida isolada, havendo o homem se envolvido em tramas de
diversa natureza, especialmente determinadas pela divisão
do trabalho social, o direito marca a nossa existência,
regulando a variedade de relações sociais, econômicas,
políticas, familiares, patrimoniais e educacionais.
Não se contesta a importância do direito enquanto
fenômeno, muito embora a realidade do mundo globalizado
haja relativizado o seu papel como ―conjunto de técnicas
para reduzir os antagonismos sociais, para permitir uma
vida tão pacífica quanto possível entre homens propensos
às paixões‖2. Isso decorre da superação progressiva das
características inerentes ao Estado-nação de base territorial,
praticamente ultrapassado pelo conceito quase universal da
predominância do sistema econômico, na sua essência
capitalista transnacional, subordinado à lex mercatoria,
como assinala com precisão José Eduardo Faria.3
1
2
3
Luhmann, Niklas. Sociologia do Direito, vols. I e II. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.
Miaille, ob. cit., p. 25.
Faria, José Eduardo. ―Direitos Humanos e Globalização Econômica: Notas
para uma Discussão‖, in Revista do Ministério Público, Lisboa, nº 71, julset/1997, pp. 33-46. A superação do tradicional conceito de Estado de base
territorial, sustentáculo da representação constitucional do Estado-Nação,
não desfigura a própria representação das constituições como ponto de
legitimação, legitimidade e consenso autocentradas numa comunidade
Ainda assim, por igual, não se controverte sobre haver
sido o direito — como de resto continua sendo —
instrumento simbólico de limitação do Poder,4 estabilizando
as expectativas dos integrantes da sociedade. No passado, a
dimensão religiosa conferida ao Poder subordinava a
sociedade à autoridade de um direito sagrado e, dessa forma,
considerando os restritos papéis sociais disponíveis, era
possível ao direito garantir sua força rigidamente
integradora e de regulação. Eliminado, porém, o respaldo
religioso, com o advento da era contemporânea partiu-se de
premissas
deduzidas
mais
enfaticamente
pelos
jusnaturalistas, baseadas na idéia de um conjunto de direitos
inerentes ao homem, inalienáveis e oponíveis até mesmo aos
detentores do poder secular, para erigir-se o moderno
conceito de constitucionalismo, em virtude do qual, tomando
por pilar a idéia do pacto social, construiu-se um novo
4
estadualmente organizada (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional,
Coimbra: Almedina, 1992, p. 18), embora acresça ao sistema jurídico uma
rede cooperativa de metanormas e normas oriundas de outros centros
transnacionais e infranacionais.
Certamente, a reorganização da sociedade e do Estado contemporâneos,
possível a partir da predominância do sistema econômico capitalista e do
papel não só econômico mas social e político do mercado, consoante
assinalado por Faria, no artigo mencionado, afetou conceitos tradicionais
da democracia política. É exemplo o do controle da regra de maioria,
disposto à evitação da tirania da maioria, quer através da delimitação do
espaço inquebrantável dos direitos fundamentais, quer pretendendo
impedir a concentração de poderes políticos e econômicos, malgrado a
reserva dos setores políticos, o que tem demonstrado o valor deste
complexo sistema de vínculos e de equilíbrios que é o direito e, mais
precisamente, a Constituição, reconhecendo-se a sua importância
funcional como garante não só das formas como dos conteúdos da
democracia política, social e cultural. Essa situação será vista adiante,
primorosamente ressaltada por Ferrajoli (―O Estado Constitucional de
Direito Hoje: O Modelo e a sua Discrepância com a Realidade‖, in Revista
do Ministério Público, Lisboa, nº 67, jul-set/1996, pp. 39-56). É evidente,
como destacou Canotilho, referindo-se a G. Teubner (Direito
Constitucional, p. 13), que o direito só regula a sociedade, organizando-se
a si mesmo, o que o dispõe, modernamente (ou pós-modernamente), como
direito reflexivo ou de mediação, auto-limitado ao estabelecimento de
processos de informação e de mecanismos redutores de interferências
entre vários sistemas autônomos da sociedade (jurídico, econômico, social
e cultural), segundo o próprio Canotilho (ob. cit., p. 13).
direito, direito moderno, absorvendo o pensamento
democrático e valores da cultura jurídica que prestigiavam o
nexo entre legalidade e liberdade, a separação entre direito e
moral, a tolerância religiosa, a liberdade de expressão e
igualdade entre as pessoas.5
Cumpre dizer, todavia, que, por mais paradoxal que
possa parecer, o constitucionalismo moderno, nascido das
revoluções americana e francesa do século XVIII, representa
o momento único e ímpar da convergência entre o
pensamento jusnaturalista e a necessidade de positivação do
direito, pressupondo um rol de interesses indisponíveis para
a vida digna do ser humano, os quais, como o espírito em
busca de um corpo, vagaram pela História até encontrarem
os
documentos
escritos
originados
nos
marcos
revolucionários.
Na segunda metade do século XIX, no entanto,
consolidado na Europa o Estado liberal, desenvolveram-se
práticas institucionais tecnicistas e baseadas na eficiência do
controle social pela coerção inerente ao direito penal
positivado, com orientações expressa ou tacitamente
autoritárias, que romperam a união entre o direito penal, e
por igual o direito processual penal, e a filosofia política
reformadora.
Para entender isso é preciso compreender como se
desenvolveu o fenômeno da positivação do Direito. Luhmann
destaca, com razão, a respeito deste fenômeno, vindo à luz
exatamente quando as sociedades simples começaram a ser
sucedidas por outras, complexas, qualificadas pela divisão do
trabalho social, que em concreto não havia outra alternativa.
Com efeito, em uma abordagem sistêmica acentua-se que
sociedades simples, integradas em um sistema da mesma
natureza, têm necessidades estruturais diferentes daquelas
mais complexas.
Por isso, o direito das sociedades simples pode ser
concebido em termos relativamente concretos, fundado na
tradição e na religião, com o que concorda Habermas,
5
Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 24.
enquanto a diversidade derivada de uma complexidade mais
elevada, fruto da multiplicidade de funções sociais, exige um
direito que tem de abstrair-se crescentemente, tem, nas
palavras de Luhmann, que adquirir uma elasticidade
conceitual-interpretativa
para
abranger
situações
heterogêneas, e que deve ser modificável por meio de
decisões, em suma, tem que tornar-se direito positivo.6
A partir da perspectiva histórica, Manoel Gonçalves
Ferreira Filho7 vincula o surgimento do Estado
contemporâneo — embasado no desejo de evitação do
arbítrio dos governantes — ao estabelecimento de um
governo de leis e não de homens (como consta assinalado na
Constituição de Massachussets), afirmando o primado da
Constituição sobre as leis por ser aquela a expressão do
Justo, fruto da própria natureza das coisas, consoante
declarava Montesquieu, inspirado no jusnaturalismo.8
É certo que a consolidação do direito positivado, em
substituição ao modelo anterior, personalista, porquanto
alicerçado na pessoa do déspota, foi governada na Europa
pela crença racional na autonomia da pessoa humana e na
sua responsabilidade, pela qualidade de cidadão de que
passou a desfrutar, por influir na determinação do conjunto
de regras pelo qual aceitará a supressão de parte da sua
liberdade pessoal em favor da regulação das relações de todo
o grupo social.
A racionalidade do direito, que desempenhará a nosso
juízo papel fundamental na escolha do sistema acusatório,
toma o lugar das concepções tradicionalistas e religiosas na
chamada baixa modernidade, quando a estabilidade social
ditada exclusivamente pela força cede à estabilidade pela
razão, sem embargo da articulação de um pacto jurídico
cujos pressupostos de coesão são a ameaça das sanções
6
7
8
Luhmann, vol. I, p. 15. Habermas, ob. cit., pp. 45 e 59.
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São
Paulo: Saraiva, 1995.
Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Do Espírito das Leis.
Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São
Paulo: Abril Cultural, 1979.
externas, liberadas pelo Direito, e a suposição de um acordo
racionalmente motivado.
Por outro lado, convém remarcar que o processo de
modificação do eixo do Poder, que postulou a positivação do
Direito em virtude da sua racionalização e da possibilidade
de fixar as expectativas das pessoas, tornou-se possível em
conseqüência do grau maior de legitimação que passou a
revestir o próprio Direito.
Nestas circunstâncias o Direito tornou-se carecedor da
democracia, pois, nas condições da época, o pensamento
democrático representava, na sua expressão legislativa e de
governo, a força socialmente integradora da vontade unida
e coincidente de todos os cidadãos livres e iguais.9
Habermas chama atenção para o fato de a positivação do
Direito vir acompanhada da expectativa de que o processo
democrático de edição das normas jurídicas ―fundamente a
suposição da aceitabilidade racional das normas
estatuídas‖,10 razão por que, acrescentaria Hannah Arendt,
―sob condições de um governo representativo, supõe-se que
o povo domina aqueles que governam‖11 e as instituições
políticas petrificam-se e decaem tão logo o poder do povo
deixa de sustentá-las.
É possível enxergar na transformação produzida na
origem do constitucionalismo uma mudança do paradigma
jurídico-político, que passará, na via da racionalidade, do
humanismo e das projeções inerentes ao prestígio assumido
pelas liberdades públicas, a constituir o designado
paradigma da modernidade.
Salientar esse ponto é importante, na medida em que o
novo paradigma substituiu o anterior porque este estava em
crise, sendo de supor, para alguns, que a eventual crise do
próprio paradigma da modernidade conduza à sua superação
por outro modelo, que se convencionou chamar paradigma
9
10
11
Habermas, ob. cit., p. 53.
Idem, p. 54.
Arendt, Hannah. Sobre a Violência, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994,
p. 35.
da pós-modernidade.12 Para nós o que importa, no entanto,
é que a crise de um paradigma não se expressa pela quebra
da continuidade do conhecimento absorvido até então pelo
grupo social, mas antes leva à apropriação deste
conhecimento de forma nova, de acordo com os valores que
emergem da transformação.
Darcy Ribeiro acentua exatamente que, ao contrário da
natureza, que evolui por mutação genética, a cultura — em
cujo campo está inserido o Direito — segue evoluindo por
adições de corpos de significado e de normas de ação,
difundidos por meio da aprendizagem, de sorte a redefinir-se
permanentemente, compondo configurações cada vez mais
inclusivas e uniformes.13
O desenvolvimento do paradigma da modernidade
radicou-se no ideal democrático, de modo que nada é mais
natural que o relevo dado à Constituição entre as demais leis,
decorrente do convencimento de que aquela assegura a
divisão dos poderes do Estado, mediante sistema de freios e
contrapesos, bem como tutela os direitos fundamentais,14
conformando toda ordem jurídica.
12
13
14
A mudança do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade
(expressão cunhada por Jean François Lyotard, em 1979, in A Condição
Pós-Moderna, Lisboa: Gradiva, 1989) é discutível, sendo razoável sustentar
que a modernidade está longe de ter cumprido, no universo da sociedade
humana, integral-mente o que dela se espera. Antes, o universalismo
característico da própria racionalidade da modernidade, pelo que de
subversivo e emancipatório têm os direitos fundamentais, exige a
permanente disposição para implementá-la completamente.
Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório — Etapas da Evolução
Sociocultural, São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 45.
Eusebio Fernandez (Teoria de La Justicia y Derechos Humanos, Madrid:
Debates, 1991, p. 77) alude com clareza à existência de inúmeras
denominações para essa categoria jurídica, direitos fundamentais, tais
como direitos naturais, inatos, individuais, do cidadão, do trabalhador,
públicos, subjetivos, liberdades públicas, nem sempre afetados ao mesmo
fenômeno, concluindo que a mais adequada consiste em denominar-se
direitos fundamentais do homem, com isso manifestando-se o fato de que
toda pessoa possui alguns direitos morais pelo fato de ser pessoa e que isto
deve ser assegurado pelo Estado e pela sociedade. Mesmo a nossa
Constituição não uniformiza o tratamento designativo da categoria, ora
mencionando direitos e garantias fundamentais (Título II), ora direitos e
deveres individuais e coletivos (Capítulo I do mesmo título).
Tal é a importância da Constituição nessa ótica, porque
fixa com clareza as regras do jogo político e de circulação do
poder e assinala, indelevelmente, o pacto que é a
representação da soberania popular, e portanto de cada um
dos cidadãos. Sabemos todos, mesmo diante de pactos de
direitos fundamentais aos quais significativo número de
Estados vêm aderindo paulatinamente, que até hoje o direito
interno propugna sempre a sua sufragação, ultrapassando
em larga medida a tensão existente no passado, que concebia
distintamente, do ponto de vista político e conceitual, as
declarações de direitos e ―la Constitución propriamente
dicha, de forma a estabelecer um vínculo entre la
enunciación de grandes principios de derecho natural,
evidentes a la razón, y la concreta organización del
poder‖.15
A título de ilustração, valem as lições das políticas
brasileira e espanhola, da última extraindo-se, da doutrina
de Retortillo e Otto y Pardo, que o significado do intento de
construção do regime constitucional e do regime jurídico do
Estado, no tocante aos direitos fundamentais, depende
basicamente de como tais direitos tenham sido assumidos,
uma vez que por mais prestígio que tenham determinadas
Declarações, por forte que seja o impulso internacionalizador
que dimana da necessidade de reconhecimento internacional
dos governos, é preciso não esquecer que o ponto de partida
é a realidade própria e original do direito interno.16
Nem mesmo o paradoxo determinado em virtude de as
limitações decorrentes dos direitos fundamentais terem por
destinatário principal o próprio Estado ou de ser o Estado o
15
16
Bergalli, Roberto. ―Los Derechos Humanos en el Estado Democratico de
Derecho‖, in Justiça e Democracia, vol. II, São Paulo: RT, 1996, p. 81.
Canotilho (ob. cit., p. 19) acentua que a idéia dos direitos fundamentais
constitui a raiz antropológica essencial da legitimidade da Constituição e
do poder político, ainda quando não se possa falar em universalidade
absoluta de alguns valores, muito embora o processo comunicativo
intersubjetivo radique dimensões de princípio que implicam
ordinariamente ―comensuração universal‖.
Retortillo, Lorenzo Martín e Otto Y Pardo, Ignacio. Derechos
Fundamentales y Constitución. Madri: Cuadernos Civitas, 1988.
devedor das providências inerentes à implementação dos
direitos fundamentais de cunho social, afeta a
imprescindibilidade de a ordem interna sufragar tal
categoria jurídica, em nível normativo superior, na
Constituição, sob pena de cancelar sua validade pela perda
da dimensão prática de efetividade.
A assunção da Constituição como o locus de onde são
vislumbrados os direitos fundamentais compartilha,
portanto, a tese, desenvolvida entre outros por Ferrajoli, da
existência de um nexo indissolúvel entre garantia dos
direitos fundamentais, divisão dos poderes e democracia, de
sorte a influir na formulação das linhas gerais da política
criminal de determinado Estado.17
Veremos, no tópico pertinente a Direito, Processo e
Democracia, como se articulam e interpenetram estas
diferentes instituições, bastando, por enquanto, lembrar que
o espaço comum democrático é construído pela afirmação
do respeito à dignidade humana e pela primazia do Direito
como instrumento das políticas sociais,18 inclusive a Política
Criminal.
Nosso estudo inicial está centrado na tradicional divisão
de cunho exclusivamente metodológico19 dos direitos
fundamentais em três categorias: as liberdades públicas; os
direitos sociais; e os direitos de solidariedade, cujo
desenvolvimento será apreciado no próximo tópico. Reiterase aqui o aludido a princípio, tal seja, que a persecução penal
17
18
19
Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 10.
Binder, Alberto M. Política Criminal: de la formulación a la praxis,
Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 53.
Antonio Augusto Cançado Trindade relembra o fato de os direitos
fundamentais fazerem parte de uma grande categoria comum, de
características universal e integral, de maneira que estão interligados e são
interdependentes, condicionando o sucesso concreto da Constituição à
condição de ser humano digno à sua implementação conjunta. Por isso,
devem dar lugar a uma interpretação funcional interdependente e somente
do ponto de vista metodológico os direitos fundamentais devem ser
apreciados em grupos de gerações separados (Tratado de Direito
Internacional dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris, 1997).
se expressa através do conjunto de atividades estatais
juridicamente vinculadas, limitando-se o poder do Estado
em prol da garantia dos direitos fundamentais, assim
referenciados a todas as pessoas, inclusive aos acusados da
prática de infrações penais.
Antecipando, em homenagem à necessária clareza, é
valioso perceber como a doutrina de um modo geral
relaciona os direitos fundamentais.
José Alfredo de Oliveira Baracho indica um rol de
direitos fundamentais, que enumera, explicitando os direitos
de locomoção, manifestação do pensamento, reunião,
associação, culto, direitos à atividade profissional e
econômica e ao matrimônio,20 enquanto José Eduardo Faria,
em síntese iluminada, sublinha que ao longo dos dois
últimos séculos consolidaram-se justamente três gerações de
direitos humanos, denominação que prefere, assim dispondo
sobre eles:21
―Os relativos à cidadania civil e política,
concebidos, reconhecidos e protegidos para um
homem abstrato, destacando-se pelo direito às
liberdades de locomoção, de pensamento, de
religião, de voto, de iniciativa, de propriedade e de
disposição da vontade; os relativos à cidadania
social e econômica, baseados não mais numa
concepção de homem visto como ente genérico,
mas encarado na especificidade de sua inserção nas
estruturas produtivas, e que se expressam pelos
direitos à educação, à saúde, à segurança social e ao
bem-estar tanto individual quanto coletivo
concedidos a classes trabalhadoras; e, por fim, os
relativos à cidadania ‗pós-material‘, que se
caracterizam pelo direito à qualidade de vida, a um
20 Baracho, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania: A Plenitude
da Cidadania e as Garantias Constitucionais e Processuais, São Paulo:
Saraiva, 1995, p. 7.
21 Faria, ob. cit., p. 42.
meio ambiente saudável, à tutela dos interesses
difusos e ao reconhecimento da diferença, da
singularidade e da subjetividade.‖
Norberto Bobbio cita ainda os direitos de quarta
geração,22 determináveis em vista de carecimentos e
interesses específicos, tais como as reivindicações referentes
ao tratamento da pesquisa biológica. Esta última categoria,
no entanto, necessita de uma maior investigação científica
para fixar claramente as fronteiras com os denominados
direitos fundamentais de terceira geração.
Finalmente, convém explicitar que os limites do
trabalho que se desenvolve não incluem a determinação da
natureza jurídica dos direitos fundamentais. Pretende-se
tão-só definir no continente da obra um conteúdo mais
modesto, contudo importante, que é a medida do princípio
ou sistema que realiza a estrutura do processo penal em
confronto com as principais leis processuais penais editadas
principalmente depois de 1988, época da promulgação da
vigente Constituição da República.
Porém, não se deve descuidar do estudo da natureza e
fundamento destes direitos, uma vez que se projetam nas
vias da persecução penal, impondo pelo menos sublinhar que
a doutrina constitucional lhes dedica intenso labor, oscilando
entre baseá-los, de acordo com Böckenförde,23 numa
tentativa de estabelecimento de uma teoria geral, talvez
incompleta mas bastante aproximativa, a partir das
perspectivas liberal ou do Estado de Direito burguês,
institucional,24 valorativa, funcional-democrática e social,
22
23
24
Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6.
Böckenförde, apud Gavara de Cara, Juan Carlos. Derechos Fundamentales
y Desarrollo Legislativo: La garantía del contenido esencial de los
derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1994, pp. 75-79.
Vale dizer, precisando termos, especialmente quando utilizados de forma
polissêmica, como ressalta Gavara de Cara (ob. cit., p. 89), que a expressão
instituição tem para o nosso estudo o significado que lhe atribui Miaille
(ob. cit., p. 98), qual seja, de conjunto coerente de normas jurídicas
nem sempre necessariamente excludentes.
Por razões que mais adiante serão expostas, nos
interessará de perto a abordagem funcional-democrática,
que certamente se conjugará com a valorativa e a
institucional. Antes releva visualizar a histórica conformação
dos direitos fundamentais, cuja inegável ligação com o tema
proposto mais adiante poderá ser observada.
2.2. Fontes
Fundamentais
e
Antecedentes
dos
Direitos
As subseqüentes mutações operadas na concepção e
conteúdo dos direitos fundamentais demandam sua
apreensão no contexto histórico, ao qual com freqüência nos
referiremos, de sorte a viabilizar a observação e inserção em
seu adequado ambiente dos paradigmas estabelecidos e fixar
as circunstâncias determinantes das suas alterações.
Percorrer este caminho é necessário, na medida em que o
sistema processual vigente há de, além de receber os fluídos
da legitimação da própria ordem jurídica, predicar-se como
opção legítima, por si só, para adjudicar soluções
imperativas, com força de coisa julgada, aos conflitos de
interesses de natureza penal ou a resolver os casos penais.
Por isso, permitimo-nos, a princípio, a apropriação do
esquema histórico de Manoel Gonçalves para desenvolver
resumidamente o tema da evolução dos direitos
fundamentais.
Com efeito, a doutrina dos direitos fundamentais
desponta já na Antigüidade, fundada, como é certo, na
consciência de um Direito Superior, não estabelecido pelos
homens. Manoel Gonçalves a tal propósito aponta a peça
Antígona, de Sófocles, e chama ainda a atenção para as
lições de Cícero, que soube, em Da República, bem sintetizar
a idéia da predominância da lei sobre a vontade do
relativas a um mesmo objeto, abrangendo uma série de relações sociais
unificadas pela mesma função.
soberano.25
É certo que a cultura escravista helênica não pode
fundamentar um preceito absoluto de igualdade, inerente ao
conceito de direitos fundamentais, pois que relativo a todos
os homens, sem qualquer distinção, mas não se deve negar
que a partir da Grécia são envidados os primeiros
empreendimentos filosóficos cujo objetivo consistiu em lidar
com esta situação de princípios ideais.
Em Roma, salienta Pedro Pablo Camargo,26 com o
florescimento da filosofia estóica é que se forja una idea
universal de la humanidad, es decir, de la igualdad esencial
de todos los hombres en cuanto a la dignidad que
corresponde a cada uno.27
Foi o cristianismo, contudo, que, sem dúvida, iniciou a
era da promoção dos direitos fundamentais, evidentemente
não liberado das contradições históricas determinadas pelo
modo de produção cujo embrião já se encontrava na
sociedade feudal. Disso decorre que a doutrina sofreu forte
impacto em face da projeção das declarações de licitude
condicional da escravidão, principalmente de índios e
negros, e da inflição de tormentas. O pensamento básico da
igualdade de todas as pessoas perante Deus enseja, todavia, a
era del resguardo a los derechos fundamentales del hombre
con base en la dignidad de la persona humana y su destino
trascendente,28 de tal sorte que Tomás de Aquino29 e sua
25
Cícero, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. Rio de
Janeiro: Ediouro. Sendo a lei o laço de toda sociedade civil, e proclamando
seu princípio à comum igualdade, sobre que base assenta uma associação
de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos?, perguntava-se
o filósofo.
26 Camargo, Pedro Pablo. La Proteccion Juridica de Los Derechos Humanos
y de La Democracia en America, México: Excelsior, 1960, p. 6.
27 Idem.
28 Idem.
29 A importância de Tomás de Aquino é salientada por Antonio Truyol y Serra
(Los Derechos Humanos, Madrid: Tecnos, 1994, p. 12), que destaca a
sensível inclinação filosófica no sentido do reconhecimento de que todo
homem correspondia à imagem e semelhança de Deus, como recurso à
proclamação de que mesmo os infiéis possuíam um direito natural que os
punha em tese a salvo do suposto direito de conquista dos cristãos.
escola retomam o pensamento doutrinal.
A partir da segunda metade da Idade Média,
difundiram-se documentos de incipiente reconhecimento
dos direitos fundamentais — forais e cartas de franquia —,
merecendo especial destaque a Magna Charta Libertatum,
outorgada por João sem Terra aos barões, na Inglaterra, em
1215, cujo caráter estamental não impediu, depois, a
ampliação das suas disposições a favor de outras categorias
de súditos. No mesmo ano, o Papa Inocêncio III proibia, no
Concílio de Latrão, as ordálias, reduzindo-se, embora ainda
insuficientemente para os padrões atuais, o sofrimento
causado pelo modo de persecução e expiação das infrações
penais.30
Também na Baixa Idade Média, nas comunas e burgos
livres da Europa Ocidental, difundiu-se a consciência de
direitos básicos, relacionados à liberdade do indivíduo e à
condição não estamental em que se viam inseridos, na
prática, nesses lugares, em oposição radical à fragmentação
social e às servidões feudais. Conforme Fábio Konder
Comparato, as cidades medievais eram verdadeiros centros
de libertação: a condição servil perdia-se, com a estada
ininterrupta do servo no interior do burgo durante ano e
dia.31
Convém sublinhar que a forte ligação entre a Igreja e o
Estado, observada durante boa parte da Idade Média como
fator de certo modo condicionante da estabilidade dos
grupos sociais, acabou sendo solapada pelos movimentos de
tolerância religiosa, decorrentes da pluralidade que
naturalmente se seguiu à Reforma, sendo, pois, a liberdade
religiosa, fruto da quebra do vínculo entre Estado e Igreja, o
30 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio,
Barcelona: Bosch, 1994, p. 28. Saliente-se, todavia, que coube também a
Inocêncio III a iniciativa de introduzir de modo oficial na Igreja o
procedimento penal de forma inquisitória, procedimento mais tarde
regulado em alguns decretos de Bonifácio VIII (Pietro Fredas, na
introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de Eugenio Florian,
Bogotá: Temis, 1990, p. 7).
31 Comparato, Fábio Konder. Para Viver a Democracia, São Paulo:
Brasiliense, 1989, p. 40.
primeiro grande passo dado na direção do reconhecimento
dos demais direitos fundamentais da primeira geração,
assinalados no Petition of Right (1628), no Habeas Corpus
Act (1679), nas declarações de independência dos Estados
Unidos da América e de Direitos de Virgínia (1776), além da
declaração francesa (1789).
Do Direito inglês, na vanguarda, e dos iluministas,
cumpre frisar, vieram as principais inspirações das
revoluções americana e francesa, no tocante ao estatuto das
liberdades que ousaram exprimir à época. Salienta Manoel
Gonçalves o papel que os ingleses e, depois deles, os norteamericanos desempenharam na história do desenvolvimento
da doutrina dos direitos humanos, e que, por força das
disposições das Declarações, que ensaiaram o novo modelo
constitucionalista, afinal seguramente presente nos séculos
seguintes, este papel influenciou a Constituição de Cádiz
(1812) e a declaração de independência da Bélgica (1831):32
―‗Common law‘, ―rule of law‖, ―due process of
law‖, ―equal protection of the laws‖, essas
expressões e as idéias que exprimem passaram com
os ingleses para a América do Norte. Essa herança
não foi esquecida, ao contrário. Os tribunais
americanos, e em primeiro lugar a Suprema Corte,
souberam usar dessas fórmulas que flexibilizam as
decisões, dando uma importante contribuição para
o desenvolvimento da doutrina dos direitos
fundamentais, nos séculos XIX e XX.33‖
É bem verdade que os predicados históricos de uma
época única, quando burguesia e proletariado se uniram para
retirar do poder a classe aristocrática dominante, acabaram
32
33
Truyol y Serra, ob. cit., p. 17. Ada Grinover (―Direitos e Garantias
Individuais‖, in Constituição e Constituinte, Faoro, Raymundo (coord.).
São Paulo: RT, 1987, p. 123) relembra que foi a Constituição Brasileira do
Império — 1824 que pela primeira vez no mundo ofereceu um rol de
direitos e garantias individuais, assim concretizadas.
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, ob. cit., p. 13.
por fortalecer a idéia dos direitos fundamentais, essenciais à
dignidade da pessoa, com marcantes características
individualistas, configurando, nessa atmosfera, a primeira
geração de direitos humanos. Os direitos fundamentais
sofreram neste momento de inicial positivação a influência
da ideologia peculiar ao direito privado, cuja consistência
estava determinada pela idéia de direito subjetivo.
O padrão de direito subjetivo está ditado por uma
compreensão funcional, em virtude da qual se aceita que este
direito estabeleça os limites em cujo interior um sujeito está
justificado a empregar livremente a sua vontade.34
Não se discute que a fixação do direito subjetivo, para
assegurar um grau mínimo de aceitação social, indispensável
a qualquer tempo e mais ainda em épocas politicamente
conturbadas, suponha um processo legislativo democrático,
capaz de atender às expectativas dos membros da sociedade
a respeito do entendimento possível — consenso — das
pessoas sobre as regras de convivência.
A moldura política na qual seriam gerados os direitos
fundamentais nessa primeira etapa, apesar do predominante
pensamento democrático, cuja virtude para o âmbito do
nosso estudo está em determinar a ―legitimidade‖ como
pressuposto para o exercício do poder, em quaisquer das
suas manifestações (aí incluindo o exercido pelo Judiciário),
concebia o indivíduo como cidadão, ou o cidadão como o
indivíduo visado pela ordem jurídica, por meio de uma
percepção nitidamente ideológica.
Ocorre que, mesmo na Europa, havia clara distinção
entre o grupo de pessoas juridicamente autorizadas a
participar do processo político e o grupo maior, formado por
todos os demais integrantes da sociedade, excluídos do jogo
democrático de várias maneiras (as mulheres e os
analfabetos, por exemplo, não participavam de nenhuma
34
Habermas, ob. cit., p. 113. Vale destacar que, apesar da propalada idéia
pertinente ao conceito e alcance do direito subjetivo, visto antes, trata-se de
dogma da tradição liberal a crença dos direitos de primeira geração ser
exercitados contra o Estado, como muito bem salientou Comparato (ob.
cit., p. 47).
forma dos pleitos eleitorais).
Assim, o direito positivo que resultava da ação da
instância legislativa, referido ao direito privado, não podia
satisfazer as exigências das sociedades complexas e sequer
atendia satisfatoriamente ao suposto da legitimidade,
incapaz que era de integrar socialmente as grandes massas
que acorreram às cidades, como conseqüência do processo
de industrialização.
Haveria de acontecer alguma reação, até porque,
reconhece Habermas, ―a fonte de toda legitimidade está no
processo democrático da legiferação; e esta apela, por seu
turno, para a soberania do povo‖,35 muito mais presente nos
discursos do que na realidade.
Os séculos XIX e XX, portanto, por força da ascendência
social e econômica da burguesia e o incremento tantas vezes
desumano das condições de trabalho da massa operária,
classe social conseqüente às mudanças derivadas da
Revolução Industrial e do modo capitalista de produção e
divisão dos bens, testemunhou conflitos intestinais que
colocaram frente a frente a burguesia e o proletariado, dando
origem a conquistas que se refletiram em uma nova ordem
de direitos fundamentais, a partir da universalização, ainda
que lenta, do sufrágio político e da liberdade de associação,
precursora dos sindicalismos.36
35
36
Habermas, ob. cit., p. 122. Comparato novamente sublinha o conteúdo
difuso do povo, entidade compreendida abstratamente como algo
monolítico e uniforme, dotado das mesmas aspirações e vivendo em
semelhantes condições na sociedade (ob. cit., pp. 61-82). Como se observa
no desenvolvimento do tópico, na realidade as classes sociais acabam por
ocupar concretamente, no processo de reconhecimento formal dos direitos
fundamentais de segunda e terceira gerações, o lugar do povo e, na medida
em que lhes pertence a soberania, quer na perspectiva do exercício direto
do poder, quer vislumbrando-se, em virtude de conhecido desvio
semântico, como exercício em seu nome e em seu prol, é necessário
recordar que igualmente o esquema relativo aos poderes inerentes ao
sistema penal não lhes devem ser opressivos mas sim tutelares.
Norberto Bobbio anota, destacadamente, que: A partir do momento em
que o voto foi estendido aos analfabetos tornou-se inevitável que estes
pedissem ao Estado a instituição de escolas gratuitas... Quando o direito
de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos que nada
Trata-se, pois, dos direitos fundamentais de segunda
geração, referidos anteriormente, e que, malgrado períodos
de intensa repressão política nos principais Estados
europeus (França de Napoleão III e Alemanha de
Bismarck),37 impuseram-se indelevelmente. Colaborou para
isso a consideração em virtude de que ―os direitos
fundamentais não são a expressão nem o resultado de uma
elaboração sistemática, de caráter racional e abstrato‖ mas
sim, como alude Denninger, ―respostas normativas
histórico-concretas às experiências mais insuportáveis de
limitação e risco para as liberdades‖.38
A transformação acontecida no seio do próprio
paradigma da modernidade, gerado a partir das liberdades
públicas cujo beneficiário, de uma maneira geral, era
exclusivamente o cidadão (identificado como homem
proprietário), demonstrou a erosão da matriz ideológica
individualista e assinalou a substituição, no Continente
Europeu, do Estado Liberal de Direito pelo Estado Social de
Direito.39
Aqui cabem parênteses para salientar que, do mesmo
modo que se prestigiou o papel da Igreja Católica na
eliminação das ordálias, não se pode furtar de registrar a
importância das Igrejas na disseminação das idéias da nova
categoria de direitos fundamentais, principalmente em
consideração às encíclicas Rerum novarum (Leão XIII, 1891)
e Quadragesimo anno (Pio XI, 1931), sem prejuízo das
importantes manifestações de Kolping, von Ketteler e da
União Internacional de Estudos Sociais, fundada em 1920.40
tinham... a conseqüência foi que se começou a exigir do Estado a proteção
contra o desemprego (O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras
do Jogo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Política, 1992, p. 35).
37 Truyol y Serra, ob. cit., pp. 20-21.
38 Denninger, Erhard, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos
Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio: Derechos
Humanos y Constitucionalismo en la Actualidad, Madrid: Marcial Pons,
1996, p. 40.
39 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo
ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 15.
40 Truyol y Serra, ob. cit.
A evolução dos direitos humanos naturalmente refletiu,
no intervalo entre as duas grandes guerras do século XX, as
tensões e expectativas geradas de forma exacerbada pelo
autoritarismo político, pelo totalitarismo e domínio
colonialista eurocentrado, fatores extremamente reforçados
pela expansão capitalista e a reação do regime socialista
implantado na antiga União Soviética.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e as explosões
atômicas em Hiroshima e Nagasaki, dias depois da
aprovação da Carta da Organização das Nações Unidas
(respectivamente 26 de junho e 6 de agosto de 1945),
expandiu-se a consciência, inspirada pelos movimentos de
libertação, de que entre os direitos fundamentais
encontrava-se o de autodeterminação dos povos, assim
enunciado nas várias Declarações, fundando, por sua vez, a
era das emancipações políticas que levaram as ex-colônias
(conjunto a partir de então conhecido como Terceiro Mundo)
a se circunscreverem, na sua maioria, ao âmbito sociopolítico
da denominada Civilização Ocidental, com a promessa de
reconhecimento dos direitos fundamentais da primeira
geração.
De se notar que os novos Estados careceram da adoção,
implementação
ou
desenvolvimento
dos
direitos
fundamentais
da
segunda
geração,
prestacionais,
normalmente vinculados a um tipo de Estado de bem-estar
social, de sorte que as suas populações passaram a desfrutar
no ambiente internacional da condição de ―proletariado
exterior‖,41 salvo, é claro, aquela minoria beneficiada da
situação colonial, cuja posição internamente veio a suceder.
Particularmente no Brasil a sucessão de regimes
autoritários, com a conseqüente supressão sistemática dos
direitos fundamentais, desmoraliza a tese de que a mera
41
Truyol y Serra, ob. cit., p. 26. As declarações de direitos fundamentais, na
América Latina, pela tradição autoritária dos governos, são muito mais
peças retóricas que instrumentos de transformação social. Comparato
assinala, com razão, que os direitos fundamentais nunca fizeram parte do
nosso patrimônio cultural, mas sempre existiram como um elemento
estranho, senão estrangeiro na vida de nossas instituições sociais (p. 38).
enunciação destes direitos, em Declarações a que o Estado
brasileiro adere ou no seio da própria Constituição, embora
necessária, seja suficiente para alargar a sua efetiva
imposição para além do círculo populacional no meio do
qual já são efetivos, tal seja, entre as classes possuidoras e as
pessoas de raça branca.42
Sem a pretensão de estabelecer uma explicação
definitiva, vale destacar que a democracia não marcou a sua
presença de modo sólido nos novos Estados, o que se
argumenta para demonstrar mais uma vez o vínculo entre
democracia e direitos fundamentais.43
É preciso que se saliente que a cultura democrática,
como fator preponderante para a disseminação da
importância política e jurídica dos direitos humanos,
padeceu mesmo onde, como no Brasil, foi implantada a
República. Se uma educação para os direitos fundamentais,
substrato da cultura democrática, não é implementada, como
podem sê-lo os mencionados direitos, individuais ou sociais?
A contaminação das liberdades não logra êxito se depender
apenas da ação do Estado, que visa limitar ou orientar de
modo imperativo, sendo o caso de fazer coro com Mead para
sublinhar que ―aos poderes públicos compete uma
importante função na defesa das liberdades, porém para
que sua afirmação e tutela não sejam ilusórias ou precárias
é necessário que o programa emancipatório dos direitos
humanos
se
traduza
em
vigências
coletivas
majoritariamente compartilhadas‖.44
As organizações internacionais e entidades não
governamentais de proteção aos direitos fundamentais de
todas as categorias (por exemplo, a Organização
42 Comparato, ob. cit., p. 51.
43 A reversão desse clima social francamente desfavorável à vivência dos
direitos humanos, na América Latina, só pode iniciar-se, a meu ver, com o
estabeleci-mento de um processo — necessariamente lento e não isento de
percalços — de instituições adequadas de democracia direta ou
participativa. Comparato, ob. cit., p. 43.
44 George Hebert Mead, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos
Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, p. 44.
Internacional do Trabalho — OIT) exerceram, a partir de
meados deste século, com base na traumática experiência
das guerras e do período intercalado, a função de difundir a
implementação e fiscalização dos mencionados direitos,
conjunto ao qual a sociedade tecnológica foi aos poucos
incorporando aqueles relacionados com a qualidade de vida,
direitos fundamentais da terceira geração.
Da relevância das entidades internacionais pode-se
dizer que as grandes guerras deste século desnudaram a
insuficiência dos meios internos de resguardo dos direitos
fundamentais e, simultaneamente, romperam a crença na
efetividade dos precários controles internacionais existentes.
Apesar disso, e muito por conta dos genocídios que as novas
tecnologias de informação noticiam vivamente, desenvolveuse a lógica básica do reconhecimento planetário do valor
único da pessoa45 e a consciência de que a neutralidade
política e ideológica do direito internacional pode acabar por
permitir todas as formas de autoritarismo no interior dos
Estados.
Daí decorre, como afirma Pureza, que da
transnacionalização
da
opressão
deve
advir
a
transnacionalização da resistência,46 quer pela exigência da
legitimidade democrática, em todos os seus aspectos —
incluindo aí a Justiça — para o reconhecimento internacional
dos Estados e de seus governos, quer porque a cidadania não
se resume mais apenas na titularidade de direitos cuja fonte
seja o próprio Estado, mas passa a alcançar aqueles gerados
nos pactos internacionais.
Assim, ao menos no aspecto da fiscalização, com
repercussão inevitável em toda sorte de relações
internacionais, os tribunais e cortes internacionais ganham
destaque, reafirmando a concepção dos direitos
45
Pureza, José Manuel. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el
Tercer Milenio: Derecho Cosmopolita o Uniformador, Madrid: Marcial
Pons, 1996, p. 125.
46 Pureza, José Manuel. Ob. cit., p. 123.
fundamentais como tema global,47 limite à subjetividade
discricionária das soberanias, conforme Celso Lafer.48
Ademais, concebendo-se a democracia como palco
adequado para os direitos fundamentais, como se antecipa
do próximo tópico, e incorporando-se a consciência de que
uma sociedade livre e democrática não pode ser pensada
como um sistema fechado, mas sim aberto à aparição de
novas necessidades, dependentes tantas vezes da ineficácia
da difusão do progresso tecnológico ou da ausência de
compromisso ético, é preciso admitirmos a possibilidade de
aparição de novas categorias reivindicativas, prenormativas e
axiológicas aspirantes à condição de direitos fundamentais.49
É certo, atualmente, que o liberalismo e o
neoliberalismo,50
enquanto
filosofias
econômicas
predominantes, assumiram de forma clara e solene a
doutrina dos direitos fundamentais da primeira geração, até
porque, se nesta faceta representam a garantia das
liberdades públicas, acabam também por construir o suporte
normativo da liberdade econômica inspiradora das referidas
47
Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional
Internacional, São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 249.
48 Celso Lafer, apud Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito
Constitucional Internacional, p. 250.
49 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo
ante el Tercer Milenio, p. 15.
50 É possível distingüir-se o neoliberalismo do liberalismo basicamente pelo
fenômeno da globalização dos mercados, peculiar ao primeiro, que,
superando os modelos do capitalismo mercantilista e concorrencial da fase
de transição do feudalismo, ao tempo em que minimiza a intervenção
estatal, salvo a punitiva, de controle dos sindicatos e da política monetária,
reduz a importância do Estado-nação, consoante anteriormente
mencionamos. Convém, a propósito, ler El Neoliberalismo en el
Imaginario Juridico (Correas, Oscar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, pp. 1-15).
Saliente-se que o neoliberalismo descende do pensamento do austríaco
Friedrich Hayek, inicialmente divulgado na obra O Caminho da Servidão,
em 1944, na qual se faz vigorosa crítica ao Estado de bem-estar social.
Depois, Hayek fundou um grupo, do qual participaram, entre outros,
Milton Friedman e Karl Popper, cujo propósito consistiu em combater o
keynesianismo e o solidarismo reinantes depois da II Grande Guerra,
objetivo alcançado em parte logo em seguida à crise do mundo capitalista
avançado, em 1973 (Anderson, Perry. ―Balanço do Neoliberalismo‖, in Pósneoliberalismo. Emir Sader (Coord). São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 23).
doutrinas,51 cumprindo, pois, à sociedade humana perseguir
por igual, incessantemente, como faz desde os primórdios, a
felicidade, conforme a máxima de inspiração iluminista
cunhada na Revolução Francesa: liberdade, igualdade e
fraternidade.
Talvez caibam parênteses: a partir do episódio
conhecido como 11 de setembro, atentado terrorista a Nova
York (EUA), mesmo os direitos fundamentais de primeira
geração estão sendo colocados em questão pelos poderosos
grupos liderados pelo unilateralismo militar norteamericano. Até o momento de conclusão dessas linhas
vigorava o mais completo desrespeito aos direitos
fundamentais de pessoas presas no Afeganistão, Iraque e até
nos próprios Estados Unidos, suspeitas da prática de
terrorismo.
Não é fácil a tarefa. Como de início advertimos, aceita a
teoria dos paradigmas, há quem postule, atualmente, para os
direitos fundamentais, novos rumos derivados da mudança
do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade.
Desse modo, à condição essencial dos citados direitos,
que alicerça sua vocação de eternidade quando incorporados
à ordem jurídica, opõe-se a concepção funcionalista, pelo
que predomina a consideração institucional, definida como
conjunto de fins objetivamente estabelecidos e interpretados
de acordo com as condições histórico-sociais que informam o
processo aplicativo da norma constitucional;52 além disso, e
talvez conseqüentemente, a deformalização tem sido exigida
pelos que reclamam uma hermenêutica constitucional que
confira maior fluidez e flexibilidade aos instrumentos
jurídicos dispostos na Constituição; finalmente, de tudo
51
52
É bem verdade que o gozo pleno dos direitos fundamentais pressupõe um
regime político compatível. No caso, diria Cícero, a democracia, que, se não
é perfeita, é o menos imperfeito dos regimes. Todavia, Bobbio (Liberalismo
e Democracia, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 92) giza que a relação entre
liberalismo e democracia foi sempre uma relação difícil: ―nec cum te nec
sine te‖.
Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo
ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 17.
decorre a pretensão do sistema constitucional como
autoreferente, autopoiético, que se constitui, reproduz e
explica por suas próprias pautas internas, caracterizando-se
por pretender-se estável.
A seu tempo, cada um dos novos rumos será analisado,
em conformidade com o tema eleito, tal seja, o sistema
processual acusatório. Porém, não custa reforçar que a
defesa dos direitos fundamentais como um todo representa
hoje, como assevera Eusebio Fernandez,53 ―auténtico reto
moral de nuestro tiempo, la piedra de toque de la justicia
del Derecho y de la legitimidad del Poder‖, acrescentando
que se trata do ―procedimiento garantizador de la dignidad
de los seres humanos contra todo tipo de alienación y
manipulación‖,54 na via da instituição de uma ética
antropológica da solidariedade.
Tal é assim a importância das Constituições, situadas
como regras supremas de poder, de modo que pela
Constituição são conectados indissoluvelmente os postulados
da cidadania, entendida como capacidade de plenamente
gozar os direitos fundamentais (cidadania política e social),
aos princípios constitucionais do processo, assegurando-se a
prevalência da liberdade e da democracia,55 pelas quais,
sustenta vigorosa corrente de pensamento, os direitos
fundamentais poderão se vivificar.56 Isso é salientado por
Baracho, no plano jurídico e no político.
2.3. Direito, Processo e Democracia
A idéia dos direitos humanos e a da soberania do povo
determinam até hoje a autocompreensão normativa de
53
54
55
56
Fernandez, ob. cit., p. 81.
Idem.
Baracho, ob. cit., p. 9.
Renove-se o magistério de Pedro Pablo Camargo (La Proteccion Juridica,
ob. cit.): Se ha dicho que la lucha por el reconocimiento de los derechos
fundamentales es la reacción contra la persecución, la intolerancia y el
fanatismo periódicos, que en mayor o menor grado han caracterizado la
vida de todos los pueblos.
Estados de direito democráticos. Assim inicia Habermas sua
extensa exposição do princípio democrático e suas
implicações para o direito,57 ao que podemos acrescentar
que, em relação ao Sistema Penal, mais do que para qualquer
outra área afetada pelas emanações da ordem jurídica, a
existência de uma ligação entre direitos fundamentais e
poder legítimo, expressão da soberania popular, está
radicada na vigência da democracia constitucional.
A identificação clara do vínculo direito—processo—
democracia terá pertinência no estudo por possibilitar a
concreta determinação dos critérios de fixação de validade
das normas jurídicas pelas quais estrutura-se e funciona o
sistema processual. Afinal, sob que condições é possível
afirmar que determinada regra, extraída do Código de
Processo Penal, é válida? A questão que se coloca aqui é
como formular esta indagação para cada caso concreto e
também em termos de validade social.
Assim, colaboram para esta compreensão normativa
tanto a perspectiva de Habermas, de verificação das
condições de integração em um ordenamento jurídico, quer a
visão da validade como cumprimento social do direito, quer
ainda a idéia de pertencerem as normas sistêmicas ao
conjunto que assegurará a legitimidade da intervenção
judicial, na única forma admissível, que é a de declaração
judicial do direito conforme o próprio direito posto em nível
normativo superior (da Constituição).
Paralelamente, é possível acentuar que as instituições
que compõem o sistema penal, de modo harmônico ou não,
produzem uma política criminal, tanto quanto as forças
estatais e sociais são responsáveis por outras políticas
básicas (de educação, saúde etc.).
Nós veremos de passagem como a operação de um
sistema processual ao arrepio da Constituição faz parte de
uma política criminal precisa, baseada em motivações de
eficiência repressiva, mas agora é importante salientar que
também a edificação de qualquer política criminal em um
57
Habermas, ob. cit., p. 128.
estado democrático está condenada à incoerência normativa
se for desenvolvida à margem do nível jurídico superior e
não considerar que o respeito à dignidade humana é o
princípio e fundamento do sistema político democrático,
único espaço comum para qualquer pacto democrático.58
Por isso, cabe assinalar que na medida em que o
processo penal concretamente instrumentaliza o direito
penal, visando conceder-lhe a efetividade possível dentro das
pautas éticas priorizadas pelos direitos fundamentais,59 e
considerando que entre os fundamentos propostos a respeito
dos mencionados direitos vige também a noção de que vários
deles estão intimamente relacionados com a democracia,60 é
necessário definir um espaço de consenso doutrinário sobre
este tema peculiar.
Sobre o assunto nunca é demais recordar a lição de
Cândido Rangel Dinamarco, em relevo:61
―O processualista moderno adquiriu a
consciência de que, como instrumento a serviço da
ordem constitucional, o processo precisa refletir as
bases do regime democrático, nela proclamadas; ele
é, por assim dizer, o microcosmo democrático do
Estado de direito, com as conotações da liberdade,
igualdade e participação (contraditório), em clima
de legalidade e responsabilidade.‖
Por essa razão, é válido e imperioso afirmar que no
momento em que o direito se transforma num sistema de
distribuição de recursos escassos, vigora uma espécie de
tutela legal, geradora de um modelo de justiça social,62 tarefa
58
59
Binder, Política Criminal: de la formulación a la praxis, p. 50.
Grinover, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: As
Interceptações Telefônicas, 2ª ed. São Paulo: RT, 1982, p. 20.
60 Gavara de Cara, ob. cit., p. 78.
61 Dinamarco, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 3ª ed. São
Paulo: Malheiros, 1993, p. 27.
62 Campilongo, Celso Fernandes. Direito e Democracia, São Paulo: Max
Limonad, 1997, p. 23.
que é, acrescenta Celso Campilongo, insofismavelmente
política.63
Daí que igualmente as demandas inerentes ao sistema
penal, derivado do sistema jurídico, acabam por sofrer
influência ou pressão dos grupos sociais, por meio dos
mecanismos de operação do sistema político, pressões cujo
resultado pode ser socialmente diferenciado consoante o
paradigma político-jurídico adotado, refletindo diretamente
sobre as aspirações de democratização do processo enquanto
instrumento. Em regime autoritário nem todas as demandas
são expostas e o critério de atendimento não é uniforme e
impessoal. Por óbvio, o sistema penal é chamado a ―calar‖ os
dissidentes e toda classe de pessoas que se insurgem contra a
arbitrária distribuição de bens e valores.
Antes de procurarmos definir o que é democracia,
intuindo que a sua funcionalidade depende muito da
vigência da regra da maioria, é conveniente explicitar que tal
regra não significa uma tirania da maioria e assim não se
sobrepõe à validade universal e permanente dos direitos
fundamentais. Os direitos fundamentais são reconhecidos, é
certo, em um contexto espaço-temporal definido, porém,
atualmente, com vocação de eternidade,64 como frisamos em
um instante anterior. A regra da maioria consiste em:
―uma técnica rápida de tomada de decisões
coletivas que maximiza a liberdade individual e
assegura a ampla e igual participação política dos
cidadãos, aproximando governantes e governados por
meio de uma prática social de legitimação eventual,
finita no espaço e no tempo, que sujeita as decisões à
63 Idem.
64 Campilongo (ob. cit., p. 53) adverte que é ridículo submeter os direitos
fundamentais ao escrutínio do maior número. A regra da maioria tem um
limite claro: não é legítima — nem ela nem nenhuma outra —, para
condicionar, suprimir ou reduzir os direitos essenciais da pessoa humana.
A autêntica democracia realiza-se com a atribuição do poder soberano à
maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais da pessoa humana
(Comparato, ob. cit., p. 79).
contínua revisão e mantém a sociedade unida‖65.
Alertar para isso é não perder de vista e não alienar a
importância de definir a democracia usando bitolas largas,
potencializada que está a alienação em razão das opções
políticas do Estado contemporâneo.
Em tempo de globalização, vale dizer que o
encaminhamento das demandas democráticas vicejadas no
plano dos direitos fundamentais de segunda e terceira
gerações, especialmente nos países denominados periféricos
ou do Terceiro Mundo, deixa aos poucos as pautas políticas,
diminuindo conseqüentemente o intervencionismo e
dirigismo estatal — retorna-se à era do Estado mínimo —, de
sorte a reduzir o direito público praticamente ao direito
penal, com o restabelecimento inevitável de um tipo de
Estado semelhante ao conhecido estado gendarme.
Sem, por enquanto, vincular diretamente os novos
tempos e a cultura que os inspira à estrutura processual
penal em concreto, vale insistir em sublinhar a tendência
política da sociedade atual, porque a adoção de uma cultura
de Estado mínimo, de Estado penal ou simplesmente
punitivo, tendo como sua única responsabilidade o
monopólio legítimo do emprego da força, produz um tipo
específico de política criminal, ilumina um movimento penal
e acaba incidindo sobre o modelo de sistema processual
acatado e interpretado, ainda que à luz de uma constituição
democrática.
Salienta Bobbio que a idéia de que o único dever do
Estado consiste em impedir que os indivíduos provoquem
danos uns aos outros, deriva de uma arbitrária redução de
todo direito público a direito penal.66
A noção de democracia que orienta este trabalho parte
da premissa de que se trata de sistema político
convencionado institucionalmente, cujo propósito está em
promover decisões políticas, legislativas e administrativas,
65
Campilongo, ob. cit., p. 38. Ver igualmente Kelsen, A Democracia, São
Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 30-31.
66 Bobbio, O Futuro da Democracia, p. 112.
considerando a participação popular. Em realidade, as
decisões geradas no âmago da democracia, em virtude de
que a própria democracia irá conferir legitimidade ao direito,
reivindicam a compatibilidade com princípios da justiça e da
solidariedade universal, bem como com princípios éticos de
uma conduta de vida auto-responsável, projetada de forma
consciente, tanto de indivíduos como de coletividades.67
Portanto, a democracia vive em um governo do povo e
não exclusivamente para o povo, sendo válido o magistério
de Kelsen, que via na ―participação no governo, ou seja, na
criação e aplicação das normas gerais e individuais da
ordem social que constitui a comunidade‖,68 a característica
essencial da democracia, resgatando dessa maneira o
significado original do termo, cunhado na Grécia Antiga:
demos = povo, kraiten = governo.
Mas não apenas isso. A expressão kelseniana limita a
idéia de democracia à conhecida democracia política, cujo
fundamento é a liberdade, não concedendo às democracias
social, econômica e cultural o mesmo peso. Sabe-se que o
contexto da democracia política, como salienta José Álvaro
Moisés, supõe pelo menos os seguintes caracteres:69
• Direito de participação de todos os membros adultos
da comunidade política no processo de formação de
governos em todos os níveis...
• Prevalência da vontade da maioria, verificada através
de mecanismos de eleições periódicas e previsíveis...
• Garantia de acesso de quaisquer indivíduos, grupos,
tendências ou organizações coletivas aos diferentes
mecanismos que envolvem decisões relevantes para a
comunidade política.
• Garantia de que a minoria não será perseguida e
poderá transformar-se em maioria...
67 Habermas, ob. cit., p. 133.
68 Kelsen, ob. cit., p. 142. Ver nota 35.
69 Moisés, José Álvaro. Os Brasileiros e a Democracia, São Paulo: Ática,
1995, pp. 37-38.
• Reconhecimento de que conflitos de interesse ou
identidade em torno de questões econômicas, sociais,
políticas e religiosas... são legítimos e autorizam o
direito de associação e/ou organização para a sua
defesa.
• Princípio de separação entre os poderes, garantindo
que a ação dos governantes em suas distintas esferas e
níveis de competência se submete a mecanismos
públicos de controle.
A Constituição da República denuncia, nos capítulos
dos direitos sociais e políticos, a disposição de adotar um
conceito de democracia amplo, condizente com as promessas
não apenas de liberdade, de raiz anglo-saxã, mas
principalmente de igualdade, no rastro da versão igualitária
da Revolução Francesa, denominada por alguns, como
descreve Moisés, como extensão da cidadania civil e política
para o terreno social.70
Não se cuida de limitar a própria noção de democracia
somente à possibilidade de influência na gestão pública,
advinda das situações institucionais de respeito às liberdades
de expressão, associação, informação alternativa, competição
dos líderes políticos e eleições livres em sufrágio universal,
mas de criar condições de alteração cultural profunda, pela
educação e difusão de reais oportunidades de ascensão
econômica e política, de sorte a permitir a verdadeira
integração de todos, pois capazes de discernir sobre as
opções apresentadas para o governo da coletividade em um
sentido aberto.
Assim, a democracia consiste e se desenvolve, na
medida do seu próprio dinamismo, obra aberta e
inacabada,71 não só com a garantia dos direitos individuais
70 Moisés, ob. cit., p. 39.
71 Ver Bobbio, O Futuro da Democracia, p. 9, referindo que, para um regime
democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a
democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si
mesmo.
mas também com a dos direitos sociais,72 atenuando-se a
marginalização e tornando possível a participação pública
responsável, em seus dois sentidos,73 na gestão de todas as
atividades concernentes ao governo e à sociedade, inclusive
na produção legítima do direito regulador das relações
sociais e no exercício do controle externo legítimo da
atividade processual.
A vinculação entre democracia e direito, há muito
percebida na ciência política, não escapou certamente aos
juristas, e menos ainda àqueles processualistas que vêem o
processo como a expressão do microcosmo democrático,
como realçou Dinamarco.
Pelo contrário, a tensão dialética natural da democracia
projeta-se no âmbito da solução institucionalizada dos
conflitos de interesses como sendo a melhor, senão a única
forma de adjudicação de soluções a estes conflitos,
modulando o instrumento conforme o paradigma político e
deferindo ao juiz, como veremos mais à frente, a
72
73
Ver, a respeito, Weffort, Francisco. Qual Democracia?, São Paulo: Cia. das
Letras, 1996.
Renato Janine Ribeiro, a propósito da política, antecipa considerações
sobre o sentido de público, aplicáveis sem dúvida ao âmbito da estrutura
processual e relevantes, no que concerne à vinculação entre direito e
democracia, ou, mais propriamente, entre direito e processo, na medida em
que ambos os sentidos pressupõem um nível de educação que favorece, se
presente, a otimização instrumental da democracia. Assim, público se opõe
a privado, ressalta o autor, e se faz sinônimo de bem comum, algo que não
pode ser alvo de apreciação egoísta ou particular. Trasladando-se o
conceito para o processo penal, teremos que a instrumentalidade do
mencionado meio não comporta visões particularistas do direito que
pretende efetivar e não admite o próprio direito penal como um fim em si
mesmo, porém apenas como mecanismo de tutela adequada e razoável
para determinados tipos de conflitos. Por outro lado, público se opõe a
palco e revela não mais o dado da participação ativa, mas da passiva
assistência, cujo único sentido positivo consiste na possibilidade de
controlar a ação dos atores políticos, inclusive do juiz. Nestes derradeiros
termos, os princípios da publicidade e do duplo grau de jurisdição
aparecem como naturais consectários da idéia de participação democrática
no processo, prevendo a um só tempo a idéia de que todo poder deve ter
algum tipo de controle, visível socialmente (―A Política como Espetáculo‖,
in Anos 90: Política e Sociedade no Brasil, Evelina Dagnino [org.]. São
Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 31-40).
legitimidade necessária à enunciação das decisões.
Piero Calamandrei, em obra clássica, acentuava, na
década de 1950, a relação científica e política entre processo
e democracia, assinalando, em uma postura enfática a
respeito da natureza jurídica do primeiro, que, por processo,
em um Estado democrático, há de se entender o conjunto de
relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos — processus
est actum trium personarum — sem subordinação entre
eles, mas sim com vinculações recíprocas em termos de
direitos e deveres.
Além disso, naquilo que diretamente se vincula ao
objeto do nosso trabalho, por processo se deve aceitar apenas
o processo de partes contrapostas, dialético,74 asseverando o
mestre peninsular:
―Nel processo moderno, quello che risponde ai
principi
costituzionali
degli
ordinamenti
democratici moderni, le due parti sono sempre
indispensabili. Il principio fondamentale del
processo, la sua forza motrice, la sua garanzia
suprema, è il ―principio del contraddittorio‖.‖75
A consideração da participação, independentemente do
aspecto de publicidade que deve revestir a ação pública na
esfera democrática,76 é cercada de maior significado, no
plano da estruturação da base sobre a qual se desenvolverá o
processo, justamente por levar em conta, como disse
Calamandrei, não uma relação de poder, envolvendo súditos,
mas de equilíbrio entre sujeitos, cada qual com suas
responsabilidades, voltados todos, no entanto, à realização
74
75
76
Sobre o conceito de modelo dialético no processo, ver, por todos, Ada
Pellegrini Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, São Paulo:
Max Limonad, 1985, p. 8.
Calamandrei, Piero. Opere Giuridiche: Processo e Democrazia, Napoli:
Morano, 1965, p. 678.
Bobbio advertia que é sempre uma diferença entre a democracia e a
autocracia a questão de o segredo ser uma exceção e não uma regra (O
Futuro da Democracia, p. 101).
da solução justa.
O processo assim, em um Estado democrático e,
principalmente, em uma sociedade também democrática,
revela-se produto da contribuição dialética de muitos e não
da ação isolada de um só, ainda que este um — mesmo sendo
o juiz — atue informado pela disposição de encontrar a
solução mais justa, ou, dito com outras palavras,
apropriando-se da expressão kelseniana, ainda que este um
atue para o povo. Calamandrei, bem situando a questão,
remarcou que as partes são pessoas, isto é, sujeitos de
deveres e de direitos, que estão perante o juiz não na
condição de súditos, objetos de uma supremacia que os
obriga a uma obediência passiva, mas como cidadãos livres e
ativos.77
É forçoso reconhecer que a idéia de democracia
atravessa o ambiente estrutural do processo, contaminandoo de diversos modos com a ideologia que busca torná-la
hegemônica. Isso não espanta, na medida em que conceitos e
categorias processuais são estéreis fora do solo das
ideologias, como a respeito do Direito em sua totalidade
havia admitido Miaille.
Mirreile Delmas-Marty salienta sobre a política criminal
operacionalizada no sistema penal, no espaço jurídico do
processo, que qualquer política, e aí também a criminal, é
comandada por uma ideologia,78 concebida a expressão
principalmente no sentido pugnado pela filosofia alemã, de
Marx a Habermas, tal seja, instrumento de construção da
verdade e não de mera observação.79
Deve-se, pois, à concepção ideológica de um processo
77
78
79
Calamandrei, ob. cit., pp. 678-679.
Delmas-Marty, Mirreile. Modelos e Movimentos de Política Criminal, Rio
de Janeiro: Revan, 1992, p. 32.
MCLellan, David. A Ideologia, Lisboa: Estampa, 1987, p. 25. Ver, também,
nosso ―Breves Considerações sobre o Direito Processual Penal‖ (Geraldo
Prado, in Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano 2, nº 3,
Rio de Janeiro: Revan, 1997, pp. 41-47) e ―Ideologia, Estado e Direito‖
(Wolkmer, Antonio Carlos. São Paulo, RT, 1995, pp. 93-95), sendo certo
que este último, apurando as divergências doutrinárias incidentes sobre a
definição de ideologia, distingue o sentido positivo do negativo do termo.
penal democrático, a assertiva comum de que a sua estrutura
há de respeitar, sempre, o modelo dialético, reservando ao
juiz a função de julgar, mas com a colaboração das partes,
despindo-se, contudo, da iniciativa da persecução penal. A
estrutura sincrônica dialética do processo penal democrático
considera, pois, metaforicamente, o conceito de relação
angular ou triangular e nunca de relação linear,
sacramentando as linhas mestras do sistema acusatório.
Ada Grinover percucientemente aduziu que no Estado
de direito não há outro processo senão o acusatório,
escorado na distribuição das principais funções processuais
entre três sujeitos, de modo a dispensar o juiz da iniciativa
da perseguição penal e garantir a sua imparcialidade.80
Acrescenta a ilustre professora, demarcando os planos e
limites ideológicos da eleição da estrutura democrática sobre
a qual deve se basear a relação processual:
―Ainda que isso não resulte em construir o
sistema acusatório mecanicamente, segundo o
processo civil, a imposição do processo penal como
processo de partes se nos afigura como uma tomada
de posição inabalável, como uma confissão de
princípios, como uma batalha sem concessões: pois,
se ainda se lamenta que sejamos vítimas do ―mito
do triângulo‖; se considerar o contraditório como
condição para qualquer ato de formação da prova
ainda suscita perplexidade e reações... não se pode
senão proceder a uma escolha ideológica.‖81
Acreditamos sinceramente que a eleição ideológica do
sistema acusatório é uma natural conseqüência das
influências do princípio democrático em relação ao direito,
uma vez que a separação dos poderes, projetando-se como
mecanismo de viabilização da soberania popular, identifica
nas atuações legislativa e judicial esferas distintas quanto à
80 Grinover, Liberdades Públicas e Processo Penal, p. 56.
81 Idem.
origem das respectivas investiduras, de sorte a conceber
também modos diferentes de captação e orientação
epistemológica e normativa das ações desenvolvidas em
ambos os campos.
Com efeito, a definição dos crimes e cominação das
penas demanda a edição de lei prévia — nullum crimen sine
lege — em razão do que se supõe preenchido o requisito de
legitimação da determinação das situações que autorizam a
compressão substantiva de direitos fundamentais.
É verdade que o legislador não tem carta branca para
arbitrar ilimitadamente as condutas que crê nocivas à
convivência social.
À característica brutal do direito penal corresponde a
sua idéia geral como ultima ratio, em virtude da qual,
abdicando-se da concepção salvacionista da incriminação e
punição totais, salientam-se os aspectos fragmentários da
intervenção penal na vida social, com a eleição daquelas
situações excepcionais cuja gravidade justifique cogitar da
adoção de uma resposta socialmente organizada de igual
seriedade.
Para isso, ao lado do preceito formal de legitimação,
consistente na exigência de lei prévia, é imperativo que se
definam os conteúdos, portanto, que a lei penal seja
necessária, que a necessidade decorra de uma lesão real ao
bem jurídico, que a lesão tenha sido produzida por uma
conduta exterior do indivíduo (omissiva ou comissiva mas
sempre externamente apreciável) e que a conduta seja
culpável, tanto no sentido de estar inspirada por dolo ou
culpa como por ser reprovável pessoalmente a seu autor.82
Somente se esses requisitos estiverem presentes estará
completo o círculo em cujo interior repousará a legitimidade
da incriminação de comportamentos considerados
censuráveis pela maioria das pessoas, através de seus
representantes escolhidos pelo livre sufrágio universal.
Acontece que, se é possível perceber uma ligação
imediata entre a soberania popular e o processo de edição
82 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 93 — ―Modelos de Direito Penal‖.
das leis, o mesmo não ocorre quando se trata de avaliar a
atuação judicial, pois tanto a investidura dos juízes como a
sua permanência no cargo normalmente não obedecem a um
processo eletivo.
Como de forma satisfatória reconhece Ferrajoli, o que
vai caracterizar a legitimação da atividade jurisdicional, um
dos pilares do tríptico dos poderes do Estado, é a atuação dos
juízes em razão da busca do caráter representativo, nas suas
sentenças, da verdade substancial, conforme sua
independente atuação e sujeição somente à lei válida,
porquanto constitucional.83
Uma atividade decisionista do juiz, baseada na sua
credibilidade social mas intangível pelas partes, na medida
em que se apresenta como exercício da sua potestade,
máxima representação da sua vontade pessoal, não é
legítima, mesmo quando parece mais eficiente porque atende
às pautas de repressão penal. Assim, não é legítima a
decisão do juiz que condena o acusado porque a maioria das
pessoas quer esta condenação. A legitimidade da condenação
e a validade jurídica da sentença dependem da
correspondência entre aquilo que afirma o juiz e as provas
lícitas produzidas no curso do processo.
É importante que se ressalve que o nexo entre
legitimidade e verdade que assegura o esquema
epistemológico e normativo e define a natureza específica da
jurisdição no moderno Estado de direito, nas palavras de
Ferrajoli, não está centrado em uma concepção eficientista,
meramente instrumental ou utilitária, ainda que haja um
consenso comunitário em torno deste conceito de jurisdição.
Não há verdade real, pelo menos se a aceitarmos como
expressão absoluta dos fatos que devem ser demonstrados
no processo. Trata-se de um ideal não alcançável, que cede
espaço a uma verdade não definitiva mas contingente, não
absoluta mas relativa ao estado dos conhecimentos e
experiências contemporâneos84 e que, ao certo, corresponde
83 Idem, p. 69.
84 Ferrajoli, ob. cit., p. 50.
provavelmente ao que a parte quis demonstrar pelo poder de
explicação das evidências ajuizadas.
A legitimidade da atividade jurisdicional está
condicionada ao emprego de técnicas que imunizem o
processo do decisionismo judicial (em outras palavras, da
decisão arbitrária) e não iludam quanto à conquista de uma
verdade real, o que só ocorrerá na medida em que sejam
assegurados os direitos e garantias fundamentais,
permitindo que acusação e defesa demonstrem a
correspondência entre as teses esposadas e as provas
produzidas, com a redução do subjetivismo inerente a todo
julgamento.
Desta forma, será legítima a atividade jurisdicional
penal, porque terá sido possível conferir à sentença a
qualidade de haver apreendido o tipo de verdade que pode
ser constatada de modo mais ou menos controlável por
todos, mas isso só acontecerá se forem satisfeitas as
garantias do juízo contraditório, oral e público, isto é, na
vigência do sistema acusatório. A legitimidade do exercício
do poder, cujo berço é a soberania popular, é a fonte da
democracia.
Naturalmente por isso a perspectiva democrática do
processo estabelece um tipo privilegiado de relação entre
direito e democracia, mas não se pode olvidar das influências
culturais determinantes, presentes na sociedade civil, a um
tempo condicionadas e condicionantes da maneira pela qual
a batalha sem concessões por um modelo de estrutura
democrática do processo penal, compatível com a vontade
igualmente democrática expressada na Constituição, ecoa
concretamente no meio judiciário e social, portanto, no
microcosmo e no cosmo sociais.
Os estudiosos da ciência política, preocupados com a
análise dos diversos modelos de transições políticas, têm
dedicado especial atenção ao papel da consolidação cultural
dos valores que alicerçam o regime democrático.
Não se trata de aceitar simplesmente a prevalência da
escolha constitucional e, portanto, jurídica, da democracia,
como fator suficiente para a estabilização democrática. É
preciso que a democracia se faça presente como um valor
decisivo na vida das pessoas,
pragmaticamente
imprescindível para alcançarem a vida digna. Moisés
assinala que a cultura política é condição sine qua non para a
orientação de comportamentos e ações envolvendo a
generalização de um conjunto de valores elementares ao
processo de democratização,85 esclarecendo que a
desconsideração da dimensão político-cultural afeta
gravemente o suporte democrático da sociedade. Não basta
um Estado democrático, é necessário que a sociedade
também o seja.
Eis, por isso, a razão pela qual Enrique Peruzzotti
destacou que a consolidação institucional da democracia está
sujeita também ao importante papel jogado pelas variáveis
culturais,86 que não podem ser desprezadas.
A institucionalização da democracia não depende
exclusivamente de processos de engenharia institucional
elaborados de cima para baixo, na perspectiva das elites, mas
ainda de ―práticas e identidades políticas da sociedade civil
e sua relação histórica com a democracia e o
constitucionalismo‖.87 Do mesmo modo, a estruturação
democrática do processo penal não se impõe simplesmente
de cima para baixo, ainda que se parta da Constituição, pelo
menos não sem que se vençam fortes adversários culturais,
credores inabaláveis da fé na verdade real, absoluta,
conquistável através de um procedimento penal de defesa
social, como o inquisitório, que, embora esteja em crise,
ainda se manifesta enquanto estrutura procedimental na
maior parte da América Latina, conforme salientou Alberto
M. Binder.88
85 Moisés, ob. cit., pp. 84-85.
86 Peruzzotti, Enrique. ―Sociedade Civil e Constitucionalismo na Argentina‖,
in Sociedade Civil e Democratização. Leonardo Avritzer (Coord.). Belo
Horizonte, Del Rey, 1994, pp. 215-234.
87 Peruzzotti, ob. cit., p. 216.
88 Alberto Binder, ao falar da reforma da justiça penal no III Seminário
Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em São Paulo,
em 11 de setembro de 1997.
No Brasil, é importante frisar, a dificuldade de
consolidação de uma cultura democrática e, naturalmente,
também de direitos fundamentais, pode estar relacionada ao
modo pelo qual lentamente foi promovida a transição para a
democracia.
A transição democrática, como fenômeno político, pode
ser definida como ―processo de passagem de um sistema
político autocrático para outro democrático‖,89 em virtude
do que pelo menos duas dimensões são seguramente
observadas: promove-se a liberalização política do regime
(aumento do pluralismo político, da tolerância frente à
oposição e do respeito às liberdades públicas) e a sua
democratização (maior participação popular, direta ou
indireta, na tomada de decisões coletivas).90
Com efeito, se as lutas sociais, correntes universais de
opinião que confluíram e lideranças e formas políticoorganizativas que se impuseram foram importantes para a
democratização,91 não é menos certo que práticas
autoritárias sustentadas pelos grupos de poder obrigaram a
um intenso relacionamento dialético entre os governos
autoritários e os grupos oposicionistas, revelando a
densidade peculiar da adesão de setores da sociedade às
políticas antidemocráticas.
No Brasil não houve uma ruptura com o passado
autoritário. Antes, a transição proporcionou a acomodação
entre os setores governamentais, que representavam parte
da elite, e algumas das principais forças oposicionistas, de
modo tal que estruturas e mesmo pessoas do antigo regime
se incorporaram ao novo.92
89 Rico, José María. Justicia Penal y Transición Democrática en América
Latina, Madrid: Siglo Veintiuno, 1997, p. 38.
90 Idem.
91 Cardoso, Fernando Henrique. ―Desenvolvimento Associado — Dependente
e Teoria Democrática‖, in Democratizando o Brasil. Alfred Stepan (org.).
São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 480.
92 Sintomático, aí, que no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1996-1998,
as forças policiais tenham sido comandadas por general do Exército, figura
expressiva do regime anterior, encarregada da repressão aos que aderiram
à luta armada.
A ordem e a paz dos governos ditatoriais — a ordem dos
garrotes e a paz dos cemitérios93 — ficaram parcialmente
impregnadas na memória dos brasileiros e por isso, sob a
intensa influência das pautas da mídia que adotou o
movimento de lei e ordem, a cultura do medo ganha terreno
da cultura democrática mesmo depois de 1988.94
Calamandrei atentava para o fato de que o juiz é um
homem político, que vive na sociedade e que participa da
dinâmica de aspirações econômicas e morais dessa mesma
sociedade, exprimindo na sentença o seu sentimento,
inafastável da sua condição de homem político e social.95
Assim, por maior que seja seu carinho pela
Constituição, não é improvável que uma cultura subjacente,
de forte conotação de defesa social, incrementada pela ação
persistente dos meios de comunicação, reclamando menos
impunidade e maior rigor penal, derivada, por sua vez, de
uma cultura geral política autoritária, como a herdada nos
países latino-americanos, faça do juiz alguém submetido à
idéia de um processo menos dialético e participativo e muito
mais hierárquico e subordinativo, subordinação hierárquica
que resulta na dependência real do sistema de justiça ao
poder político e aos grupos de pressão externos ou internos,
estes encastelados na organização judiciária.
Binder, antes mencionado, destacou na ocasião que o
sistema inquisitivo não é só uma forma de processo, senão
um modelo completo de organização judicial, uma figura
93 Weffort, Francisco. ―Por quê democracia?‖ in Democratizando o Brasil.
Alfred Stepan (org.). São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 511.
94 É valioso destacar que a cultura do medo sugere, como reação ao fenômeno
da criminalidade, a potencialização de uma guerra contra o crime,
reintroduzindo conceitos bélicos na política criminal e ratificando o
processo de militarização que marca a convergência das funções policial e
militar peculiares ao Brasil e à América Latina (Rico, ob. cit., p. 26). O
resultado prático do desvio das atividades de investigação e controle das
infrações penais, levando em consideração o aparato castrense de
repressão, a nosso juízo está em minimizar a importância do próprio
processo penal como instrumento de mediação dos conflitos sociais desta
natureza.
95 Calamandrei, ob. cit., p. 642.
específica de juiz e, principalmente, uma cultura também de
contornos bem precisos.96 Este juiz e esta cultura ligam-se
naturalmente, mesmo quando a base normativa dispõe em
sentido contrário, pelo sentimento de insegurança, tantas
vezes explorado como demanda de violência pela mídia, mas
que corresponde, salientou com razão Binder, a uma
demanda de segurança verdadeira e justa no contexto de
uma sociedade democrática que se pretende desenvolver sem
abusos de poder, entre os quais estão aqueles que têm
origem na atuação criminosa.97
96 Ferrajoli soma a isso o fato de o direito e o processo penal inquisitórios
configurarem, ainda, uma epistemologia penal específica, caracterizada
conforme a (in)definição normativa das condutas delituosas e o
decisionismo predominante da atividade de comprovação judicial —
auctoritas — non veritas facit iudicium. Ferrajoli, in Derecho y Razón, p.
41.
97 A justa e cabível demanda por segurança importa, naturalmente, na
concepção de um interesse público não apenas expressado nas ações de
prevenção e repressão criminal, mas por igual na judicialização do conflito
de interesses de natureza penal, publicizado também porque se concebe a
infração penal como algo que agride um valor social relevante, como
salientou Afrânio Silva Jardim (Ação Penal Pública: Princípio da
Obrigatoriedade, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 13). Nestes
termos, cumpre ao Estado, conforme uma visão garantística, da qual
pormenorizadamente serão expostos os aspectos mais salientes adiante, no
item Constituição e Processo Penal, intervir em favor da maior parte da
população, de forma a assegurar a qualidade de vida e impedir a submissão
do cidadão não-criminoso ao criminoso, em áreas dominadas pela
criminalidade (Miglino, Arnaldo. ―Breves Reflexões sobre o Significado do
Garantismo [em vista dos acontecimentos italianos dos anos 1988-1994]‖,
in Lições Alternativas de Direito Processual. Horácio Wanderlei Rodrigues
(org.), São Paulo: Acadêmica, 1995, p. 47). A solução justa, todavia, apesar
da publicização do conflito, há de ser investigada sem diminuir o valor
sempre destacado da atenção ao ofendido. Neste ponto o autor mudou de
opinião entre a 1ª e 3ª edição. A tutela do ofendido é tarefa do direito
penal, que ameaça com a sanção penal o agente que agride bens jurídicos.
É, também, tarefa do Estado Providência, que deve viabilizar a atenção às
vítimas de crimes, buscando meios de socorrê-la. O processo penal de
consenso, que estimula acordo entre vítima e agressor, todavia não alcança
qualquer resultado satisfatório em termos globais, pois enfraquece as
garantias do acusado e coloca a vítima frente a frente com ele, sem ter
como assegurar condições de igualdade, salvo com abuso do Poder de
coerção. Isso está explicitado em Elementos para uma Análise Crítica da
Transação Penal, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003.
Convém assinalar, todavia, que no processo de transição
para a democracia está implícita a reforma do sistema penal,
na medida em que se prestigiam os direitos fundamentais
antes solene ou escamoteadamente desprezados e,
conseqüentemente, legitimam-se os remédios e garantias
postos pelo legislador com o objetivo de dar efetividade às
posições jurídicas de vantagem decisivamente reconhecidas.
Uma cultura que expressa, ainda que sutilmente, sua
preferência por uma estrutura processual estranha aos
modelos garantistas, se por um lado pode incentivar a
produção de leis e decisões incompatíveis com a direção
constitucional, reservando a esta incômoda posição de mera
promessa, por outro não está imobilizada, petrificada e,
portanto, imune aos resultados sociais decorrentes da
implementação da opção democrática no âmbito do processo
penal.
Se a confiança do cidadão no sistema de justiça penal é
condicionante decisiva da sua segurança,98 é preciso, pois,
desmistificar o papel que este mesmo sistema penal
desempenha no controle da criminalidade e na equação
importante derivada da tutela de interesses que representam
valores hoje universalmente ponderados.99
Esse processo de desmistificação, pelas dificuldades que
pode apresentar, certamente não será tão doloroso como foi
98 Neste sentido entende Antonio Bernardo Colaço (―A Confiança do Cidadão
no Sistema de Justiça Criminal como Condicionante Decisiva da sua
Segurança‖, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 5, 3º e 4º, juldez/1995. Lisboa: Aequitas Editorial Notícias, 1995, pp. 361-372).
99 José Eduardo Faria alerta para o fato de que como sua própria história
revela, nas sociedades divididas em classes e num mundo dividido em
nações pobres e países ricos, os direitos humanos quase sempre consistem
numa ameaça à ordem estabelecida, pois hão de ser encarados numa
perspectiva essencialmente política, ou seja, como promessa emancipatória
ou como palavra de ordem libertária (Direito e Globalização Econômica:
Implicações e Perspectivas, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 151), sendo esta
a motivação muitas vezes latente nas ações voltadas à desmoralização do
conceito de direitos fundamentais, além da disposição de não se promover
uma educação fundada neles, inequívoco alicerce para o conhecimento das
reais causas da criminalidade e da verdadeira finalidade e potencialidade
de todo e qualquer sistema penal.
o de descoberta da sociedade civil brasileira, fruto de
profundas rupturas nas tradições ideológicas do país.100 E
com certeza o complementará.
Ademais, não se deve estimar com reservas a evidência
denunciada pela escola histórica de que o direito também é
uma produção cultural, uma criação do homem, apto a
influir sobre o próprio homem em uma relação de interação.
Está certo J. J. Calmon de Passos ao assinalar que:
―O direito não é, portanto, um fenômeno
natural, algo posto à disposição do homem pela
natureza e sujeito a leis necessitantes. Ele se situa
no mundo da cultura, é uma criação do homem,
uma das muitas formas pelas quais tenta
compreender o existente para sobre ele interagir,
conformando-o e direcionando-o no sentido do
atendimento de suas necessidades e realização de
suas expectativas‖.101
O direito, como construção humana, pode e deve
elaborar as condições e critérios de justificação das decisões
por ele admitidas como válidas, de sorte a que somente as
que se enquadrem neste modelo estejam providas da
legitimidade democrática inerente à soberania popular e
supremacia dos direitos fundamentais.
O princípio democrático fundamenta o caráter
instrumental do próprio direito e, como acentua Ferrajoli,
precisamente porque o direito é um universo lingüístico
artificial, pode permitir, pelo emprego de técnicas
apropriadas de formulação e aplicação das leis, a
fundamentação dos juízos decisórios sobre a verdade
subtraída em nível extremo ao erro e ao arbítrio.102
100 Weffort, Francisco. ―Por quê democracia?‖, in Democratizando o Brasil.
Alfred Stepan (org.). São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 515.
101 Passos, J. J. Calmon. ―Processo e Democracia‖, in Participação e Processo.
Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe
(Coord.). São Paulo: RT, 1988, p. 86.
102 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 70.
Neste contexto, assoma a relevância da privilegiada
relação do direito com a democracia, como frisamos
anteriormente, mas não com uma democracia qualquer,
fulcrada na mera declaração formal de respeito aos direitos
fundamentais e numa vinculação passiva entre governados e
governantes e sim na real democracia participativa,
integradora e solidária, com inegável repercussão no plano
do processo penal, de sorte que a cultura democrática aos
poucos poderá ser desenvolvida pela conscientização da
forma democrática da sociedade conviver.
Recorrendo novamente a Calmon de Passos, releva
salientar que, se estamos alcançando um estágio novo no
processo de transformação da democracia moderna, não é
suficiente que se democratize o Estado. Impõe também
democratizar-se a sociedade.103
Nessa linha de pensamento, o processo penal não é
apenas o instrumento de composição do litígio penal ou de
resolução das causas penais, mas, sobretudo, um
instrumento político de participação, com maior ou menor
intensidade, conforme evolua o nível de democratização da
sociedade.
Para tanto, afigura-se imprescindível a coordenação
entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo
desejável
caminho
da
Constituição,
porquanto,
institucionalizando a proteção dos mencionados direitos,
reconhece-se que somente pela via democrática atingirão sua
plena efetividade.104
Esse é o motivo pelo qual convém igualmente dedicar
algumas palavras ao tema Constituição e Processo Penal.
2.4. Constituição e Processo Penal
Com efeito, a relação entre a Constituição e o Processo
Penal, antes de ser ditada pelo fato de pertencerem ambos os
103 Passos, ob. cit., p. 92.
104 Assim também pensa Hans Peter Schneider (Democracia y Constitucion,
Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 18-19).
ramos jurídicos ao campo do Direito Público,105 e sem
desconsiderar a primazia constitucional na superposição das
normas jurídicas106 influindo decisivamente na demarcação
do âmbito de legitimidade, validade e eficácia das leis,
decorre da constatação de que, na essência, Constituição e
Processo Penal lidam com algumas importantes questões
comuns: a proteção aos direitos fundamentais e a separação
dos poderes.
Giuseppe Bettiol sublinhava que a Constituição, ligada a
valores e ideais da democracia, deve preocupar-se em fixar
claramente algumas normas processuais penais vinculadas à
identidade democrática, pois que ambos os ramos jurídicos
tutelam a liberdade individual, como se destinatários fossem
de uma vocação comum.107
105 Sobre a inserção do Processo Penal no tronco do Direito Público, aludiu
Miguel Fenech, não só motivando historicamente a classificação, como
chamando a atenção para as inolvidáveis conseqüências disso decorrentes,
tais como a carência de conceitos de valor universal amadurecidos, à
semelhança do que ocorre com o Direito Privado (muito embora,
atualmente, a situação não esteja no mesmo ponto), relatividade de
conceitos em função da relatividade do Estado, em certo país e num preciso
momento, e a superveniência de normas processuais ditadas sob o império
de uma concepção estatal que pode estar superada, malgrado as normas
processuais permaneçam em vigor, dado da realidade que de perto
interessa ao nosso estudo (Derecho Procesal Penal, vol. I, Barcelona:
Labor, 1952, pp. 49-51).
106 Não é nossa pretensão renovar o debate sobre as classificações das
Constituições e, portanto, das normas constitucionais (malgrado adiante,
por força da necessária clareza que o trabalho deve ter, algumas
considerações sejam tecidas) nem esse é o objeto do estudo que se
desenvolve. Assim, naturalmente além da diferenciação levada a efeito na
introdução (Constituição real versus Constituição jurídica), pertinente à
abordagem crítica, e ainda embora se conheçam outras categorizações
(Constituição material, formal, instrumental, normativa etc.) cingimo-nos a
reter o conceito normativo identificado por Kelsen, que salienta na
Constituição o pressuposto de consistir no nível normativo mais elevado do
Direito Nacional (Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo: Martins
Fontes, 1992, pp. 129-140), definindo-se como uma ordenação sistemática
e racional da comunidade política, plasmada num documento escrito,
mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de
acordo com o princípio da divisão dos poderes, o poder político
(Canotilho, ob. cit., pp. 12 e 63).
107 Bettiol, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal, Barcelona:
Bosch, 1977, p. 222. Henkel, por sua vez, afirma que o conteúdo normativo
Salientava o mestre italiano, antevendo pelo prisma da
Constituição a conexão indelével entre Processo e
Democracia, que um ―Código Processual que não encontre
seu fundamento racional, político e jurídico, no articulado
de uma Constituição que ‗reconheça e garanta os direitos
invioláveis do homem‘ se encontra exposto a todas as
possibilidades de reformas vinculadas a maiorias políticoparlamentares ocasionais, com grave prejuízo das
liberdades públicas e privadas‖.108
Basicamente, todos sabem a verdade contida na
proclamação de Bettiol, na medida em que constatamos que
os apelos excessivos da mídia e a influência do debate sobre
violência e criminalidade nos processos eleitorais regionais e
nacionais volta e meia conduzem os políticos ao discurso de
reforma ordinária do processo penal, fundado em uma
cultura autoritária, que ensaia movimentos de lei e ordem,109
com o desmesurado e inconseqüente endurecimento das
situações típicas do procedimento, tais como aquelas
relativas à prisão e liberdade, sem amparo na Constituição
da República.
Mesmo o princípio constitucional da presunção da
inocência é colocado de lado na elaboração e aplicação das
leis, malgrado não se proceda a qualquer alteração no
panorama da Constituição, alteração esta impossível, como
notado ao dedicarmos atenção às limitações ao princípio da
do processo penal está tão profundamente conformado pelo do Direito
Constitucional, que faz sentido asseverar que o Processo Penal é o
verdadeiro Direito Constitucional aplicado (apud Jorge de Figueiredo Dias,
Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, p. 74).
108 Idem.
109 Sobre os movimentos de lei e ordem, ver, por todos, Alberto Silva Franco,
Crimes Hediondos, 3ª ed. São Paulo: RT, 1994, pp. 30-40. Convém frisar
desde logo, porém, que na maioria das vezes as modificações legislativas
não decorrem do convencimento empiricamente determinado dos
legisladores, sobre a eficácia do tratamento penal e processual mais
rigoroso que postulam, e sim da necessidade política de produzir confiança
no sistema jurídico-político, ressaltando a importância social da ação dos
protagonistas deste sistema, implementando a providência simbólica que
Marcelo Neves definiu como sendo ―Legislação-Álibi‖ (Neves, Marcelo. A
Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 37).
maioria, pois os direitos fundamentais inscrevem-se na
ordem constitucional brasileira como cláusulas pétreas
(artigo 60, § 4o, inciso IV da Constituição da República de
1988).110
Assim, a análise do Processo Penal responde pela ótica
constitucional a uma exigência não só metodológica e
jurídica, mas também político-institucional, como acentuava
Georg Jellinek, ao mencionar os liames que repercutem na
unidade científica de direito constitucional e política.111
Marcelo Neves, por seu turno, ao estudar a
constitucionalidade simbólica, destaca atentamente a
vinculação entre política e direito, ou, de forma mais
definida, entre política e Constituição, acentuando que ―a
Constituição em sentido especificamente moderno
apresenta-se como uma via de prestações recíprocas e,
sobretudo, como mecanismo de interpenetração (ou mesmo
de interferência) entre dois sistemas sociais autônomos, a
Política e o Direito‖.112
Ada Grinover alertou para o fato de que Mendes Júnior,
no final do século XIX, já focalizava o processo como
garantia dos direitos individuais, antecipando-se, como
bem disse a ilustre doutrinadora, na compreensão dos
aspectos constitucionais do direito processual.113 Embora se
refira, depois de Mendes Júnior, a Kelsen, Calamandrei,
Cappelletti, Liebman, Couture, Buzaid e Frederico Marques,
entre outros, a própria Ada Grinover insere-se também,
indiscutivelmente, ao lado de Cândido Rangel Dinamarco e
Kazuo Watanabe, no rol dos processualistas que enfatizaram
o estudo do direito processual constitucional, assim
110 Vale salientar, com Eugenio Florian (Elementos de Derecho Procesal
Penal, Barcelona: Bosch, 1933, pp. 15 e 152-153), que há situações nas quais
vige, na realidade, um processo penal extraordinário, referido a momentos
autoritários, de limitação ou supressão do exercício dos direitos
fundamentais, em prol da chamada Defesa Social.
111 Jellinek, Georg. Reforma y Mutacion de la Constitucion, Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1991.
112 Neves, Marcelo. Ob. cit., p. 62.
113 Grinover, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Direito de Ação,
São Paulo: RT, 1973.
compreendido, na vigorosa lição de Dinamarco, como
condensação metodológica e sistemática dos princípios
constitucionais do processo.114
A certeza científica da influência dos sistemas políticos
sobre as bases processuais mediada pela Constituição,
encaminhou os estudos do processo civil e penal, certeza
alicerçada pela convicção de que a constituição é, pois, o
fundamento de validade de todas as leis115 e a garantia, dada
a rigidez dos seus processos de transformação, emenda ou
mesmo substituição,116 da proteção jurídica e social de ideais
da administração da justiça que funcionam como métodos de
legitimação da função de composição dos conflitos e
anteparos contra situações autoritárias, algumas das quais
dramaticamente vividas na Europa, na primeira parte deste
século.
Apesar de a doutrina processual ter ultrapassado com
cautela o tempo da consolidação técnico-científica do
processo, vencendo, em seguida, sua fase de crítica,
reveladora da etapa instrumentalista, para alcançar hoje as
discussões sociopolíticas,117 na verdade o método derivado
dos estudos constitucionais, extremamente útil no exame
crítico, segundo instante de desenvolvimento dos estudos do
processo como ramo autônomo do direito material, serve
ainda a análises de categorias processuais importantes e
pouco exploradas, como é o caso do sistema acusatório.
Vale dizer, apenas para ilustrar, que além da obra
114 Dinamarco, A Instrumentalidade, p. 24, e Cintra, Grinover e Dinamarco,
Teoria Geral do Processo, 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994.
115 Grinover. As Garantias Constitucionais, p. 9.
116 A afirmação da solidez da Constituição, desejada conforme o
constitucionalismo, porquanto deva ser boa e duradoura, a ponto de levar
Ferdinand Lassale a revelar que ao tempo em que o país não protesta pela
reforma ordinária das suas leis, protesta e grita ―Deixem a Constituição‖
quando se trata de pensar em alterá-la (Lassale, Ferdinand. A Essência da
Constituição, 2ª ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988, pp. 8 e 41), está
sofrendo os influxos da denominada ingovernabilidade, atribuída à
previsão dos direitos fundamentais prestacionais, geradores de déficit
público, expandindo-se ainda sobre os da primeira geração, pelo que
dificultariam, nessa visão, a operação de defesa social.
117 Grinover. O Processo em Evolução, pp. 3-19.
clássica de Ada Grinover — As Garantias Constitucionais do
Direito de Ação —, que envolve atenciosa avaliação dos
direitos de ação e de defesa, conforme a Constituição, outras
tantas, significativas, igualmente vieram à lume, como por
exemplo As Garantias Constitucionais na Investigação
Criminal, de Fauzi Hassan Choukr, Primeiras Linhas sobre
o Processo Penal em Face da Nova Constituição, de Paulo
Cláudio Tovo e João Batista Tovo, e Processo Penal e (em
Face da) Constituição, de Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de Carvalho,118 cumprindo, no entanto, preencherse a lacuna gerada pela ausência de um trabalho que
diretamente trate do sistema acusatório à luz da
Constituição, embora muitas obras incidentalmente o hajam
abordado, como é o caso da dissertação de Choukr e da
excelente tese de Afrânio Jardim sobre Ação Penal Pública,
também mencionada.
É curial acentuar que a premissa da atividade que
estamos desenvolvendo vincula-se ao pensamento
fundamental, mais à frente explicitado, de que a Constituição
da República escolheu a estrutura democrática sobre a qual
há, portanto, de existir e se desenvolver a relação processual
penal, forçando-se, assim, a adaptação do modelo vigente
antes de 1988.
Tal estado de coisas reflete a perspectiva da base
processual especialmente como garantia constitucional,
instrumentalizada de modo ordenado, conforme os
princípios constitucionais, de maneira a permitir a adequada
fruição dos direitos de ação e de defesa, na busca da justa
solução119 do conflito de interesses penal ou do caso penal.
118 Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação
Criminal, 2ª edição, Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2001; Carvalho, Luis
Gustavo Grandinetti Castanho. Processo Penal e (em Face da)
Constituição, 3ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; Tovo, Paulo
Cláudio e Tovo, João Batista. Primeiras Linhas sobre o Processo Penal em
Face da Nova Constituição, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989.
119 Releva notar, visto que em várias oportunidades citamos a busca da justiça
como um dos fins perseguidos pelo processo, que há, entre muitas outras,
uma obra capital sobre a transição do Estado de Direito ao Estado de
Justiça: El Proceso Justo (Morello, Augusto M. Buenos Aires: Platense -
Nessa linha de raciocínio é necessário distinguir o
sentido jurídico de direitos e garantias, ambos preservados
constitucionalmente, para compreendermos o alcance da
tutela constitucional de determinado tipo de estrutura
processual.
Hector Enrique Quiroga Cubillos120 entende que as
garantias são instrumentais, constituindo-se nos meios
processuais pelos quais se logra a proteção efetiva dos
direitos. Por sua vez, Ada Grinover destaca que se
compreende por direito um fenômeno de índole
declaratória, ou seja, contido em norma que exige
determinado comportamento,121 enquanto as garantias
configuram o instrumento assecuratório do direito.
Evidentemente, o processo como instrumento da
jurisdição representa uma primeira garantia, em razão de
que outras hão de operar, especialmente a imparcialidade e
independência do juiz, o contraditório e a ampla defesa e a
iniciativa da parte para a ação (ne procedat judex ex officio),
sacramentando-se, na medida do possível, a igualdade das
partes.
Aceitando-se a epistemologia peculiar ao garantismo
penal, os preceitos da presunção da inocência, da reserva de
jurisdição (nulla culpa sine iudicium) e do habeas corpus
constituem a base das garantias pelas quais historicamente
ao menos se assegura o primado de uma jurisdicionalidade
em sentido lato, enquanto o contraditório, a distribuição do
ônus da prova, a iniciativa da parte para a ação e a defesa
concreta do acusado conformam a jurisdicionalidade em
Abledo-Perrot, 1994). A solução justa para nós está escorada na aceitação
da atividade jurisdicional penal como cognoscitiva, isto é, empenhada na
determinação da verdade judicial conforme as garantias orgânicas e
procedimentais que devem cercar o processo penal.
120 Cubillos, Hector Enrique Quiroga. Derechos y Garantias Constitucionales
en el Proceso, Bogotá: Ediciones Libreria del Profesional, 1987.
121 Grinover, Ada Pellegrini. O Processo em sua Unidade - II, Rio de Janeiro:
Forense, 1984, p. 56. Vale ressaltar que, complementarmente, a mesma
autora designou por direito público subjetivo, portanto, espécie do gênero
direito, posições jurídicas ativas, com relação à autoridade estatal
(Liberdades Públicas, p. 5).
sentido estrito.122
Não é, porém, qualquer processo que reúne as
condições de instrumento de garantia dos direitos — o que
no âmbito penal, como tantas vezes salientamos ao longo do
trabalho, é indispensável, na medida da gravidade e
repercussão sociais do caso penal — mas somente aquele que
preencha a cláusula constitucional do devido processo legal,
formal e também substancial123. Somente este modelo
complexo respeita efetivamente os direitos de ação e de
defesa e pretende, com isso, preservar também a sociedade
através do deslocamento dos conflitos de interesses para o
plano jurídico-institucional, no qual, a princípio, não
predomina a razão do mais forte ou até da maioria, e sim a
regra fixada pela lei e, antes de tudo, pela própria
Constituição, mesmo contra a razão do mais forte ou da
maioria.124
Assim, pode-se assinalar que compete à Constituição da
República tutelar o processo para que não se enuncie
cláusula vazia e não se faça ouvidos de mercador à
Declaração Universal de Direitos do Homem, que prescreve,
em seu artigo 8o, que toda pessoa tem direito a um recurso
efetivo ante os tribunais nacionais competentes, que a
ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais,
reconhecidos pela constituição ou pela lei, assegurando-se a
um só tempo a garantia constitucional do processo e o
processo como garantia constitucional dos direitos.125
122 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 539.
123 Sobre o devido processo legal, ver, por todos, Silveira, Paulo Fernando.
Devido Processo Legal: Due Process of Law, Belo Horizonte: Del Rey,
1996.
124 É novamente Ferrajoli quem adverte que, se a legitimidade da função
jurisdicional está implicada com o fato da atividade de composição dos
conflitos de interesses penais ser cognoscitiva e não constitutiva, o juiz não
cria o ilícito mas descobre a verdade nos limites reais que a reconstituição
pelas provas possibilita, motivo por que a autoridade democrática da
decisão judicial não decorrerá da vontade concreta da maioria mas estará
submetida exclusivamente aos imperativos inerentes à investigação da
verdade. Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 544.
125 Neste sentido, ver, por outros, Couture, Eduardo J. Fundamentos del
Derecho Procesal Civil, Buenos Aires: Depalma, 1977.
Certo é, o que será objeto de algum detalhamento no
item dedicado à tipologia, que, ao se falar em garantia, dada
a polissemia inerente à expressão, pode-se ter em vista tanto
a norma-garantia, caracterizadora de uma posição jurídica
de vantagem, reconhecida pelo direito positivo, de natureza
instrumental, ou o princípio-garantia, mandamento nuclear
do sistema jurídico-político, de caráter precipuamente
axiológico, ou ainda a função-garantia, que emerge, nos
tempos atuais, repleta de importância jurídica e significado
político, porque objetiva resgatar o valor da razão jurídica,
não somente no plano do ser, como fundamento do direito
aplicado e vivido cotidianamente, mas principalmente
naquele do dever ser, pelo que estabelece em termos de
significado simbólico, orientador tanto da ação do legislador
como da atuação do juiz.
Marcelo Neves assinala o papel simbólico da
constitucionalização para o fim de confirmação de valores
sociais, asseverando que, se em algumas situações a
constitucionalização simbólica tem um sentido negativo,
como no caso da legislação-álibi, pode muito bem servir
também positivamente, quando se trata de prestigiar valores
pertinentes à dignidade da pessoa humana, no confronto
com outros que preservam um âmbito de liberdade despido
ou despreocupado dessa dignidade.
Com efeito, assinala Marcelo Neves que do legislador se
exige com freqüência uma posição a respeito de conflitos
sociais em torno de valores. Os grupos envolvidos nos
debates pela prevalência de determinados valores, sublinha
Marcelo Neves, vêem a vitória legislativa como forma de
reconhecimento da superioridade social de sua concepção,
sendo-lhes secundária a eficácia normativa da respectiva
lei.126
No capítulo dos direitos fundamentais, no entanto, se
for assegurada a superioridade destes valores, mesmo que a
cultura subjacente na sociedade os veja em determinados
momentos como mecanismos de proteção dos criminosos e
126 Neves, Marcelo. Ob. cit., p. 34.
os protagonistas dos sistemas político-jurídico prefiram, sem
embargo da sua positivação, atuar precisamente sem
implementá-los (às vezes até mesmo negando-os), a
realidade é que a função-garantia importará justamente em
sujeitar, como assinala Ferrajoli, a produção do direito
conforme o próprio direito, influindo não só nos níveis da
existência e vigência mas também no da validade, com o
respeito indiscutível aos comandos que programam os
conteúdos democráticos, elaborados a partir dos princípios
constitucionais tutelares dos direitos fundamentais.127
Neste sentido particular, entende-se por garantias ―as
técnicas criadas pelo ordenamento para reduzir a
divergência estrutural entre normatividade e efectividade, e
portanto para realizar a máxima efectividade dos direitos
fundamentais em coerência com a sua estatuição
constitucional‖.128
É bom que se diga que vigência e existência das normas
para nós filiados ao pensamento que impera no seio do
garantismo penal, estão relacionadas à simples legalidade
das formas e fontes das normas jurídicas, enquanto a
validade depende da estrita taxatividade de seus conteúdos,
como resultado da conformação delas às garantias.129
Na medida em que a Constituição da República opta
pela tutela dos direitos fundamentais, a estrutura processual
penal daí derivada há de ser imposta com estrita observância
do modo pelo qual é possível harmonizarem-se todos estes
direitos e, naturalmente, não só os de defesa mas ainda, por
exemplo, os de ação e à segurança.130
Ao se definir a base processual, acatando-se um sistema
e um princípio expressivos dos direitos fundamentais,
conforme veremos mais à frente, a Constituição fez a sua
escolha, cumprindo aos aplicadores das leis ordinárias
127 Ferrajoli, Luigi. Ob. cit., p. 48.
128 Ferrajoli, Luigi. ―O direito como Sistema de Garantias‖, in Revista do
Ministério Público, Lisboa, nº 61, jan-mar/1995, p. 40.
129 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 95.
130 Convém examinar, sobre o tema, a obra de Mario Chiavario, Processo e
Garanzie Della Persona, Milano: Giuffrè, 1984.
efetivar a Constituição, sempre conforme ela própria. Por
isso, Ferrajoli tem inteira razão quando afirma que:131
―A sujeição do juiz à lei não é de facto, como no
velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da
lei qualquer que seja o seu significado, mas sim
sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja,
coerente com a constituição‖.
Conclui-se, dessa forma, que o sistema processual que
há de ser prestigiado por conta da função-garantia do direito
e, naturalmente, da própria estrutura processual como
realidade normativa, será aquele que venha a preservar a
tripartição das principais atividades processuais — acusar,
defender e julgar — sincronizadas, consoante o lembrado
magistério de Calamandrei, de sorte a validar os direitos
fundamentais.
Concretamente, incumbe ao juiz proceder à adaptação
das leis do processo, conforme este sistema ou, se for o caso,
não aplicar, por inválidas, aquelas que contrastam com a
Constituição, paradigmada a interpretação judicial, na visão
de Gomes Canotilho, na conjunção dos princípios da
prevalência da Constituição, da conservação de suas normas
e na exclusão da interpretação conforme a Constituição,
porém contra legem.132
Opera-se assim tal procedimento de seletividade em
conseqüência das possibilidades inerentes à tarefa de
interpretação conforme a Constituição, interpretação esta
que deve ter, não há dúvida, atuação evolutiva, consoante a
131 Ferrajoli, Luigi. ―O direito como Sistema de Garantias‖, p. 41. Otto Bachof
acentuava que no exercício da função judicial de vigilância da
constitucionalidade das leis, o juiz só deve admitir uma lei como válida e
vinculante quando esta não só tenha sido formalmente promulgada de
acordo com a Constituição mas também se o seu conteúdo estiver de
acordo com os preceitos constitucionais (Jueces y Constitución, Madrid:
Civitas, 1987, p. 32).
132 Canotilho, pp. 235-236.
sempre citada doutrina alemã (verfassungswandlungen).133
A relevância do processo hermenêutico para a
imposição predominante dos direitos fundamentais na esfera
penal é tão significativa, que vale recordar que o intérprete,
este mediador, principalmente se for o juiz penal,134 sempre
contribuirá decisivamente na escolha dos valores que o
guiarão, por meio da assunção de significados concernentes
a uma determinada concepção de Direito. Interpretar deriva
de interpres, isto é, mediador, intermediário, de sorte a
estabelecer-se no processo de interpretação a mediação entre
o texto e a realidade para, de acordo com Baracho,135
desenvolver-se o processo intelectivo através do qual,
partindo da forma lingüística contida no ato normativo,
chegar-se ao seu conteúdo ou significado.
Caso contrário, o juiz estaria reduzido a mero
instrumento de aplicação mecânica de um texto legal,
suscetível de ser substituído com muitas vantagens por um
133 Ver, sobre o assunto, Ada Grinover (As Garantias Constitucionais, p. 15).
Por oportuno é conveniente destacar que tal fenômeno é denominado, na
Espanha e em Portugal, mutação constitucional, entendendo-se, tal como
na Alemanha (Tribunal Alemão de Karlsruhe), tratar-se de uma mudança
de conteúdo das normas que, conservando a mesma redação, adquirem um
significado diferente (Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su
Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y
Tribunal Supremo, Madrid: Actualidad Editorial, 1994, p. 19), ou, nas
palavras de Canotilho (ob. cit. pp. 236-239), operam a transição do sentido
sem mudar o texto, o que a difere da alteração constitucional, consistente
na reforma formal do compromisso político, acompanhada da alteração do
próprio texto da Constituição.
134 Não se despreza, por oportuno, a tese de que a hermenêutica constitucional
é campo aberto a todos que, no processo democrático de convivência social,
observam o direito, atuando conforme o significado que pessoalmente
atribuem à conformidade constitucional. A interpretação constitucional é,
pois, neste sentido, obra aberta, do ponto de vista dos sujeitos aptos a
realizá-la,
consoante
salientou
Peter
Häberle
(Hermenêutica
Constitucional — A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:
Contribuição para a Interpretação Pluralista e ‗Procedimental‘ da
Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1997). No entanto, a vinculatividade da atuação
interpretativa do juiz é que, neste aspecto particular do problema, colocado
no trabalho, deve ser priorizada.
135 Baracho, ob. cit., p. 49.
computador.136 Eis a razão de Couture ter dito que:137
―Interpretar é, ainda que inconscientemente,
tomar partido por uma concepção do Direito, o que
significa dizer, por uma concepção do mundo e da
vida. Interpretar é dar vida a uma norma. Esta é
uma simples proposição hipotética de uma conduta
futura. Assim sendo, é um objeto ideal, invisível... e
suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela
intuição. O raciocínio e a intuição, todavia,
pertencem a um determinado homem e, por isso,
estão prenhes de subjetivismo.‖
Todo intérprete, salienta Couture, é, embora não o
queira, um filósofo e um político da lei e a concepção de
mundo e de direito que concebe, reafirme-se, deve estar
ancorada na Constituição, independentemente da postura
filosófico-jurídica ou política dele, intérprete e, até mesmo,
da existência prévia de uma decisão do tribunal
constitucional, no nosso caso, do Supremo Tribunal Federal,
sobre a matéria, evidentemente desde que sem força
vinculativa erga omnes.
Novamente, a lição de Baracho é valiosa, salientando a
difusa competência para aplicação das leis, pelos juízes,
conforme a Constituição, em virtude do que não devem
aplicar as normas que considerem inconstitucionais.138
Na atual etapa do constitucionalismo, na virada do
milênio para a civilização ocidental, a tarefa de interpretação
e aplicação dos textos legais de acordo com a Constituição
assume uma grandeza toda especial em virtude do processo
de corrosão das bases rígidas instituídas no nível normativo
136 Assim, com razão, leciona Zaffaroni, para quem, en rigor, en el actual
estado del saber jurídico, es casi imposible que, sea por vía explícita o bien
implícitamente, el juez no lleve a cabo un control constitucional de las
leyes, siempre que, naturalmente, opere conforme a esas pautas de saber
jurídico (Estructuras Judiciales, Buenos Aires: Ediar, 1994, p. 60).
137 Couture, Eduardo J. Interpretação das Leis Processuais, 3ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1993, p. 11.
138 Baracho, ob. cit., p. 53.
superior, em consideração às supostas demandas de
estabilidade governamental.
Assim, a recusa à chancela de constitucionalidade pode
ocorrer dentro da própria Constituição, se os movimentos
derivados de alteração da sua ordem não respeitarem os
pilares intangíveis dos direitos fundamentais e da soberania
popular, com a legitimidade e separação dos poderes.
Movimentos de transformação da ordem constitucional
são freqüentes e se desenrolam fundados em demandas de
maior fluidez e flexibilidade dos instrumentos de soluções
dos conflitos sociais.
A redução de complexidade do direito processual pela
deformalização aparece na nossa Constituição, para ilustrar,
na disciplina do procedimento dos juizados especiais
criminais, que na sua regulação por lei ordinária não se
limitou a obedecer ao perímetro traçado no plano
constitucional — procedimento oral e sumaríssimo, com a
possibilidade de transação — para incorporar a
informalidade, celeridade e economia processual (Lei no
9.099/95, artigo 62).
A filosofia da deformalização dos procedimentos, antes
de ser uma rebelião ao formalismo exagerado e imotivado,
em busca dessa maior fluidez e flexibilidade na hermenêutica
constitucional, pode ensejar a redução da eficácia das
garantias que dependem, justamente, da observação de
procedimentos.
Comparato sublinha, acertadamente, que todo direito é
formal, isto é, ―que ele nada mais deve ser que a realização
formal da justiça, a sua realização segundo certos meios e
regras conhecidos da comunidade‖ e acrescenta que ―a
regularidade formal é sempre uma garantia diante do
poder, uma limitação do arbítrio‖.139 É interessante
observar que, na década de 90, o sucessor aparente do
movimento do direito alternativo dos anos 70 é o modelo
139 Comparato, ob. cit., p. 36.
procedimental,140 que, na tutela do status activus
processualis, não abdica do juízo contraditório, das provas
adquiridas de forma lícita, da imparcialidade judicial e da
sentença justa como produto final de uma atividade
jurisdicional ética e democrática.
O status processual se concebe pelo reconhecimento de
que, na democracia, o indivíduo tem o direito de participar
ativamente e assumir a sua própria responsabilidade nos
procedimentos que lhe afetam, assim como nas estruturas de
organização,141 o que importa, quanto aos direitos
fundamentais, na adoção de formas de participação
dinâmicas e ativas.
Nessa perspectiva é que concluímos que não pode ser
debilitada a certeza do vínculo entre Processo e Constituição,
estipulada em uma medida exclusivamente formal, mas
como consciente tomada de posição, pelos chamados
profissionais (operadores) do direito, sobre a importância de
aplicar e impor as regras processuais tendo em vista o fio
condutor dos direitos fundamentais.142
Valioso, assim, encerrar o tópico com as palavras de
Ferrajoli, em reafirmação ao seu pensamento sobre o dever
do juiz de aplicar somente a lei válida. Diz o mestre:143
―A validade já não é, no modelo constitucionalgarantista, um dogma ligado à mera existência
formal da lei, mas uma sua qualidade contingente
ligada à coerência — mais ou menos opinável e
140 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo
ante el Tercer Milenio: p. 19.
141 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo
ante el Tercer Milenio: p. 20.
142 Note-se que em Portugal a eleição constitucional do sistema acusatório, no
plano dos direitos fundamentais, conforme será examinado no próximo
capítulo, levou Jorge de Figueiredo Dias, a propósito da revisão
constitucional, a assinalar que se levantou um veto terminante a qualquer
veleidade de regresso a ideias típicas do processo inquisitório (A Revisão
Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, Lisboa: Horizonte, 1981,
pp. 46 e 50), haja vista a vocação de eternidade dos direitos fundamentais.
143 Ferrajoli, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias, p. 41.
sempre submetida à valoração do juiz — dos seus
significados com a Constituição. Daí deriva que a
interpretação judicial da lei é também sempre um
juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz
tem o dever e a responsabilidade de escolher
somente os significados válidos, ou seja,
compatíveis com as normas constitucionais
substanciais e com os direitos fundamentais por
elas estabelecidos. Era isto, e não outra coisa —
diga-se de passagem — o que entendíamos há vinte
anos com a expressão ―jurisprudência alternativa‖,
em torno da qual tantos equívocos surgiram:
interpretação da lei conforme à constituição e,
quando a contradição é insanável, dever do juiz de
declarar a invalidade constitucional; portanto, já
não é uma sujeição à lei de tipo acrítico e
incondicional, mas sim sujeição, antes de mais, à
Constituição, que impõe ao juiz a crítica das leis
inválidas, por meio da sua reinterpretação em
sentido constitucional ou a sua denúncia por
inconstitucionalidade.‖
2.5. Sistema
Tipológica
e
Princípios:
Uma
Aproximação
Aceitando-se como premissa da abordagem pretendida
que a estrutura processual penal sobre a qual devem atuar as
garantias constitucionais subordina-se necessariamente à
Constituição, cumpre agora determinar-lhe a natureza
jurídica, enfrentando, ainda que sem pretensões de
exaurimento das alternativas, as questões que se colocam
sobre tratar-se de um sistema, e neste caso definir de que
sistema se trata (se acusatório, inquisitório ou misto,
conforme a eleição constitucional a ser examinada em
capítulo próprio), ou de um princípio.
Sem embargo não se deve esquecer da advertência de
Maurício Lopes, mencionada na introdução deste trabalho, a
respeito da possibilidade da realidade normativa preencher o
modelo de mais de uma categoria jurídica, simultaneamente,
desde que não se cuide de categorias excludentes.
É importante também destacar que a estrutura
processual conforme o devido processo legal formal e
substancial, ela própria, estrutura, configura verdadeira
garantia de implementação dos direitos fundamentais, e,
portanto, dela se alimenta de nutrientes normativos que
viabilizam a sua existência e validade.
Convém alertar para o fato de a estrutura processual —
que será observada detalhadamente em outra oportunidade,
repita-se — não corresponder, é claro, a um modelo puro,
como, aliás, sublinham Fauzi Choukr e Afrânio Jardim.
Choukr salienta que a elaboração de um modelo, referindose ao modelo acusatório, supõe a elaboração de um esquema
tão próximo quanto possível da realidade144 e Afrânio Jardim
remata que a estrutura processual penal de hoje, no Brasil, é
um produto inacabado.145 Podemos inferir que ambos se
referem, ainda que indiretamente, à categoria sociológica do
tipo, explorada por Max Weber.
Para melhor compreender a problemática, entendendo
as diferenças entre diversos ordenamentos jurídicos que
optaram por estruturas processuais similares mas não
necessariamente idênticas, recorremos, assim, a Weber,
assinalando que ele, conferindo estatuto científico às ciências
da realidade (sociais), produziu aquela que talvez seja, senão
a sua mais importante, pelo menos a mais famosa
contribuição, consistente na criação do ―tipo ideal‖.
Trata-se, na formulação de Medina y Echavarría, de um
método que possibilita enfrentar ―a necessidade de captar,
no possível, a irracionalidade da vida através do
racional‖.146
144 Choukr, ob. cit..
145 Jardim, Ação Penal Pública, p. 24.
146 Medina y Echavarría, José apud Neto, A. L. Machado. Sociologia Jurídica,
São Paulo: Saraiva, 1987, p. 36.
Não é preciso sublinhar que os tipos ideais de Weber
não correspondem às formas reais das ações individuais,
sociais ou mesmo relações sociais que tencionam
representar, da mesma forma que não corresponderiam às
relações jurídicas. Pelo contrário, não há uma vinculação
automática entre os tipos e as realidades que lhes são
subjacentes, na medida em que os primeiros são construídos
pela separação daquelas características que mais os
enfatizam, muito embora, logicamente, os fatos sociais e
jurídicos venham impregnados de caracteres impostos pelas
circunstâncias singulares da sua origem, perpassadas pelas
mais diversas relações sociais.147
Assim, parece claro, não encontraremos, quer onde
prevalece a estrutura acusatória, quer onde predomina a
inquisitória, bases absolutamente idênticas a ponto de serem
justapostas e não se observarem notas discrepantes.148
Isto não significa que os conceitos dos diversos sistemas
são inúteis ou inadequados, como quer fazer crer Montero
Aroca. Para o respeitado jurista espanhol, os chamados
sistemas processuais são ―conceitos do passado, que hoje não
têm valor algum, servindo unicamente para confundir ou
turbar a clareza conceitual‖.149
A capacidade de racionalizar o modo como as questões
147
Pode-se até mesmo discutir o valor histórico do tipo ideal,
considerando a neutralidade que lhe pretendia impor Weber — para quem,
ao que parece, não havia um sentido finalístico ou teleológico no curso
histórico. Não se lhe pode negar, contudo, a qualidade de vincular pesquisa
sociológica e pesquisa histórica, do modo como pôs em relevo Machado
Neto (Sociologia Jurídica, São Paulo: Saraiva, 1987, p. 37). Ver também, do
próprio Weber, ―A ‗Objetividade‘ do Conhecimento nas Ciências Sociais‖, in
Weber, Cohn, Gabriel (org.). São Paulo: Ática, 1991, pp. 79-127,
especialmente 112-114.
148 A título de exemplo, basta confrontarmos os modelos alemão e italiano
atuais com os similares brasileiro e espanhol e veremos que no primeiro
caso a iniciativa para o processo penal será de regra oficial e, no segundo,
admite-se diferentemente, ainda que em caráter excepcional, a iniciativa do
ofendido com ampla liberdade no exercício da denommnada ação penal
privada, tratando-se, de toda sorte, de sistemas acusatórios.
149 MONTERO AROCA, Juan. El Derecho Procesal em el Siglo XX, Valencia:
Tirant Lo Blanch, 2000, p. 107.
em torno da punição de agentes foram resolvidas, ao longo
do tempo, permite identificar pontos de contato entre as
várias formas e relacionar estes pontos a modelos específicos
de organização política.
A função da identificação dos sistemas será
aprofundada mais adiante.
A primeira abordagem a ser realizada, porém,
relaciona-se com a designação de sistema, pois, como
acentua Geraldo Ataliba,150 ―o estudo de qualquer realidade
— seja natural, seja cultural — quer em nível científico, quer
didático, será mais proveitoso e seguro, se o agente é capaz
de perceber e definir o sistema formado pelo objeto e aquele
maior, no qual este se insere‖.
Bobbio igualmente destaca o uso corrente do termo
sistema na linguagem jurídica, ele próprio admitindo que
emprega a expressão várias vezes no lugar de ―ordenamento
jurídico‖, e, reconhecendo que a palavra tem inúmeros
sentidos, assevera que a determinação de um sistema
confere estatuto científico às tarefas de interpretação levadas
ao cabo pelos juristas.151
Com efeito, salienta Cármem Lúcia Antunes Rocha, a
Constituição é um sistema, porque as normas e princípios
que a compõem não estão soltos e desvinculados mas, sim,
presos a uma acomodação harmônica, determinada por uma
precisa gradação das denominadas normas fundamentais.152
Acrescenta a citada autora que, para ser um sistema, a
Constituição deve ser concebida como:153
―Épuras, quero dizer, como elementos
normativos concertados e coerentes, que enfeixam
normas jurídicas acomodadas numa justaposição e
150 Ataliba, Geraldo apud Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito
Administrativo, 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 51.
151 Bobbio, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, Brasília: Polis, 1989,
p. 75.
152 Rocha, Cármem Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade,
Belo Horizonte: Lê, 1990.
153 Idem.
que se associam e permitem o movimento
harmônico permanente do regramento pela
interpretação e na aplicação de suas disposições.‖
Isto posto, a primeira anotação pertinente, que se extrai
da preciosa lição de Cármem Rocha, fundamentalmente
jurídica mas nem por isso não antropológica, refere-se ao
fato de que um sistema não é um conjunto solto e
desarticulado de normas e instituições, o que foi ressaltado,
mas sim uma realidade medida exatamente em virtude da
coerência interna destas mesmas normas e instituições —
acrescentaria princípios e sujeitos, que agem no interior do
sistema de determinada maneira —, muito embora, hoje se
saiba, que os sistemas não têm pretensão de absoluta
harmonia e completude, o que explica eventuais antinomias
e lacunas.154
A inferência de tal realidade serve a inúmeros
propósitos, entre os quais se destaca o descritivo, em virtude
do que se potencializa a avaliação sistêmica a partir dos
comandos redutíveis aos emanados da norma fundamental
ou Constituição, base do sistema jurídico, e, ainda, o de se
prestar, metodologicamente, à compreensão da inter-relação
de elementos distintos.
No Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio
Vargas, define-se sistema como:155
―Conjunto de coisas que ordenadamente
entrelaçadas contribuem para determinado fim;
trata-se portanto de um todo coerente cujos
diferentes elementos são interdependentes e
constituem uma unidade completa.‖
A evidência de um sistema constitucional, realçada por
Marcelo Neves como, em realidade, manifestação de um
154 Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, pp. 78-86.
155 Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Benedicto
Silva (coord.), 1986, p. 1127.
subsistema derivado do sistema jurídico-político,156 revela-se
de significativa importância quando se trata da classificação
da estrutura processual, uma vez que, se quisermos de fato
definir essa estrutura como sistema (acusatório, inquisitório
ou misto), e aí melhor será denominá-lo subsistema, tal
consideração há de decorrer da integração ao primeiro
(sistema constitucional), manifestando-se como complexo de
procedimentos entrosados inerentes ao sistema judiciário, ao
qual se acoplará em vista das estruturas peculiares deste
último, com o objetivo de satisfazer uma necessidade
específica, isto é, viabilizar a solução dos conflitos de
interesses
consoante
mecanismos
que
imponham
concretamente o respeito aos direitos fundamentais.
Na verdade, o sistema processual está contido no
sistema judiciário, por sua vez espécie do sistema
constitucional,
derivado
do
sistema
político,
implementando-se deste modo um complexo de relações
sistêmicas que metaforicamente pode ser desenhado como
de círculos concêntricos, em que aquele de maior diâmetro
envolve o menor, assim sucessivamente, contaminando-o e
dirigindo-o com os princípios adotados na Lei Maior.
A idéia dos subsistemas decorre do reconhecimento da
filiação deles a um dos vários sistemas observáveis na vida
social, fundamentando-se a construção no pensamento
similar de Luhmann, sobre sistemas sociais, diferentemente
do desenho clássico desenvolvido por Bertalanffy, pois que
de início pensamos os sistemas como autoreferentes, ou seja,
definidos precisamente por sua diferença com respeito ao
seu entorno, de tal modo que só podem entender-se como
tais a partir dessa diferença.
A auto-referência que os caracteriza, assinala Ignacio
Izuzquiza, pode ser vista, enquanto fenômeno, como
156 Marcelo Neves, p. 63: É possível concebê-la (a Constituição), sob o ponto
de vista político-sociológico, como um instituto específico do próprio
sistema político. Mas, para os fins a que nos propomos, a análise do
significado
da
constitucionalização
simbólica,
apresenta-se
estrategicamente oportuno o conceito de Constituição como subsistema do
sistema jurídico.
derivada do fato de que cada um dos sistemas se diferencia
dos demais pelo seu próprio tipo de operação autopoiética
(estruturada).157
Cada um desses sistemas possui suas próprias leis e
ainda se diferencia do seu entorno. Como acentua Izizquiza,
o conceito de sistema auto-referente é dinâmico e exige por
isso um grande dinamismo conceitual de quem o emprega,
apesar do que deve enriquecer-se com os conceitos
essenciais da observação e da diferença.158
Porém, no plano dos subsistemas releva notar, por
oportuno, que o âmbito de comunicação deles entre si se
especializa, na medida em que desenvolvem sua própria
linguagem, relacionando-se com os demais subsistemas, que
operam como entorno daquele auto-referente e fechado.159
Isso fica mais claro quando observamos que, no caso
peculiar do sistema processual, dada a sua relação com o
sistema judiciário, prevalece a lógica funcional que inspira
este último, obviamente vinculado à função judiciária
157 Campilongo (ob. cit., p. 74), a propósito do termo autopoiesis, salienta que
o neologismo, tão esotérico quanto as idéias de Luhmann, traslada para os
sistemas sociais o conceito desenvolvido por Maturana e Varela, para
exame dos sistemas biológicos. De se salientar, por isso e por outras
evidências captadas na extensa obra de Luhmann, que tanto a generalidade
como a interdisciplinariedade se impõem no seu pensamento, a partir do
reconhecimento da complexidade social e da constatação de que toda teoria
deve ser uma arma para reduzi-la. A complexidade da sociedade
contemporânea se estabelece, para o sociólogo, em razão do aumento da
diferenciação de uma dada sociedade. O paradoxo da teoria do mestre
fundamenta-se no sentido de que somente com o incremento da
complexidade é possível reduzir-se a própria complexidade do dado ou
relação social em estudo, cumprindo a teoria este papel, que lhe defere o
pensador. Sendo assim, alcança Luhmann o projeto de concepção de uma
teoria sistêmica, como forma de compreensão da sociedade complexa, de
tal sorte que sua obra pode ser qualificada como ―sociologia sistêmica‖.
158 Izuzquiza, Ignacio. Sociedad y Sistema: La Ambición de la Teoria. Buenos
Aires, Barcelona e México: Ediciones Paidos, 1990, p. 19.
159 Fechado naturalmente do ponto de vista normativo, pois que somente o
direito pode mudar o direito, mas aberto cognitivamente, porque requer
trocas de informações entre os sistemas e seus ambientes, como ressaltou
Campilongo (ob. cit., p. 75).
básica,160 sem embargo do direito processual penal perfilarse como um sistema normativo próprio, auto-referente.161
Além dos fins de descrição e de compreensão da interrelação de seus elementos, a categoria sistema processual
reveste-se ainda de especial magnitude por possibilitar a
delimitação do espaço jurídico-processual destes elementos,
em razão da função do sistema, vinculada à necessidade vital
que procura satisfazer.162
Dir-se-á que o elemento avaliado isoladamente,
pertence ao sistema processual na razão direta da sua
funcionalidade, que não poderá, todavia, desprezar para a
sua caracterização o que mais atrás se registrou como
tendência de uma funcionalidade de matiz garantista e não
meramente utilitarista.
Uma lei que proponha a iniciativa do juiz para o
processo penal de cunho condenatório não pode pertencer ao
sistema processual acusatório, embasado em uma
Constituição que o consagre e, portanto, tal lei não será
válida, ainda que funcional no sentido utilitarista, de mera
adjudicação de uma solução ao conflito de interesses penal.
A possibilidade de uma avaliação desse nível denuncia a
viabilidade e mesmo necessidade da categoria proposta, sem
embargo da concreta observação de que a função primordial
da estrutura processual há de ser aquela de garantia,
160 É conveniente, para o fim de esclarecimento, a apropriação da definição de
sistema judiciário, empregada por Bobbio, Matteucci e Pasquino (Bobbio,
Norberto, Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco, Dicionário de
Política, vol. II, 4ª ed. Brasília: UNB, 1992, pp. 1157-1163): um complexo de
estruturas, de procedimentos e de funções mediante o qual o sistema
político (do qual o Sistema judiciário é na realidade um subsistema)
satisfaz uma das necessidades essenciais para a sua sobrevivência: a
adjudicação das controvérsias pela aplicação concreta das normas
reconhecidas pela sociedade - p. 1157.
161 Andrade, Manoel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo
Penal, Coimbra, 1992, p. 27.
162 Frise-se, nesta perspectiva, que um sistema é, pois, sempre instrumental,
existindo na medida em que é necessário à satisfação de uma necessidade
de relevo social. Por isso, a sua presença no meio social está condicionada
ao sentimento de necessidade captado pela comunidade e a sua
conformação também obedecerá à compreensão social dessa necessidade.
mencionada no item Constituição e Processo Penal, e da
efetiva potencialização dos elementos que isoladamente a
constituem como membros de uma categoria de fundo
axiológico, tal seja, a de princípio, o que veremos adiante.
Advirta-se antes para o fato da funcionalidade, nessa
ótica de garantias, estar ditada pelo reconhecimento prévio
do valor essencial dos direitos fundamentais, ou, de outra
maneira, da aceitação de um conteúdo essencial como núcleo
intrínseco de cada direito, permitindo com isso que a tarefa
descritiva não esvazie a percepção sistemática, confundindoa com mero funcionalismo que cede aos influxos de
conjunturas e circunstâncias.163
Os termos princípio ou princípios, como tantas outras
categorias examinadas nesta obra, têm diferentes
significados, dos quais apenas um verdadeiramente nos
interessa.
Com efeito, José Carlos Barbosa Moreira esclarece que a
doutrina alemã do início do século XIX preocupou-se em
compendiar em ―princípios‖ ou ―máximas‖ as diretrizes
político-jurídicas que se podem acolher na ordenação do
processo,164 buscando-se pelo reconhecimento dessas
diretrizes, segundo supomos, obter uma atuação harmônica
e eficaz deste mesmo processo enquanto instrumento da
jurisdição.
Apesar da validade da utilização dos princípios como
nortes ou regras abstratamente considerados, dispostos à
interpretação e aplicação dos institutos processuais, a
expressão tem, para os objetivos do trabalho, o significado
peculiar mais relevante de categoria de natureza
especialmente constitucional, dotada de multifuncionalidade
apta a possibilitar que a Constituição não se extinga em
limites exclusivamente positivados, incapazes de apreender a
163 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo
ante el Tercer Milenio: p. 17.
164 Moreira, José Carlos Barbosa. ―O Problema da Divisão do Trabalho entre
Juiz e Partes: Aspectos Terminológicos‖, in Temas de Direito Processual Quarta Série, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 36. Neste sentido é possível
falar, por exemplo, em princípios da ação penal.
inesgotável riqueza de situações do porvir, inerentes ao
desenvolvimento da sociedade e do Estado e a conformação
das suas instituições.
Através dos princípios e da sua multifuncionalidade,
abrem-se os horizontes da Constituição e emergem as
potencialidades de disciplina jurídica de um sem número de
fatos novos, inexistentes ao tempo da promulgação da Carta,
ou, mais ainda, impensáveis naquela ocasião, enquanto
conformam-se as instituições existentes e os indivíduos que
integram o grupo social de acordo com o programa de
valores que o compromisso político sufragou.
Uma Constituição não vive exclusivamente de regras,
impondo-se em termos de constitucionalismo adequado que
a estrutura sistêmica construa-se pela conjugação de regras e
também de princípios, estes caracterizados pelo alto grau de
abstração, pela exigibilidade de mediação do legislador ou do
juiz, e pela fundamentalidade no sistema, condicionando-se
reciprocamente. A este respeito, assim se pronunciou Gomes
Canotilho:165
―A existência de regras e princípios, tal como
se acaba de expor, permite a decodificação, em
termos de um ―constitucionalismo adequado‖... da
estrutura sistêmica, isto é, possibilita a
compreensão da constituição como sistema aberto
de regras e princípios.
Um
modelo
ou
sistema
constituído
exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um
sistema jurídico de limitada racionalidade prática.
Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e
completa — legalismo — do mundo e da vida,
fixando, em termos definitivos, as premissas e os
resultados das regras jurídicas.‖
Não custa salientar que, não tendo o presente trabalho a
pretensão de ser uma dissertação sobre normas
165 Canotilho, ob. cit., pp. 174-175.
constitucionais, para o que remetemos o leitor às duas obras
clássicas, de José Afonso da Silva e Luís Roberto Barroso,166
não se projeta uma classificação das mencionadas normas,
sem embargo a que fique registrado que por normas
constitucionais, em sentido material, entendem-se aquelas
que versam sobre a estrutura do Estado, funcionamento de
seus órgãos, direitos e deveres dos cidadãos. As normas
constitucionais formais derivam das prescrições que o poder
constituinte
inseriu
numa
Constituição
rígida,
independentemente de seu conteúdo e da incidência
eventual de uma sanção, como conseqüência jurídica da sua
inobservância167. É igualmente preciosa a resenha
classificatória desenvolvida por Barroso,168 resumindo-se,
todavia, nosso estudo ao apanhado pertinente à tipologia de
princípios.
Por sua vez, define-se princípio como ―mandamento
nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua
exata compreensão e inteligência, assim se proclamando
exatamente por definir a lógica e a racionalidade do
sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
sentido humano‖.169
O princípio confere ao texto constitucional vida, relação
com a realidade plasmada na eleição dos valores
considerados primordiais para a manutenção de um estado
de compromisso social, expondo-se como dimensão
determinante, apta a fornecer diretrizes materiais de
interpretação das normas constitucionais.
Desse modo, assimilando-se a idéia de que a
166 Silva, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2ª ed. São
Paulo: RT, 1982. Barroso, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a
Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição
Brasileira, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
167 Silva, José Afonso. Ob. cit., pp. 35 e 40.
168 Barroso, Luís Roberto. Ob. cit., pp. 89-118.
169 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo,
São Paulo: RT, 1980, pp. 230-231.
Constituição preocupou-se com a estruturação do processo
penal, o que é natural, na medida mesma em que dispôs
inúmeros direitos e garantias fundamentais referidos à
persecução penal, cabe indagar de que modo se tratou na
Carta desses princípios estruturantes. Afinal, Direito
Constitucional e o Direito Processual Penal são legatários de
uma vocação comum, como salientou Bettiol,
A verdade é que na tipologia dos princípios
constitucionais, conforme estudada por Canotilho,170 eleita
como a que preenche mais fielmente os objetivos deste
trabalho, destacam-se aqueles denominados fundamentais,
―historicamente
objetivados
e
progressivamente
introduzidos na consciência jurídica‖, os princípios políticos
constitucionalmente conformadores, dado que ―explicitam
as valorações políticas fundamentais do legislador
constituinte‖, os constitucionais impositivos, derivados de
uma Constituição dirigente, que ―impõe aos órgãos do
Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a
execução de tarefas‖, e, finalmente, os princípios-garantia,
traduzindo-se em garantias diretas para todas as pessoas.
Parece evidente que, se é possível encontrar na
Constituição da República as diretrizes da estrutura
processual, tais diretrizes concebem-se certamente como
decorrentes dos princípios fundamentais do Estado de
Direito e da Democracia, com a divisão e controle de
poderes, ao lado da publicidade, e dos princípios-garantia,
vinculados à exigência de juiz imparcial, do exercício
privativo da ação penal pública pelo Ministério Público, da
garantia da ampla defesa (autodefesa e defesa profissional ou
técnica) e da prescrição da atividade de polícia judiciária a
determinados órgãos, consistindo estas diretrizes em
subprincípio derivado daqueles estruturantes, relacionados
aos dois citados, como, indiscutivelmente, o princípio da
separação de poderes.
Canotilho, em sua obra tantas vezes mencionada,
denuncia este fenômeno como a densificação dos princípios
170 Canotilho, ob. cit., pp. 176-180 e 186-189.
gerais fundamentais pela concretização de princípios
constitucionais especiais,171 de sorte tal a que os
subprincípios sejam tão importantes para a coerência
sistêmica da Constituição quanto os próprios princípios o
são, em um concerto harmônico indispensável.
Assumir, portanto, a imparcialidade do juiz — objetiva e
subjetiva, diria Teresa Armenta Deu172 — a iniciativa do
Ministério Público para a deflagração do processo, por meio
do exercício da ação penal pública e, excepcionalmente, a
iniciativa do lesado, exercitando a denominada ação penal
privada,173 a imprescindibilidade de defesa — técnica e
também pessoalmente, pelo imputado — e a evidência de
uma atividade de polícia judiciária, a cargo de órgãos
distintos daqueles que propõem a ação e julgam o pedido
(dessa forma clarificando a indispensabilidade da justa causa
para a ação penal, como exigência em nível
constitucional),174 revela-se como compreensão da estrutura
processual a partir de um princípio constitucional
fundamental e de garantia, no caso, o princípio acusatório,
que será estudado no próximo capítulo,175 criando o
ambiente normativo adeqado para a determinação do modus
operandi concreto do processo penal.
O sistema constitucional, por isso, averbe-se, subordina
pela via das normas constitucionais uma estrutura
processual específica, cuja natureza, inequivocamente, podese acentuar, é a de sistema ou subsistema, como conjunto
171 Idem, p. 187.
172 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, Zaragoza:
Bosch, 1995, p. 48.
173 Ação penal de iniciativa privativa do ofendido (artigos 5º, inciso LIX, da
CR, e 100 do Código Penal).
174 Respectivamente, artigos 5º, inciso LIII; 129, inciso I; 5º, incisos LIX e LV;
e 144, § 4º, todos da Constituição da República Federativa do Brasil.
175 A doutrina não se pacificou sobre que elementos compõem o princípio
acusatório, às vezes inserindo características do princípio dispositivo, às
vezes causando confusão com os princípios do contraditório e da igualdade
de armas. No geral, porém, e para os limites da posição que se adota, duas
são as características do princípio acusatório: iniciativa para o processo
levada a efeito por sujeito distinto do juiz; divisão clara entre as funções de
acusar, defender e julgar.
harmônico de normas e princípios constitucionais aplicáveis
ao processo, e também de princípio,176 voltada tal estrutura
para a concretização da persecução penal conforme os
valores indiscutíveis dos direitos fundamentais.
Estes valores foram e são referendados em uma
sociedade e em um Estado democráticos, importando, assim,
interpretarem-se as instituições processuais conforme tais
sistema e princípio evolutivamente, porquanto somente
dessa maneira se respeita o compromisso político haurido da
Carta Constitucional.177
176 Assim também a definiu, em relação ao modelo espanhol Vadillo, na obra
citada anteriormente, p. 140. Devemos frisar que o princípio acusatório,
como será tratado posteriormente, constitui o núcleo básico do sistema
acusatório mas não o esgota, na medida em que este último reclama, para
sua conformação, outros princípios e normas (oralidade, publicidade).
177 Karl Joseph Anton Mittermaier (Tratado de la Prueba en Materia
Criminal, tradução por Gonzáles del Alba, Buenos Aires: Hammurabi,
1993) destacou que o estudo das duas formas básicas de estruturas
processuais remete à conclusão de que dondequiera que reina la
democracia domina el procedimiento de acusación (p. 54). A tese central
deste trabalho concorda plenamente com a proposição do Mestre, porém
será deduzida no próximo capítulo.
3. Sistemas Processuais
A compreensão do fenômeno jurídico que envolve
aquele campo do Direito que lida com a limitação das
liberdades do indivíduo, por meio da efetivação das mais
graves medidas de coação previstas no ordenamento jurídico
— nas leis e na Constituição — com emprego de mandatos e
proibições, projetando-se na esfera do exercício do poder
político, em um primeiro momento há de demandar exame
conforme o contexto espaço-temporal em que se encontra
inserido.
Os olhos devem estar voltados para a história, apesar de
sabermos que os elementos característicos predominantes
dos sistemas processuais variam não só do ponto de vista
histórico como também na perspectiva teórica.
Assinala, precisamente, Julio B. J. Maier,1 que se o
Direito, como matéria de estudo, é um objeto cultural, criado
pelo homem na medida em que estabelece formas de
convivência comunitária, sedimentadas no especial modo de
viver em um instante específico dessa vida politicamente
organizada, as suas regras são, portanto, contingentes.
Cuida-se de conseqüência da própria contingência da
organização social sujeita a transformações decorrentes das
condições demográficas e de exercício do poder, além das
experiências positivas e negativas vividas, de sorte que o
conhecimento do Direito seria impossível sem o
conhecimento do lugar que ocupa no estudo da evolução
jurídica.
Todos os povos, como se sabe, estão em contínua
transformação2 e a ciência e tomada de consciência da sua
História, da nossa História, representam a libertação de
preconceitos, pela capacitação do indivíduo para perceber o
1
2
Derecho Procesal Penal Argentino, Buenos Aires: Hammurabi, 1989.
Costa, Álvaro Mayrink. Direito Penal - Parte Geral, 3ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1991.
que de latente se encontra no conjunto das relações sociais,
objetivando a orientação do seu comportamento, assim como
o prisioneiro da caverna, de Platão, preso e subjugado pelo
ilusionismo de um teatro de sombras, que lhe parecia
realidade única, pode capacitar-se, orientar-se e libertar-se
após converter o seu olhar e se dar conta de que o que via se
tratava de sombras, geradas pela fonte de luz artificial às
suas costas, que num momento inicial não havia podido
enxergar.
De outra forma, releva notar, estamos condenados a
repetir nossos erros, na crença de que inovamos ao
voltarmos aos métodos que um dia repudiamos, sendo, pois,
a História, a disciplina que nos garante, ou tenta garantir, o
aprendizado de dolorosas lições e evitar a constatação da
negação do axioma de Decartes, de que nem o próprio Deus
pode fazer com o que aconteceu deixe de ser um
acontecimento.3
Por isso, e mais especificamente para o objeto do nosso
estudo, o ―sistema acusatório‖, é de todo imprescindível que
sejam dedicadas algumas considerações à evolução histórica
das formas por meio das quais foi estruturado o modelo
3
Decartes, apud Adauto Novaes, ―Sobre Tempo e História‖, in Tempo e
História, Org. Adauto Novaes, São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 9. José
Henrique Pierangelli menciona, em sua obra de leitura obrigatória a
respeito da evolução histórica do processo penal no Brasil, passagem de
Ruy Rebello Pinho, sobre a importância do estudo histórico, que merece
ser transcrita. Com efeito, assinalou o ilustre escritor: O passado pode ser
estudado com frieza, com indiferença, de um modo estático e tolo,
semelhante ao do turista inculto que ‗coleciona‘ visitas a museus e
entradas de cinemas estrangeiros. Mas pode, também, ser analisado de
um modo vivo, dinâmico, útil. Mostrou-o, certa vez, de maneira elegante,
num concurso para a Faculdade Nacional de Direito, Alceu Amoroso
Lima. Censuravam-no por buscar na antiguidade um tema de economia
política, quando o mundo de hoje é prenhe de graves problemas
econômicos a resolver. E ele respondeu que agia como aquele escritor, se
não me engano Afrânio Peixoto, o qual, cansado de procurar acima do
solo as causas do definhamento de linda árvore de seu jardim,
mergulhara as mãos na terra e descobrira uma pedra enorme impedindo
o desenvolvimento subterrâneo das raízes do vegetal que fenecia
(Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, Bauru: Jalovi,
1983, p. 11).
político-jurídico de resolução dos conflitos de interesses ou
de casos na esfera penal.
Advirta-se que isso será feito ainda sem adiantar a
polêmica sobre que elementos de fato caracterizam o sistema
acusatório e o distinguem do inquisitório.
A divergência doutrinária acerca dos elementos que
caracterizam os dois sistemas será melhor compreendida
depois da vista histórica. Afinal, os fatos não são os únicos
objetos da história. A também uma história das idéias, dos
conceitos, que são concebidos para dar conta de
determinadas demandas. A nosso juízo isso acontece com o
conceito Sistema Acusatório.
Um estudo voltado à história, mesmo que dominado
pelo propósito de apenas lançar algumas luzes para viabilizar
o entendimento do modelo processual em vigor (ou, pelo
menos, do modelo que a Constituição brasileira promete
implementar), ressalvados os riscos e dificuldades dos quais
nos adverte Ada Grinover, quando se trata de descrever um
sistema jurídico estrangeiro, vigente em qualquer época,4
pode desenvolver-se normalmente de duas maneiras:
escolhem-se, pela ordem, as estruturas processuais,
considerando-se o grau de sofisticação ou complexidade das
4
Salienta a ilustre professora que é sempre arriscado e difícil para o
estudioso descrever um sistema jurídico estrangeiro, em virtude das
diferenças endógenas existentes entre os diversos ordenamentos e dos
naturais obstáculos para captar com fidelidade o sentido e alcance de
normas jurídicas que espelham outra cultura e promanam de valores
sociais, econômicos e políticos distintos (Grinover, Ada Pellegrini. ―O
Crime Organizado no Sistema Italiano‖, in O Crime Organizado (Itália e
Brasil): A Modernização da Lei Penal. Penteado, Jaques de Camargo
(coord.). São Paulo: RT, 1995, p. 13). Ocorre, porém, e não é ocioso
relembrar, que o estudo comparativo do direito equipara-se atualmente aos
demais critérios clássicos da hermenêutica — gramatical, lógico, histórico e
sistemático — aos quais se soma para auxiliar o intérprete na compreensão
do seu próprio ordenamento. Peter Häberle alude, assim, ao postulado de
Goethe, em virtude do qual quem não conhece nenhum idioma
estrangeiro, tampouco conhece o seu, para ressaltar que é plenamente
aplicável ao jurista quanto ao conhecimento do ordenamento jurídico
nacional — Pérez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y
Constitucionalismo ante el Tercer Milenio: Derechos Humanos y
Constitucionalismo en la Actualidad, Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 24.
sociedades ou civilizações, independentemente do tempo em
que se apresentaram, partindo-se das mais rudimentares
para as mais ―desenvolvidas‖,5 assim entendidas estas
últimas como as sociedades que alcançaram maior domínio
sobre a natureza, pelo uso das tecnologias disponíveis e,
simultaneamente, diversificaram de maneira significativa as
funções atribuídas aos seus membros; ou estudam-se tais
estruturas levando em conta o surgimento histórico dos
denominados sistemas, critério, de um modo geral, preferido
pela maioria dos autores,6 haja vista a facilidade de
compreensão das instituições derivada da ordenação
cronológica, motivo pelo qual será eleito, com ênfase para as
matrizes dos sistemas processuais que vieram a ser adotados
no Brasil.
Lembramos que a partir da 3ª edição do ―Sistema
Acusatório‖ abdicamos de atualizar dados relativos às
transformações ocorridas em diversos Estados.
Na América Latina, por exemplo, o Centro de Estudios
de Justicia de Las Américas – CEJA – promoveu ou
estimulou pesquisas e trabalhos conjuntos responsáveis pela
transformação quase total dos Códigos de Processo Penal (de
leis esparças, das regras de Administração e Funcionamento
da Justiça Penal e de pontos específicos das Constituições
também).
Estes estudos foram fundamentais para que certos
sistemas legais mudassem por completo, como é o caso do
modelo adotado no Chile.
A experiência com nota de radicalidade acusatória,
criando-se o Ministério Público onde não havia, destacandoo do tribunal para lhe conferir autonomia (nestes Estados é
5
6
Critério utilizado por Julio Maier, na obra acima mencionada.
Ver Riquelme (Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, Santiago:
Editorial Jurídica de Chile, 1978), Manzini (Tratado de Derecho Procesal
Penal, tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, e
Istituzioni di Diritto Processuale Penale, 11ª ed. Padova: Cedam, 1954),
Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Levene (Derecho Procesal Penal,
tomo II, Buenos Aires: Guillermo Kraft) e João Mendes (O Processo
Criminal Brasileiro, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959).
impensável ver o Ministério Público sentado ao lado do juiz
na sala de sessões), reconfigurando a etapa de investigação
preliminar, em que o juiz só tem funções de garantia,
perdendo o poder de dirigir as mencionadas investigações, e
implementando a oralidade, produziu câmbio significativo.
Estas reformas são compatíveis com a transição para a
Democracia, mudam a face do processo penal e embora
realizadas a partir do início dos anos 90, não foram ainda
concluídas.
Tais mudanças, todavia, enfrentam alguns obstáculos:
a) a mentalidade inquisitória, ainda forte, só compreende
alterações na estrutura do processo penal quando enxerga o
aperfeiçoamento do sistema punitivo. Assim, há a tendência
a associar-se o surgimento de um novo Código de Processo
Penal, conforme o modelo acusatório, ao aumento do
número de casos julgados e réus condenados. Esta
―conseqüência‖ não é automática e as transformações não
são produzidas tendo em vista este objetivo, mas tão-só
tornar operacionais as garantias declaradas nas várias
Constituições e nas Convenções Internacionais de Direitos
Humanos (com destaque para o Pacto de São José da Costa
Rica).
Nos Seminários e Congressos promovidos pelo CEJA
são quase unânimes os relatórios regionais denunciando a
oposição dos meios de comunicação ao novo ―estado de
coisas‖, por conta de uma suposta tolerância dos sistemas
acusatórios com a criminalidade.
Não custa lembrar que exercício de direitos
fundamentais não implica estímulo à criminalidade. Na área
técnica e de pesquisa isso é evidente. O discurso dos media,
todavia, é engrossado por uma lista de ―especialistas‖ que
estimulam a resistência ao modelo democrático de processo
penal, reivindicando uma ―volta ao passado autoritário‖ em
que a tolerância à tortura, por exemplo, é praticamente
admitida e defendida; b) a existência de recursos
orçamentários necessários para a implantação do novo
sistema. Transitar do sistema inquisitório para o acusatório
significa mudar lugares, adaptá-los às funções que deverão
cumprir. Importa, também, criar Ministérios Públicos onde
antes não havia e equipar Defensorias Pùblicas. Ainda há de
se pensar em termos de treinamento e capacitação de
pessoas, desde os funcionários encarregados de atender ao
público e processar os expedientes até juízes, promotores de
justiça e defensores, habituados ao processo escrito, lento e
sigiloso, substituído por um mecanismo oral, ágil e público.
Isto custa dinheiro e em época de contenção do déficit
público são espinhosas as negociações voltadas à autonomia
administrativa e financeira das citadas instituições (Poderes
Judiciários, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas); c)
a predominância de um estilo de ensino jurídico distanciado
da realidade, carente de contato interdisciplinar e além de
tudo modulado para preparar o futuro profissional do direito
para atender a demandas ultrapassadas por novas formas de
sociabilidade e conflito.
O chamado ―mundo do direito‖ ainda aparece nos
cursos de formação universitária retratado à semelhança do
estilo positivista que domina os cursos jurídicos desde o
século XVIII. A chave do ―sistema acusatório‖, no entanto, é
constituída por elementos de análise da realidade que
percebem o sistema penal como sistema de Poder. A
natureza política do direito e do processo penal é responsável
pelo tipo de técnica empregada nos tribunais. Sem entender
isso, tal seja, sem compreender que as técnicas em direito
são informadas por critérios ideológicos, corre-se o risco de
se persistir acreditando em uma neutralidade axiológica dos
instrumentos do poder punitivo, esvaziando o conteúdo das
funções a serem exercidas pelos profissionais. Daí que não
bastam os novos prédios, as novas carreiras jurídicas (ou
novas formas de trabalhar as conhecidas carreiras) e os
novos procedimentos legais se as pessoas continuam agindo
e pensando como se ainda vivessem sob auspício de métodos
inquisitivos.
Essa digressão tem por finalidade registrar que os
sistemas processuais dos Estados do Ocidente, incluindo, por
óbvio, os da América Latina, mudaram e/ou estão em pleno
processo de mudança.
Com isso, fica mais claro o caráter datado deste capítulo
sobre história, que é válido pelo que a investigação percebeu
até 1998. O pesquisador preocupado em saber como hoje
andam as coisas deverá ir além do que está no livro (que
salvo por raríssimas anotações, com interesse em razão de
inovações que podem consignar, não terá atualizado o item
3.1). Para manter-se em dia com as transformações sugerese, entre outros, a leitura da Revista Sistemas Judiciales,
publicação semestral do CEJA (www.cejamericas.org).
Feita a advertência, passemos ao olhar histórico
definindo antes o modo e a direção deste olhar.
3.1. Histórico: método aplicável ao objeto. Um acerto
semântico.
O primeiro registro sobre sistemas processuais coloca
em relevo uma indagação e as variadas respostas que a
civilização ocidental apresentou para ela: afinal, para que
serviram e servem os sistemas processuais?
A exata percepção do que as diversas comunidades
pretenderam com seu modo de resolver as questões penais
ajudará a traçar o perímetro dos sistemas processuais e a
compreender a opção não só por modelos antagônicos de
resolução de casos penais, como ocorre com a oposição
sistema acusatório versus inquisitório, mas também
auxiliará a entender que há formas de composição de
conflitos (que existem há séculos) que não são marcadas pela
atribuição de responsabilidade (pessoal ou coletiva).
O exame do modo como os diversos povos lidaram com
as questões que na atualidade definimos como problemas
penais é também exame de métodos que estes povos
consideravam mais importantes: ora a resolução do conflito
gerado pela prática do fato lesivo a interesses individuais ou
coletivos (a composição através de acordo entre vítima e
agente, por exemplo); ora a solução daquilo que
denominaremos ―caso penal‖, seguindo na esteira do
pensamento de Franco Cordero7, defendido no Brasil por
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho8. Nesta última
hipótese, a atribuição de responsabilidade invariavelmente
estava ligada à imposição de castigos (punição – hoje sanção
penal).
É indispensável deixar claro que a diversidade dos
objetivos (ou funções) conduz a métodos necessariamente
diferentes. Uma coisa é pretender (ou ―desejar‖) que a vítima
ou seus familiares e o agente conciliem ou cheguem a um
acordo acerca do assunto que os colocou em rota de colisão,
independentemente da gravidade do ato (poderá ser um
homicídio consumado ou tentado); outra é assinalar
conseqüências que afligirão aquele a que vier a ser atribuída
a responsabilidade pelo fato, com independência ou não da
vontade da vítima e/ou de seus familiares.
Ao longo da história da civilização ocidental os
mecanismos empregados oscilaram entre estes dois objetivos
ou estas duas funções que serão denominadas de resolução
de conflito e acertamento de caso.
Do ponto de vista da dogmática do processo penal não é
correto confundir as funções e designar sistemas com
indiferença quanto ao papel desempenhado pelos métodos
nas comunidades.
Assim, quando Michel Foucault fala em práticas
judiciárias, isto é, ―a maneira pela qual, entre os homens, se
arbitram os danos e as responsabilidades‖9 e distingue
modos de construção de subjetividades na relação instituída
entre o homem e a verdade (não necessariamente com o
sentido de ciência ou conhecimento), o mencionado
pensador está se referindo a práticas que tanto consideravam
o acertamento do caso como abriam mão disso, abriam mão
7
CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Colômbia: Temis, 2000.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo
Penal, Curitiba, Juruá, 1989 e O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, in:
Crítica à Teoria Geral do Processo Penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
9 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro: Nau,
1999, p. 11.
8
de saber se alguém praticara determinado fato, desde que o
conflito inaugurado pela notícia do fato viesse a ser resolvido
de forma satisfatória de acordo com a concepção do grupo
social.
O que para a doutrina tradicional exalava cheiro de
irracionalidade hoje deve merecer outra consideração de
nossa parte. Quer se trate das ordálias, quer surja aos nossos
olhos como mitos fundantes de uma determinada maneira
de viver e de ver as coisas, como na passagem da Ilíada,
capturada por Foucault10, tais práticas tinham um ponto em
comum: eram dirigidas à resolução de um conflito. Somente
dessa maneira é possível entender a ―racionalidade‖ que
definia a ação dos povos germânicos primitivos, quando
estes se deparavam com conflitos episódicos.
Nilo Batista nos lembra da dificuldade de recomposição
de uma época caracterizada pela tradição oral e pelos
desafios naturais cuja capacidade de compreensão fugia
àquelas comunidades11. Apesar disso, hoje estamos em
condições de saber que aqueles povos, tanto quanto os
antigos gregos, ―lutavam‖ incessantemente para alcançar a
paz na tribo. Isso importava considerar a integração do
sujeito ao grupo (à tribo) como condição para a
sobrevivência material e psíquica, como ainda implicava no
fortalecimento do grupo a partir da convergência de fatores
internos (práticas dos indivíduos) e externos (condições
climáticas, vitalidade dos rebanhos etc.), que poderiam ser
afetados de diversas maneiras. Era a quebra da paz a que se
fará referência nos próximos subitens.
10
FOUCAULT, op. cit., p. 31. A história reproduzida pelo mestre francês fala da
contestação entre Antíloco e Menelau durante jogos realizados na ocasião da
morte de Pátroclo. Houve uma corrida de carros em um circuito de ida e volta e
Menelau contesta o resultado, afirmando que Antíloco não fizera a volta no
ponto apropriado. Embora houvesse um ―fiscal‖ neste trecho do circuito, a
testemunha não é chamada a contar o que viu. Há um desafio, em forma de
juramento, diante do qual Antíloco recua, resolvendo a controvérsia em favor de
Menelau.
11 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I, Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p.30.
Agora, para o que nos interessa convém frisar que as
formas compositivas, que podem ter sido o juramento
(referido por Foucault em sua leitura da Ilíada) ou o
pagamento de algum bem (prática dos antigos povos
germânicos), não visavam determinar se o agente A ou B
havia praticado o fato. Cuidava-se, apenas, de encontrar
mecanismos de pacificação da sociedade, perturbada com a
―perda da paz‖. Tratava-se de composição de conflitos.
Este mecanismo persistiu entre nós. Formalmente, nos
crimes de exclusiva ação privada12, ao se permitir que a
vítima deixe de acionar o réu ou desista da ação proposta
caso encontre outra solução, que melhor lhe convenha.
Informalmente, mesmo nos crimes de ação pública
incondicionada, pois quando há vítimas as investigações
raramente são instauradas ou chegam a bom termo sem a
colaboração delas.
Na atualidade, mais que em passado recente estas
formas estão prestigiadas. Com efeito, os diversos
ordenamentos jurídicos valorizam o acordo entre agentes e
vítimas e até entre suspeitos e Ministério Público para por
fim ao processo (ou ao procedimento), Trata-se de uma outra
maneira de buscar a ―paz social‖, sem que se faça aqui, neste
momento, qualquer juízo de valor.
A tese que advogamos a partir da 3ª edição do ―Sistema
Acusatório‖ (e da edição do livro ―Elementos para uma
Análise Crítica da Transação Penal‖, já referido) consiste em
reconhecer a impossibilidade de, pura e simplesmente,
adotar as categorias dos sistemas processuais (quaiquer
deles) aos mecanismos de composição de conflitos na esfera
12 No Brasil, nos crimes de exclusiva ação privada o exercício da ação penal
depende da atuação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representálo. Cabe ao ofendido estar em juízo, o que fará oferecendo petição inicial
denominada queixa-crime. Dessa forma o processo começará, sem interferência
inicial do Ministério Público. Este é um mecanismo secundário ou excepcional.
Via de regra, os crimes são de ação penal pública e o início do processo fica a
cargo do Ministério Público, que se dirige ao juízo e oferece denúncia. Nos
crimes de ação pública incondicionada o Ministério Público poderá agir com
total independência da vontade da vítima.
penal baseados no consenso ou na conciliação ou em
qualquer outra forma que não seja a apuração do fato.
Não se trata de dizer que procedimentos que dispensam
a produção da prova são inquisitoriais. Nem sempre. Na
maioria das vezes poderão ser arbitrários. Outras vezes irão
satisfazer tanto o interesse dos envolvidos (agente e vítima)
como do grupo (mediante compensação).
O que se afirma aqui é que em semelhantes casos não há
lugar para a busca da confirmação dos fatos, através de
provas, o debate contraditório, a presunção de inocência e a
motivação das decisões. Portanto, o papel do juiz (árbitro)
poderá ser de mero atestador da regularidade do
procedimento ou de incentivador do acordo, conciliação ou
compensação. O espaço para a imparcialidade fica reduzido.
Como os elementos que determinam a existência dos
sistemas processuais estão vinculados aos sujeitos
processuais e ao modo como atuam, além da relação que se
estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre o fato,
estas categorias não se prestam ao fim de definir o modelo
fundado no consenso. Para este modelo está posto o desafio
da sua compreensão, que significará desenhar com clareza o
estatuto do juiz e das partes.
É indiscutível que a essência destes estatutos está na
Constituição e nos Tratados sobre direitos humanos. Será
preciso extrair desses comandos normativos as bases de
configuração de tais estatutos.
Alberto Binder, em obra sobre a forma dos atos
processuais e as conseqüências de seu descumprimento,
chama atenção para isso:
―Por isso esse sistema de garantias tem vínculos
muito profundos com a idéia de indagação (em termos
atuais processo cognitivo) e o papel da verdade dentro
do processo penal. Todo o sistema de garantias, tal
como hoje o concebemos, foi pensado para que funcione
dentro do marco do processo de cognição e deve ser
compreendido e desenvolvido dentro dessa forma
concreta de processo. Ainda não foi desenvolvido um
sistema de garantias particular, para as outras funções
do processo penal (o processo como composição), entre
outras coisas porque tampouco está totalmente claro
como funcionam os princípios processuais no marco de
um processo cuja função principal seja conciliar e
pacificar as partes, ou achar um ponto de equilíbrio
entre interesses contrapostos‖.13
Diferentemente, no entanto, de Binder, pensamos que a
pesquisa em torno dessa (antiga) forma de resolução de
conflitos, restaurada a partir das experiências do direito
anglo-saxão, deve começar demitindo-se da tarefa de
encontrar nos procedimentos de investigação dos ―crimes‖,
conforme padrões acusatórios ou inquisitórios, pistas e
permanências.
A nosso juízo, os duelos, jogos e ordálias não antecipam
formas dialéticas de disputas, pautadas pela adversariedade.
Quando os antigos duelavam ou aceitavam compensações,
ponderadas pela intensidade do sofrimento causado pelo
―crime‖, buscavam tão-só controlar as forças da natureza e
assegurar a sobrevivência do grupo, de outro modo
condenado a desintegrar-se. Hoje, quando a conciliação e a
mediação são propostas em casos de violência doméstica é a
mesma lógica que preside o instituto, voltado à preservação
do núcleo familiar.
Michele Taruffo alerta para isso no processo civil14. Em
―Transação Penal‖ mostramos como essa aproximação com o
processo civil tornou-se possível no fim do século XX e que
conseqüências são produzidas no processo penal, ao nosso
juízo, por tal ordem de coisas. A crítica ao processo penal
consensual não exonerará os pesquisadores da tarefa de
tentar encontrar o sistema deste modelo. Agora, partindo-se
13
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44.
14
TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, Madrid: Trotta, 2002, p. 37.
do paradigma do Garantismo e sublinhando que um poder
que se expressa por meio de castigos deve ser controlado e
deve deixar claro porque em determinados casos pune, a
investigação teórica orienta-se pela idéia de processo que
pretende estabelecer se determinados fatos foram praticados
ou não, fixando-se o modo como se chega a esta conclusão.
Este é, pois, o específico olhar (viés) histórico que será
desenvolvido.
Portanto, para os limites do presente trabalho duas
idéias vigoram: a) na atualidade, por conta de uma série de
fatores, e em consideração a princípios republicanos que
reclamam a fundamentação do exercício do poder de punir, a
manifestação desse poder deve ser precedida da apuração do
caso, através de provas que o juiz imparcialmente apreciará;
b) o olhar lançado ao passado estará dirigido por esse viés,
tal seja, estará condicionado para enxergar nas práticas
precedentes as pistas sobre como os fatos eram apurados e
que papel, afinal, exerciam o juiz e as partes neste
―processo‖. Neste contexto serão investigados historicamente
os sistemas processuais.
3.1.1. SITUAÇÃO NA ANTIGÜIDADE
Iniciamos pela afirmação de que os primeiros grupos
humanos, as primeiras tribos, desconheciam métodos mais
sistematizados de solução dos conflitos de interesses penais,
isto porque, como sociedades simples, rudes e incipientes,
tendiam à concretização do seu direito, conforme ressaltou
Luhmann, e a compreensão de uma forte relação entre o
Direito, a Moral e, principalmente, a Religião.
Trata-se, sem dúvida, do período remoto daquilo que
hoje conhecemos como direito processual, cuja concreção da
atuação dos atores sociais, sempre que comportamentos
censuráveis eram praticados, operava a confusão entre ele
próprio, direito processual, enquanto rede rudimentar de
procedimentos, e o direito substantivo penal.
Salienta Luiz Flávio Gomes15 que nessa época o Direito
era constituído de um emaranhado de regras não escritas e
desconexas, oriundas da moral, dos costumes, hábitos,
crenças e magias, expressando-se a reação punitiva
diferentemente conforme o comportamento agressivo
derivasse de um integrante do grupo ou de alguém
pertencente a outro clã ou tribo.
Cuidando-se de infração cometida por integrante do
grupo social, se não provocasse um dano irreparável ou se
não colocasse em perigo as condições existenciais da
sociedade, cumpria ao agente restabelecer o status quo ante.
Tal providência, veremos, aparecerá também nas tribos
germânicas, em uma fase posterior, voltada à composição do
litígio, primeiramente entre os envolvidos — autor do fato e
vítima ou seus parentes — e depois com a
participação/mediação da sociedade através de um tribunal
formado pelos homens aptos a guerrear, porém sempre com
a intenção de conciliar os sujeitos em conflito.16
Todavia, se o membro da tribo ou clã realizasse uma
ação hostil considerada capaz de afetar a paz do grupo social,
acreditada como dádiva assegurada pela vontade dos deuses,
cabia punir o agente vingando-se, pois de outro modo,
imaginava-se, a sociedade jamais voltaria a gozar de
tranqüilidade.17
15
16
17
Gomes, Luiz Flávio. ―Responsabilidade Penal Objetiva e Culpabilidade nos
Crimes Contra a Ordem Tributária‖, in Direito Penal Empresarial (coord.
Valdir de Oliveira Rocha), São Paulo: Dialética, 1995, pp. 77-80.
Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman, 4ª ed. Santiago: Editorial Jurídica
de Chile, 1993, pp. 10-11.
Junito de Souza Brandão destaca, examinando a mitologia grega, que a
noção de falta, vista objetivamente (não se julgavam intenções mas fatos),
implicava, conforme a origem do infrator — se membro de um mesmo
génos ou não — na religiosa e obrigatória vingança, distribuindo-se no
grupo social o dever de vingar. Salienta o autor que até a reforma jurídica
de Drácon ou Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Grécia, fato
semelhante ao verificado entre os povos hindu e judeu. No Rig Veda, de
2000 a 1500 AC, por exemplo, alerta Junito, consta a súplica: Afasta de
nós a falta paterna e apaga também aquela que nós próprios cometemos.
Enquanto isso, no Antigo Testamento (Êxodo, 20,5) assinala-se: Eu sou o
Senhor, Teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniqüidade dos pais nos
No tocante ao ato de hostilidade praticado pelo
integrante de outro clã, a agressão era reputada como
violência à própria tribo, havendo de ser indistintamente
reprimida por uma espécie de vingança coletiva, que de
ordinário implantava um estado de guerra.18
Averbe-se que o aperfeiçoamento da organização social,
acrescido da consciência da necessidade de encontrar uma
plataforma sobre a qual pudessem ser erguidos os
procedimentos de resolução de conflitos, de forma a
preservar tanto quanto possível a sociedade, foram as
principais causas da sistematização contínua dos métodos de
implementação do Direito Penal. Naturalmente que a
princípio o que hoje chamamos de Direito Penal estava
indistintamente emaranhado ao que definimos como sendo
Direito Civil, pois não se diferenciavam os ilícitos criminal e
civil, ambos fundados no primitivo conceito de dano.19
Entre as primeiras sociedades politicamente mais
organizadas, temos o Egito, onde, na Antigüidade, o
exercício do Poder Judiciário estava concentrado nas mãos
dos sacerdotes, sendo que Mênfis, Tebas e Heliópolis eram
as cidades que forneciam os juízes para o tribunal supremo,
encarregado de julgar os crimes graves.
Nas províncias, por seu turno, havia um juiz, espécie de
prefeito, ao qual era delegado o processo e julgamento dos
crimes leves, dispondo também o mencionado juiz de
delegados, incumbidos da repressão penal, até mesmo com o
emprego de violência, se se tratasse de infrações de menores
conseqüências. Ada Grinover assinala que, se quisermos
classificar o modelo egípcio consoante estruturas conhecidas,
a verdade é que nele se pode encontrar o embrião do
18
19
filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam. Nessa ordem de
coisas é correto afirmar, portanto, que a idéia do direito do génos está
indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber:
qualquer hamartía (falta) cometida por um membro do génos recai sobre
o génos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes ―em
sagrado‖ ou ―em profano‖ (Mitologia Grega, Petrópolis: Vozes, 1991, p.
77).
Gomes, Luiz Flávio. Responsabilidade Penal, p. 78.
Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., p. 28.
procedimento inquisitório, uma vez que a iniciativa oficial
para a persecução penal correspondia a uma forma de
governo absoluta, de domínio e inspiração sacerdotal.20 As
principais características dessa época são:
a) a acusação como dever cívico das testemunhas do
fato criminoso;
b) polícia repressiva e auxiliar da instrução, a cargo das
testemunhas;
c) instrução pública e escrita;
d) julgamento secreto e decisão simbólica.21
Na Palestina, havia três espécies de tribunais,
consistindo em três graus de jurisdição: os tribunais dos
Três, dos Vinte e Três e o Sinédrio.
Os tribunais dos Três (Deuteronômio, XVI 18) se
compunham de três juízes (schophetim) e eram competentes
para julgamento de alguns delitos e de todas as causas de
interesse pecuniário. As suas decisões eram apeláveis para o
tribunal dos Vinte e Três. Este, por sua vez, era instituído em
todas as vilas cuja população superasse cento e vinte famílias
e, além de julgar as apelações das decisões dos tribunais dos
Três, cumpria-lhe conhecer originariamente os processos
criminais puníveis com a pena de morte.
Finalmente, o mais alto grau da magistratura era a
assembléia, conhecida como Sinédrio ou Tribunal dos
Setenta, porque composta por setenta juízes. Era uma
instituição política e judiciária, competindo-lhe a
interpretação das leis e o julgamento dos senadores,
profetas, chefes militares, além das cidades e tribos rebeldes.
Muito embora habitualmente a crença na origem
sagrada ou soberana das decisões orientasse os povos antigos
no sentido da sua irrecorribilidade, cumpre destacar que
entre hebreus o recurso era considerado direito sagrado,
assim como prevalecia um princípio fundamental, pelo qual
20 Grinover, Ada P. Liberdades Públicas, p. 28.
21 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 1618.
uma só testemunha jamais valerá contra alguém; qualquer
decisão deverá apoiar-se sobre o dito de duas ou três
testemunhas,22 cabendo a dedução da acusação, em processo
contraditório e público, ao ofendido. Outra interessante
previsão do direito hebreu, em uma fase mais avançada, em
julgamentos perante o alto tribunal, consistiu em reproduzir
a votação eventualmente condenatória, no dia seguinte ao da
primeira, visando confirmar o veredicto desfavorável ao
acusado mediante serena reflexão dos julgadores. Estavam,
porém, impedidos de alterar sua decisão aqueles que no dia
anterior houvessem votado pela absolvição, de sorte que se
tratava, basicamente, de um duplo grau de jurisdição a favor
do réu. Cabe salientar que a decisão majoritariamente
favorável ao acusado não demandava este tipo de
confirmação, proclamando-se de imediato a absolvição.
A legislação mosaica fulcrou-se, portanto, nos seguintes
princípios:23
1. não havia prisão preventiva; fora do caso de flagrante
delito, o acusado hebreu não era preso senão depois
de conduzido ao tribunal para defender-se e ser
julgado;
2. não era o acusado submetido a interrogatórios
ocultos: segundo os rabinos, ninguém podia ser
condenado somente pela confissão;
3. ninguém podia ser preso e muito menos condenado
pelo dito de uma só testemunha nem por
conjecturas;
4. a instrução e os debates eram públicos e os
julgamentos conferidos e acordados em segredo;
5. o recurso era um direito individual e sagrado.24
Da Grécia antiga, a ilustração clássica pode ser
observada pela forma de expressão da justiça ateniense. Com
efeito, havia em Atenas quatro jurisdições criminais: a
22
23
24
Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., p. 19.
Idem, pp. 19-21.
Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., pp. 19-21.
Assembléia do povo, o Areópago, os Efetas e os Heliastas.
O Tribunal dos Heliastas, ou Hélion, assim conhecido
porque se reunia em praça pública e sob o Sol, era composto
de cidadãos, cujas decisões eram consideradas proferidas
pelo povo, e sobressaiu-se entre os demais principalmente
por força de sua ampla competência (a rigor, de início, não
julgava os homicídios involuntários ou não premeditados, da
competência dos Efetas, e todos os crimes sancionados com
pena de morte e os homicídios premeditados e incêndios, da
competência do Areópago), pela publicidade da sua atuação
e porque composto por cidadãos honrados, maiores de trinta
anos, eleitos anualmente por sorteio (de quinhentos a seis
mil).25
Como salientou João Mendes Junior,26 a legislação
ateniense
reconhecia
duas
classes
de
delitos,
impropriamente designados como púbicos e privados, cuja
nota distintiva residia no interesse público (ordem,
tranqüilidade e paz públicas), ou privado na repressão da
infração, permitindo-se, no último caso, a desistência e
transação durante o processo.
Averbe-se, porém, que o prestígio do modelo ateniense
de persecução penal derivou exatamente do sistema de
acusação popular, em relação aos crimes públicos, faculdade
deferida a qualquer cidadão, de um modo geral, pela
Assembléia do Povo, para, em nome do próprio povo,
sustentar a acusação.27 Assim, o ofendido ou qualquer
cidadão apresentava e sustentava a acusação perante o
Arconte e este, conforme se cuidasse de delito público,
convocava o Tribunal, cabendo ao acusado defender-se por si
mesmo (em algumas ocasiões era auxiliado por certas
pessoas). Cada parte apresentava as suas provas e formulava
suas alegações, não incumbindo ao tribunal a pesquisa ou
aquisição de elementos de convicção. Ao final, a sentença era
25
26
27
Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 30.
Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., p. 23.
Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 31. Almeida
Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 23.
ditada na presença do povo.28
Muito embora variáveis os procedimentos, conforme o
tribunal competente, algumas características podem ser
anotadas:29
• tribunal popular, conforme o princípio da soberania
do povo;
• acusação popular, por uma faculdade deferida a
qualquer cidadão para apresentar demanda contra
quem se supunha autor ou partícipe de um delito
público;
• igualdade entre acusador e acusado, que, de ordinário,
permanecia em liberdade durante o julgamento,
liberdade muitas vezes condicionada à caução;
• publicidade e oralidade do juízo, que se resumia a um
debate contraditório entre acusador e acusado, frente
ao tribunal e na presença do povo;
• admissão da tortura e dos juízos de Deus como meios
de realização probatória;
• valoração da prova segundo a íntima convicção de
cada juiz;
• restrição do direito popular de acusação em certos
crimes que mais lesavam o interesse particular do
indivíduo do que o da sociedade;
• decisão judicial irrecorrível.
Em Roma, o mais antigo dos sistemas procedimentais
penais conhecidos dessa civilização surgiu com a
denominação de cognitio, baseado na inquisitio,30 tratandose de procedimento de natureza pública,31 porquanto
28 Sanchez, Guillermo Colin. Derecho Mexicano de Procedimientos Penales,
México: Porrúa, 1979, p. 17.
29 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 33. Almeida
Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 26.
30 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, São
Paulo: Bushatsky, 1976, p. 31. Manzini, Vincenzo. Istituzioni di Diritto
Processuale Penale, p. 8.
31 Manzini sublinha que, em relação ao processo penal privado, o órgão do
Estado (juiz magistrado ou popular) se punha como árbitro entre as partes
e julgava atendendo ao exposto por elas. De um modo geral, o Direito Penal
realizado em nome e pela intervenção do Estado romano, e
porque deixava ao magistrado, como representante do rei,
amplos poderes de iniciativa, instrução e deliberação, sem
maiores formalidades que se saiba e mesmo sem partes,
conforme as concebemos atualmente.32 Manzini salienta que
a faculdade de apelação do acusado ao povo (provocatio),33
com efeito suspensivo, contra a sentença proferida pelo
magistrado, determinava um ulterior procedimento, de
segundo grau, designado anquisitio.34 Este período foi
denominado comicial, pois proporcionava o julgamento da
provocatio ad popolum em comícios, Assembléias do Povo,
revelando-se, entretanto, já na República, insuficiente para a
32
33
34
Privado, acentuar-se-á mais adiante, regulava as infrações (fatos injustos)
cometidas sem violência e não previstas especificamente pela lei. Salienta,
todavia, o mestre peninsular que, por efeito da tendência do Direito Penal
romano de tornar pública a ação penal em todos os casos, resultou no
progressivo abandono do processo penal privado, restando a persecução
deste tipo reservada à injúria e outros poucos crimes (Tratado de Derecho
Procesal Penal, tomo I, pp. 3-4).
É valioso ressaltar que o Direito Penal que se procurava efetivar pela via
procedimental, em Roma, a partir dos momentos finais da República,
conheceu maior consistência e dividiu-se ordinariamente em três ramos:
Direito Penal Privado, que se reportava à lei das XII Tábuas e às leis mais
antigas; Direito Penal Público legítimo, fundado nas leis especiais,
principalmente Corneliae e Iuliae, regulador das quaestiones,
principalmente durante a crise da República e na origem do Principado,
pelo qual eram infligidas penas públicas; e Direito Penal Público
extraordinário, baseado no ordenamento geral augustinianeo, assim como,
depois, em senatusconsultos, constituições imperiais e, até, na praxe
judicial (Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano,
pp. 54-55).
Piero Fiorelli atribui à Lei Valéria de provocationen, editada
provavelmente em 300 AC, a instituição da provocatio ad popolum
(―Accusa e Sistema Accusatorio: Diritto Romano e Intermedio‖, in
Enciclopedia del Diritto, I, Milano: Giuffrè, 1958, pp. 330-331).
Tucci, por sua vez, assinalou diferentemente que a anquisitio coexistiu
consuetudinariamente, nos primeiros tempos, e relativamente aos crimes
de lesa-pátria e lesa-majestade, com a cognitio, carente, todavia, da
participação da assembléia do populus (ob. cit., p. 32). Havia, também,
alguns magistrados, designados quaestores, aos quais cumpria conhecer de
determinados crimes e especificar as respectivas sanções. Com o passar do
tempo, o poder de império próprio da inquisitio foi sendo limitado às
decisões absolutórias, na medida em que das condenatórias se recorria,
transformando-se a inquisitio em mero procedimento instrutório.
necessidade social de repressão da criminalidade.35
Em seguida à cognitio surgiu a accusatio, também
designada judicium publicum ou quaestio,36 voltada à
apuração de algumas infrações penais atinentes à ordem
pública, como, por exemplo, aquelas cometidas pelos
magistrados no exercício de suas funções (quaestiones37). O
procedimento, que carecia da figura do acusador particular,
ora na condição de ofendido, ora representando o interesse
público da sociedade, surgia como manifestação da
adaptação do antigo processo penal às novas exigências
sociais, sendo em muitos aspectos semelhante à forma grega.
A accusatio pode ser conceituada como a ―prerrogativa
concedida a qualquer cidadão e, especialmente ao ofendido,
de, munido de provas, deduzir, perante o povo, a
imputação, à margem, ou não, da inquisitio, e assim, mover
a ação penal‖,38 e tinha, pois, por pressuposto, a exigência
de que ninguém podia ser levado a juízo sem uma acusação:
nemo in iudicium tradetur sine accusatione.
A forma acusatória adotada na época, prescindindo de
uma investigação anterior,39 era dominada integralmente
pelo contraditório, cumprindo às partes pesquisarem e
produzirem as provas das suas alegações. Tratava-se de um
35
Manzini, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8. Tucci
(Lineamentos do Processo Penal Romano, ob. cit., p. 142) agrega à
observação de Manzini a de Kunkel, que se referiu ao fato de,
subseqüentemente à segunda guerra púnica, haver perdido a Assembléia
do Povo o prestígio que antes gozava, deixando de ser integrada por
―prudentes trabalhadores‖.
36 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 45.
37 Quaestiones nada mais eram, segundo Hélio Tornaghi, que comissões dos
comícios, tribunais semelhantes ao júri, presididos por um Pretor ou por
um quaestor e composto de juízes que prestavam juramento (Instituições
de Processo Penal, vol. II, São Paulo: Saraiva, 1977, p. 68). Designavam,
também, as ações de responsabilização dos juízes, numa espécie de tomada
de contas do desempenho do mandato.
38 Joaquim Canuto Mendes de Almeida apud Rogério Lauria Tucci,
Persecução Penal, Prisão e Liberdade, São Paulo: Saraiva, 1980, p. 63.
39 Tornaghi salienta que nessa situação a inquisitio era posterior à accusatio,
uma vez que somente depois de deduzida a acusação realizava o acusador,
na presença do acusado, se este quisesse, a investigação do fato
(Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 4).
modelo de processo público e oral, cujos debates formavam o
eixo central, dos quais derivava o fundamento da decisão.
Neste paradigma processual as partes tinham, via de regra, a
disponibilidade do conteúdo do processo,40 competindo ao
Estado tão-só o conhecimento e julgamento da ação
criminosa, em se tratando de delicta publica. Julio Maier
destaca como mérito histórico desse sistema o fato de ter
substituído o sentido subjetivo, mítico da prova, pelo
conhecimento objetivo, histórico, encarando-se a prova
como forma de reconstrução histórica de um acontecimento
pelos vestígios que havia deixado no mundo.41
É bem verdade, como frisou Tucci,42 que, se com as
quaestiones, o Direito Penal Romano começou a ostentar
consistência e certa autonomia, acrescentaríamos também aí
o Direito Processual Penal, a ponto de assinalar-se a
existência de um sistema homogêneo de normas processuais
e meramente procedimentais, derivadas das leis de César
referentes aos judicia publica e judicia privata, com o passar
do tempo não se mostrou mais suficiente para as exigências
de repressão da delinqüência. Isso ocorre ao mesmo tempo
em que se desloca a fonte da soberania da cidadania para o
Imperador,43 ocasionando graves inconvenientes e
predispondo acusadores e acusados a litigarem entre si
permanentemente e intentarem a vingança,44 valendo-se até
mesmo da falsa acusação, além de, não raramente, assegurar
a impunidade do criminoso, em face da ausência de quem se
dispusesse a acusá-lo.
Assim, sob o Império, que veio em seguida à República,
40 Manzini salienta que em algumas situações, uma vez exercida a ação penal,
o magistrado ficava investido dela (de poderes em relação a ela), ao ponto
de não poder despojar-se sem um motivo jurídico. Assim, mesmo que o
acusador abandonasse o processo, descreve Manzini, nem por isso caía a
acusação, devendo seguir-se as investigações públicas (Tratado de Derecho
Procesal Penal, tomo I, pp. 6-7).
41 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 46.
42 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, p. 159.
43 Fato percucientemente notado por Julio Maier. Derecho Procesal Penal
Argentino, p. 47.
44 Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, p. 7.
em tese vigorava um modelo procedimental que carecia do
acusador privado, mas, na prática, alguns agentes públicos
(curiosi, nunciatores etc) passaram a desenvolver verdadeira
atividade de polícia judiciária, transmitindo aos juízes os
resultados das suas pesquisas, a princípio sempre que
alguém deixava de apresentar a accusatio.
Por sua vez, os magistrados foram ampliando cada vez
mais a sua esfera de atribuições, alcançando aquelas antes
reservadas aos particulares, até chegar-se ao extremo, como
salientou Manzini, de se reunirem em um mesmo órgão do
Estado as funções que atualmente competem ao Ministério
Público e ao juiz,45 com a máxima disposição dos
magistrados de descobrirem a verdade, não deixar ao
desamparo os fracos e evitar o non liquet, tal seja, o
pronunciamento da não-decisão, a impossibilidade de um
veredicto decisivamente solucionador do concreto conflito de
interesses. Hélio Tornaghi advertiu para o fato de que o
sistema acusatório na Antigüidade, principalmente tal como
se desenvolveu na fase republicana de Roma, ter oferecido
graves inconvenientes, anotando, com especial destaque, os
seguintes:46
• a impunidade do criminoso;
• a facilitação da acusação falsa;
• o desamparo dos fracos;
• a deturpação da verdade;
• a impossibilidade de julgamento, em muitos casos;
• a inexeqüibilidade da sentença, em outros.
O modelo processual, então baseado na iniciativa de
qualquer cidadão, conviveu com o procedimento penal de
ofício, reinstituído, alicerçado na denominada cognitio extra
ordinem, até que, ao tempo de Diocleciano, a última
estrutura passou a prevalecer de jure, alastrando-se das
províncias na direção de Roma
A nova cognitio, diferentemente da primeira, conferia
45 Idem.
46 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 5.
amplos poderes ao magistrado, não somente para investigar
as infrações penais, recolhendo provas, como, ainda, para
julgar a causa,47 podendo valer-se mesmo da tortura.48
De se destacar que, ao contrário do que viria a ocorrer
posteriormente, na Idade Média, sob a égide do
inquisitorialismo, se em Roma ainda predominava a forma
pública e oral, mesmo no procedimento extra ordinem,
como momento culminante dessa estrutura processual, em
realidade a instrução escrita e secreta, derivada do poderoso
aparato estatal, aos poucos foi sucedendo a anterior, até
constituir-se em sua parte ou forma principal, surgindo, pois,
como semente da Inquisição que mais tarde dominaria a
Europa Continental.49
Sobre essa passagem histórica vale registrar a seguinte
observação de Julio Maier:50
―La denominación misma, cognitio extra
ordinem,
revela
precisamente
las
dos
características
fundamentales
de
este
procedimiento: el renacimiento de la cognitio
como método de enjuiciamiento penal que
presuponia la omnipotencia procesal al reunir, en
una única mano, por lo menos, dos de las
funciones principales del procedimiento, la
requirente y la decisoria; y su regulación como
sistema de excepción destinado a suplir la
inactividad y complejidad del antiguo régimem
acusatorio, ya corrompido, y a otorgar mayor
poder a las crecientes necesidades de la nueva
organización política‖.
3.1.2. DIREITO MEDIEVAL E DA ÉPOCA MODERNA
47
48
49
50
Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, p. 169.
Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, p. 8.
Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 51.
Idem.
A invasão bárbara marcou nova era de transição, quer
porque introduziu a estrutura modelar adotada pela maioria
dos povos germânicos, quer pela força do Direito de algumas
cidades italianas, com suas legislações municipais, e, ainda,
em virtude do extraordinário desenvolvimento do Direito
Canônico,
amadurecendo
naturalmente
um
novo
equilíbrio,51 com recíprocas influências de modo a afetar
tanto dominadores como dominados.
Evidentemente, enlaçados o Direito Processual Romano
extraordinário e o Direito Germânico, em virtude da invasão
bárbara, cumpre identificar as principais características do
segundo, possibilitando, destarte, a compreensão dos
processos de convivência lado a lado, absorção e adaptação
recíprocas dos mencionados ordenamentos.
Com efeito, particulariza-se o Direito Processual
Germânico da Antigüidade, de um modo geral
consuetudinário,52 salvo em alguns lugares, como, por
exemplo, na França, por conta da disciplina subjetiva das
provas e da iniciativa privativa da vítima ou de seus
familiares, em busca da reparação do dano causado pelo
ofensor, ficando nas mãos dela, vítima, a persecução penal
(Sippe).53 É de se salientar que o antigo direito germânico
não distinguia entre ilícitos civil e penal, operando-se o que
Fiorelli designou como assimilação das causas criminais
pelos crimes que ofendiam diretamente os particulares às
51
52
53
Ver, sobretudo, Piero Fiorelli (ob. cit., p. 332), que remarcou o fato das
municipalidades italianas terem estatuído, a princípio, nessa época, um
processo do tipo acusatório. Porém, a consolidação dos organismos
comunitários ensejou a atribuição aos magistrados de funções mais
amplas, aproximando-se até transformar-se normalmente em um modelo
inquisitório.
Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal - Parte General, 4ª
edição, Granada: Comares, 1993, p. 80.
Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario
y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, Buenos
Aires: Depalma, 1978, p. 24. Sippe, segundo Nilo Batista, é a designação do
clã a que a pessoa pertencia (BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 32).
causas cíveis.54
Ocorre, todavia, que em uma fase posterior toda
infração passou a ser considerada como rompimento da paz
(Friedensbruch), autorizando, conseqüentemente, a guerra e
a vingança familiar (Blutrache e Fehde ou Faida), de tal
sorte que perdia o ofensor e sua família a proteção
comunitária.
Tal sistema progrediu até que fosse permitido o
pagamento do preço da paz à comunidade (Friedensgeld),
por meio de convênios reparatórios, e uma indenização ao
ofendido ou sua família (Busse), o que era possível em se
tratando de infrações menores.55 Nilo Batista ressalta a
existência da capitular de Carlos Magno, de 802, que
recomendava às famílias evitar acrescentar uma inimizade
ao mal já feito, destacando, porém, que durante extenso
período ―a anuência a uma composição ultrajava o
sentimento coletivo da honra familiar e só mais tarde o
ressarcimento assumiria um papel central na superação de
tais litígios‖.56
A partir de um determinado momento o entendimento
privado constitui-se no método predominante de solução dos
conflitos de interesses de natureza penal, o que não impedia
o ofendido de se socorrer dos Conselhos (Placita),
assembléias populares que ministravam justiça, começando
aí o verdadeiro processo judicial de corte acusatório.57
Tal processo peculiarizou-se pelo direito privado de
iniciativa da persecução (nemo iudex sine actore),
começando diante do fracasso da composição entre as partes
sobre a emenda ou indenização ou por reclamação unilateral
do ofendido ou sua família ao tribunal (Hundertschaft),
composto por pessoas capazes para guerra (Thing). As
54
55
Fiorelli, Piero, ob. cit, p. 332.
Excluiam-se, por exemplo, a traição na guerra, deserção, covardia diante do
inimigo e delitos contra o culto (Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de
Derecho Penal, p. 80).
56
BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 34.
57 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 24, e
Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 66.
sessões eram públicas, orais e contraditórias, presididas por
um juiz, o qual dirigia o debate e propunha a sentença, mas
não decidia.58
Como ficou registrado, os povos germânicos não só
influenciaram o direito do restante do continente europeu,
inclusive e principalmente a área antes dominada pelo
Império Romano,59 chegando a Portugal e Espanha,60 como
sofreram a influência da cultura e do Direito romanos, de
sorte que, do seu sistema predominantemente acusatório,
passaram, lenta mas vigorosamente, à recepção e
assimilação do Direito Romano-Canônico e à introdução da
Inquisição.
Nessa via começou-se por admitir a indicação do juiz
presidente do tribunal, que ainda era popular, pelo rei, com a
participação de outros funcionários por ele também
indicados, cuja função consistia em propor a sentença,
chegando, em alguns casos extremos, à persecução oficial
(Rügeverfahren).61 Claro está que o caminhar nessa direção
pressupôs o nascimento e fortalecimento de um poder
estatal, personificado pelo rei e fundado no surgimento de
fontes jurídicas escritas, no denominado período Franco
(482 a 843 da nossa era).62
Até o momento anteriormente indicado, contudo, na
primeira parte da Idade Média, em decorrência da formação
de pequenas comunidades — feudos — comandadas
autoritariamente e, sem dúvida, de fato dispostas de forma
58 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 26.
59 Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 66.
60 João Mendes de Almeida Junior assinala que em Portugal, sob dominação
do Império Romano e, portanto, regido pelas leis de processo penal
romanas, invadiram no século V os povos germânicos designados alanos,
vândalos e suevos, depois derrotados pelos godos, que dominaram toda a
península, sob o nome de Visigodos (O Processo Criminal Brasileiro, p.
51), de sorte que paulatinamente o procedimento da cognitio extra
ordinem, predominante na fase final do Império Romano, cedeu lugar ao
processo acusatório germânico, muito embora os visigodos, mais do que os
outros bárbaros, se tenham deixado influenciar pela autoridade dos bispos
da Igreja Romana.
61 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 27.
62 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 81.
autônoma frente aos reinos, reduziu-se sobremaneira o papel
da justiça, conforme a conheceram os antigos,
desmembrando-se o aparato judicial germânico, de modo
que, tempos depois, a jurisdição eclesiástica veio a
sobressair, acomodada em um poder centralizado e
eficientemente distribuído nos mais diversos territórios, ao
contrário do poder real.
Com efeito, a Igreja passa a enxergar no crime não só
uma questão de interesse privado mas, principalmente, um
problema de salvação da alma, requisitando-se o magistério
punitivo como forma de expiação das culpas. O
arrependimento não é mais suficiente. É necessária a
penitência, motivo por que cumpre à Igreja investigar um
significativo número de infrações, ratificando-se assim,
politicamente, a sua autoridade.
Michel Foucault irá anotar aí o dado marcante que está
como na base ou essência dos procedimentos inquisitoriais:
a ―busca da verdade‖ que substituirá os desafios ou provas a
que se submetiam as pessoas, nos reinos bárbaros, para o
que nos interessa configurou o início da ―história política do
conhecimento‖, ou, de acordo com nosso ponto de vista, o
emprego político do conhecimento que é fabricado e servirá
para definir relações de luta e poder.63
É evidente, ainda, que a indisciplina de parte do clero e
a corrupção de outra parte confrontam o poder central do
Papa, criando, por isso, as condições básicas necessárias para
a implementação, por Inocêncio III, em 1215, no IV Concílio
de Latrão, do chamado procedimento Inquisitório,64
complementado, em suas linhas gerais, por Bonifácio VIII,65
Clemente V e João XXII.66
Franco Cordero salienta que a revolução inquisitorial
63
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 23.
64 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 28, e Fiorelli,
Piero, ob. cit., p. 333.
65 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal
Penal, p. 218.
66 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 8081.
satisfará exigências comuns aos dois mundos: o eclesiástico,
assombrado por heresias, e o civil, que via na expansão
econômica a origem da criminalidade exasperada em face do
paradigma anterior. Fixa o autor italiano que os interesses
que têm de ser protegidos exigem o automatismo repressivo
incompatível com as acusações privadas, enquanto a cultura
romana, sofisticada para os padrões bárbaros, estava a exigir
decisões ―técnicas‖.67
Muito embora os séculos XIII e XIV marquem o início
da predominância do modelo inquisitorial, transplantado
para a justiça laica com o fortalecimento das monarquias e,
conseqüentemente, com a formação do conhecido EstadoNação e a centralização do poder secular, ainda nas cidades
italianas conviviam formas inquisitórias com formas
acusatórias. Isso é vislumbrado em registros de Bolonha e
Florença, sendo a inquisição, subsidiária do modelo
acusatório, implementada apenas quando uma acusação não
era exercitada.68
A remanescente estrutura acusatória, no entanto,
começa a render-se a aspectos quase sempre identificados no
procedimento inquisitório, tais como a forma escrita da
dedução da acusação e o segredo que envolvia a produção da
prova testemunhal, chegando, pois, ao emprego da tortura, a
culminância das presunções e da confissão.
Será Foucault novamente a nos lembrar que a técnica de
―reunir pessoas que podem, sob juramento, garantir que
viram, que sabem, que estão a par‖, como mecanismo de
prorrogação da atualidade do delito, sugere a maior
racionalidade do procedimento da inquisição em oposição à
aparente brutalidade e ao caráter arbitrário dos duelos, jogos
e desafios (provas) dos povos bárbaros. O mestre francês, no
entanto, lança luz sobre o passado. Destaca que os objetivos
das ―provas‖ e juízos de Deus era um: superação do conflito
instaurado pela notícia ou prática do delito; enquanto o fim
perseguido pelo sistema da inquisição era outro: colocar um
67
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 16.
68 Fiorelli, Piero. Ob. cit., p. 333.
eficaz instrumento de gestão à disposição da nova estrutura
de poder que se formara na Europa Continental. ―O
inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de
governo, uma técnica de administração, uma modalidade
de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma
determinada maneira do poder se exercer‖.69
Por fim, o equilíbrio entre os dois modelos se rompe e o
sistema inquisitório vive seu apogeu no continente europeu,
até ser descartado, ao menos na Europa Ocidental
(Continental), no século XIX.
Pode-se afirmar que a herança da cultura hegemônica e
estilizada do Direito Romano, cultivada nas prestigiosas
universidades italianas pelos glosadores (1100 a 1250) e pósglosadores (de 1250 a 1450), superou o Direito Germânico,
de tradição popular. A Igreja, indiscutivelmente, contribuiu
para o sucesso da difusão do modelo de inspiração
romanística, cujo último paradigma havia sido, como visto, a
cognitio extra ordinem, difundindo universalmente o
modelo inquisitorial à base de uma universalidade cristã,
tendente a se impor a todos os povos.
Maier giza que o Direito Romano, ao contrário do
Império dentro do qual nasceu, não sucumbiu à invasão
bárbara e não tardou a impor suas idéias, mais desenvolvidas
e elaboradas.70
Embora hoje a Inquisição seja vista com todas as
reservas, cumpre remarcar que na sua época o discurso
dominante a apresentava como produto da racionalidade,
confrontada com a suposta irracionalidade das ordálias ou
juízos de Deus, que substituiu, enquanto sistema de
perseguição da verdade, pela busca da reconstituição
histórica, procurando, tanto quanto possível, reduzir os
privilégios que frutificavam na justiça feudal, fundada quase
exclusivamente na força e no poder de opressão dos senhores
69
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 72 e 73.
70 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 54.
feudais sobre os demais,71 pessoas que a rigor estavam
sujeitas a medidas punitivas discricionárias, impostas pelos
mencionados senhores feudais.
Vale deixar consignado que a Inquisição começa
propriamente quando se admite a denúncia72, inclusive
anônima, como forma de principiar uma investigação,
prescindindo-se dela, mais tarde, ao se permitir o início do
processo de ofício, bastando para tanto o rumor público,
revelador da ocorrência de uma infração. Franco Cordero
relembra que nessa hora o juiz passa da posição de
expectador impassível para converter-se em protagonista do
sistema.73
A jurisdição eclesiástica a princípio destinava-se ao
julgamento de membros da Igreja, porém conforme o poder
temporal desta última foi se expandindo, resvalou para a sua
competência uma enorme gama de infrações penais
consideradas contrárias, mesmo que distantemente, aos
interesses da Igreja.74
Principalmente a partir do momento em que as
autoridades judiciárias eclesiásticas passaram a ser
exercitadas por monges designados pelo Papa, as
características marcantes da Inquisição foram a forma
71
Sobre a inquisição, convém examinar a obra de João Bernardino Gonzaga,
A Inquisição em seu Mundo (8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994), da qual se
extrai este valioso e elucidativo trecho: As censuras apresentadas contra a
Inquisição giram, invariável e incansavelmente, em torno das idéias de
intolerância, prepotência, crueldade; mas, ao assim descrevê-la, os
críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu.
Forçam por tratá-la quase como um acontecimento isolado e, medida
pelos padrões da atualidade, se torna incompreensível e repulsiva para o
espectador de hoje. Sucede porém que esse fenômeno foi produto da sua
época, inserido num clima religioso e em certas condições de vida,
submetido à força dos costumes e de toda uma formação cultural e
mental, fatores que forçosamente tiveram de moldar o seu
comportamento (p. 21).
72
Aqui a palavra ―denúncia‖ não deve ser confundida com a petição inicial de
um processo condenatório, como no caso do Brasil de hoje, mas como notícia
crime que obrigava à investigação.
73
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 19.
74 Idem, p. 56.
escrita, em contraposição à oralidade, o segredo,
confrontando a publicidade e a iniciativa do juiz para o
procedimento.
Naturalmente, altera-se o eixo do procedimento e o
acusado que no sistema acusatório era sujeito de direitos,
deveres, ônus e faculdades, passa a objeto da investigação.
Da busca da ―verdade real" renascem os tormentos
pelas torturas, dispostas a ―racionalmente‖ extraírem dos
acusados a sua versão dos fatos e, na medida do possível, a
confissão, fim do procedimento, preço da vitória e sanção
representativa da penitência.75
Distintamente das ordálias, dos povos germânicos, que
presumiam uma manifestação das divindades por
intermédio de um sinal físico facilmente observável, a
iluminar o caminho a seguir para se fazer justiça, a tortura
impunha-se como procedimento de investigação baseado no
conhecimento, meio, portanto, considerado à época mais
evoluído.
A prisão durante o processo torna-se a regra, firme na
tese de que todo acusado obstaculiza a investigação da
verdade.
A jurisdição secular, com o fortalecimento das
monarquias, a estruturação de uma justiça profissional e a
determinação, como critério definidor da competência, do
lugar do fato — forum delicti commissi —, a partir do século
XV supera os tribunais locais e paulatinamente diminui a
influência e competência da jurisdição da Igreja, até
assinalar a absoluta supremacia da jurisdição do monarca.
Sublinhe-se que se considerava que o poder de julgar
pertencia ao rei, que, por sua vez, o delegava a funcionários
que atuavam em seu nome, razão pela qual se admitia o
recurso ao soberano, como reafirmação do poder central e
modo de controle do poder delegado,76 malgrado
dissimulado como garantia do réu. Saliente-se que o duplo
grau operacionalizava-se até mesmo porque, com a franca
75
76
Idem, p. 57.
João Bernardino Gonzaga, ob. cit., p. 60.
predominância da forma escrita, derivada da necessidade de
documentação do que era apurado em segredo, cumpria
garantir-se a regularidade dos procedimentos.
O controle do poder político, inerente ao processo
judicial por crimes, assegura no período áureo do
inquisitorialismo a delegação a determinadas categorias de
funcionários, os procuradores do rei, da atribuição de
oficialmente investigar as infrações penais, ainda que delas
só haja rumores. Faustin Hélie vê na instituição a semente
do Ministério Público.77
É bem verdade que, mesmo como meros delegados, os
juízes tinham de ser controlados na medida em que eles
dispunham do poder de iniciar uma investigação
independentemente de qualquer denúncia, e menos também
de acusação. A acusação até poderia existir. O juiz além do
mais estava habilitado a infligir ao acusado tormentos, disso
ao final não se escusando nem mesmo os nobres. O controle
do poder dos juízes era exercido não somente pela
possibilidade de se recorrer da decisão, cujo êxito estava
condicionado a fatores de ordem material, mas ainda por
meio da disciplina legal rigorosa de avaliação e crítica do
material probatório.
Assim é que o sistema introduziu um mecanismo de
valoração legal da prova, que estabelecia, em abstrato, as
exigências ou condições para o juiz decidir sobre a
persecução. Acentuou Maier o seguinte:78
―El juzgador no fundaba su fallo en su
convicción, apelando al valor de verdad que la
prueba recibida transmitía en el caso concreto,
sino que verificaba o no verificaba las condiciones
que la ley le exigía para decidir de una u outra
manera. Claro es que las condiciones impuestas
por la ley estaban referidas a la verdad histórica,
77
78
Faudtin Hélie, apud Julio B. J. Maier, Derecho Procesal Penal Argentino,
p. 61.
Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 64.
de manera que representaban condiciones que,
normalmente, por experiencia, fundaban una
convicción racional, pero, en realidad, el acierto
del juicio no dependía de su coincidencia com la
verdad, sino de la observancia de las reglas
jurídicas previstas, por lo que su control en
apelación se asemeja más a un examen jurídico, a
un control sobre el recto ejercicio del poder
delegado al juzgador.‖
Na Espanha, o processo inquisitorial chega com a
revogação formal da legislação visigótica (Fuero Juzgo),
mediante a outorga da Lei das Sete Partidas, de Alfonso X,
no século XIII, expandindo-se por meio do Ordenamento de
Alcalá (1348), até que, sob o reinado dos Reis Católicos,
adquire inolvidável vigor.
De se notar que na Espanha católica instaurou-se, ao
lado da justiça comum, o tribunal religioso denominado
Santo Ofício, tido indiscutivelmente como o mais cruel e
violento da época da Inquisição, com a qual muitas vezes é
confundido como se fosse seu exemplo mais perfeito e
difundido.79 O Santo Ofício alcançou a América Espanhola e
só foi abolido definitivamente, enquanto tribunal de
inquisição, em 1834.80
Na Alemanha, por sua vez, sob a jurisdição do Império
Romano-Germânico, depois da recepção do Direito Romano,
conforme anteriormente sublinhado, após a instalação do
Tribunal de Câmara Imperial (1495) e em virtude do
reconhecimento do desejo de criação de um direito imperial
unificado, foram editadas a Constitutio Criminalis
79 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 66.
80 João Bernardino Gonzaga assevera que a extinção da Inquisição, em
Portugal, ocorreu em 1821, sucedendo, na Espanha, em 1834, com a
alteração da competência e efeitos da jurisdição eclesiástica. Acrescenta o
autor que, em 1908, reorganizou-se a instituição sob a denominação de
Sagrada Congregação do Santo Ofício, passando a chamar-se, a partir de
1965, de Congregação para a Doutrina da Fé, naturalmente com novos
procedimentos e competência limitada a assuntos religiosos (ob. cit., p.
238).
Bambergensis (1507) e a Constitutio Criminalis Carolina
(1532), esta alcançando praticamente todos os domínios do
Império.
Trata-se do ingresso legal indiscutível da Inquisição na
Alemanha e demais áreas de influência, sem embargo de
remotos princípios do antigo sistema germânico, de índole
acusatória, mediante uma regulação que se pretendia
uniforme, inclusive no tocante à disciplina da tortura.81
A França, da mesma forma, suportou o sistema
inquisitório, especialmente a partir da Ordenação de 1254,
de Luis IX, editada sob a influência do Direito RomanoCanônico, com a disposição da apuração das infrações penais
de ofício e a imposição da jurisdição real em todo território.
Maier82 salienta, todavia, que foi a Ordenação Prévia, de
1535, o diploma que definitivamente incorporou a
Inquisição, fazendo sucumbir o modelo acusatório, enquanto
Franco Cordero aduz que é com a Ordenação de 1670 que a
Inquisição chega ao seu apogeu na França.83
Pietro Fredas destaca, por sua vez, que a ordenação
criminal de Luis XIV, de agosto de 1670, ordenou o
procedimento criminal na França e apresentou-se como a
codificação completa e última do procedimento
inquisitório,84 pretendendo por fim ao caos então vigente na
administração da justiça.
Releva notar que, diferentemente da jurisdição civil, em
relação à qual os senhores feudais ainda dispunham de
algum poder, inclusive o de julgar recursos contra as
decisões dos seus juízes delegados, na jurisdição criminal
sempre, qualquer que fosse o tribunal do qual proviesse a
decisão, os recursos eram julgados por juízes indicados pelo
rei, assegurando-se, pelo controle dos assuntos criminais, a
preponderância do poder real sobre o senhorial, verdadeira e
81 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 84.
82 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 78.
83
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 21.
84 Pietro Fredas, na introdução à 3ª edição da obra de Florian, Las Pruebas
Penales, vol. I, já mencionada (p. 7).
incontestável ratio das providências inseridas na Ordenação.
A recíproca determinação entre o direito processual dos
povos germânicos e o Direito Romano-Canônico foi já
sublinhada, sendo marcante também na região de Portugal,
muito embora desde logo os Visigodos, que suplantaram
suevos, vândalos e silingos na ocupação territorial daquela
parte da Península Ibérica, hajam aplicado o direito de
inspiração romana e abandonado, malgrado não por inteiro,
como veremos, a herança que seu espírito aventureiro havia
levado para a Península Ibérica.
Gize-se, por oportuno, que Portugal nasce da obstinação
de resistência aos árabes que, em 714, invadem a península,
desmembrando-se, em 1139, do Reino de Lião. Apesar disso,
sente-se nessa fase incipiente do processo penal português a
influência germânica e moura, como neste caso constata-se,
para ilustrar, pela designação atribuída a alguns funcionários
da justiça, tais como os vereadores (alvazis),85 juízes
municipais, e na hipótese da influência germânica, pela
instituição da acusação do ofendido ou de qualquer do povo,
por clamor ou sem ele, com a dedução da acusação perante
um tribunal formado por homens de bem, assegurando-se a
plenitude da defesa.86 Tratava-se, é certo, de processo
público e oral, substituído aos poucos pela forma escrita.
Como em outros lugares, ao fim da Idade Média, em
Portugal também se percebeu o papel jogado pela justiça
criminal na consolidação do poder político, de sorte que as
justiças municipais passaram a sofrer a disciplina geral,
determinada pela realeza, impondo-se a competência ratione
loci, que reduzia a influência das justiças locais de caráter
feudal, a iniciativa oficial, independentemente de delação ou
85 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 61.
86 Idem, pp. 66-71. Convém frisar que os visigodos dispuseram de legislação
própria, aplicável exclusivamente ao seu povo (Código de Eurico e,
posteriormente, Código de Leovigildo), enquanto os hispano-romanos
submetiam-se a outro regime (Breviário de Alarico), até que, em 654,
promulgou-se um novo código, unificando a legislação (Código Visigótico,
Liber Judiciorum ou Fuero Juzgo), conforme remarca Pierangelli
(Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, p. 28).
reclamação do ofendido, embora esta pudesse existir, e o
recurso de apelação, inclusive ex-officio, por parte do
comendador real, sem embargo da criação de tribunal
inquisitorial eclesiástico, com sua competência peculiar, em
prolongada concorrência com as jurisdições feudal e
monárquica, portanto conforme o modelo comum em toda a
Europa continental.87
A América Espanhola regeu-se, pela força da dominação
dos imigrantes europeus e da exterminação quase total dos
povos e culturas indígenas, pelo procedimento vigente na
Espanha, tal seja, principalmente a Lei das Sete Partidas,
como consigna Maier,88 com a prevalência do modelo
inquisitório, baseado na persecução penal de ofício,
convertendo-se em pesquisa oficial e secreta, com a
admissão da tortura. Enquanto isso, no Brasil, o discurso
oficial sugeria a aplicação, sucessivamente, das Ordenações
87
Vale, por oportuno, destacar que, no reinado de D. Afonso IV, os mouros
foram definitivamente banidos do território lusitano. Isso produziu
sensível alteração na ordem jurídica, no plano do processo penal,
principalmente com a edição, em 2 de dezembro de 1325, da lei sobre as
inquirições devassas. No reinado de D. Afonso V, sob a regência do Infante
D. Pedro, em 1446, foram editadas as Ordenações Afonsinas, obra dos
romanistas João Mendes (possivelmente o Livro I) e Ruy Fernandes (os
demais Livros). Na mencionada codificação, mais especificamente em seu
Livro V, Título IV, tratava-se do processo criminal, aludindo-se não só à
acusação do Direito Romano como também, novamente, às inquirições
secretas (devassas) do Direito Canônico. Depois vieram leis esparsas e as
Ordenações Manoelinas, em 1521, acentuando a forma escrita do
procedimento e ratificando a jurisdição da realeza, com a previsão do
Promotor de Justiça, até que, finalmente, as Ordenações Filipinas foram
editadas, em 1603, e passaram a ser aplicadas em Portugal após a morte do
Rei Cardeal D. Henrique e sua sucessão pelo Rei espanhol, Filipe II de
Castela (Filipe I em Portugal), que pouco alterou a anterior (Almeida
Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 112, 123 e
127, e Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e
Fontes Legislativas, pp. 45-61). Mesmo depois da libertação de Portugal do
jugo espanhol, continuaram em vigor as Ordenações Filipinas, por feito de
D. João IV, que as revalidou em 29 de janeiro de 1643 (Marques, José
Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, Campinas:
Bookseller, 1997, p. 95).
88 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 102-103.
Manoelinas89 e Filipinas, com as devassas gerais e especiais,
cabendo, pois, aos juízes, nos seus territórios, formar corpo
de delito e abrir inquirição-devassa logo que tivessem
notícias da prática de infrações penais.90
Ao lado do arbítrio e das práticas de extermínio, a
inquisitorialidade era a regra geral, fundada na iniciativa ex
officio, no emprego da tortura, no sistema de avaliação legal
das provas e na forma escrita predominante, inclusive da
sentença, com uma fase processual anterior ao julgamento,
sem contraditório, que findava com a pronúncia,91 sem
embargo, nos primeiros tempos de colonização, de ficar o
processo à discrição dos doze donatários das quatorze
capitanias hereditárias em que se dividiu o território
brasileiro, com ampla jurisdição.92
Em linhas gerais, pode-se assinalar, com Julio Maier,
que o Sistema Inquisitório correspondeu a uma concepção
absolutista de Estado, em teoria política, e a progressiva
publicidade do direito penal, em termos de teoria jurídica,
―concibiendo al delito como un ataque al orden social y el
juzgamiento penal se transforman de cuestión popular en
tarea autoritaria (cuestión de Estado)‖, com as inolvidáveis
conseqüências culturais e jurídicas que tal concepção veio a
proporcionar, a ponto de até hoje sentirem-se os seus efeitos.
Pode-se mesmo assinalar que, sob a égide de tal
sistema, fica claramente à mostra a vinculatividade da
atuação estatal na resolução dos conflitos de interesses e
solução de casos na esfera penal, às diretrizes políticas que
89 Jorge Alberto Romeiro assinala que no Brasil-Colônia não vigoraram as
Ordenações Afonsinas... É que, apesar de descoberta a Terra de Santa
Cruz em 1500, somente no reinado de D. João III (1521-1557) lhe veio de
Portugal a primeira expedição colonizadora, que chegou às costas de
Pernambuco em 30 de janeiro de 1531, capitaneada por Martim Afonso de
Souza (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, Rio de Janeiro: Forense,
1978, p. 71).
90 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, p.
95.
91 Idem, pp. 96-97.
92 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes
Legislativas, p. 71.
modelam a estrutura do Estado e definem seus fins.
A maior parte da doutrina refere como características
do Sistema Inquisitório a concentração das três funções do
processo penal — de acusar, defender e julgar — em um só
sujeito, o que conduz, nas palavras de Alcala-Zamora e
Levene, a um processo unilateral de um juiz com atividade
multiforme,93 relegando ao acusador privado uma posição
secundária e proporcionando o princípio do processo
(rectius, da persecução penal) independentemente da
manifestação de pessoa distinta da do juiz (procedat iudex ex
officio); procedimento extremamente secreto e destituído do
contraditório, quase sempre marcado pela prisão provisória
e disparidade de poderes entre juiz-acusador e acusado;
forma escrita e exclusão de juízes populares, historicamente
preocupado com o descobrimento da verdade real, via de
regra a partir da confissão do imputado, muito embora tenha
havido intensa liberdade de o juiz pesquisar e introduzir
outros meios de prova.94 Não custa colocar em relevo a
observação de Franco Cordero, sobre este período e acerca
do emprego da tortura. Nota o jurista italiano que provido de
instrumentos virtualmente irresistíveis, o inquisidor tortura
os pacientes como quer: dentro do seu marco cultural
pessimista o animal humano nasce culpado.95
3.1.3. O COMMON LAW
O sistema jurídico conhecido como Common Law
merece especial realce. Elaborado na Inglaterra a partir do
século XII da nossa era e fundamentado na jurisdição real
das decisões, expandiu-se para introduzir-se, em maior ou
menor grau, nos Estados que foram colonizados pelos
ingleses.
93 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal
Penal, tomo II, p. 219.
94 Leone, Giovanni. Manuale di Diritto Processuale Penale, Napoli: Jovene,
1983, p. 9. Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale,
Milano: Giuffrè, 1969, p. 7.
95
CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 22, tradução livre.
Com efeito, a Inglaterra integrou o Império Romano do
século I ao V, porém o processo de aculturação foi pouco
intenso, principalmente no tocante à assimilação do direito e
das instituições jurídicas.
Do século VI em diante, conseqüentemente às invasões
dos anglos, dos saxões e dos dinamarqueses, têm lugar
reinos germânicos que, tal como no continente, em que
pesem a incontestável força e o prestígio dos costumes,
adotam também leis bárbaras, geralmente redigidas em
língua germânica.
Já no século XII, a partir da conquista normanda, os
costumes parecem ser a única ou mais importante fonte do
direito, dividindo-se em costumes locais anglo-saxônicos,
costumes das novas cidades e costumes dos mercadores,
denominados, de um modo geral, lex mercatoria. Neste
século, portanto mais cedo que na Europa Continental, os
reis da Inglaterra conseguem impor sua autoridade sobre o
conjunto do território, desenvolvendo a competência da sua
própria jurisdição em prejuízo das jurisdições senhoriais e
locais, que perdem progressivamente, ao longo dos séculos
XII e XIII, a maior parte das suas atribuições.
Para isso, especialmente em matéria criminal, os reis se
serviram de juízes que percorriam todo o território, reuniam
as cortes locais e julgavam os casos em pauta, conferindo
unidade ao Common Law.96
A forma de atuação dos mecanismos de resolução dos
conflitos de interesses adotados na Inglaterra, como
consectário lógico da técnica usada para requerer as
jurisdições reais,97 afastou o direito inglês do modelo
romano-canônico imperante no resto da Europa e
possibilitou aos juízes profissionais, com formação prática, a
introdução de um mecanismo de recurso a precedentes
96 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 70.
97 Requeria-se jurisdição por meio de pedidos endereçados ao Chanceler que,
se os reputasse fundamentados, exarava um writ, uma ordem, a um agente
real local, para que determinasse ao réu que desse satisfação ao queixoso
(Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1979).
(cases) a rigor condensados nos Years Books, escritos em
francês (Law French).
No século XV, no entanto, a técnica dos precedentes
judiciais começou a não atender à evolução das relações
econômicas e sociais, de sorte que surgiram as designadas
jurisdições de eqüidade (equity), que desprezavam o
common law e aplicavam um processo escrito inspirado pelo
do Direito Canônico e conforme ao desenvolvimento do
poder real, em direção ao absolutismo.
É bem verdade que mais tarde a equity se integrou ao
common law, depois de um período de conflito entre realeza
e parlamento, no século XVII,98 especialmente porque se
admitiu uma dualidade jurisdicional, fundida apenas
posteriormente, na Idade Contemporânea, em 1873 e 1875.
No campo específico do processo penal, desde o século
XII assoma em importância o júri, que substitui os juízos de
Deus, proscritos por Inocêncio III. O Júri inicialmente foi
disposto não só para julgar a causa mas, antes, para
denunciar os crimes mais graves (Grand Jury), não se
entregando a acusação pública, em matéria criminal, a um
específico funcionário, juiz ou membro do Ministério
Público, como no continente.
Cabia ao Grand Jury, composto por vinte e três jurados
de cada condado, denunciar os crimes mais graves aos juízes
(júri de acusação), enquanto o Petty Jury, composto
geralmente por doze jurados, ocupava-se com as provas,99 de
que cada jurado podia ter ciência própria, isso se o réu desde
logo não confessasse (guilty plea), situação que gerava a
98 Sobre a reforma do sistema judiciário, que constituiu um dos objetivos dos
que lutaram na guerra civil inglesa, cumpre consignar a reivindicação de
Oliver Cromwell (1650) de que procedimentos e textos legais fossem
redigidos em inglês, não em latim ou law french e que houvesse tribunais
de justiça locais, constituídos por simples cidadãos, que os juízes de paz
fossem eleitos, a lei codificada, os advogados e seus honorários abolidos
(Cerqueira, Marcello. A Constituição na História: Origem & Reforma, Rio
de Janeiro: Revan, 1993, p. 31).
99 Ver, sobre o sistema judiciário do Common Law, por todos, John Gilissen,
Introdução Histórica ao Direito.
isenção de julgamento.100
É imperioso ressaltar, na história dos sistemas
processuais penais, que nos séculos XV e XVI o petty jury
reforma-se para tornar-se exclusivamente uma instituição de
julgamento,101 confiando-se a acusação a qualquer habitante
do reino, pois que, por ficção, admite-se que toda conduta
criminal atinge a figura do rei, o que perdura até os dias de
hoje.
Destarte, a instituição dessa exclusiva ação penal
popular, e a postura de imparcialidade e eqüidistância do
júri (passividade), comungam para que se aceite que o
processo anglo-saxão tenha conservado um sistema
tipicamente acusatório.102
3.1.4. O DIREITO DA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA
Pode-se afirmar seguramente que a herança espiritual
da Idade Média, no âmbito da repressão penal, não
desapareceu definitivamente, até que, a partir dos séculos
XVII e XVIII, sob inspiração do Iluminismo, iniciou-se o
período moderno de administração da justiça, reduzindo-se e
amenizando-se as características inquisitoriais dos
procedimentos penais.
Com efeito, se a Revolução Francesa de 1789 foi o marco
político inquestionável, as condições ideológicas e filosóficas
que viabilizaram a eclosão da Revolução devem muito ao
100 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21.
101 Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, p. 214.
102 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21. Jorge Alberto Romeiro,
a propósito do sistema inglês, alude ao fato de, na Inglaterra, ter imperado
sempre um modelo processual penal baseado na ação penal popular, muito
embora, em tempos recentes, conhecer-se a figura do público acusador
(director of public prosecution), sob a vigilância do procurador-geral
(attorney general). Fauzi Hassan Choukr pondera, entretanto, que a
figura do attorney general que lá existe tem funções de auxiliar do
governo, e sua origem nada apresenta de comum com aquela do
Promotor Público (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, p. 65, e
Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação
Criminal, 1ª ed., p. 50). De toda sorte, dúvida não há sobre a natureza da
estrutura processual penal inglesa.
triunfo das idéias humanistas de Beccaria (Dei delitti e delle
pene, 1764), Thomasio (De origine processus inquisitorii),
Montesquieu (Esprit des Lois, 1748), Voltaire (Prix de la
justice et de l‘humanité, 1777), Bentham (Introduction to the
principles of morals and legislation, 1780), Pufendorf e
Wolf, além, naturalmente, de Rosseau (Contrat Social,
1764), quer no tocante à secularização do direito penal,
ousando separar o Direito da Religião, quer quanto aos fins
da pena, quer, ainda, pela sistematização da idéia da
separação dos poderes.103
É relevante ressaltar que a crítica tenaz ao modelo de
processo penal, e porque não dizer, principalmente, ao
modelo de direito penal então vigente, ressabia a contestação
ao sistema político do Ancien Régime, do qual os
mecanismos punitivos nada mais eram do que instrumentos
de manutenção da ordem classista e desigual, em vigor,
cabendo ao judiciário daquele momento, de uma forma
geral, o triste papel de garantidor de um status quo de
injustiças.104
Maier assinala com precisão que os filósofos
iluministas, partindo do reconhecimento da necessidade de
substituir o sistema absolutista monárquico pela república,
postularam um novo modelo que, a rigor, recolocaria a
oralidade e a publicidade no lugar da escrituração e do
segredo, assegurando-se a defesa e a liberdade de julgamento
pelos jurados,105 com a proscrição do sistema de provas
legais.
A transição política e cultural da monarquia para a
República teve repercussão no campo do processo penal, por
meio da abolição da tortura e da adoção de um sistema
processual penal inspirado nos aplicados pela Roma
Republicana e pela Inglaterra. Como diz Roxin, ―Oralidad,
publicidad, participación de los legos en la administración
103 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 85.
104 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Cartas Persas,
tradução de Renato Janine Ribeiro, São Paulo: Paulicéia, 1991.
105 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 106-107.
de justicia y la introducción del ministerio público — ésas
fueron, en el ámbito del proceso penal, las exigencias
reformistas decisivas del siglo XIX en oposición a la justicia
de gabinete y a la manipulación arbitraria del poder
penal‖.106
Sem dúvida, o movimento de radical mudança social,
política e jurídica não se limitou ao ambiente intelectual,
alcançando a consciência pública, de modo a ser reivindicado
até mesmo por magistrados franceses do Antigo Regime,
juízes que hoje poderíamos designar como de vanguarda.
O novo sistema, que principiou sua atuação na França,
em seguida à Revolução, para com as guerras napoleônicas
chegar a outros países, disciplinava o processo penal em
duas fases. Na primeira delas, denominada instrução,
procedia-se secretamente, sob o comando de um juiz,
designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a
perpetração das infrações penais, com todas as
circunstâncias que influem na sua qualificação jurídica, além
dos aspectos atinentes à culpabilidade dos autores, de
maneira a preparar o caminho para o exercício da ação
penal; na segunda fase, chamada de juízo, todas as atuações
realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado
ou o júri, com a controvérsia e o debate entre as partes, no
maior nível possível de igualdade.
Salientou Pietro Fredas107 que esta estrutura foi
consagrada no Código de Instrução Criminal de 1808,
difundindo-se rapidamente pelos códigos modernos, com a
proclamação da necessidade de uma investigação secreta e
dirigida pelo juiz, e com tímida atuação da defesa nesta
etapa, razão por que se consagra como sistema de tipo
misto.108
106 Roxin, Claus. El Ministerio Público En El Proceso Penal, Buenos Aires: AdHoc, 1993, p. 39.
107 Fredas, Pietro, na introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de
Eugenio Florian, p. 10.
108 Vale acentuar que, transplantado da Inglaterra para o continente europeu
pela Revolução Francesa, exceto para Holanda e Dinamarca, o júri não se
adaptou aos costumes dos povos continentais, sendo abolido ou tendo sua
Cumpre explicitar que a instituição do júri, no
continente europeu, obedeceu à lógica da identidade entre o
direito e a lei, pela qual a verdade política por esta
expressada, de forma genérica e abstrata, haveria de ser
meramente proclamada pelo juiz profissional a quem não se
permitia interpretar a lei com maior liberdade, no seu
processo de aplicação.
Tratava-se, portanto, de mais uma reação ao Antigo
Regime, desenvolvendo os jurados — juízes leigos — o papel
de guardiões dessa presumida verdade política da lei, em um
clima de abstrata homogeneidade de uma sociedade,
marcada, naturalmente, por uma nova categoria de conflitos
que, ao longo dos séculos XIX e XX, poriam a nu o dogma da
universalidade dos interesses burgueses.
Conforme Alcala-Zamora e Ricardo Levene, na própria
França, e antes na Áustria e na Espanha (respectivamente,
1897, 1873 e 1882), acentuou-se a tendência acusatória do
processo penal, sem prejuízo da manutenção das
características basicamente inquisitórias da sua primeira
etapa (o segredo, a escrituração e a iniciativa judicial),
combinando, de acordo com os renomados autores, as
vantagens de ambos os sistemas de que derivou,109 de sorte
que passa a ser conhecido, também, como sistema acusatório
formal.110
competência paulatinamente reduzida, como na Alemanha, em 1924, na
Itália, em 1935 e 1951/1952, e na própria França, em 1941, onde foi
substituído pelos escabinados (Marques, Frederico. A Instituição do Júri,
Campinas: Bookseller, 1997, pp. 20-21).
109 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal
Penal, p. 222. Ver também Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p.
32.
110 Vale examinar a obra de Antonio María Lorca Navarrete, intitulada
significativamente El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento
Criminal: Una propuesta para preterir el modelo inquisitivo d la Ley de
Enjuiciamiento Criminal (Madrid: Dykinson, 1997, p. 30), da qual se extrai
esse importante trecho: La prevalente práctica del sistema inquisitivo
justificó históricamente la urgente necesidad de neutralizar sus
consecuencias perversas, evidenciadas a partir de la labor de los
revolucionarios franceses. Surge así la ‗tercera vía‘ que, sin ser inquisitiva
ni acusatoria, es, en cambio, los dos modelos a la vez. Se trata del modelo
Pode-se dizer que a ação penal, no sistema misto,
exercitada pelo Ministério Público, pelo ofendido ou por
qualquer pessoa (dividindo-se assim, conforme a
peculiaridade dos ordenamentos jurídicos, em pública, de
iniciativa privada e popular), caracteriza-se por ser
indisponível, exercida pelo seu respectivo titular de acordo
com os ditames do juízo de acusação ao qual chegam os
integrantes da câmara ou tribunal de acusação, depois de
apresentado, pelo juiz-instrutor, o resultado das suas
investigações.
A etapa preliminar, ou de instrução, atende ao
propósito declarado de otimizar os meios de apreensão dos
elementos que constituirão o núcleo do trabalho a ser
desenvolvido na fase seguinte, e ao objetivo implícito, de
realização pública e obrigatória do direito penal, ou, como
prefere Maier, de indisponibilidade na atuação do preceito e
da sanção penais, nem bem verificada a infração penal,111
fazendo operar ―de ofício‖ o direito penal, conforme as
reservas de direitos fundamentais, motivo pelo qual, nesta
perspectiva, pode ser compreendido como sistema
inquisitorial garantista.
Atualmente, a situação é a que será a seguir exposta,
com a ressalva de que o século XX foi marcado, na Europa,
em um determinado momento, pelo império de regimes
totalitários, que abraçaram a discricionariedade na repressão
penal, mais aproximada do modelo inquisitório extremado, e
provocaram, como reação, conseqüentemente ao seu
desaparecimento, o desejo mais ou menos comum de uma
nova introdução do sistema acusatório, movimento ainda
não completamente ultimado no último decênio.
Vale asseverar, seguindo o trajeto histórico dos sistemas
processuais das duas principais famílias jurídicas que nos
mixto o acusatorio formal, que se caracteriza porque recoge, como no
podía ser menos, elementos técnicos del inquisitivo e del acusatorio com
indudable prevalencia hacia este último en la fase más importante de esse
modelo: el juicio.
111 Maier, Julio B. J. La Investigación Penal Preparatoria del Ministerio
Publico, Buenos Aires: Lerner, p. 14.
interessam — as do direito europeu continental e do
Common Law —, que, na França, o processo penal evoluiu
desde 1808, época da edição do Code d‘instruction
Criminelle, no sentido de se reforçar a estrutura de tipo
misto, mantendo-se no atual Code de Procédure Pénale, que
entrou em vigor em 1959, uma etapa de instrução escrita e
secreta (artigo 11), dirigida por um juiz-instrutor responsável
pela aquisição das provas, com maior liberdade e
independência, distinta da etapa de julgamento.
Prevalece a tendência de se excluir a defesa da fase de
investigação preliminar (l‘enquête), muito embora participe
efetivamente da fase de juízo. A ação penal é deflagrada pelo
Ministério Público, sendo indisponível e irretratável, muito
embora, quanto à iniciativa, sujeita a alguma
discricionariedade do órgão do parquet, e, quanto ao seu
objeto, sujeita à obediência ao deliberado pela câmara de
instrução, no fim desta fase (artigos 202, 204 e 205 do CPP).
Novella Galantini, estudando o Processo Penal Francês,
observou, na década de 1980, a tendência de aproximação ao
modelo acusatório, principalmente por meio do controle dos
poderes atribuídos ao juiz de instrução, situação revertida
posteriormente, conforme as Leis 93-2, de janeiro de 1993, e
93-1013, de agosto do mesmo ano, que se inclinaram em
direção ao retorno ao processo de tipo misto, que atualmente
predomina, progredindo a persecução a partir da
investigação inicial, levada ao cabo pela polícia, sob a
coordenação do Ministério Público, passando pelo exercício
da ação penal e instauração da fase de instrução, até chegar
ao juízo propriamente dito, este último oral, público e
contraditório.112
Na Espanha, segundo Emilio Gomez Orbaneja e Vicente
Herce Quemada,113 o sistema da Ley de Enjuiciamiento
Criminal corresponde à estrutura acusatória formal, ou
112 Galantini, Novella. Profili della Giustizia Penale Francese, Torino: G.
Giappichelli, 1995.
113 Orbaneja, Emilio Gomez e Quemada, Vicente Herce. Derecho Procesal
Penal, 6ª ed. Madrid, 1968, p. 91.
mista, porquanto, ao lado de uma primeira fase, de
investigação, denominada sumário, escrita e secreta,
conduzida pelo juiz da instrução, com reduzida intervenção
da defesa,114 há o juízo propriamente dito, ao qual se chega
ultrapassando-se a etapa intermediária de aceitação da
acusação, sujeito à parêmia nemo iudex sine actore, pelo que
se prestigiam a oralidade, a publicidade e o contraditório
(artigos 744 e 680 da LEC).
A ação penal poderá ser pública, a cargo do Ministério
Público, popular, caso em que funciona o órgão oficial como
litisconsorte, ou de iniciativa do ofendido, desenvolvendo-se
na sua plenitude depois de ultrapassada a fase sumarial,
responsável pelo acertamento da qualificação jurídica do
fato.
Navarrete, examinando a forma como na Espanha
desenvolve-se o processo penal, acentua a impossibilidade de
se conciliar duas fases tecnicamente antagônicas, porque
inspiradas por princípios opostos, tais sejam, o inquisitivo e
o acusatório. Reclama por isso, o mencionado autor, uma
urgente redefinição do modelo, com preponderância da
acusatoriedade, salvo se pretender a lei espanhola render
loas à teoria da aparência acusatória, pela qual o sistema
acusatório é só mediático, estruturalmente condicionado em
seus resultados pela atividade inquisitória anterior.
A prevalência dos aspectos acusatórios, conforme
Navarrete, apresenta-se hoje, pois, como mistificação, que
não resiste sequer à constatação de que a forma sumária,
preparatória e inquisitorial, é regulada por quase quatro
centenas de artigos (artigos 259 a 648 da LEC), contra cem
do juízo oral e um número ainda menor para o juízo
abreviado, instituído pela Ley Orgánica 7/1988, de 28 de
114 Desde 4 de dezembro de 1978, por força da Lei nº 53/1978, que modificou
o artigo 302 da LEC, os sujeitos pessoalmente envolvidos com as
investigações sumariais podem tomar conhecimento das diligências e
intervir em todas elas, sendo, portanto, consoante interpretação do
tribunal constitucional espanhol, uma exceção para as partes (Lorca
Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento
Criminal, p. 87).
dezembro de 1988.115
Como sintoma da incongruência da estrutura acusatória
formal ou mista em vigor, ressalta Navarrete a possibilidade
de funcionarem, lado a lado, o juiz inquisidor, o Ministério
Público e o ofendido, alcançando-se, pelas dificuldades de
salvaguarda de um processo garantista, algo como a
quadratura do círculo.
A Alemanha, por sua vez, recepcionou novamente a
experiência jurídica estrangeira, por conta da expansão
napoleônica, introduzindo entre os povos germânicos a
declaração de direitos fundamentais do povo alemão, em
1848, pela qual se optava, decisivamente, pela publicidade e
oralidade do processo penal, pela inclusão do elemento
popular na tarefa de julgar, condicionando-se a atuação da
jurisdição a uma provocação de parte, com a conseqüente
descentralização das funções principais do processo: acusar,
defender e julgar.116
Em realidade, muito embora haja, entre os estudiosos
do processo penal alemão, quem lhe recuse a qualificação de
deduzido conforme o sistema acusatório, justamente porque
não seria um processo de partes, substancialmente
falando,117 o certo é que o princípio acusatório, caracterizado
pela divisão de funções — acusar, defender e julgar — está
efetivamente preservado.118
A persecução penal, de um modo geral, começa com o
procedimento preparatório, previsto no § 160 e seguintes do
StPO, dirigido pelo Ministério Público, sendo essencialmente
115 Idem, pp. 31 e 57.
116 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 35.
117 Colomber assevera que, na medida em que é o próprio Estado quem inicia
a persecução penal em juízo, por intermédio do Ministério Público, e a
soluciona, por meio da sentença proferida pelo juiz, dependendo a relação
jurídica processual, via de regra, da oficialidade da ação penal, tal estado de
coisas é inerente ao reconhecimento da prevalência do interesse público na
tutela penal dos bens jurídicos, com a usurpação, pelo Estado, do papel de
protagonista que a vítima desempenha nos sistemas acusatórios puros ou
genuínos (Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman:
Introduccion y Normas Basicas, Barcelona: Bosch, 1985, p. 46).
118 Idem, p. 47.
secreto. Nele, há limitada autorização para a participação do
investigado ou de seu defensor, embora haja cuidados com
os direitos fundamentais do primeiro. Terminada esta fase, é
possível o arquivamento ou o exercício da ação penal,
consoante o seu resultado e levando em consideração, ainda,
em algumas situações, questões de conveniência.
Formulada a acusação, passa-se a uma fase
intermediária, destinada ao controle desta mesma acusação,
no tocante à existência de base fática para a demanda — §§
199 a 211 do StPO. Aceita a acusação pelo tribunal, inicia-se o
procedimento principal, regulado no Livro II da StPO, cujas
principais notas são, como antes acentuado, a divisão das
funções principais entre acusador, réu e seu defensor e juiz, a
oralidade e a publicidade, estando, todavia, o tribunal livre
para adquirir os meios de prova que considerar necessários
ao descobrimento da verdade, não havendo nenhuma
tarifação legal dos meios de convencimento introduzidos.119
Convém explicitar, nos limites do nosso trabalho, que
não pode o tribunal proceder de ofício, quer quando decide o
Ministério Público arquivar os autos do procedimento
preparatório (para o que só há recurso do ofendido), ou
ainda se pretender o tribunal ampliar o objeto ou incluir
sujeitos na relação instaurada, devendo, neste último caso,
ser cumprido o percurso previsto no § 266 do diploma
processual, como adiante transcrevemos, conforme a
tradução espanhola:120
―Si extendiera el Fiscal en la vista principal la
acusación a ulteriores hechos punibles del acusado,
podrá incluirlos el Tribunal, por medio de auto, en
el proceso, cuando fuera competente para ello y lo
consintiera el acusado.‖
119 Idem, p. 130. Ver, igualmente, Introducción al Derecho Penal y Al Derecho
Penal Procesal, por Claus Roxin, Gunther Arzt e Klaus Tiedemann,
Barcelona: Ariel, 1989.
120 Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman, p. 367.
A Itália, em 1988, substituiu o Código Rocco, de 1930,
incorporando na nova legislação fundamentais alterações,
que apartam o mais recente modelo daqueles de inspiração
francesa.
Com efeito, depois de longa jornada, permeada por
instantes de extrema dificuldade, provocados, entre vários
fatores, pela ação terrorista, produziu-se uma nova ordem
jurídica, no plano do processo penal, em busca da expressão
consciente de dois distintos projetos: a preservação das
garantias fundamentais, bastante afetadas por um sistema de
tipo misto, preponderantemente inquisitório;121 e a
necessidade de eficiência da justiça penal e de defesa da
coletividade.122
No novo sistema, modificou-se a fase preparatória, que
se transformou em verdadeiro inquérito, conduzido,
coordenadamente, pelo Ministério Público e pela Polícia,
iniciando-se a ação penal, sempre pública, depois de
encerrada esta etapa123. Com isso, repudiou-se a face antiga
do sistema, pela qual o juiz de instrução, responsável,
juntamente com o Ministério Público e a polícia, pela
aquisição das provas e acertamento dos fatos fundantes da
acusação, depois disso participava ativamente do
julgamento.
Ao mesmo tempo, a inspiração acusatória retirou das
investigações preliminares (indagini preliminari) a condição
de, por si só, autorizarem a formação de um juízo
condenatório, imperando, portanto, o contraditório, como
mecanismo de validação da relação processual, cujas fases
consistem, via de regra, na audiência preliminar e no
121 Ennio Amodio salienta que, não obstante as inserções e retoques
inspirados em uma visão garantidora, o antigo processo penal, volvido
na sua criação à codificação de 1930, mantinha intacta a sua conotação
inquisitória herdada do Code d‘instruction criminalle francês de 1808.
122 Sobre o movimento que resultou na edição do novo código, ver, por todos,
Procedura Penale: un codice tra ―storia‖ e cronaca, de Mario Chiavario,
Torino: Giappichelli, 1994.
123
PEPINO, Livio. Reflexões sobre o sistema processual penal italiano, in:
Revista do Ministério Público , 97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 75.
julgamento. Ao lado do denominado ―processo tipo‖ vigoram
pelo menos cinco modalidades de procedimentos
alternativos, que objetivam evitar o estrangulamento do
sistema e possibilitar a adoção célere de decisões que,
normalmente por acordo, prescindam do contraditório em
audiência de instrução.
A admissão das provas emerge, normalmente, da
atividade das partes e, em caráter excepcional, da iniciativa
do tribunal, vedada esta, porém, no estágio anterior ao da
audiência preliminar, mesmo quando evidente o periculum
in mora (artigo 392 do CPP). A esse respeito, ressalta
Amodio, relativamente ao estágio de julgamento, ―o juiz não
é colocado no papel de um passivo espectador da disputa
que se desenvolve em audiência entre a acusação e a defesa.
O juiz pode, depois de terminado o ‗esame diretto‘ e o
‗controesame‘ conduzidos pelas partes, indicar às mesmas
termos de prova novos‖.
Pode ainda o juiz, é certo, reperguntar às testemunhas,
aos peritos e às partes privadas, desde que preserve o direito
das partes colocarem ulteriores perguntas (artigos 506, 498
e 503 do CPP), de tal sorte que o princípio da busca da
verdade real é significativamente abrandado, sem, todavia,
reservar ao juiz um papel de completa passividade.124
Importa consignar que, com poucos anos de vigência, o
novo código sofreu parciais reformulações e algumas
interpretações polêmicas, que alteraram certos aspectos,
principalmente no que concerne à produção da prova,
durante o julgamento, sem a adequada efetivação do
contraditório e preservação da oralidade e publicidade,
critérios cruciais do novel diploma, a ponto de assinalar
124 Assinala, sobre a nova postura dos juízes, Paolo Ferrua, que ciò non
significa che il giudice debba restare costantemente passivo, immerso sino
alla decisione in uno stato di indifferenza, quasi di ozio. Acrescenta o
citado autor que, ao contrário, se l‘imparzialità è sicuramente
compromessa dall‘esercizio di funzioni investigative, non lo è né
dall‘esercizio di poteri direttivi che non implicano alcuna preminenza se
non quella, essenzialmente pratica, di regolare gli interventi delle parti
nel corso del processo (Studi sul Processo Penale, Torino: Giappichelli,
1990, p. 17).
parcela da doutrina que hoje se vive a estranha situação de se
ter passado de um GARANTISMO INQUISITÓRIO, criado a
partir das decisões da corte constitucional, adaptando o
velho código Rocco, ao accusatorio non garantito.125
Vale dizer que em virtude da reação de diversos setores
da sociedade foi editada a lei n. 479, de 16 de dezembro de
1999, que modificou bastante o procedimento abreviado. A
própria Constituição da República Italiana sofreu alteração.
Em 23 de novembro de 1999 foi promulgada a lei n. 2, que
modificou o artigo 111 (que trata do ―devido processo legal‖),
expressamente referindo-se aos meios de prova para excluir
a possibilidade de condenação de alguém com base em
declarações prestadas por quem, por decisão livre, se
subtraiu voluntariamente ao interrogatório por parte do réu
e de seu defensor.
Em Portugal, após a Revolução dos Cravos e
estabelecimento da democracia, editou-se, em 2 de abril de
1976, uma nova Constituição, cinco vezes revista, inclusive
em 12 de dezembro de 2001, porém sem modificação
sensível no tratamento dispensado à estrutura processual.
Com efeito, dispõe o no 5, do artigo 32o, da mencionada
Carta, que o processo criminal terá estrutura acusatória,
estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios
que a lei determinar subordinados ao princípio do
contraditório.
Assim é, portanto, que, especialmente a partir da
entrada em vigor do novo Código de Processo Penal
português (Lei no 43/86, de 26 de setembro de 1986 e
Decreto-lei 78/87), instituiu-se nesse país um modelo
125 Conveniente é, certamente, a leitura de Percorsi di Procedura Penale: Dal
garantismo inquisitorio a un accusatorio non garantito, coordenado por
Vincenzo Perchinunno (Milano: Giuffrè, 1996). Paolo Ferrua atribui,
principalmente, ao Decreto-lei nº 306, de 8 de junho de 1992, convertido,
com algumas modificações, na Lei nº 356, de 7 de agosto do mesmo ano, a
responsabilidade por, de um processo baseado na eqüidistância do juiz e
assunção da prova no debate contraditório, ter preservado apenas o
primeiro elemento (Studi sul Processo Penale II Anamorfosi del Processo
Accusatorio, Torino: Giappichelli, 1992, p. 174). Também PEPINO, Livio,
Reflexões..., op. cit., p. 73-85.
processual alicerçado na assimilação da acusação, como
condição processual para alguém submeter-se a julgamento,
na parificação do posicionamento jurídico entre acusação e
defesa, em todos os atos do processo, na garantia da ampla
defesa, do contraditório, da publicidade e da oralidade, e na
correlação entre a imputação contida na ação penal — a rigor
pública, promovida pelo Ministério Público, mas,
excepcionalmente, de iniciativa privativa do ofendido — e a
sentença proferida (artigos 309o e 379o do CPP),126 cuja
execução está condicionada, também, à iniciativa do
Ministério Público.
Pondo de lado um sistema de instrução semelhante ao
francês, por causa da profissão de fé acusatória, o novo
paradigma processual lusitano inseriu um estágio similar ao
inquérito policial, dominado pelo Ministério Público, e
voltado à reunião dos elementos que serão deduzidos na fase
de instrução (artigos 262o e seguintes do CPP), surgindo
esta, por sua vez, quando exigida por lei, como preparatória
para o exercício da ação penal (artigos 286o e seguintes do
CPP). Na prática a intervenção do Ministério Público no
inquérito continua reduzida e é objeto de crítica com alguma
freqüência, pois que as investigações continuam nas mãos da
polícia submetida a parcos controles.127
De se observar, não obstante a inquisitoriedade dessa
etapa, que há restrições à utilização posterior dos meios de
prova, com ressalva para os introduzidos no debate
instrutório (artigos 298o e 301o, no 2).
Cumpre assinalar que o tribunal, no sistema português,
é livre para adquirir os meios de prova que entender
necessários à descoberta da verdade, observando-se,
naturalmente, os limites impostos pelas leis e pela
Constituição. Como a maioria da doutrina portuguesa
explica, adota-se aí um processo acusatório mitigado ou
126 Silva, Germano Marques da. Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa: Verbo,
1996, pp. 54-83.
127 PEREIRA, Rui. A crise do Processo Penal in: Revista do Ministério Público ,
97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 21-22.
temperado pelo princípio da investigação.128
Mais tarde, a Lei 59/98 foi editada visando superar
aspectos de estrangulamento que subsistiam, sendo, porém,
alvo de críticas. A principal reserva foi oposta ao chamado
―processo de ausentes‖, que supostamente esvaziou esta
etapa do indispensável caráter contraditório que deve
sublinhar o processo penal.129
Finalmente, entre 1999 (com a lei de proteção de
testemunhas) e 2004 (com a lei de prevenção e repressão do
branqueamento) Portugal oscila, inclinando-se ora em
direção à cultura inquisitorial do passado, ora na linha da
estrutura acusatória que a Constituição da República
consagra.
Ainda na família do direito de origem européia
continental, é valioso mencionar a situação argentina,
naquilo que nos é dado conhecer, desde logo esclarecendo,
por oportuno, que as Províncias, equivalentes aos nossos
Estados da Federação, dispõem de legislação própria,
distinta daquela aplicada em se tratando de delito da
competência federal, definido por exceção.
Inspirado, a partir da libertação da Espanha, em 1810,
por um movimento de identificação com o sistema francês,
de onde vinham as idéias que predominaram entre os
revolucionários, o processo penal argentino vive cruciante
contradição, na medida em que, atualmente, o Código
Procesal Penal de la Nación vigora, instituído pela Lei no
23.984, em vigor desde setembro de 1992, cujas bases ainda
são aquelas próprias do sistema de tipo misto, conforme o
antigo modelo italiano, com forte presença do juiz de
instrução, sem embargo de haver reforçado o papel do
Ministério Público. Releva notar que durante a realização do
Seminário Interamericano sobre Reformas Processuais
Penais na América Latina, realizado em Buenos Aires entre
128 PEREIRA, Rui. A crise..., p. 19 e ANDRADE, Manuel da Costa, no prefácio ao
livro A ilicitude da prova: teoria do testemunho de ouvir dizer, de Oswaldo
Trigueiro do VALLE FILHO, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 14.
129SANTOS, Gil Moreira. O Direito Processual Penal, Porto: ASA, 2002.
14 e 16 de abril de 2004 e promovido pelo INECIP (Instituto
de Estudios Comparados em Ciencias Penales y Sociales), foi
oficialmente apresentado o anteprojeto de Código de
Processo Penal Federal, elaborado em conformidade com a
estrutura acusatória.
De outro ponto, há algum tempo já está sendo
implementado em Córdoba e outras províncias um sistema
jurídico aproximado ao modelo acusatório. Isso, em
Córdoba, por exemplo, decorre da coordenação entre a
Constituição Provincial, a Lei Orgânica do Poder Judiciário e
o novo Código de Processo Penal, sancionado como Lei no
8.123. No ano de 1999 é sancionada a lei n. 8.802, que cria o
Conselho da Magistratura Provincial.
Com efeito, na lei de Córdoba a instrução judicial ou
formal é substituída pela investigação do Ministério Público,
nos crimes de ação pública, sem prejuízo do exercício da
defesa em todas as etapas da persecução, enquanto no
diploma federal permanece o juízo de instrução, escrita e
reservada, com limitada intervenção das partes. A
organização da justiça penal prevê tribunais de controle de
garantias.
Em ambos os casos a fase seguinte carece da iniciativa
do acusador, de um modo geral o Ministério Público,
desenvolve-se a audiência de debate, contraditória e pública,
cabendo à parte, na estrutura provincial, o empreendimento
dos interrogatórios de quem haja arrolado para depor, ao
tempo em que, no Código da Nação, são os três juízes que
compõem o tribunal que começam a inquirição, que
conduzem de tal modo, a ponto da doutrina enxergar na
providência um desestimado ato de natureza inquisitorial.130
Em Córdoba funcionam três tipos de tribunais, que
variam entre o modelo unipessoal e o composto por três
juízes.
Por derradeiro vale consignar que o Chile iniciou a mais
profunda transformação entre os Estados Latino130 Sobre o modelo argentino, recomenda-se Derecho Procesal Penal, tomo I,
de Jorge E. Vazquez Rossi (Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1995).
Americanos.
Mauricio Duce e Cristián Riego recordam que, sem
embargo de a doutrina tradicional do Chile afirmar que
desde 1906 o modelo chileno era de tipo misto, influenciado
pelo paradigma francês, o processo penal chileno na prática
era inquisitorial. Várias reformas parciais foram
empreendidas, em 1927, 1942 e 1989 todavia sem pretensão
de transformar o processo em seu eixo, mas apenas
―modernizá-lo‖ e torná-lo mais célere.131
Por fim, em 12 de outubro de 2000 é publicado o novo
Código de Processo Penal chileno, cuja aplicação integra um
amplo projeto de mudanças, que está sendo desenvolvido de
forma gradual.
Assim, são criados Ministério Público e Defensorias. O
novo sistema entra em vigor paulatinamente, nas regiões em
que se divide o Chile, ―testado‖ inicialmente na 4ª Região.
De acordo com relatório apresentado (Revista Sistemas
Judiciales, año 2, nº 3, 2002, publicação do CEJA):
―A reforma chilena responde, em geral, às mesmas
características dos demais sistemas abarcados neste
estudo. Sua principal expressão legislativa é o novo
Código de Processo Penal, que estabelece a introdução
de um juízo oral ante um painel de três juízes, como
forma de julgamento, suprime a figura do juiz de
instrução e entrega a tarefa de preparação do juízo ao
Ministério Público, supervisionado por um juiz
especialmente criado para cumprir esta tarefa, o juiz de
garantias. Ao mesmo tempo o novo Código entregou ao
Ministério Público diversas faculdades destinadas a lhe
permitir usar procedimentos alternativos ao tradicional,
com o fim de dar lugar a soluções negociadas e para
descongestionar o sistema judicial do excessivo número
de casos que habitualmente se apresentam.‖132
Anteriormente foi examinada a família jurídica do
131
DUCE, Maurício e RIEGO, Cristián. Introducción al nuevo sistema procesal
penal, Chile: Universidad Diego Portales, 2002.
132
Tradução livre, p. 18.
Common Law, no que se relaciona ao seu desenvolvimento
até o século XVIII, convindo, pois, deduzir derradeiras
considerações, na medida em que se concebem modelos
estruturalmente diferentes, nos Estados Unidos da América
e na Inglaterra.
Sobre a Inglaterra, pátria do Commom Law, averbe-se
que até hoje predomina o sistema de acusação privada,
deflagrada por qualquer cidadão, e julgada, a rigor, pelo Júri,
imparcial e inerte. Embora não conheça um mecanismo
absolutamente profissional de acusação, desde o século XIX
propugna-se por uma instituição que desenvolva a
persecução oficial, culminando, em 1879, com a criação do
Escritório do Diretor de Persecução Penal Pública (Office of
Director of Public Prosecution).
Diferentemente do conhecido Ministério Público tanto
dos países da órbita de influência européia continental, como
dos Estados Unidos da América, tal funcionário encarrega-se
da responsabilidade de deduzir ação penal em um número
bastante limitado de casos, sem exclusividade, circunstância
que expressa a vontade legislativa de deixar ao Estado a
persecução penal apenas daqueles crimes de considerável
gravidade.
Apesar de algumas agências atuarem na persecução
penal, em casos de seu interesse, na maioria das vezes, é a
polícia quem deflagra a ação penal, atuando aí, cada policial,
na condição particular de súdito. De um modo geral, os
policiais são assistidos por advogados (prosecuting
solicitors) e têm amplos poderes dispositivos que, em
restritas hipóteses, podem ser legalmente limitados. No
sistema inglês alcança-se, certamente, o maior nível de
acusatoriedade, pela implementação de um processo de
partes, com preocupação de parificá-las, assegurando-se
ampla defesa, contraditório, publicidade, oralidade e
absoluta imparcialidade do juiz, sem desprezar os aspectos
atinentes à disponibilidade da ação penal.133
Nos Estados Unidos da América, que respeitam uma
forma federalista, o processo penal é essencialmente
acusatório,134 com o Promotor de Justiça assumindo o papel
principal,135 que exercita de modo equilibrado com a reserva
de direitos fundamentais atribuída à defesa pela Constituição
Federal. A prova, em processo oral e público, é produzida
exclusivamente pelas partes, quer perante o júri, onde existe,
funciona ou o réu o aceita, quer perante o magistrado
singular, havendo, ainda, ampla disponibilidade sobre o
conteúdo da pretensão deduzida.
A respeito do sistema processual penal vigente no
Brasil, empreenderemos a abordagem, por questão de ordem
metodológica, no último item deste capítulo.
3.2. Características do Sistema Acusatório
Cumprindo a trajetória que demarcamos, é nosso dever
tentar aclarar certos conceitos e estabelecer algumas
mínimas definições, para, assim, examinarmos as algumas
leis especiais e observarmos, em que medida e de que forma,
confrontam o modelo de estrutura processual penal
constitucionalmente eleito.
133 Bovino, Alberto. ―La Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón‖,
in Pena y Estado, ano 2, nº 2: O Ministério Público, Buenos Aires: Del
Puerto, 1997, pp. 35-79.
134 Farnsworth, E. Allan. Introdução ao Sistema Jurídico dos Estados Unidos,
Rio de Janeiro: Forense, 1963.
135 Até o final do século XVII, início do século XVIII, por influência do direito
dos colonizadores, nos Estados Unidos a vítima demandava privadamente.
Acredita-se que a imigração holandesa haja levado consigo a figura do
persecutor público, porém sem alterar, na essência, o modelo processual
penal, que ficou imune às demais experiências do sistema romanocanônico. Os Promotores de Justiça, como órgãos públicos responsáveis
pela persecução penal, são acreditados como representantes da sociedade,
no desempenho de uma tarefa política, motivo por que, em 46 dos 50
Estados da Federação, são eleitos, enquanto no plano federal são indicados
pelo Presidente da República e estão subordinados formalmente ao
Procurador Geral (U.S. Attorney General), segundo Alberto Bovino (La
Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón, ob. cit., p. 54).
3.2.1. PRINCÍPIO E SISTEMA ACUSATÓRIO: DIFERENCIAÇÃO
Com efeito, a primeira abordagem resulta da exigência
de extremarmos as definições de sistema e princípio
acusatórios. Para isso, vamos nos valer das singularidades
ordinariamente referidas às duas categorias.
Giovanni Leone136 apresenta, como características do
sistema acusatório, o poder de decisão da causa entregue a
um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do
poder exclusivo de iniciativa do processo. Acrescenta que,
deduzida a acusação, o magistrado se libera da vinculação às
iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a
persecução penal, que se desenvolverá conforme os
princípios do contraditório, com paridade de armas,
oralidade e publicidade.
Por seu turno, Riquelme137 alinha também a
legitimidade popular do juiz, que será o próprio povo ou se
constituirá de significativa parte dele, despido, por isso, do
dever de fundamentar sua decisão, haja vista sua soberania,
ao que, conseqüentemente, soma-se a irrecorribilidade das
decisões que profere, em processo que se desenvolve na
forma de um duelo público, oral e contraditório, entre
acusador e acusado, perante um juiz inativo e imparcial.
Mittermaier138 igualmente alude ao princípio do juiz
popular, como da essência do sistema acusatório,
salientando, justamente, que sólo puede ser Juez el pueblo o
delegados escogidos de su seno, celosos y vigilantes
defensores de las libertades, enquanto Alcala-Zamora e
Levene139 mencionam também a acusação popular e a
liberdade de apreciação judicial das provas, cabendo a Julio
136
137
138
139
Leone, Giovanni. Ob. cit., p. 8.
Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., pp. 36-37.
Mittermaier, Karl Joseph Anton. Ob. cit., p. 56.
Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Ob. cit., pp. 217218.
Maier140 a observação, segundo nos parece, da existência de
poderes de conveniência, oportunidade e disponibilidade,
referentes ao exercício da ação penal, em contraposição,
naturalmente, ao dever inevitável de perseguição penal,
característico do sistema inquisitivo.
Ortega diferencia princípio acusatório do sistema que
lhe empresta o nome. Este autor sublinha que, ao lado do
princípio propriamente dito, encontramos a publicidade e a
oralidade como traços constitutivos do sistema acusatório.141
Conso,142 autor das obras que mais se aprofundaram no
exame da matéria, registra, ao lado do que já foi consignado
(necessidade de acusação ofertada por órgão distinto do
julgador, publicidade e oralidade do procedimento, paridade
de armas entre as partes e exclusão da iniciativa judicial no
recolhimento das provas), ser característica a liberdade
pessoal do acusado, ao menos até a sentença condenatória
definitiva.
Cordero acentua a semelhança (―remota ascendência‖)
entre o processo acusatório e os duelos. ―As técnicas
acusatórias são juízos de Deus intelectualmente
elaborados‖.143 Segundo o professor italiano, a ação decisória
se converte em um trabalho mental sobre dados positivos,
porém cabe aos contendores aduzir e discutir os dados em
uma típica ―batalha intelectual‖. O valor do processo
acusatório está na observação das regras, insensível à
sobrecarga
ideológica
derivada
da
observação
inquisitorial144. Finaliza advertindo que a ação penal
obrigatória e irretratável, os poderes instrutórios de ofício e
pedidos que nunca são vinculantes distinguem o modelo
italiano do anglosaxão.
140 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario
y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, p. 43.
141 López Ortega, Juan J. ―La Dimensión Constitucional del Principio de la
Publicidad de la Justicia‖, in Revista Del Poder Judicial, Madrid: Consejo
General del Poder Judicial, nov/1999, p. 52.
142 Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8.
143
Cordero, Franco. Op. cit., p. 87 (tradução livre).
144
Idem, p. 86.
É certo, conforme ao nosso juízo, que, se pretendemos a
definição de um sistema acusatório como categoria jurídica
composta por normas e princípios, não há como, pura e
simplesmente, justapô-lo com exclusivadade a um preciso
princípio acusatório, pois a identidade entre um e outro
resultaria, por exigência lógica, na exclusão de uma das duas
categorias, pela impossibilidade de um princípio ser, ao
mesmo tempo, um conjunto de princípios e normas do qual
ele faça parte, numa relação de continente a conteúdo.
Fica mais clara a incompatibilidade da justaposição,
quando, pela simples resenha classificatória, notamos a
significativa disparidade de elementos invocados como da
própria essência de uma das categorias, no caso, do sistema.
Assim, sustenta-se neste trabalho a premissa de que,
por sistema acusatório compreendem-se normas e
princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e
orientados a partir do principal princípio, tal seja, aquele do
qual herda o nome: acusatório.
Em que consiste então, nesta perspectiva, o princípio
acusatório?
3.2.2. CARACTERÍSTICAS DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO
I - A resposta deve ser construída por exclusão,
afastando o que não integra o princípio.
Assim, a compreensão daqueles elementos que vão aos
poucos, historicamente, integrar o sistema acusatório é o
resultado da eliminação de outros elementos que não afetam
o núcleo básico de um tipo característico do processo, isto é,
aquele alicerçado na idéia da divisão, entre três diferentes
sujeitos, das tarefas de acusar, defender e julgar.
Com efeito, como assinala Cordero – e também James
Goldschmidt – ―as regras do jogo‖ distinguem o processo
acusatório do inquisitório.145 Este último se satisfaz com o
resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o
145
Cordero, Franco. Op. cit., p. 88.
objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no
processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do
acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir
que define o horizonte do mencionado processo.
Assim, como as ―regras do jogo‖ não se concretizam sem
a interferência dos sujeitos que participam do processo, não
há dúvida de que são os atos que estes sujeitos praticam que
hão de diferenciar os vários modelos processuais.
É preciso ter em mente que a análise puramente
objetiva, que visualiza os atos sem entender quem são os
sujeitos que os praticam, descarna o processo. Gestão da
prova e acusação são atividades que não dizem nada se não
olharmos quem – que sujeitos (históricos) – realiza estes
atos. Até porque com a identificação dos sujeitos será
possível compreender os porquês das coisas.
Quando focalizamos estes atos – que expressam a
obediência dos sujeitos às regras do jogo -, temos de
classificá-los, identificando o que há de comum, por
exemplo, entre os diversos atos que o juiz pratica ao longo do
processo. O ponto de convergência destes atos é aqui
denominado ―tarefa‖, porque defendemos que os atos
processuais atendem a funções, não são desinteressados,
ainda que muitas vezes estas funções não sejam percebidas
com clareza ou imediatamente.
Como nas linhas antecedentes ficou registrado, a função
predominante do processo inquisitório consiste na realização
do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de
quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o
objetivo primordial.
No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao
juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em
linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre
função de segurança pública no exercício do magistério
penal.
Essa linha de raciocínio permite abarcar todos os atos
judiciais inquisitórios em um só plano. Exercer a ação penal
no lugar de terceiro, quer originalmente como previa o artigo
531 do Código de Processo Penal brasileiro, quer de modo
superveniente, interferindo na delimitação do objeto do
processo (como ocorre com a mutatio libelli), significa
prestigiar a idéia de que a punição não pode depender de um
autor de ação penal independente e livre para apreciar se
deve ou não acusar e o que deve (ou não) incluir na acusação.
Da mesma maneira, atribuir ao juiz o poder de produzir
provas de ofício deforma o ―duelo intelectual‖ a que se refere
Cordero. Supor que a atividade probatória está desvinculada
do exercício dos ―direitos processuais― (James Goldschmidt)
e imaginar, por outro lado, que juiz exerce ―direitos‖ no
processo importa controlar o material da decisão para
reduzir as brechas da impunidade.
É também o que acontece com o denominado recurso de
ofício. O juiz que ―recorre‖ da própria sentença para
submetê-la obrigatoriamente a exame por tribunal de
segundo grau, em hipóteses em que a decisão originária é
favorável ao réu, suspeito ou investigado, concorre para a
política de segurança pública de que se torna protagonista.
O elemento comum entre o exercício da ação penal pelo
juiz, a produção de provas de ofício e o recurso igualmente
de ofício está na consecução de tarefas que a moderna
doutrina do processo assevera que compõem o chamado
direito de ação (e o co-respectivo direito de defesa).146 Como
todas estas tarefas apontam para a prevalência do interesse
em punir sobre o de tutelar os direitos fundamentais do réu,
elas podem ser reunidas sob a rubrica de tarefas de acusação.
A acusação consiste na imputação a alguém da prática de um
crime com ―pedido‖ de condenação.
A construção teórica do princípio acusatório há de
consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São
antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois
modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as
146
Historicamente, o discurso inquisitório atribui o acúmulo de funções em
mãos do juiz ao generoso propósito de evitar a punição de inocentes. Não é
preciso recorrer às inquisições eclesiásticas para compreender a falsidade do
argumento. Basta ver que é este modelo, fundado na busca da verdade real, que
mesmo nos subterrâneos da persecução penal contemporânea facilita a
aceitação da tortura.
diferenças devem ser extraídas.
Assim, se na estrutura inquisitória o juiz ―acusa‖, na
acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da
tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro
do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade
que deve marcar a sua atuação.
Nisso consiste a base teórica em cima da qual
procederemos à análise do princípio acusatório.
Ao aludirmos ao princípio acusatório falamos, pois, de
um processo de partes, visto, quer do ponto de vista estático,
por intermédio da análise das funções significativamente
designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de
vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como se
relacionam juridicamente autor, réu, e seu defensor, e juiz,
no exercício das mencionadas funções.
II - Nem sempre foi, ou ainda é, predominantemente
oral e público o processo acusatório, nem, necessariamente,
só será acusatório pelo fato do próprio povo, ou segmentos
numericamente significativos dele, julgar.147
Até mesmo o dever de fundamentar a decisão não reduz
ou amplia a acusatoriedade da base processual, como
provam o júri e o juiz ou colegiado profissional. Por sua vez,
147 Na medida em que o princípio acusatório decorre do princípio
democrático, o valor de legitimidade do exercício do poder há de ser objeto
de alguma consideração. Atualmente, é possível afirmar, com Frederico
Marques, que, vindo os juízes togados do seio do próprio povo de que
emana conceitualmente a sua autoridade, somente em nome do povo, ao
menos nos governos democráticos, podem distribuir justiça (A Instituição
do Júri, p. 22). A tal consideração convém aditarmos que o exercício da
função jurisdicional corresponde à atividade de um ramo de governo — do
Poder Judiciário — de sorte que não se pode falar ou mesmo mentalizar um
ramo de governo que não seja político (significando, aí, o exercício de um
poder público, estatal, em nome e para a polis) em relação ao qual não
caiba as responsabilidades, deveres e poderes inerentes à soberania
derivada do povo (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Estructuras Judiciales, p. 112).
Estas são, possivelmente, as motivações do reconhecimento, na Lei
Fundamental de Bonn (artigo 20, nº 2) e na Constituição Espanhola (artigo
117, nº 1), de que a Justiça emana do povo, não subsistindo,
modernamente, a objeção oposta por Mittermaier.
não acontece tal redução ou dilatação (de acusatoriedade) à
vista da possibilidade de o acusado responder preso ao
processo.
Desta forma, pode-se começar assinalando, com
Conso,148 que a idéia de acusação só tem sentido, como
elemento essencial de um princípio dentro do processo,
contraposta à idéia de defesa, ainda que, sobre esta última
possa haver alguma imprecisão quanto aos seus contornos.
Jorge de Figueiredo Dias, com sua incontestável
autoridade, ressalta que, por direito de defesa, compreendese uma categoria aberta, à qual devem ser imputados todos
os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de codeterminar ou conformar a decisão final do processo,149 o
que coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas
relativas ao mecanismo de co-determinação e conformação
da decisão judicial, também seu defensor,150 na condição de
sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades.
Ora, um princípio fundado na oposição entre acusação e
defesa, ambas com direitos, deveres, ônus e faculdades, só se
desenvolve regularmente em um processo de partes,
centrado nas relações recíprocas que se estabelecem.
Como se fosse uma fotografia, veremos inicialmente
como estão consolidados os estatutos jurídicos dos sujeitos
do processo, de acordo com o princípio acusatório.
Depois, passaremos ao exame da dinâmica processual,
isto é, como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais.
Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como
em um filme.
A opção por este modo de análise tem vantagens e
desvantagens de que se deve advertir o leitor.
148 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
Capacità Processualle Penale, Milano: Giuffrè, 1961.
149 Dias, Jorge de Figueiredo. ―Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código
de Processo Penal‖, in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra:
Almedina, 1992, p. 28.
150 Figueiredo Dias assinala para o defensor o estatuto jurídico próprio de um
órgão de administração da justiça, atuando exclusivamente em favor do
acusado (idem, p. 11).
A principal vantagem – razão da eleição do método –
está em permitir comparar aquilo que a ordem
constitucional e as leis atribuem aos principais sujeitos do
processo penal (visão ―estática‖ do que fazem o juiz, o
Ministério Público, o querelante, o acusado e seu Defensor) e
o que de fato estes sujeitos praticam a partir da cultura
consolidada e com amparo na jurisprudência (perspectiva
dinâmica).
A desvantagem repousa na aparente ―repetição‖ de
temas. Assim, por exemplo, o leitor observará que sobre a
mutatio libelli (alteração da acusação) há uma apreciação de
acordo com os poderes do juiz, do ponto de vista estático, e
outra, complementar, quando se visualiza ―o processo em
movimento‖.
Atento a isso o leitor deverá cuidar de ―enquadrar‖ o
exame das categorias do processo levando em conta a dupla
perspectiva.
3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo: Poderes,
Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades dos Sujeitos
Processuais
I. DO JUIZ
Carnelutti151 sublinha exatamente, na perspectiva
estática do processo, que este pode ser visto como uma
categoria que simultaneamente envolve, enlaça, uma série de
relações jurídicas, ou seja, de poderes e deveres do juiz, das
partes e de terceiros, visualizando-se sua dinâmica a partir
do procedimento adotado, ou, dito de outra forma, da
maneira como os atos processuais, em realidade,
ordenadamente se sucedem.
Sendo assim, a natureza verdadeiramente acusatória de
um princípio processual constitucional demanda, para
verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os
151 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, México: Editorial
Pedagógica Iberoamericana, 1994.
procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma
acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação
revele uma alternativa de solução do conflito de interesses ou
caso penal oposta à alternativa deduzida no exercício do
direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o
juízo ou solução da causa penal.
Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem
como propostas excludentes de sentença.
Tal conformação só admitirá a influência das atividades
realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não
estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das
versões em jogo.
Por isso, a acusatoriedade real depende da
imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente
por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de
também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua
tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma
consciente e meditada opção entre duas alternativas, em
relação às quais se manteve, durante todo o tempo,
eqüidistante.
Carnelutti assevera, pois, que justamente da
contraposição entre acusação e defesa, perante um juiz
imparcial, surgem as condições indispensáveis à eleição da
melhor solução. Convém, nestes termos, reproduzir a
preciosa lição do mestre italiano:152
La verdad es que si el desdoblamiento, del
cual se há hablado, entre el juez y el ministerio
público, o sea entre jurisdicción y acción, es
necesario para la garantía de la imparcialidad y,
com ésta, para la justicia del castigo, no es, sin
embargo, suficiente. Al final, el juez debe tomar
una decisión; y decidir quiere decir elegir... Es
claro que tanto mejor está el juez en situación de
elegir más claramente se le presentan delante las
dos soluciones posibles. El peligro es que la duda
152 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, p. 302.
no se le presente, no que él sea atormentado por
ella. Ahora, bien, el medio para proponerle la duda
es el contradictorio; ayuda aquí la raíz común
(duo) de dubium y duellum. Per eso, la separación
del ministerio público respecto del juez, es decir, de
la acusación respecto del juicio, no basta para
garantizar la justicia de este último. El ministerio
público, si está solo junto al juez, es insuficiente. La
acusación debe ser contrapesada y por eso
integrada por la defensa.
A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o
processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz
natural — garantia das partes e condição de eficácia plena da
jurisdição — que consiste na combinação de exigência da
prévia determinação das regras do jogo (reserva legal
peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do
juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem
seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a
priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu
reciprocamente contrapõe durante o processo.
Com efeito, o juiz que antecipadamente está em
condições de ajuizar a solução para o caso penal (que em
algumas hipóteses sequer foi objeto de pretensão do
interessado), na prática torna dispensável o processo, pois
tem definida a questão independentemente das atividades
probatórias das partes, comportamentos processuais que
devem ser realizados publicamente e em contraditório.
Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato,
mecanismo civilizado de resolução de causas se o resultado
não puder ser determinado antecipadamente, isto é, só há
processo penal real se no início do procedimento ambas as
teses — de acusação e de resistência — puderem ser
apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto
Kirchheimer153).
153 Kirchheimer, Otto. Justicia Política, México: Unión Tipográfica Editorial
Hispano Americana, 1968.
É claro que, nestes termos, o juiz não estará em
condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e
substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade
quanto à sua imparcialidade.
A rigor, a imparcialidade do juiz é vista a partir de dois
parâmetros: há os casos de impedimento, pelos quais se
objetiva excluir o juiz que possa ter interesse no resultado da
causa; e existem as hipóteses de suspeição, normalmente
voltadas a permitir a substituição do juiz interessado nas
partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro
conjunto — causas de impedimento — são impessoais, mas
guardam certo vínculo direto com a pessoa do magistrado,
enquanto as causas de suspeição são dotadas de caráter
predominantemente pessoal (ex. da primeira: ter o juiz
funcionado anteriormente, no mesmo processo, como perito;
da segunda: ser o juiz amigo pessoal da vítima).
No processo penal brasileiro a existência do inquérito
judicial para apurar crimes falimentares – artigos 103 e
seguintes do Decreto-lei n. 7.661/45 – instituía investigação
criminal preliminar, preparatória para o exercício da ação
penal condenatória, em tese dirigida pelo juiz154. Embora na
prática o juiz pouco participasse do inquérito judicial, parece
evidente que não ostentaria a qualidade exigida para exercer
jurisdição, tal seja, a imparcialidade mencionada linhas
Na tentativa de salvar a ―constitucionalidade‖ do inquérito judicial da
falência autores chegaram a defender a existência de contraditório neste
inquérito. Sustentou-se que o artigo 106 da antiga Lei de Falências previa a
resposta do falido, em cinco dias, e que isso equivalia ao contraditório. Parece
evidente que a noção de contraditório aí é bastante lmitada, comparável à idéia
de contraditório no inquérito policial, no artigo 14 do Código de Processo Penal,
que estabelece a possibilidade de o Delegado de Polícia realizar diligências
requeridas pelo investigado. Em verdade, o procedimento do inquérito judicial
era inquisitorial, conduzido pelo síndico da falência e pelo perito, com apoio do
Ministério Público e na prática sob as ordens dos funcionários do cartório onde
era processada a falência. Tudo, praticamente, sem intervenção do falido.
Recomenda-se a leitura de Lei de Falências Comentada, 2ª ed., de Manoel
Justino Bezerra Filho, São Paulo, RT, 2003, p. 346-7.
154
atrás.155
A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que passou a
regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do
empresário e da sociedade empresária estabelece o inquérito
policial como método de investigação, a ser instaurado por
ordem do Ministério Público, nos termos do artigo 187, e fixa
a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido
decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou
homologado o plano de recuperação extrajudicial para
processar e julgar o caso.
Com isso, a Nova Lei de Falências aproxima-se do
modelo constitucional, pois que de forma intencional cria as
condições necessárias ao julgamento do caso com
imparcialidade.156
Voltando à regra fundamental é preciso destacar, no
entanto, que nas hipóteses de impedimento e suspeição a
filosofia que orienta a preservação da imparcialidade deve
cuidar de restringir os casos de recusa do juiz, desde que não
prevaleça o pensamento autoritário que dedica ao
magistrado função punitiva, em substituição àquela que as
constituições lhe impõem juridicamente, tal seja, a de
apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo.
A questão da imparcialidade do juiz, conforme o
princípio acusatório, contudo, não fica limitada aos termos
postos anteriormente. O exercício da jurisdição, em um
Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto o
exercício de qualquer outro poder no âmbito deste Estado,
condicionado a regras de impessoalidade.
Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos
juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é
155
Pelo artigo 109 do citado decreto, o juiz da falência era competente para
receber ou rejeitar a denúncia. Somente depois de proferir essa decisão é que
deveria transferir o processo para o juiz criminal (§2º).
156
Objeções acerca do conhecimento técnico de que deve estar dotado o juiz
criminal, nestes casos, devem ser superadas pela idéia de que nos dias atuais os
magistrados deverão estar continuamente se aprimorando e se preparando para
as sofisticadas causas criminais com que se deparam. Isso, é evidente, sem
prejuízo da prova técnica que caracteriza a maioria destes processos.
necessário garantir que, independentemente da integridade
pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não
esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo
apriorístico.
Trata-se aqui, talvez, de uma compreensão invertida da
máxima pela qual não basta à mulher de César ser honesta.
No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto; terá de sêlo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual.
Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta
ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que
tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a
processar e julgar acusado em processo penal iniciado em
razão desta investigação.
Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir
habilitado a apreciar com isenção as teses que a Defesa
venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em
um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já
se manifestou a princípio pela existência de uma infração
penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e
superficial.
De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do
ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar
que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das
partes na isenção do juiz emerge como condição de validade
jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito
estaremos diante de atos absolutamente nulos.157
Também por esse motivo o antigo inquérito judicial da
falência, citado neste tópico, violava o princípio acusatório e
era inconstitucional.
II. DA ACUSAÇÃO
Por igual, não se deve controverter a respeito do
157 Esta foi a conclusão do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do
RHC nº 4.769-PR, 6ª Turma (j. 7/11/1995 – RT 733/530), rel. Ministro
Luiz Vicente Cernicchiaro, malgrado o e. Supremo Tribunal Federal não
tenha se sensibilizado totalmente com a tese (Habeas Corpus nº 68.784, 1ª
Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 26/3/1993, p. 5.003).
significado e alcance daquilo que se entende por acusação.
Não se trata, a nosso juízo, somente de oferecer uma petição
inicial, em processo penal pelo qual se pretenda a
condenação de alguém.
Não se resume a isso, a só um ato, de acordo com
Conso,158 mas, sem dúvida, acusar implica em referir-se a
uma função e ainda a um órgão, a um conjunto de atos e a
um determinado sujeito.
Conso, todavia, assevera que acusação e ação penal
condenatória não se confundem, uma vez que haveria, em
algumas situações excepcionais, acusação sem exercício da
ação penal.159.
É necessário ter em mente que a acusação cuida da
atribuição de uma infração penal, em vista da possibilidade
de condenação de uma pessoa tida provavelmente como
culpável, enquanto a ação penal consiste em ato da parte
autora, concretado por sua dedução formal em juízo.
Conso refere-se, indiscutivelmente, ao processo penal
de ofício, muito semelhante ao procedimento penal
brasileiro previsto para as contravenções e crimes de
homicídio e lesões corporais culposos, a partir do artigo 531
do Código de Processo Penal, e da Lei no 4.611/65, não
recepcionados pela Constituição da República em vigor.160
Cremos, no entanto, que, se acusação e ação penal
158 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,
Capacità Processualle Penale, p. 7.
159 Idem, pp. 13-14.
160
O desaparecimento dos processos condenatórios instaurados de ofício, pelo
juiz, por auto de prisão em flagrante ou portaria, e ainda iniciados da mesma
forma pela autoridade policial (artigo 531 do Código de Processo Penal), não fez
desaparecer o procedimento sumário. No caso, caberá ao titular da ação penal
iniciar o processo mediante oferecimento de denúncia (artigo 129, I, da
Constituição da República) ou queixa (ação penal privada) e depois disso o
procedimento seguirá com o recebimento da inicial, citação e interrogatório do
acusado, audiência das testemunhas arroladas pela acusação e audiência de
instrução e julgamento, com a inquirição das testemunhas arroladas pela Defesa
e a apresentação de alegações finais orais. Este procedimento está
expressamente indicado na Nova Lei de Falências (artigo 185 da Lei n.
11.101/05) e será aplicado exceto no caso de infração penal de menor potencial
ofensivo contemplado na citada lei.
podem não se confundir, haja vista o fenômeno da jurisdição
sem ação, acima mencionado, o certo é que o princípio
acusatório funde acusação e ação penal, justamente por não
admitir a existência de processo condenatório sem iniciativa
da parte autora (nemo iudex sine actore), e, em vista dele,
somente se a ação penal for proposta e desenvolvida ao longo
do processo haverá, após a contraposição da atividade de
defesa, autorização jurídica para a prolação de decreto
condenatório.
Aqui não é lugar (ou hora) para a crítica sobre o
conceito de ação transplantado do processo civil para o
penal. Ainda assim, é conveniente que sejam feitos alguns
esclarecimentos.
O leitor perceberá que as ações condenatórias que se
entrega ao Ministério Público, no Brasil, são obrigatórias
(desde que haja indícios de autoria e da existência da
infração penal). Como o conceito de ação elaborado pelo
processo civil, em fins do século XIX, estava historicamente
vinculado ao de direito subjetivo, para atender a exigências
políticas concretas fundadas na ideologia liberal da época, as
marcas dessa categoria (ação civil) foram igualmente
transmitidas à ação penal.
O simples fato de colocar o Ministério Público no lugar
da vítima simboliza a impropriedade de pensar a ação penal
nos moldes liberais de defesa de direitos disponíveis (origem
da noção do direito de ação civil).
Até mesmo nos sistemas jurídicos que adotam o
princípio da oportunidade da ação penal pública (o
Ministério Público tem margem de decisão sobre acusar ou
não), a ―liberdade‖ do Ministério Público é inconfundível
com a ―faculdade‖ do autor civil. A liberdade do Ministério
Público estará sempre dirigida pelo princípio da legalidade,
protegendo a comunidade das decisões pessoais de cada
integrante da referida instituição, enquanto as motivações
estritamente pessoais podem estar na base da decisão de não
se promover a ação civil clássica.
No entanto, a decisão de instaurar um processo penal
condenatório será de um sujeito distinto do juiz.
A nosso juízo, o princípio acusatório, avaliado
estaticamente, consiste na distribuição do direito de ação,
do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor,
réu (e seu defensor) e juiz. Tal consideração conduz ao
esclarecimento, pelo menos sucinto, do que se considera
direito de ação penal condenatória.
Vale a pena tornar a sublinhar que para a maioria dos
doutrinadores o direito de ação é concebido como direito
público subjetivo, instrumentalmente conexo à pretensão de
exigir do Estado a prestação jurisdicional, em determinado
caso concreto, isso ao menos desde a evolução iniciada em
meados do século XIX, com o desdobramento das posições
ardorosamente defendidas por Windscheid (La acción del
derecho civil romano desde el punto de vista del derecho
actual) e Muther (Zur Lehre von der Römischen Actio),161
passando por Adolf Wach, até chegar aos dias de hoje.
Não se esgota, porém, na simples provocação do Estado,
primeiro ato do exercício do citado direito.162
Assim compreendido o direito de ação - e naturalmente
o direito de defesa – aquele foi percebido por Ada Grinover
como não limitado ao poder de impulso, e, no caso da defesa,
ao recurso às exceções, englobando o conjunto de garantias
que, no arco de todo o procedimento, asseguram às partes a
possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem
suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das
decisões, de agirem, enfim, em juízo para a tutela de seus
direitos e interesses.163
Visto dessa forma, pode-se acrescentar, relativamente à
ação penal condenatória, que, ao atribui-la a sujeitos
distintos daquele que julgará o pedido formulado — seu
principal elemento e junto com a ―causa de pedir‖
161 Chiovenda, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos, Bogotá:
Temis, 1986. Muther, Theodor e Windscheid, Bernhard. Polemica Sobre La
―Actio‖, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974.
162 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp.
282-291; Afrânio Silva Jardim, Ação Penal Pública: Princípio da
Obrigatoriedade, p. 33; e Grinover, As Garantias Constitucionais, ob. cit.
163 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, p. 11.
corporificação da acusação —, obedece-se também a uma
lógica de distribuição de funções que respeita a divisão entre
os poderes do Estado, bem ao estilo proclamado por
Montesquieu, como observa, percucientemente, Karl-Heinz
Gössel.164
Assim compreendida a ação penal, o princípio
acusatório postulado demandará, para sua real fixação, na
via do autor, a determinação de algumas premissas:
• o direito de ação, tanto como o de defesa, está voltado
à conformação da decisão jurisdicional, em um caso
penal concreto;
• é exercitado por pessoa ou órgão distinto daquele
constitucionalmente incumbido de julgar;
• não se limita a iniciar o processo, pois o autor
pretende ver a pretensão que deduz reconhecida,
embora o não-reconhecimento não implique em
afirmar-se a inexistência do direito de ação;
• inclui, por certo, o direito de provar os fatos que
consubstanciam a acusação deduzida e de debater as
questões de direito que surgirem;
• a acusação integra o direito de ação e, na medida em
que dela se defenderá o acusado, delimita o objeto da
contenda, tal seja o objeto pretensamente litigioso do
processo;
• e, por fim, legitima o autor a preparar-se
adequadamente para propô-la, na medida em que,
afetando gravemente o status dignitatis do acusado,
não deve decorrer de um ânimo beligerante temerário
ou leviano, mas fundar-se em uma justa causa
(indícios de autoria e da existência da infração penal).
Com efeito, visto pela perspectiva do direito de ação o
princípio acusatório inclui entre seus elementos o princípio
164 Gössel, Karl-Heinz. ―Ministerio Fiscal y Policia Criminal en el
Procedimiento Penal del Estado de Derecho‖, in Cuadernos de Política
Criminal, nº 60, Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1996, pp. 614616.
da demanda, que não se confunde com o princípio
dispositivo, corrente no processo civil, bem como não lhe é
contraposto, em que pese a opinião de alguns autorizados
doutrinadores165. Da mesma maneira, enquanto princípio de
iniciativa do processo, não está prejudicado pela
obrigatoriedade da ação penal, no caso brasileiro, da pública.
Para efeito de distinguir o princípio acusatório do
dispositivo é precioso assinalar quais são os elementos
habitualmente invocados como componentes do segundo,
como o faz Barbosa Moreira,166 sublinhando os pontos
sensíveis da problemática, que envolvem, quase sempre, os
seguintes aspectos: iniciativa da instauração do processo;
delimitação do objeto do litígio e do julgamento; impulso
processual; aquisição do material de fato e de direito a ser
utilizado na motivação da sentença; extinção do processo por
ato dispositivo.
Conforme aduz o ilustre processualista, a doutrina
alemã caminhou em direção à tendência de distinguir duas
classes de situações, uma relacionada com a liberdade do
titular do direito de utilizar ou não o instrumento do
processo para a respectiva vindicação, outra com o modo
de funcionar do mecanismo processual no tocante aos fatos
e à prova destes,167 prevalecendo, atualmente, a concepção
em relação à qual por princípio dispositivo compreende-se o
poder de decidir sobre a instauração do processo, respectiva
subsistência, e delimitação do litígio, enquanto um princípio
de debate se caracterizaria pelos poderes de aquisição e
introdução das provas no processo. Badaró irar usar as
expressões princípio dispositivo material e princípio
dispositivo processual para distinguir as mesmas
165 Chiavario, Mario. Processo e Garanzie Della Persona, p. 5. É valioso
investigar a conceituação aceita por Gustavo Badaró acerca do princípio
dispositivo. Ônus da Prova no Processo Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 96 100.
166 Moreira, José Carlos Barbosa. O Problema da Divisão do Trabalho entre
Juiz e Partes, p. 35.
167 Moreira, José Carlos Barbosa. Ob. cit., pp. 39-40.
situações.168
Finalmente, há, na referida resenha de Barbosa
Moreira, menção ao princípio da demanda, sob a designação
de parteibetrieb, integrado pelo poder de instauração do
processo, diferente do princípio dispositivo stricto sensu,
visto como poder de dispor sobre o objeto do processo já
pendente.
Pensamos que, por princípio dispositivo, há de se
entender aquele que permita dispor sobre o objeto do
processo em tramitação, não sendo caracteristicamente
acusatório ou inquisitório. Em processo por crime de ação
penal privada, conforme o Direito brasileiro, ocorrerá a
perempção, por exemplo, sempre que o autor abandonar o
processo (artigo 60 do Código de Processo Penal),
implicando em verdadeira disposição sobre o conteúdo
deste.
De outra maneira, não é impensável um procedimento
inquisitorial, iniciado para apurar o cometimento, por
alguém, de uma infração penal, que não se conclua por
deliberação exclusiva do juiz-inquisidor, motivado por
questões de política criminal.
É bem verdade que principalmente no direito
estrangeiro há quem vincule o princípio dispositivo ao
princípio acusatório, em virtude da possibilidade de retirada
da acusação ou pedido de absolvição influindo na
determinação da concreta providência a que o tribunal
estaria conectado.169
A nosso juízo, porém, a questão corretamente enfocada
envolve a natureza do direito material em disputa e a
consideração que se faça, em um determinado contexto
histórico e político, a respeito do titular deste direito.
Como atualmente predomina a concepção da natureza
168
Badaró, ob. cit., p. 97-98.
169 Asencio Mellado, José Maria. Principio Acusatorio y derecho de defensa en
el proceso penal, Madrid: Trivium, 1991, p. 22. É a posição de Paulo
Rangel, em Direito Processual Penal, 8ª edição, Rio de Janeiro, Lumen
Juris, p. 63-65.
pública do conflito de interesses penal, que se transforma em
caso penal, sendo a sanção penal170 pública e portanto
resultante de uma atribuição estatal, a vedação cada vez
menos rigorosa à disponibilidade do conteúdo do processo
penal está guiada pela assunção do interesse público
subjacente.
Diferente seria se inseríssemos a ação penal
condenatória em um contexto meramente formal, em virtude
do qual pudéssemos confundi-la exclusivamente com o
poder de iniciativa, quando então todos os demais atos, dos
quais os de instrução são talvez o principal exemplo,
ficassem à mercê dos poderes de investigação do juiz. Não
haveria aí disponibilidade do conteúdo do processo não
porque a natureza jurídica do direito material levado à pugna
a interditasse, mas por força de ser o juiz e não o dominus
litis, isto é, o Ministério Público, a personificação do Estado
como titular do direito material em questão.
E a rigor quem não é o titular do direito dele não pode
abdicar. Também seria diferente se admitíssemos a retirada
da própria acusação e, apesar disso, a emissão de sentença
de mérito pelo juiz. Neste outro caso, teríamos de concordar
com Mellado e assinalar que a decisão judicial importaria em
verdadeiro exercício de acusação de ofício, pelo tribunal.171
Mas como o critério de disponibilidade deve ser ditado
pelo direito positivo, levando em conta a natureza do direito
de punir (aspecto material e não processual), vinculando
obrigatoriamente o Ministério Público naqueles casos
reputados de prevalecente interesse público pelo legislador,
o princípio dispositivo em si, relacionado com a disposição
sobre o objeto do processo, não integra ou se opõe ao
princípio acusatório, sendo importante, porém acidental. A
prevalência do interesse público tem a ver com a inibição da
iniciativa particular a remarcar o caráter não vingativo mas
de composição do processo penal.
170
A sanção penal é tomada como conseqüência jurídica da infração penal
perseguida pela atividade processual do autor da ação penal.
171 Asencio Mellado, José Maria. Ob. cit., p. 23.
Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a
condenar naqueles processos em que o Ministério Público
haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo
385 do Código de Processo Penal brasileiro172.
Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para
a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de
outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua
decisão condenatória em provas ou argumentos que não
tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença
condenatória proferida quando a acusação opina pela
absolvição.173
O fundamento da nulidade é a violação do contraditório
(artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República).
Como destaca Badaró, ―a regra da correlação entre
acusação e sentença é uma decorrência do princípio do
contraditório‖.174 Avançando sobre o tema, o culto professor
paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a
idéia – e o alcance – do contraditório apenas ao debate sobre
questões de fato.175 Também as questões de direito estão
afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas pela
controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas
ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.176
172
O texto no corpo do livro, seguinte à nota, foi incluído na terceira
edição para sanar qualquer dúvida acerca da posição do autor sobre
o tema.
173
Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão
proferido em HC 82.844/RJ, 2ª Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado
em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter
sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para
determinar a absolvção. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da
sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação
foi atacada por Habeas Corpus.
174
BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e
sentença, São Paulo, RT, 2000, p. 27.
175
Idem, p. 32.
176
Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não
negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de
comportanto insignificante – e atípico – ou não. Negar o contraditório sobre
este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do
Assim, quando em alegações finais o Ministério Público
opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto,
no processo, é que o acusador subtrai do debate
contraditório a matéria referente à análise das provas que
foram produzidas na etapa anterior e que possam ser
consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá
reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é,
em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a
posição dos tribunais argentinos sobre o assunto.177
É interessante notar certa peculiariade do processo
penal brasileiro: a figura do Assistente de Acusação. Com
previsão no artigo 268 do Código de Processo Penal, o
Assistente poderá habilitar-se ao processo e participar dos
atos processuais. Em alegações finais o Assistente se
pronunciará antes da Defesa.
Nestes termos, se o Assistente do Ministério Público,
devidamente habilitado, se pronunciar em alegações finais
pela condenação, opondo argumentos que poderão ser
respondidos pela Defesa, a exigência do contraditório terá
sido atendida.
No caso do direito brasileiro o ofendido fiscaliza a
obrigatoriedade do exercício da ação penal pública (artigo
5º, inciso LIX, da Constituição da República). Essa
fiscalização é realizada, via de regra, por meio da ação penal
privada subsidiária da pública (artigo 29 do Código de
Processo Penal). Todavia, se a ação pública foi
oportunamente proposta, fica para o ofendido apenas a
possibilidade de acompanhar o processo, habilitando-se
como assistente178. Caso não o faça, creio que estará
paleopositivismo, abandonado pela ideologia de princípios da Constituição da
República de 1988, no Brasil.
177
MARTÍNEZ, Santiago. La acusacion como presupuesto procesal y alegato
absolutorio del Ministerio Publico Fiscal,: observaciones sobre una cuestión
recurrente, Buenos Aires, Fabian J. Di Placido, 2003.
178
Por coerência sistêmica não se pode esquecer que o direito de ação é
exercido pelo Ministério Público ao longo do processo, não se esgota com a
apresentação da denúncia. Assim, além da inércia inicial, superável pelo
oferecimento de queixa substitutiva da denúncia (artigo 29 do Código de
impedido de recorrer da sentença absolutória, apesar dos
termos do artigo 598 do Código de Processo Penal, pois a
condenação em segundo grau violará, ela própria, o
contraditório e a correta função do segundo grau, definida no
Pacto de São José da Costa Rica, que prevê recurso exclusivo
da Defesa.
Voltando ao ponto inicial: nos processos inquisitórios
nada obsta a que o juiz/acusador desista do processo e o
encerre mediante arquivamento. Isso não transformará o
processo inquisitório em acusatório.
No processo acusatório, porém, o juiz não poderá
condenar o réu diante de um requerimento/alegação final do
acusador (Ministério Público ou querelante) pela absolvição,
sob pena de ofender o contraditório.
Ultrapassada esta fase, as demais questões são, a nosso
juízo, próprias do princípio acusatório, uma vez que se
referem ao poder de iniciativa (demanda, com exclusão,
portanto, da atuação inquisitorial do juiz), delimitação do
objeto (por meio da acusação, elemento da própria ação
penal) e demonstração da verdade dos fatos e argumentos
(direito à prova).179
Por sua vez, a oficialidade do processo penal
condenatório e a obrigatoriedade da ação penal pública,
Processo Penal), há também a possibilidade de inércia superveniente, a ser
combatida pela atuação do Assistente.
179 Em excelente trabalho, intitulado Direito à Prova no Processo Penal,
Antonio Magalhães Gomes Filho traça o perfil do que conceitua como direito à
prova, lembrando que a inserção da figura do juiz, como protagonista da tarefa
de aquisição das provas, representou uma postura metodológica fundada no
escopo específico do processo, subordinado ao ideal de defesa social contra a
delinqüência, e inspirado num conceito de Estado que pretendia organizar a
vida dos indivíduos e conduzir a sociedade. Por sua vez, a aceitação da prova
como direito das partes, conseqüente aos direitos de ação e de defesa,
pressupunha uma organização estatal preocupada apenas em manter o
equilíbrio social, preservando a autodeterminação dos indivíduos. Acatando-se
uma visão não interventiva do Estado, no campo processual, chega-se, conforme
Gomes Filho, a uma concepção de prova como argumentum, que não pode
prescindir do momento de persuasão, sendo a verdade por ela perseguida
própria das coisas humanas, que sem a pretensão de ser absoluta, não exclui
uma probabilidade contrária, mas é escolhida por razões de caráter ético (O
Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: RT, 1997, p. 39).
malgrado reflitam uma postura de preocupação com o valor
segurança e, por igual, intransigência referente à apuração e
repressão das infrações penais, não desnaturam a
acusatoriedade do processo, na medida em que a ação penal
não é deduzida por quem haverá de julgá-la, não implicando
sempre, ou necessariamente, em que o réu se veja diminuído
em suas condições de resistência.
Neste sentido, Navarrete tem completa razão ao frisar
que, frente a tendências doutrinárias amparadas
principalmente no modelo alemão, alguns doutrinadores
opõem-se, sem razão, ao reconhecimento de um processo de
partes, salientando unicamente a existência de partes
formais.180
Tal concepção, sob a ótica de Navarrete, não reproduz a
verdade dos fatos, porquanto o órgão acusador funciona
substancialmente como parte, interessado no proveito de
direito material perseguido, em virtude do qual atuará
durante o processo.181
Esta é, também, a razão por que há de ser prestigiada a
autonomia do acusador (Ministério Público ou ofendido), até
mesmo no que respeita à convicção da ausência do suporte
mínimo probatório ou da presença de algum fator
180 Lorca Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de
Enjuiciamiento Criminal, p. 52.
181 Em realidade, se Carnelutti está certo, quando assevera que a atitude de
advocatus diaboli, adotada pelo Ministério Público, ao início e durante o
processo penal, é imprescindível à conformação dialética do processo de partes
(e à operação do princípio acusatório, acrescentamos), motivo por que deve
resultar de uma autêntica convicção do órgão de acusação sobre a procedência
do seu pedido. É inegável, também, a correção da tese contida na observação de
Jorge de Figueiredo Dias, no sentido de que, ao Ministério Público interessa
incondicionalmente o descobrimento da verdade e aplicação da justiça,
atendendo a critérios de estrita legalidade e objetividade. Em vista disso,
compreende-se possa o Promotor de Justiça pedir a absolvição do acusado se,
ao final do processo, estiver convencido da inocência dele, ou recorrer a favor do
condenado. Nestas duas hipóteses, não há prejuízo à máxima acusatoriedade
possível, isto porque, ao longo do processo de conhecimento, funcionou
plenamente a estrutura dialética, ensejando a produção, em síntese, de um
convencimento oposto ao da pretensão deduzida mas conforme os princípios de
justiça, a que o Ministério Público rende vassalagem (Sobre os Sujeitos
Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 25).
juridicamente inibidor da propositura da ação penal. Assim,
o juiz fica excluído, por imperativo lógico, da tarefa de
controlar o princípio processual da obrigatoriedade, quando
exigível, nos casos de não-exercício da ação penal182.
Acrescente-se, por oportuno, ao ensejo de se conceber
um princípio de obrigatoriedade, que não exclui a
acusatoriedade nem com ela se confunde, mas se contrapõe
tão-somente
aos
princípios
de
conveniência
e
oportunidade183, que tal obrigatoriedade impelirá o órgão de
acusação a se interessar pelo desenvolvimento das
investigações criminais necessárias à colheita de material
que sirva ao propósito de demonstrar a viabilidade da
pretensão que se deseja deduzir.
Sendo assim, ainda na fase pré-processual é possível
vislumbrar o princípio da acusatoriedade, o qual aparecerá
sempre que, de algum modo, o titular da ação penal atuar
com vista à aquisição de elementos de formação da convicção
judicial, mesmo que superficial, voltada ao recebimento da
denúncia ou queixa.
É imperioso ressaltar, sobre este tópico, que também o
princípio acusatório, refletindo o duelo entre acusação e
defesa, obstará o reconhecimento da validade dos meios de
prova adquiridos e conservados nesta fase pré-processual,
salvo no tocante ao objetivo de conferir suporte mínimo
probatório à pretensão ou se a defesa intervier, plenamente,
corroborando para a sua aquisição, em atividade
antecipatória da aquisição e preservação de provas para o
futuro, sob o signo do contraditório, conforme o modelo das
providências cautelares.
III. DA DEFESA
182 É a posição de Marcellus Polastri Lima, avançada em Curso de Processo
Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 147-150, neste passo
simétrica a de Paulo Rangel (Direito Processual Penal, op. cit., p. 182).
183
Princípios que, de acordo com determinados modelos, conformam o
chamado espaço de consenso.
Por sua vez, sobre a Defesa é válido relembrar a lição de
Jorge de Figueiredo Dias, referida anteriormente:
compreende-se como categoria aberta, à qual devem ser
imputados todos os concretos direitos, de que o arguido
dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do
processo.184 Isso coloca o acusado, e, dadas as
especificidades técnicas relativas ao mecanismo de codeterminação e conformação da decisão judicial, também
seu defensor, na condição de sujeitos de direitos, deveres,
ônus e faculdades.
É preciso pontuar a tendência acentuada, revelada nos
últimos anos, de comprimir o espaço do direito de defesa no
processo penal. Ora o direito de defesa é substituído por
comportamentos processuais do acusado, aos quais se
atribui eficácia jurídica no plano da resolução da questão
principal — assim são as chamadas soluções de consenso —,
ora pura e simplesmente este espaço é reduzido, a pretexto
de controlar as formas graves de criminalidade que estão se
manifestando nos dias atuais.
Como ao nosso juízo o princípio acusatório se
distinguirá do inquisitivo não somente em virtude da
diferenciação forçada entre acusação e julgamento, portanto,
entre acusador e juiz, tarefas a cargo de sujeitos que não se
confundem, entrará em cena aí a problemática derivada das
novas maneiras de o imputado participar do processo.
Com efeito, desde o início salientamos que a
legitimidade democrática do processo penal - e da solução
que ele adjudica - depende do valor de verdade
consubstanciado na sentença.
A verdade é aí concebida como relação possível ou
adequada entre a imagem que o juiz constrói acerca do fato e
a forma real como este fato supostamente ocorreu. É claro,
tivemos a oportunidade de ressaltar, que a verdade que se
pode alcançar no processo e que oporá esta forma de
solução, baseada no saber, a outras, fundamentadas em
convicções de variada natureza, é contingente e histórica e
184 Ver nota nº 122.
dependerá de o Estado atuar ele próprio conforme o Direito.
Daí, no entanto, é impossível conceber soluções de
natureza penal que não levem em conta tal verdade,
contentando-se com comportamentos processuais do
imputado, pois quando isso ocorre termina anulada a
atuação da Defesa em busca da efetivação da contraposição
dialética no processo.
A marca característica da Defesa no processo penal está
exatamente em participar do procedimento, perseguindo a
tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a
princípio consignado à acusação, sob pena de o processo
converter-se em instrumento de manipulação política de
pessoas e situações.
O espaço de consenso deve ser medido cuidadosamente,
para evitar prejuízo ao princípio acusatório, observando ao
menos:
a) que a publicidade interna do procedimento no
interior do qual se pretende desenvolver a solução
consensual não seja restringida. Restrição dessa
ordem equivale a recusar ao imputado acesso a
informações vitais para balisar sua conduta
processual e isso independe da formalização da
condição de acusado;
b) que o imputado tenha à sua disposição todas as
informações necessárias a respeito do significado da
adoção dos comportamentos processuais possíveis,
com esclarecimentos acerca das conseqüências de
adotar tal ou qual caminho;
c) que o imputado possa até mesmo agregar
informações relevantes para que se decida sobre a
conveniência da aplicação das medidas consensuais,
exercitando contraditório compatível com a espécie
de procedimento simplificado, que de um modo geral
identifica as espécies de solução de consenso;
d) finalmente, que não haja redução ou eliminação da
presunção de inocência, com inaceitável inversão do
ônus da prova mediante pressão sobre o imputado
para que aceite soluções consensuais, muitas vezes
orientadas pragmaticamente ao fim de desafogar os
serviços judiciários, com independência da justiça
das composições185.
O princípio acusatório pode igualmente aparecer
prejudicado de forma séria, no plano da Defesa, quando
estivermos diante das modalidades de procedimento cujo
objeto se caracteriza por ser infrações penais consideradas
graves.
Com efeito, a limitação da publicidade interna do
procedimento afeta primordialmente o contraditório e deste
modo atinge as posições defensivas, impedindo o imputadoacusado e seu Defensor de terem acesso a informações
importantes, de poderem contrariá-las e, destarte, de
contribuírem para a formação da convicção do juiz. As
estratégias de combate à criminalidade organizada, por meio
da infiltração de agentes policiais, do estímulo à cooperação
de arrependidos e, principalmente, por conta das restrições
que impõem à publicidade interna do processo, negando ao
imputado participação nos procedimentos preliminares,
mesmo quando se trata de medidas de natureza cautelar,
correspondem a métodos pré-modernos de atuação da
justiça penal cujo propósito é tornar efetivo o direito penal a
qualquer preço.186
Note-se que há significativa diferença entre a necessária
185
A violação da presunção neste caso ocorre quando o juiz ou o Ministério
Público advertem o autor do fato (artigo 76 da Lei n. 9.099/95) para os riscos de
recusar a proposta de aplicação direta de pena e partir para o processo
tradicional. Essa ―advertência‖ embute consideração prévia da ―culpa‖ do
investigado, pessoa que segundo a Constituição da República deve ser tratada
como inocente (artigo 5º, inciso LVII).
186 De algum modo, todas estas formas eram conhecidas ao tempo em que
predominava, na Europa Ocidental, o processo inquisitorial de influência
eclesiástica. O e. Supremo Tribunal Federal tem enfrentado com freqüência a
questão e decidido pela inoponibilidade do sigilo do inquérito policial ao
advogado do indiciado. HC 82354 / PR – PARANÁ HC - Relator: Ministro
Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgamento em 10 de agosto de 2004.
Publicação: DJ DATA-24-09-2004 PP-00042 EMENT VOL-02165-01 PP00029.
busca de suporte probatório, pelo acusador, para
posteriormente deduzir sua acusação, e as atuações durante
a fase preliminar, voltadas à limitação ao exercício de
direitos fundamentais do imputado.
Há atos de investigação que precisam permanecer sob
sigilo, durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins
da própria investigação. Entre eles não se inclui, certamente,
a produção antecipada de provas, que somente estará
justificada diante do risco de perda da prova em virtude da
natural demora do processo, e as ações que visam restringir
o exercício de direitos fundamentais do imputado — tais
como a prisão processual e a interceptação das comunicações
telefônicas —, que só poderão ter validade jurídica se
submetidas ao contraditório pelos menos diferido, isto é,
realizado em um momento posterior ao da adoção da
providência187.
Com isso, a compatibilidade com o princípio acusatório
dependerá de a Defesa concretamente estar em condições de
participar em contraditório do processo com as
características acima mencionadas.
Os atos de natureza cautelar que são levados a cabo sem
audiência prévia da parte contrária - inaudita altera pars -,
dependerão do contraditório a posteriori para estarem
revestidos de validade jurídica.
De todo modo, quando as condições de participação da
Defesa são canceladas, os atos eventualmente realizados
podem estar entre dois extremos: são simplesmente
informativos, e o juiz não poderá considerá-los no processo.
Quando muito os levará em conta para ajuizar a presença de
justa causa para a ação penal; ou não valerão de modo
algum. Nesta categoria será possível inscrevermos a
187
O procedimento das interceptações é autuado em apartado, nos termos da
Lei n. 9.296/96. Permanece em sigilo durante o período de captação das
conversas telefônicas (prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze) e
depois deve ser objeto de controle dos interessados. Ver do autor o livro Limites
às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.
denominada delação premiada188, isoladamente insuscetível
de ser alcançada pelo contraditório, pois contrapõe com
exclusividade versões apresentadas por interessados, sendo
meramente uma questão de fé o convencimento dela
derivado.
Também neste âmbito se enquadra a infiltração,
medida que consiste, do ponto de vista filosófico, no fato de o
Estado permitir aos seus agentes que participem pelo menos
do crime de formação de quadrilha a pretexto de controlar e
combater a criminalidade. A par da grave concessão de
ordem ética, haverá sempre a possibilidade de se atribuir a
priori valor superior às informações adquiridas desta
maneira em oposição aos demais elementos de convicção
introduzidos no processo pelas partes, reconduzindo o
sistema das provas tarifadas ao ambiente processual,
dissimuladamente189
Por fim, ressalte-se que a atuação do imputado e de seu
Defensor deverá se projetar no processo de execução penal,
porque nele o comando contido na sentença poderá tornarse realidade.
Da participação efetiva da Defesa na execução penal
dependerá a natureza processual, ou apenas administrativa,
desta modalidade de procedimento.
188
Há vários dispositivos legais que cuidam da delação premiada. O mais
abrangente está definido no artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999,
pelo qual é possível reduzir a pena em até dois terços, desde que o acusado haja
colaborado voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal,
visando a identificação de co-autores e partícipes, a localização da vítima com
vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 13 da citada
Lei chega a prever o perdão judicial para o agente colaborador, desde que a
personalidade do beneficiado, a natureza, circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso indiquem a conveniência da medida.
189
O texto Da Lei de Controle do Crime Organizado: Crítica às Técnicas de
Infiltração e Escuta Ambiental, publicado originalmente no Livro Escritos de
Direito e Processo Penal em Homenagem ao prof. Paulo Cláudio Tovo (Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2002), sob coordenação de Alexandre Wunderlich, está
ao fim, como Anexo I. Trata da matéria e o autor acredita que será útil
complemento ao que está sendo examinado neste trabalo.
3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação
dos Sujeitos Processuais
Na linha do que se refere ao autor, ao acusado e ao juiz,
considerados estaticamente, são essas a nosso juízo as
principais observações. Como foi sublinhado antes, é hora de
passarmos ao exame da dinâmica processual e ver como
reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à
tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme.
É válido, no entanto, acrescentar, pelo que há de
comum a acusado e acusador, que a modalidade de
configuração dos respectivos estatutos jurídicos, erguida em
bases de liberdade com responsabilidade, caracteriza a
moderna concepção das partes como sujeitos do processo
penal.
Começaremos pelo estatuto da Defesa em movimento,
porque este é, em nossa opinião, o que mais diretamente
sofre com as ―novas‖ interpretações que de um lado
resgatam a inquisitorialidade e do outro vestem com figurino
acusatório o que necessariamente não é. Como parece que o
fenômeno decorre da prevalência da ideologia de lei e ordem,
para restringir os direitos da Defesa no processo, como
afirmamos na última parte do item 3.2.2 III, é oportuno
examiná-lo em primeiro lugar.
I. -O Estatuto da Defesa em Movimento: O Conflito entre os
Interesses do Defensor e do Acusado e o Limite às
Soluções de Consenso
Com efeito, sobre o acusado deve-se sublinhar, com
reservas, que não corresponde ao anseio de justiça qualquer
proposta fundada na idéia de que não possa dispor da
capacidade de autodeterminação, que não é um direito, mas
uma característica inerente à sua condição de ser humano.
Pode, pois, em uma lógica não-paternalista, mas
responsável desde que consciente da situação gerada pelo
processo e dos cenários hipotéticos que a eleição de algumas
alternativas de comportamentos poderá implicar, escolher
mesmo soluções que resultem na disposição sobre o
conteúdo do processo acusatório.
É claro que em um Estado Democrático, que aspira a
consecução da máxima justiça social, tais eleições inspiramse no propósito de resolução justa dos conflitos de interesses
penais, razão pela qual a lógica da produtividade, verificada
em ordenamentos jurídicos coincidentemente acusatórios,
não é válida. Não se trata de viabilizar acordos penais para
aumentar o número de pessoas condenadas.
Ponderando-se, porém, os bens e interesses em jogo
com a disciplina da autodeterminação de um ser, que
compreende em seu particular estatuto essa característica
como essencial, é válido considerar a importância e o relevo
que tem a vontade do acusado para o desfecho de um
processo penal de natureza acusatória. O limite das
possibilidades da autodeterminação no campo jurídico-penal
se põe principalmente quando outra característica inerente à
condição de ser humano puder ser suprimida, tal como, por
exemplo, a liberdade pessoal.
Entre as edições anteriores do Sistema Acusatório e a
atual (3ª) há o hiato no qual foi pesquisado e produzido o
livro Elementos para uma Análise Crítica da Transação
Penal, fruto de tese de doutorado.
As conclusões da pesquisa, para a qual remeto o leitor,
recomendam cuidado na interpretação e reconhecimento do
espaço de decisão de que o acusado pode dispor acerca de
uma série de direitos e garantias processuais que lhe são
assegurados pela Constituição da República e pelos tratados
internacionais de direitos humanos.
Assim, o afastamento do paternalismo no tratamento
dispensado ao acusado não pode levar a supor que as
condições concretas de funcionamento do Sistema Penal
proporcionem igualdades de toda natureza, a ponto de ser
sempre considerada válida a decisão pessoal de não se
defender!
As desigualdades materiais não desaparecem por
decreto, como a história não chega ao fim simplesmente
porque um cientista social decreta o ―fim da história‖!
E a criminologia crítica irá demonstrar que as
desigualdades sociais no mínimo são responsáveis pela
definição da criminalidade de determinados setores da
sociedade. O emprego do poder de selecionar condutas
delituosas está na base do princípio da reserva legal, mas na
realidade os Parlamentos contemporâneos ainda o põem a
funcionar para conter grandes massas sociais190.
Desse modo, não é razoável admitir igualdades
materiais onde elas não existem e hipoteticamente transferilas para o processo penal, que muito pouca contribuição
pode oferecer para superar essas desigualdades.
O chamado processo penal consensual se esforça para
realizar essa tarefa inatingível. Baseado no princípio da
autodeterminação do acusado, que não se coloca em cheque,
sustenta a possibilidade de o réu decidir não se defender e
aceitar, diretamente, uma pena ou medida criminal (é o que
ocorre com a transação penal e a suspensão condicional do
processo, ambas previstas nos artigos 76 e 89 da Lei dos
Juizados Especiais Criminais).
O problema está em que o réu tem chances reduzidas de
não ser punido, desde o processo de criminalização primária,
que seleciona condutas em que na maioria das vezes ele está
previamente enquadrado por pertencer a certo grupo social,
até a hora em que a pressão do tempo191 e o ambiente, ambos
desfavoráveis, termina pesando para que aceite as soluções
penais aparentemente mais generosas, sob pena de ter que
encarar o rigoroso processo tradicional! Em suma, o acusado
é ameaçado com a presunção de culpa!
As chamadas soluções consensuais não estão no círculo
temático do Sistema Acusatório (como foi sublinhado antes),
pois visam resolver conflitos extra-processuais e, portanto,
190
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
Unidos, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2001.
191
A abordagem de Aury Lopes Jr. sobre o papel do tempo no processo, levada
a termo no livro Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da
Instrumentalidade Garantista), (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004), é
sugestiva.
não objtivam apurar fatos para com base nisso arbitrar
responsabilidades.
Há de se pensar uma dogmática apropriada para elas,
tarefa-desafio segundo Alberto Binder192.
As decisões pessoais do acusado são relevantes no
processo penal acusatório (confessar ou não, recorrer ou
não, falar por si mesmo em audiência, não apenas no ato
formal de interrogatório, indicar provas), mas não devem ser
confundidas com aquelas outras, do processo consensual,
que podem ser oportunas e talvez funcionem como estratégia
de abrandamento do rigor punitivo, todavia sistematizadas e
difundidas levam paulatinamente ao retorno do modelo
inquisitorial que mira a pessoa, o corpo do acusado, como
alvo da ação estatal.
Em que pesem as oposições existentes,193 o estatuto do
defensor no processo penal, por sua vez, coaduna-se com
propósitos de resolução justa do caso penal, observada a
adequada tutela jurídica dos direitos e interesses do acusado.
Assim, é lícito acentuar que o advogado ou defensor
exerce um munus público (contribuindo em grande parte
para a resolução da causa conforme o direito) equilibrado
por tudo quanto, no exercício da sua atividade, imponha a
atuação ou omissão, ambas necessárias à preservação ou
conquista de posições jurídicas de vantagem para o acusado,
conforme o direito.
Essa é a razão pela qual se concebe, em um processo
acusatório, a positivação de poderes do advogado do acusado
para se opor à vontade deste último, sempre que divise, nas
conseqüências da manifestação dela, a operação de grave
prejuízo jurídico. Daí porque se constata uma dualidade de
estatutos — defensor/acusado —, apta a ensejar a
juridicidade do recurso da defesa contra a vontade do réu.
192
BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos
para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44, citado anteriormente.
193 Referidas e analisadas por José Narciso da Cunha Rodrigues (―Sobre o
Princípio da Igualdade de Armas‖, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 1, nº 1, Lisboa: Aequitas, jan-mar/1991, pp. 77-103).
II. -O ESTATUTO DA ACUSAÇÃO EM MOVIMENTO: A
OPORTUNIDADE REGULADA NA AÇÃO PÚBLICA E A VEDAÇÃO
ORDINÁRIA À INVESTIGAÇÃO DIRETA
Sobre o estatuto do acusador, em decorrência do
princípio de liberdade responsável, também são devidas
algumas considerações.
A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública
A primeira delas reside na seguinte premissa, segundo
nosso pensamento, fundamental: a oficialidade do exercício
da ação penal e, conseqüentemente, da tarefa de dedução da
acusação, não modifica substancialmente o estatuto do
acusador, a ponto de criar uma absoluta incompatibilidade
entre decisões de conveniência ou oportunidade e de estrita
obrigatoriedade.
Com efeito, não há exercício de função pública salvo por
seres humanos e a liberdade de autodeterminação é, como
assinalamos em lance anterior, da natureza humana.
É evidente que, no exercício da função pública,
submete-se o agente ao império da legalidade, que, no
campo penal, em consideração à máxima da isonomia,
obedece a princípios de moralidade e impessoalidade. Apesar
disso, sempre há um espaço no qual é possível eleger
alternativas e se os critérios de escolha variam conforme seja
o acusador particular ou oficial, para o último hão de levar
em conta a moralidade, impessoalidade e, via de
conseqüência, a objetiva isonomia, que não o impedirão de
contribuir decisivamente para a implementação da política
criminal mais justa.
Neste caso, a perspectiva histórica há de por acento no
fato de o Ministério Público ter nascido, com a sua
conformação próxima à atual, como fruto do processo de
revisão crítica do exercício do poder, provocada pela
Revolução Francesa,194 objetivando desempenhar decisivo
papel na persecução penal, mas inserido em um projeto
orgânico de vigência real do conjunto de garantias
indispensáveis à dignidade da pessoa humana.
Em um modelo acusatório, que historicamente se funda
no protagonismo das partes, há de se conceder espaço para
uma atuação mais flexível do Ministério Público, porquanto
a noção da persecução penal em todas as circunstâncias,
referida a todas as infrações penais (ainda que consideremos
somente as noticiadas), rende louvor ao fim de defesa social,
perseguido no processo inquisitório, acima e além dos
limites de humanidade necessários à harmônica convivência
social.
Um estatuto jurídico do acusador que reprima
completamente as suas potencialidades de conformação da
política criminal, a pretexto de vincular a ação do Ministério
Público à legalidade, esconde deliberadamente a
possibilidade da legalidade surgir em ambientes de
flexibilidade, de acordo com critérios de impessoalidade e
moralidade e também de acordo com propostas de redução
do caráter flagrantemente elitista da justiça penal,
redistribuindo as forças de persecução conforme uma mais
coerente e justa avaliação do que deve merecer o dispêndio
de energia do Estado.
Na perfeita compreensão de Maximiliano Rusconi,
sobre o estatuto jurídico do acusador público no âmbito do
sistema acusatório e de acordo com o princípio acusatório,
centrado na idéia do justo processo, alerta-se:195
El principio de oportunidad como elemento
para racionalizar el uso de poder de persecución
criminal, evitar una selección ‗irregular y
194 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política
Criminal — Ministerio Público‖, in Ministério Público, Revista
Latinoamericana de Política Criminal, ano 2, nº 2, Buenos Aires: Editores
del Puerto, 1997, p. 156.
195 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política
Criminal — Ministerio Público‖, ob. cit., pp. 158-159.
deformante‘ y dirigir los recursos del Estado al
control sobre el tipo de criminalidad que mayor
costo social genera y más dificultades manifiesta
en la investigación, representa sin duda una
opción de limitación del poder penal del Estado...
Además de las razones expuestas, es preciso
insistir en una de máxima importancia: que el
Ministerio Público sea el operador de los criterios
de desjudicialización a través de la aplicación
concreta del principio de oportunidad, asegura
que dicha aplicación no viole la garantía
constitucional de ‗igualdad ante la ley‘ debido a
que por su especial función de formulación de la
política criminal del Estado y gracias a que ciertos
principios aseguran que esa formulación sea
coherente...
E, conclui, objetivamente, com a observação de que
princípios de unidade, hierarquização e verticalidade,
configurando o Ministério Público, asseguram às pessoas
que estarão sempre submetidas às mesmas regras e não a
uma arbitrária disposição de vontade do acusador.
Nestes termos a realidade coloca o Ministério Público
diante da possibilidade/necessidade de se organizar de modo
eficiente e orientar a aplicação de seus recursos na direção de
políticas
criminais
democráticas,
definidas
com
transparência e em documentos discutidos internamente e
com representantes da comunidade.
Cumprida esta etapa, em homenagem aos princípios
constitucionais mencionados linhas atrás, cada Promotor de
Justiça ou Procurador da República terá conhecimento dos
parâmetros que nortearão escolhas entre acusar ou requerer
o arquivamento das investigações criminais e até sobre
recorrer ou não de sentenças.
A interpretação constitucionalmente adequada do artigo
129, inciso I, da Constituição da República, é esta. Não se
trata, apenas, de assegurar ao Ministério Público o
monopólio do exercício da ação penal pública, na forma da
lei. Nos dias de hoje é concebível extrair da norma
constitucional a autorização para definir critérios e casos de
atuação, sempre tendo em mente os princípios da
moralidade e impessoalidade.
Por último, não custa lembrar que a dogmática penal
avançou o suficiente para engendrar critérios de definição de
crimes, de tipicidade penal, bem mais exigentes que a mera
subsunção da tipicidade objetiva tradicional.
A potencialidade de dano da conduta, a ofensividade a
bens jurídicos, a própria dimensão do dano provocado e o
desvalor da ação são elementos que o Direito Penal oferece
ao Ministério Público para determinar as hipóteses de
atuação ou não.
B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta196
Em contrapartida à maior liberdade de ação, que deve
inspirar a atuação do Ministério Público, em um processo
penal democrático, temos que, além dos mencionados
controles, funcionam outros, direcionados a impedir ou a
coibir os excessos e a tentar garantir que o valor de verdade
da sentença penal não venha a naufragar por conta de uma
acentuada e irracional atividade probatória.
Por conta disso, convém dedicarmos alguma atenção à
matéria prova penal e às atividades de investigação
diretamente a cargo do Ministério Público.
Com efeito, o estudo sistemático da teoria jurídica
relativamente à questão da prova está a demonstrar que não
se trata simplesmente de problemas de método de aquisição,
introdução e avaliação das provas no processo.
No campo da prova há também aspectos subjetivos, isto
é, referidos à perspectiva de quem pode provar, além de
outros objetivos, ambos importantes, que estão a merecer
196
Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro Investigação Criminal
Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica, 2ª ed. de Paulo Rangel, tema
de sua dissertação de mestrado (Lumen Juris, 2005) e o Crime e
Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público,
2ª ed., de Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Rio de Janeiro, Forense,
2005.
tutela jurídica por intermédio de procedimentos de garantia
previstos nas Constituições.
No plano específico do princípio acusatório exige
extraordinário cuidado o saber como articular estes
procedimentos e a teoria jurídica.
Assim é que, ao se falar em proibição de prova no
processo penal, está se afirmando que o juiz não poderá levar
em consideração determinado elemento de convicção, no
momento de proferir a decisão, se este elemento de
convicção foi obtido indevidamente.197 Mas a proibição da
prova vai muito além do mero dado procedimental.
Para entendermos o fenômeno que orienta a atividade
probatória, é preciso compreender como a teoria do
conhecimento cuida do assunto e perceber que provar é
convencer, que a atividade probatória consiste em introduzir
no processo elementos que servirão para formar a convicção
do juiz.
Portanto, a atividade probatória é atividade de
ministrar elementos de conhecimento. O juiz deverá
conhecer determinado fato e este conhecimento se dará
indiretamente,198 porque o juiz não presenciou o fato. Ao
final, o convencimento do juiz representará a formulação de
uma idéia acerca do fato. Da comparação desta idéia com a
pretensão deduzida pela acusação e com a pretensão de
resistência deduzida pela Defesa nascerá a decisão.
Diante das conseqüências advindas da consideração de
que um fato está ou não provado no processo é necessário
levar em conta que, em primeiro lugar, a atividade
probatória é uma atividade de pesquisa.
É assim em qualquer ramo do conhecimento e não pode
ser diferente quando o objeto do conhecimento é um fato
ideal — a suposição a respeito da existência de uma infração
penal.
197 A Constituição da República estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVI, que
são inadimissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.
198
Evidentemente, se o juiz for testemunha da infração penal, não
poderá julgar. Artigo 252, inciso II, do Código de Processo Penal.
Neste sentido convém recordar que os pesquisadores a
princípio definem o que se pretende pesquisar. Em termos
de Processo Penal, o objeto da pesquisa é um fato com
coloração diferenciada, dada pelo Direito Penal.
A pesquisa só será possível se o pesquisador tiver em
mente um fato da realidade, hipoteticamente ocorrido, a que
terá de somar os elementos peculiares à adequação típica,
pois apenas a infração penal lhe interessará.
Duas notas distintas passam a ser objeto da atividade
mencionada: a existência de um fato, propriamente dito; e a
presença das características que poderão atribuir a este fato
relevância jurídico-penal. Em outras palavras e a título de
exemplo, no processo penal interessa saber se houve morte
de alguém e se esta morte pode ser derivada de conduta
dolosa ou culposa prevista como crime. O processo penal não
deve perseguir a prova de fatos atípicos!
Verifica-se, agora sim, que a atividade probatória não se
limita a um debate no processo, com introdução de provas, a
não ser que entendamos que a produção de provas é sempre
produção de provas direcionada a determinação da
existência e da vinculação subjetiva de um fato típico, ilícito
e culpável, ou seja, de uma infração penal.
Mesmo quando, aparentemente, a lei é clara na
definição da infração penal, sempre se exigirá um mínimo
processo de interpretação que passa tanto pela
reconstituição do fato no plano das idéias, o que dependerá,
é certo, da qualidade dos elementos que serão oferecidos ao
juiz, como pela compreensão do significado das palavras
empregadas na Lei para indicar o crime ou contravenção.
Saber se a interrupção voluntária da gravidez de feto
anencéfalo configura aborto ou fato atípico é algo que impõe
antes estabelecer consenso sobre o que significa a expressão
―provocar aborto‖, prevista no artigo 124 do Código Penal
brasileiro.
Como não há verdade absoluta, verdade real, a maneira
mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente
não justificará o desrespeito aos valores fundamentais da
pessoa humana.
Por essa razão, até mesmo de acordo com a lógica
imperante em determinado modelo de funcionalismo, se a
verdade é sempre contingente e histórica, o uso da tortura e
o emprego de recursos que historicamente foram criados e
ditados para produzir uma verdade real não têm peso
algum. Neste caso, o resultado da atividade probatória
objetivamente estará sujeito ao mesmo tipo de crítica cabível
em todas as pesquisas e eticamente representará a opção por
mecanismos tão censuráveis quanto a infração penal que se
pretende apurar.
A restrição relativa aos meios de prova, no processo
penal, tem a ver com o conjunto de valores sociais
considerados conforme o estatuto ético da sociedade.
Do ponto de vista objetivo, a proibição de provas
exprime as hipóteses de violação a este estatuto ético,
previsto principalmente na Constituição. Desse modo, são
inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios
ilícitos conforme a idéia de que o meio utilizado para
obtenção da prova viola valores éticos mínimos considerados
essenciais para a existência de uma sociedade civilizada, ou,
usando a expressão de Schmidt-Leichner,199 o Estado não
pode se tornar receptador de material probatório.
Do ponto de vista objetivo há um limite,
tradicionalmente investigado: a prova ilícita não pode ser
introduzida no processo. Caso seja introduzida, não poderá
ser avaliada pelo juiz porque o Estado não pode atuar
criminosamente para investigar o crime.
Do ponto de vista subjetivo, ninguém, nem mesmo o
juiz, pode ter a pretensão de dominar toda a realidade, de
enunciar a verdade real. A atividade de busca da verdade
processual deve se desenvolver de acordo com princípios
republicanos e democráticos.
O processo penal não pode fugir, na essência, à
estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar.
É necessário que seja assim, porque a consolidação da forma
199 Apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em
Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44.
jurídica do Estado, na Constituição, estabelece que os
poderes emanam do povo e que no seu exercício concreto
devem ser distribuídos entre diversos órgãos, e executados
por diferentes agentes de modo a que possa haver controles
recíprocos e eficazes.
A estrutura democrática se contrapõe à forma
autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal
democrático as funções acabam distribuídas entre órgãos
distintos obedecendo a esta mesma lógica.
Há uma conexão que vincula os três principais sujeitos
do processo, de modo que a um deles se entregue a atividade
de exercer a ação penal, a outro a atividade de defesa e a um
terceiro, eqüidistante e imparcial, a atividade de julgar.
O sistema de controle das atividades processuais, que se
desdobra em função dos meios e recursos colocados à
disposição das partes, termina por alcançar também a
atividade de polícia judiciária, na medida em que tal
atividade representa, por si só, uma espécie de poder capaz
de afetar gravemente o patrimônio de direitos da pessoa
investigada.
A atividade de polícia judiciária, que consiste na
apuração das infrações penais e sua autoria, amiúde invade a
esfera de privacidade alheia e atenta, legalmente, contra a
reputação pessoal da pessoa sob suspeita. É muitas vezes
imprescindível que seja dessa maneira, pois a aquisição de
informações demandará pesquisa a respeito da vida privada
do investigado. As fronteiras entre o permitido e o proibido
durante uma investigação criminal aparecem pois marcadas
por balisas tênues e não raro, em busca de maior eficiência, o
investigador cede à tentação de violar determinadas normas
jurídicas de proteção da intimidade e da vida privada do
investigado. Quanto mais grave a infração penal e mais
convencido o investigador a respeito da procedência da sua
suspeita, maiores são as chances de não ser rigoroso quanto
à obediência aos direitos fundamentais do indiciado.
Por conta disso, os parâmetros de legalidade na
investigação criminal são sempre bem definidos e em
praticamente todos os ordenamentos jurídicos que seguem a
linha do brasileiro há uma instituição, a rigor o Ministério
Público, que fica encarregada de fiscalizar os atos de
investigação.200
Em vista dessa opção legislativa, o Ministério Público
não pode investigar diretamente, prescindindo da polícia,
sem atentar contra o princípio republicano de controle.
Nicolas Becerra, Chefe do Ministério Público Federal da
Argentina, salienta o seguinte:201
Como ponto de partida o Ministério Público
deve garantir que no exercício do Poder de Estado
se respeitem OS PARADIGMAS DO MODELO
REPUBLICANO. Como um dos operadores centrais
do sistema penal, o Ministério Público deve ser
consciente de quem tem em suas mãos uma
ferramenta que lhe permite executar uma das
formas mais violentas de exercício do poder do
Estado. Este exercício por fim deve demarcar-se no
programa constitucional, que não só institui o
modo de relação institucional entre órgãos, senão
que, ao estabelecer o sistema de divisão no
exercício do poder por intermédio de freios e
contra-pesos, exige também o controle externo.
E conclui com aquilo que é o ponto mais importante:202
Neste controle externo o Ministério Público
deve colaborar com a consolidação de um sistema
no qual, ninguém, ninguém deve ser NEM BOM,
NEM MAU GUARDIÃO DE SEUS PRÓPRIOS ATOS, o
que significa entre muitas outras coisas, que quem
investiga não pode ao mesmo tempo controlar.
200 No Brasil, a Constituição da República prescreve, em seu artigo 129, inciso
VII, que é atribuição institucional do Ministério Público exercer o controle
externo da atividade policial.
201 Becerra, Nicolas. El Ministerio Público y los Nuevos Desafíos de la Justicia
Democrática, Buenos Aires: AD-HOC, 1998, p. 12 – tradução livre.
202 Idem.
Por que a polícia pode investigar, por exemplo, e o
Ministério Público não pode investigar? Que tipo de
conseqüência jurídica, poderia advir de uma investigação
realizada por quem não está incumbido de fazê-lo
constitucionalmente?
À vista do exposto, as possibilidades de o Ministério
Público investigar diretamente dependem da previsão legal
de disposições regulando a investigação, de tal sorte que as
lesões decorrentes do abuso na investigação possam ser
objeto de reclamação perante o Judiciário — princípio da
inafastabilidade da jurisdição — e que o sistema de freios e
contra-pesos possa funcionar.
Além
disso,
é
imprescindível
assinalar
a
excepcionalidade desta atuação, que tão-só estará justificada
naqueles casos em que o sucesso da pesquisa impõe
extraordinária reserva em relação a quem está sendo
investigado.
É o caso das investigações criminais acerca do
envolvimento sistemático de policiais com ações de
corrupção ou criminalidade acentuada no âmbito da própria
polícia.
Caberia à lei fixar estes contornos de forma clara, pois
também para a investigação criminal do Ministério Público
prevalece a garantia constitucional do devido processo legal.
A excepcionalidade dos casos de investigação criminal
do Ministério Público, de lege ferenda, há de ser
compreendida, do ponto de vista do direito, como emanação
do critério da proporcionalidade. Nos limites do devido
processo legal, sacrifica-se o ideal de afastamento do
Ministério Público da investigação criminal, pelo qual é
viabilizado o controle constitucional da atividade de polícia
judiciária, para permitir a investigação de crimes que de
outra maneira não seriam investigados.
Ora, isso impõe limites à própria lei que porventura vier
a ser editada. Esta não poderá atribuir ampla liberdade ao
Ministério Público para escolher o que investigar. Não cabe,
por exemplo, deixar em mãos do Ministério Público a
pesquisa da ocorrência de crime de furto de que foi vítima
um Governador de Estado, por mais chocante que o fato
possa parecer à opinião pública. Por outro lado, o
reconhecimento de que a polícia está limitada em certas
circunstâncias, por ausência de autonomia, além de ser uma
constatação servirá para permitir que polícia e Ministério
Público atuem em conjunto, visando o melhor proveito da
investigação, que de outro modo estaria condenada a chegar
a lugar algum.
E isso nada tem a ver com uma função pós-moderna do
Ministério Público ou com a natureza diferenciada dos
chamados bens jurídicos penais transindividuais ou
coletivos.
Agora, a investigação criminal na grande maioria dos
casos não se enquadra no modelo excepcional citado acima e
o aspecto subjetivo termina ganhando importância neste
contexto, pois não se trata apenas de demonstrar alguma
coisa, mas de saber quem deve demonstrar e a quem deve ser
demonstrado.
Quando o padrão de legalidade na apuração dos fatos
não é respeitado também em sua perspectiva subjetiva, a
prova dele decorrente é igualmente ilícita.
Provar é atividade de sujeito. Prova-se um fato que tem
determinada qualidade, mas se prova por intermédio da
atividade de sujeitos e as Constituições hoje não podem ficar
limitadas em sua interpretação, quando se cuida da
proibição de provas no processo penal, aos casos de obtenção
de provas por meios ilícitos. Também deverão dirigir a
atenção à questão a respeito de quem foi o sujeito produtor
daquela prova, quais são os limites subjetivos da produção
da prova e o que ocorre quando um sujeito que não poderia
realizar atividade probatória a realiza, fazendo valer o
sistema de ineficácia dos atos jurídicos.
Por último, não custa destacar que os Sistemas
Processuais são configurados historicamente. O que é
atribuído a cada Ministério Público depende muito do papel
que a instituição exerceu ao longo do tempo. O mesmo
ocorre com a tarefa incumbida à autoridade policial.
No Brasil, durante muito tempo a autoridade policial
esteve encarregada de investigar e processar. Essa realidade
do Império, retratada no Código de Processo Criminal de
1832 fica como ―permanência‖ até a promulgação da
Constituição da República de 1988, que afastou de juízes e
delegados de polícia o poder de iniciar processos por crimes
de homicídio e lesão corporal culposa e por contravenções
penais (Lei n. 4.611/65 e artigo 531 do Código de Processo
Penal). Desde então, somente o Ministério Público está
autorizado a promover a ação penal pública.
Acontece que a história da investigação criminal
brasileira é também história de repressão e autoritarismo,
com abusos em investigação e recurso freqüente à tortura. O
distanciamento que a Constituição da República de 1988
impôs ao Ministério Público é coerente com a sua função de
fiscal das atividades de polícia judiciária, criando estrutura
confiável de controle dirigida à redução dos abusos.
Quando o Ministério Público abdica disso retorna ao
passado, fundindo funções, pois a questão não está no nome
da instituição que investiga, mas na função que as
instituições exercem. Quem investiga exerce função de
polícia judiciária. Pode ser o juiz, como no passado
brasileiro; poderá vir a ser o Ministério Público, como alguns
doutrinadores pretendem. Não importa, porque se houver
investigação será necessário criar estruturas de controle
dessa investigação e não fará sentido pensar em um outro
Ministério Público do Ministério Público.
Porque as linhas deste estudo são traçadas pelo
princípio acusatório não convém avançar mais, valendo
notar, porém, que as fronteiras probatórias instituídas pelas
leis e pela Constituição devem valer não somente em relação
ao Ministério Público mas até mesmo quando se tratar de
Comissão Parlamentar de Inquérito.
III. -O ESTATUTO DO JUIZ EM MOVIMENTO: LIVRE
CONVENCIMENTO E OS PODERES DE INVESTIGAÇÃO DO JUIZ
— A MUTATIO LIBELLI
Agora cumpre dedicar ao órgão de resolução do caso
penal algumas considerações, pertinentes ao seu
enquadramento conforme o princípio acusatório e a relação
que se estabelece entre ele, juiz (lato sensu considerado),
acusador e acusado.
Com efeito, excluídas desde logo a iniciativa para o
processo e a tarefa de aquisição das provas na fase
precedente203, resulta que o princípio acusatório repercute
no estatuto judicial, conferindo ao magistrado reserva da
função jurisdicional.
Destaque-se que o juiz não produz provas na
investigação criminal não só porque a preparação da ação
penal, respeitada a máxima acusatoriedade, implica em
afastamento do juiz da fase preparatória,204 mas também
pelo fato de a presunção da inocência comportar, até o
trânsito em julgado da condenação, uma postura de
preservação pelo juiz de um papel de verdadeira
imparcialidade,
A implicância prática da reserva em questão consiste,
segundo pensamento dominante, na garantia da liberdade de
avaliação das provas, convicção fundada sobre a qualificação
jurídica da infração penal e arbitramento motivado da
correspondente sanção.
A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz
203
As objeções opostas ao extinto inquérito judicial, na falência (ver item I, em
3.2.2.1) são igualmente válidas quando se trata da investigação de magistrados.
Com efeito, a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979, ainda em vigor até
a edição do Estatuto da Magistratura, em seu artigo 33, parágrafo único, prevê
que a investigação da prática de crime atribuído a magistrado deverá ser
realizada pelo Tribunal ou Órgão Especial competente. Além do óbvio
desrespeito ao princípio da igualdade de tratamento, que exigiria outro livro
para ser explicado e contestado à luz da Constituição da República de 1988, há a
questão prévia de se atribuir à autoridade encarregada do julgamento a
atribuição para apurar o fato.
204 A intervenção do juiz, nesta fase, só se explica, conforme o princípio
acusatório, quando necessária para, conforme a Constituição, preservar ou
comprimir, legitimamente, o exercício de direitos fundamentais, porquanto o
julgador não tem interesse jurídico na propositura da mencionada ação.
Comecemos, portanto, pela análise da tarefa de
avaliação das provas. A primeira e mais importante
observação deriva da necessária distinção entre as ações de
introduzir e avaliar as provas no processo penal
condenatório.
A propósito, salienta Gomes Filho que, em um modelo
processual duelístico, como o adversary, existente na
Inglaterra, por exemplo, a iniciativa da atividade probatória
incumbe preponderantemente aos próprios litigantes, daí
decorrendo o papel de mero moderador e mediador,
desempenhado pelo juiz que preside o julgamento, o qual
raramente intervém, como os jurados.205
Nessa direção, fundamenta-se uma estrutura processual
preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de
direitos e em garantir a participação e o diálogo dos
interessados no processo de decisão.206
Por outro lado, convém assinalar que, no modelo
inquisitório, o princípio é justamente o oposto, refletindo a
proeminência da figura do juiz e a subalternidade das
partes na tarefa de obtenção do material probatório, o
dogma da verdade real, a preocupação com a economia
processual e, sobretudo, uma concepção peculiar de livre
convencimento, visto, consoante precisamente remarca
Gomes Filho, como liberdade absoluta na própria condução
do procedimento probatório, e não na sua real e histórica
dimensão de valoração desvinculada de regras legais, mas
incidente sobre um material constituído por provas
admissíveis e regularmente incorporadas ao processo.207
Ora, se estamos convencidos, o que é certo, da
vinculação entre direito de ação (e, naturalmente, também
de defesa) e direito à prova, é razoável supor que haja mais
do que uma simples relação jurídica, pela qual o segundo
205
Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo
Penal, pp. 59-60.
206 Idem, p. 60.
207 Idem, p. 63.
seja considerado conseqüência do primeiro.
A ordem das coisas colocadas no processo permite,
pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à
introdução do material probatório é precedida da
consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado
material possa determinar, se efetivamente incorporado ao
processo.208
Ao tipo de prova que se pesquisa corresponde um
prognóstico, mais ou menos seguro, da real existência do
thema probandum, e, sem dúvida, também das
conseqüências jurídicas que podem advir da positivação da
questão fática.
Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e
isso, em termos de processo penal condenatório, representa
uma
inclinação
ou
tendência
perigosamente
comprometedora da imparcialidade do julgador.
Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na
direção da introdução de meios de prova que sequer foram
considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas
circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui
igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento
psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio
juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz se
fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que
ele mesmo incorporou ao processo, por considerar
importantes para o deslinde da questão. Isso acabará
afastando o juiz da desejável posição de seguro
distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos,
posição essa apta a permitir a melhor ponderação e
conclusão.
Entre os poderes do juiz, por isso, segundo o princípio
acusatório, não se deve encontrar aquele pertinente à
investigação judicial, permitindo-se, quando muito, pela
coordenação dos princípios constitucionais da justiça
208 Ver críticas à investigação direta pelo Ministério Público, texto
acrescentado a esta edição.
material209 e presunção da inocência, que moderadamente
intervenha, durante a instrução, para, na implementação de
poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira
supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s)
esposada(s) pela defesa.
Neste caso, assimila-se a real natureza do princípio
acusatório como garantia que comporta para a defesa do
imputado conforme assinala Grau.210 O destinatário da
posição jurídica favorável não pode ser prejudicado pela
aplicação, contra si mesmo, daquele benefício instituído pela
Constituição.
Ao mesmo tempo, incrementa-se, por meio desta
excepcional e restrita iniciativa judicial, o princípio da
paridade de armas de modo efetivo, tal seja, garantindo, pela
intervenção mediadora do juiz, tratamento desigual aos
desiguais, sobretudo em face da ausência de identidade entre
as partes, agindo assim em busca do equilíbrio no processo,
razoavelmente justificado à luz de critérios de reciprocidade
e evitação de um dano irreparável.
Teresa Armenta Deu pensa, todavia, diferentemente,
defendendo a tese da possibilidade da introdução de
elementos de prova, pelo juiz, de forma limitada, mesmo na
fase de debates, visando completar o panorama sobre o qual
recairá o juízo211. Giza a referida autora que, nas
circunstâncias, a importação de elementos de prova pelas
mãos do juiz será controlada pelo sucessivo contraditório e
209 O princípio de justiça material, conforme o magistério de Canotilho,
remete à Constituição um fundamento de ―reserva‖ e ―garantia‖ da justiça,
pelo que se assinala a intencionalidade do Direito Constitucional não
esgotar a positividade das normas da Constituição na mera edição formal,
mas sim na correspondente justiça deste direito. Portanto, a função de
―reserva de justiça‖, mencionada pelo mestre português, sugere a
fundamentação dos princípios que se constituem em favor rei, desde o da
presunção da inocência, justificando a compressão de outros princípios,
como, por exemplo, o acusatório, em vista da referida reserva de justiça
(Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 3).
210 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, p.
13.
211 Teresa Armenta Deu defende ponto de vista diverso em Principio
Acusatorio y Derecho Penal, pp. 27-28.
pela impossibilidade de interdição da defesa.
Em que pesem o respeito e admiração que merece a
doutrinadora, que profundamente estudou o princípio
acusatório, não é possível concordar com ela porque o
contraditório é medida de duelo, como categoria processual
que reúne a ciência do ato praticado pela parte contrária à
possibilidade de uma atitude em sentido contrário ou
objetivando contrariar o prefalado ato. Difícil será, a nosso
juízo, estabelecer-se um duelo entre o acusado e o juiz, pois
este último detém o poder de decidir a causa, elegendo, como
assinalou Carnelutti, a alternativa de solução que lhe pareça
mais viável.
Há de se acrescentar, por oportuno, que, se o princípio
da paridade de armas não integra o princípio acusatório,
reduzido este à divisão tricotômica de funções, é, todavia,
importante para a implementação da justa solução do caso
penal, a ponto de ser considerado integrante de um sistema
cuja base é a acusatoriedade (novamente aí a distinção entre
sistema e princípio, entre continente e conteúdo).
Por isso, cabe destacar, com Chiavario212, que a parità
fra le armi fornece um critério resoluto fundado não no
sentido de simetria das situações das partes, porém
justamente na dissimetria de posições, observável na prática,
de tal sorte que não é razoável admitir um Ministério Público
despreparado para o exercício dos direitos de ação e prova,
enquanto, lamentavelmente, acontece de se encontrar
defensores inaptos para a melhor forma de representação
dos interesses do imputado.
Para ser assimilada pelo princípio acusatório, a
estrutura de cooperação do processo jurisdicional penal
moderno, de que nos fala Ada Grinover,213 há de ser filtrada
pelo contraditório, que opõe de forma dialética as teses da
acusação e da defesa, levando em consideração a
desigualdade real entre as partes e a necessidade imperativa
de equilíbrio técnico e de posições jurídicas visualizadas
212
Processo e Garanzie Della Persona, pp. 27-28.
213 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, pp. 8-9, 14-15 e 19-21.
reciprocamente.
A estrutura de cooperação busca o resultado prático da
conversão das garantias das partes em garantias da própria
jurisdição.
Daí porque a doutrinadora, consolidando seu
pensamento, assevera que existe um perfil objetivo de defesa
a condicionar a validade do processo penal e legitimar a
própria jurisdição, cumprindo ao juiz zelar para que a
desigualdade real não desemboque em desigualdade
processual comprometedora da verdade que deve alicerçar a
sentença penal.
No fundamento desta desigualdade, cuja constatação
nos dias de hoje dispensa comentários, é possível identificar
na estrutura de cooperação citada certa semelhança com o
processo trabalhista, no qual a inferioridade econômica do
trabalhador, numa estrutura capitalista, cria novos hábitos
assistenciais ao juiz.214
De toda sorte, a intervenção judicial na atividade
probatória a favor do acusado há de ser moderada, como
antes frisamos, enquanto estará interditada em relação à
acusação, que nos dias de hoje dispõe de aparato
suficientemente bem constituído para pelejar em juízo.
A supressão ou redução dos poderes de investigação
judicial esbarra, contudo, na cultura desenvolvida
secularmente com base nos ordenamentos jurídicos de
inspiração européia continental, acostumados, pela
experiência haurida na ordem jurídica romano-canônica, à
busca da verdade real, de sorte que a máxima
acusatoriedade postulada pelo princípio em questão, na
equação juiz penal versus prova, quase sempre é bastante
limitada.
E é com inspiração nestes modelos que configuram um
processo acusatório mitigado ou temperado pelo princípio da
investigação judicial, segundo Manuel da Costa Andrade, que
vem tomando corpo no Direito Brasileiro a tese da distinção
entre o sistema acusatório de estrutura adversarial e outro,
214 Idem, p. 19.
acusatório contemporâneo, que atribui poderes probatórios
ao juiz.
Gustavo Badaró, por exemplo, assinala que:
―...embora seja característica histórica do processo
acusatório a inércia probatória do juiz, que tinha apenas
uma função passiva em relação à atividade instrutória,
tal aspecto não lhe é fundamental. A evolução de tal
modelo, principalmente em decorrência da publicização
do processso, fez surgir um processo em que há clara
separação de funções entre acusação, defesa e julgador,
a despeito de o juiz poder ser dotado de poderes
instrutórios‖.215
Badaró remete para posição secundária a inércia do
juiz, salientando que há características secundárias que
possibilitam a existência de um processo acusatório à
semelhança do júri inglês, em que o juiz não tem poderes
instrutórios, e um pretenso processo acusatório do tipo
brasileiro ou português no qual o juiz pode determinar a
produção de provas de ofício.
Marcos Alexandre Coelho Zilli é partidário da posição
assumida por Badaró, em sua análise sobre o sistema
adversarial216.
Não é necessário lembrar que o artigo 156 do Código de
Processo Penal brasileiro, em sua parte final, que contempla
o juiz com poderes probatórios, na linha do artigo 209 do
mesmo código, é fruto do processo penal do Estado Novo,
período autoritário em que a supressão das liberdades
contava com apoio do Sistema de Justiça Penal, para fazer
valer os interesses da ditadura Vargas.217
215
BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova, op. cit., p. 137.
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no
processo penal, São Paulo, RT, 2003, p. 44-45.
217
Artigo 156 do Código de Processo Penal: ―A prova da alegação incumbirá a
quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir
sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto
relevante‖ e artigo 209: ―O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras
testemunhas, além das indicadas pelas partes‖.
216
Supor generosidade, espírito científico ou público em
regimes ditatoriais significa desconhecer a lógica que domina
o manejo, a manipulação do Sistema de Justiça Penal em tais
circunstâncias.
No caso brasileiro, a regra de produção de provas pelo
juiz, de ofício, tão-só consolida aquilo que desde as
Ordenações, passando pelo Código de Processo Criminal do
Império, de 29 de novembro de 1832 e pelas Reformas
Prcessuais de 3 de dezembro de 1841 e 20 de setembro de
1871, tornara-se regra em um ambiente em que a
Intendência, espécie de Secretaria de Segurança Pública, fora
desde o início entregue a um Desembargadior, juiz de corte
superior.
Hoje, a volta a esse estado de coisas não pode ser
compreendida como evolução. A artificial designação de
sistema adversarial, para definir o acusatório em que a
inércia probatória do juiz é regra, para distingui-lo de outro
sistema acusatório em que o juiz tem poderes instrutórios, só
atende ao propósito de tentar prolongar a vida do Código de
Processo Penal de 1941, da era autoritária, naquilo que nele é
central, tal seja, a filosofia de que se trata de instrumento da
política de segurança pública do Estado e não de previsão
das regras do devido processo legal, conforme a Constituição
da República de 1988.
O alegado caráter público do caso penal, para justificar
a ação probatória do juiz, conforme Badaró, merece reflexão
histórica e técnica. Em termos de Justiça Penal a palavra
―público‖ será tomada no sentido de algo derivado do
exercício do poder político. Não havia nada mais ―público‖,
no sentido de expressão de poder político, que o processo
penal da Inquisição.218 Tampouco havia algo mais sigiloso
que este mesmo processo.
O público na citada acepção deve ser compreendido
como em oposição ao privado. Para o processo da Inquisição
os interesses privados eram secundários. Importava a
218
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires,
Editores del Puerto, 2002, p.151.
repressão aos hereges e a manutenção da ordem. E essa
repressão era feita em sigilo. Talvez seja possível encontrar
neste sigilo a simetria com as motivações do juiz na
determinação da prova de ofício, uma vez que a declaração
dos reais motivos da produção da prova pode implicar préjulgamento.
A simetria entre processo inquisitório e regimes
autoritários não é gratuita e não se fixa exclusivamente nos
regimes políticos, inscrevendo-se na cultura dos povos. Não
por acaso o Brasil resiste como um dos poucos Estados da
América do Sul a ter ultrapassado a fase de transição
democrática sem ter editado um novo Código de Processo
Penal em seguida à sua Constituição.
Por essa razão é importante insistir no ponto delicado
da dogmática do processo. O estudo das formas de
conhecimento dos fatos não é próprio à disciplina do Direito.
O Direito se apropria ―politicamente‖ do discurso sobre a
―verdade real‖, mas o próprio Direito não está dotado de
instrumentos científicos para investigar a possibilidade de
ser estabelecida uma verdade real.
Johannes Hessen recordará que é a epistemologia que
se dedica a investigar as possibilidades de conhecimento219 e
Juan Antonio Nicolás e Maria José Frápolli resenharão as
sete principais correntes de pensamento sobre a Verdade no
Século XX, com seus desdobramentos, a enterrar
definitivamente o conceito de verdade real e a retirar o
sujeito do conhecimento da posição de aparente neutralidade
que a filosofia positivista do século XIX entronizara.220
O juiz é o destinário da prova e, sem dúvida alguma,
sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a
produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do
conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois
sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver
219
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes,
2000.
220
NICOLÁS, Juan Antonio e FRÁPOLLI, María José. Teorías de la verdad en
el siglo XX, Madrid, Tecnos, 1997.
confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas:
há crime e o réu é responsável ou isso não é verdade, a prova
produzida de ofício visará confirmar uma das duas hipóteses
e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que
pretende comprovar.
Assim, por exemplo, se uma testemunha X afirma sem
muita convicção que viu o réu subtrair o carro da vítima e
que estava ao lado de outra testemunha Z, não arrolada, a
decisão do juiz, de ofício, de ouvir a mencionada testemunha
Z só pode ser determinada pela convicção honesta de que a
testemunha Z confirmará o fato. É evidente que se a
testemunha Z negar o fato, o juiz tenderá a levar isso em
consideração. Caso, porém, a testemunha confirme as
declarações da outra, dificilmente o réu poderá acreditar que
o juiz dará crédito a testemunhas que vier a arrolar para
desmentirem as duas primeiras. Com isso estará quebrado o
frágil equilíbrio em que se sustenta a imparcialidade do juiz
no processo penal.
No exemplo anterior o juiz não pesquisou fontes de
prova, ressalva feita por Badaró para tentar fixar algum
limite à atividade probatório de ofício do juiz.221
De todo modo, aceita a tese da inércia judicial,
prosseguimos no plano específico da avaliação do material
probatório recolhido pelas partes, para averbarmos que a
plena liberdade de avaliação cede hoje, fora do Sistema
Acusatório, perante duas distintas situações: o valor de
compromisso da confissão do acusado, como assunção de
um princípio de autonomia da vontade, nos casos de justiça
penal consensual para os quais a resposta penal implique em
uma solução mais favorável ao réu; e a admissão de um
conjunto mínimo de provas legais negativas.
221
De acordo com Gustavo Badaró (Ônus da prova..., p. 119) a busca da prova
pelo juiz não fere a imparcialidade desde que tais poderes de instrução sejam
exercitados dentro de determinados limites. Para Badaró o juiz não está
autorizado a buscar ―fontes de prova‖, atividade propriamente investigativa,
mas poderá agir diante da notícia de uma prova, ―como a informação de que
certa pessoa presenciou os fatos‖.
A.1. -Do Livre Convencimento e a Confissão do Acusado —
Soluções Consensuais
Com efeito, uma nova concepção de retribuição,
arrimada no propósito de provocar recíprocas influências
entre acusado, vítima e sociedade, aproximando-os, resgata
o valor da confissão para o processo penal, dessa vez,
diferentemente do passado inquisitório, voltada a uma
solução de compromisso que restaure a paz social.
A idéia é evitar o processo de marginalização induzido
pela pena de prisão, sacrificando, em uma mínima porção e
nos limites que o próprio acusado e seu defensor
entenderem razoáveis, o patrimônio jurídico do primeiro.
Para tanto, renove-se a advertência, há de se conceber o
acusado como ser dotado de autodeterminação e
responsabilidade, que não podem ser legítima e
paternalmente tuteladas, reivindicando-se, nessa postura,
uma reação do juiz limitada pelo definido espaço de
consenso e não subordinada à busca da descoberta da
verdade real a qualquer preço.222
Neste ponto, modificamos parcialmente o entendimento
esposado até esta edição (3ª). Sustentamos no passado que
não havia dúvida de que a implementação do princípio
acusatório, na hipótese, consideraria não somente o conjunto
de poderes, direitos e deveres dos sujeitos processuais,
perspectivados estaticamente, mas ainda nas suas relações
sucessivamente desenvolvidas.
Com base nisso, ao se analisar a posição do acusado e
seu defensor em um regime inspirado no princípio
acusatório, novamente em que pese à força dos argumentos
de Teresa Armenta Deu,223 teríamos de reconhecer que o
exercício concreto do direito de defesa pode ser renunciado,
sublinhe-se, excepcionalmente, desde que admissível à luz
da Constituição e conforme os interesses peculiares do
222 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código
de Processo Penal, p. 29.
223 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 26-28.
acusado, interditada a resposta penal tradicional, tal seja, a
prisão ou outra qualquer, de significativa gravidade.224
Na realidade, o princípio acusatório oferece pouca
contribuição na análise das soluções consensuais,
especialmente fundadas na renúncia ao direito de defesa.
Com efeito, toda construção acusatória foi concebida
para edificar o direito de defesa. A partir da experiência das
práticas judiciais não-penais, que há séculos reconheciam a
importância do direito de defesa, os autores iluministas e os
primeiros penalistas do século XIX, Carrara à frente,
sustentaram a importância de levar a Defesa ao processo
penal.
A principal diferença prática entre os processos
acusatório e inquisitório, além da distinção entre juiz e
acusador, consiste na previsão de defesa.
Portanto, quando o processo abre mão das atividades
defensivas clássicas – de resistência à pretensão de
condenação -, caminha-se para trás, ressuscitando o modelo
inquisitório.
É certo que os modelos de solução consensual da
atualidade – como a transação penal e a suspensão
condicional do processo – não podem ser comparados às
práticas brutais da inquisição.
A configuração constitucional de várias garantias, como
as que proíbem o juiz de considerar as provas obtidas por
meios ilícitos, vedam a tortura e estabelecem a
224 Sobre a renúncia ao exercício de direitos fundamentais em consideração à
relação jurídica estabelecida entre o sujeito titular do direito e o Estado,
devedor, convém examinar Novais, Jorge Reis, in Renúncia a Direitos
Fundamentais: Perspectivas Constitucionais, vol. I, org. Jorge Miranda,
Coimbra, 1996. Salienta textualmente o autor, forte nas lições de Dworkin,
que, se a titularidade de um direito fundamental é uma posição jurídica
de vantagem do indivíduo face ao Estado, é um ―trunfo‖ nas mãos do
indivíduo... então da própria dignidade da pessoa humana e do princípio
da autonomia e de autodeterminação individual... decorre o poder de o
titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a
enfraquecer, quando desse enfraquecimento, e no quadro da livre
conformação da sua vida, espera retirar benefícios que de outra forma
não obteria (p. 287).
inviolabilidade do domicílio, das comunicações telefônicas e
de dados tutelam a dignidade da pessoa humana e acabam
funcionando como barreira ao retorno automático e
irreversível ao princípio inquisitório.
Os modelos consensuais da atualidade, portanto, estão
em um meio caminho. Inspirados, por um lado, na ideologia
da inquisitorialidade, organizam o procedimento de sorte a
torná-lo mais célere, para tanto requisitando o
consentimento do próprio suspeito ou acusado. Limitados,
por outro lado, pelas garantias constitucionais acima
referidas, só servem ao direito processual penal do Brasil
para evitar a aplicação de pena de prisão e, assim, reduzem o
nível de violência que normalmente marca o funcionamento
dos Sistemas Penais da periferia.
Embora fora da matriz acusatória o consentimento do
acusado em sofrer pena sem se defender pode, porém,
beneficiar-se do Sistema Acusatório. Com efeito, como a
defesa é da essência do citado sistema, as possibilidades de
se abrir mão dela devem proporcionar a preservação da
liberdade do imputado, no grau máximo de desvantagem a
que estará sujeito o réu. Caso o acusado esteja sujeito a
sofrer pena privativa de liberdade, risco que corre no
processo tradicional, o procedimento automaticamente se
transforma, convertendo-se naquele que garante ao réu o
direito ao devido processo legal.
A condição de validade indispensável à produção de
efeitos da dispensa de defesa está vinculada ao direito de o
acusado ser cabalmente informado da acusação e das
alternativas que lhe são postas, conhecimento inerente ao
princípio do contraditório que, por sua vez, integrando
aquele conjunto de direitos invocado por Figueiredo Dias,
serve à conformação da convicção judicial e, portanto,
também é condição de eficácia do princípio acusatório.225
Vale frisar que o comportamento processual do
225 No sentido do direito à informação integrar o princípio contraditório e este,
por seu turno, o princípio acusatório, ver, por todos, Joan Vergé Grau, La
Defensa del Imputado, pp. 119-120, ao contrário de Teresa Armenta Deu.
acusado, caracterizado por aceitar passivamente a inflição de
pena sem defesa, é equiparado à confissão porque na
perspectiva psicológica é assim que as pessoas sentem e
reagem ao fenômeno.
O fato de as leis, como a brasileira, proibirem a
consideração da transação penal como causa de reincidência
e não extraírem conseqüências civis, vedando a produção de
efeitos civis em favor do lesado, não muda a realidade. O réu
é tratado como culpado, não incidindo aqui a presunção de
inocência. Outros efeitos, civis e penais, que não se
produzem são opções de política criminal para estimular a
aceitação da proposta de pena sem defesa.
Ao juiz nestas hipóteses fica muito pouco a fazer. A sua
atuação é residual. Deve comprovar a existência das
condições para a formulação e aceitação das propostas de
consenso e diante destas condições deverá homologar as
soluções. Neste aspecto o convencimento do juiz fica restrito
aos limites construídos consensualmente pelas partes.
A.2. Das Provas Legais Negativas
O segundo limite a considerar, relativamente ao
estatuto jurídico do juiz, no processo penal condenatório,
tem a ver com o reconhecimento de que as decisões judiciais
não são emanações de um poder divino e que a divindade
que podem em si mesmas carregar é aquela própria ao que
de sublimemente divino é inerente a todo ser humano.
Assim, temos de aceitar o erro como algo típico da
natureza humana e admitir que o juiz, por mais ponderado,
sensível e preparado que seja, não está imune a errar.
Ocorre, todavia, que o erro em desfavor do acusado, no
processo penal, quando é descoberto converte-se em um
drama público que afeta a quase todas as pessoas e, quando
permanece encoberto, corresponde à mais terrível das
injustiças, porquanto o acusado não tem sequer meios de
compartilhá-la.
Deste modo, a instituição de provas legais negativas tem
inequívoco valor garantístico, assim compreendidas estas
provas como postulações da limitação ao livre
convencimento do juiz, para condenar.226 Isso acontece
sempre que as provas legais negativas resultarem de uma
medida de cautela do legislador, adotada ponderada e
restritamente, em observância às regras retiradas da
experiência ordinária.
A exigência do exame de corpo de delito, estatuída no
artigo 158 do Código de Processo Penal, para
reconhecimento do fato típico que deixa vestígios, serve de
exemplo de prova legal negativa. Sem o exame de corpo de
delito, em regra, o juiz não poderá reconhecer o fato típico e
sequer poderá afirmar o vínculo de causalidade.227
O princípio acusatório é um princípio de garantia e,
pois, não pode ser incompatível com uma regra também de
garantia, extraída da incontestável comprovação da
falibilidade humana.
Na projeção da divisão de poderes do Estado, no
processo penal, típica do princípio democrático,
conformador do acusatório, enquanto ao juiz cabe julgar, isto
é, apresentar imperativamente a solução do caso penal, e ao
executivo deduzir a pretensão condenatória ou encarregar-se
da investigação criminal, ao legislador incumbe prover as
regras de garantia que viabilizem o justo processo.
Neste equilíbrio que tantos vezes é precário, a previsão
legal de determinado tipo de prova para a proclamação do
veredicto condenatório é perfeitamente assimilável, assim
como é aceitável a proibição, em tese, da aquisição e
ingresso, no processo, de determinados meios de prova, em
alusão a princípios éticos.
B. Da Alteração dos Fatos
226 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal,
pp. 32-33.
227
O artigo 167 do Código de Processo Penal prevê, excepcionalmente, a
possibilidade de suprir a ausência do exame por prova testemunhal, em virtude
de haver desaparecido os vestígios. De toda maneira, em nenhuma hipótese será
aceita a confissão do acusado para suprir a ausência do citado exame.
Para finalizarmos a abordagem relativa ao estatuto do
juiz, de conformidade com o princípio acusatório, é
necessário ainda enfrentarmos dois pontos nevrálgicos: a
convicção fundada sobre a qualificação jurídica da infração
penal; e, conseqüentemente, o arbitramento motivado da
correspondente sanção.
Trata-se, dito de outra maneira, do princípio da
congruência ou da correlação entre acusação e
sentença.228Pode o juiz, validamente, condenar o réu por fato
distinto daquele que é imputado na denúncia ou queixa?
É básico o princípio jura novit curia, em vista do qual o
juiz certamente pode resolver a questão de mérito de acordo
com a qualificação jurídica que estime mais ajustada aos
fatos provados.
Porém, em se tratando de processo penal condenatório,
cabem alguns cuidados, em vista do fim de evitação de
prejuízo ao exercício da defesa e, principalmente, com o
objetivo de preservar a dinâmica dialética, pela qual às
partes incumbe a apresentação de tese e antítese e ao juiz,
como coroamento do processo, a produção da síntese ou a
escolha da tese que reputa mais acertada.
Enrique Ruiz Vadillo assinala o seguinte:229
Es imprescindible que entre el objeto de la
acusación y el qui sirve de soporte a la condena
haya homogeneidad. La razón de la exigencia es la
misma: la proscripción de toda indefensión. Son
todas ellas manifestaciones del mismo principio. Si
228 Sobre o tema, além dos textos adiante referidos, cumpre examinar duas
obras de inequívoco valor: Contributo alla Teoria della Sentenza Istrutoria
Penale, de Pietro Nuvolone, Padova: Cedam, 1969; e ―La Correlazione fra
Accusa e Sentenza nel Processo Penale‖, de Giuseppe Bettiol, in Scritti
Giuridici, tomo I, Padova: Cedam, 1966. No direito brasileiro há também
os extraordinários trabalhos: A Sentença incongruente no processo penal,
de Diogo Malan (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003) e Correlação entre
acusação e sentença, de Gustavo Badaró (São Paulo, RT, 2000).
229 Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la
Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal
Supremo, p. 27.
alguien es acusado de hurto y de este delito se
defiende, si se encuentra, después, com una
condena por coacciones, aunque la pena sea
inferior y hasta le pueda producir satisfacción
espiritual el cambio del título de imputación, por
tener este último una menor carga de reproche
social, no cabe duda de que há quedado indefenso
porque frente a esse delito de coacciones no se há
podido defender de una manera eficaz.
Como mencionamos, ao aludirmos ao estatuto jurídico
do autor, uma das suas facetas mais importantes está em
determinar o objeto do processo, em relação ao qual serão
deduzidas as provas e haverá de se circunscrever a sentença.
Trata-se de exercício da função de acusar, pois fundada
em um juízo provisório da existência de determinada
infração penal (a existência de justa causa), coloca-se ao réu
a infração que se lhe imputa, no plano duelístico peculiar à
relação processual.
É exatamente isso, ou, com outras palavras, cuida-se
aqui do fenômeno da imputação, ao qual em um processo
penal democrático há de corresponder a atividade de defesa,
por força das garantias das convenções internacionais.
Assim, quando por exemplo o Ministério Público atribui ao
réu a prática de determinado furto, imputando-lhe esse
furto, permite que o réu se defenda dessa imputação. O
acusado pode confiar na eficiência da defesa, pois sabe que é
o acusador que lhe imputa o delito e não o juiz.
Também Grau, na linha de pensamento aduzida por
Vadillo, concorda que, com independência de suas mais ou
menos amplas faculdades de modificar a qualificação
jurídica do fato, não pode o Tribunal alterar o objeto do
processo, nem, e isto é sumamente importante, condenar por
fatos de que o acusado não tenha podido defender-se.230
Caso seja admitida a alteração substancial dos fatos, por
iniciativa do tribunal, ainda quando seja dada oportunidade
230 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 43.
ao contraditório, do ponto de vista psicológico sem dúvida
estará sensivelmente diminuída a possibilidade de o acusado
se defender de verdade. A partir do exemplo anterior,
podemos imaginar como deve se sentir o acusado ao saber
que é o juiz que lhe imputa o crime de furto.
A alteração da acusação equivale à alteração do pedido e
da causa de pedir da ação penal, caso se queira trabalhar
com categorias herdadas do processo civil, e a
implementação da alteração da acusação representa
modificação de elementos capitais da ação, direito do autor.
Ao fazê-lo, isto é, ao se permitir que o juiz altere o teor da
acusação, na verdade o que ocorre é que se admite que o juiz
revolva a substância do direito da parte, que não lhe
pertence. Voltando ao exemplo anterior, podemos imaginar a
posição do acusado diante do quadro criado por uma
acusação do Ministério Público por receptação,
transformada em acusação de furto pelo juiz.
Um contraditório porventura instaurado nestes termos
é irreal, pois não há reação possível se o ato de conformação
da acusação não parte do adversário mas do julgador, ou, de
outra maneira, se o julgador se transforma em adversário. De
que adiantará ao réu receber os autos do processo por oito
dias para falar e, se quiser, poduzir provas (artigo 384,
caput, do Código de Processo Penal brasileiro) se está
evidente que será condenado por furto?
Assinale-se com isso que não se trata de retornar ao
tempo da teoria da individualização da causa de pedir,
superada nesta quadra do desenvolvimento do processo
penal pela teoria da substanciação.231 Em termos gerais,
contudo, podemos aduzir que se a identificação da causa de
pedir, base da pretensão, está determinada pelo suposto de
fato, tal seja, pelo elemento fático invocado, a realidade é que
tal elemento só tem relevância no processo penal na medida
em que está abrigado em uma moldura normativa definida
(tipo penal de crime) e vem descrito, com seus elementos e
circunstâncias, no ato formal de acusação, como exige o
231 Mellado, ob. cit., p. 39.
artigo 41 do Código de Processo Penal brasileiro. Conforme o
caso, matar alguém é crime ou não e poderá caracterizar
ação dolosa ou culposa. Não são irrelevantes as distinções
(homicídio doloso, culposo, latrocínio, indiferente penal por
culpa exclusiva da vítima etc.).
Ao juiz caberá, de acordo com o princípio tantas vezes
aludido — jura novit curia —, a dicção do direito aplicável à
espécie. Assim, ao reconhecer que o fato provado é diverso
daquele imputado ao réu pelo acusador, o juiz não poderá
proferir decisão condenatória. Não é possível tomar o lugar
do juiz nesta tarefa de reconhecer o direito que regula a
situação concreta.
O juiz não poderá, entretanto, levar em consideração
suposto de fato, ainda que verdadeiro, diferente daquele
posto em causa pela acusação, nem tampouco deverá propor
qualificação jurídica distinta daquela apresentada pelo autor
da ação penal se isso significar surpresa para a defesa em
razão das peculiaridades do processo penal, como é o caso do
concurso aparente de normas (de tipos penais coexistentes),
para cuja solução nem sempre doutrina e jurisprudência
estão pacificadas.232
Podemos acentuar que o princípio da substanciação no
processo penal é mitigado, em face do princípio da ampla
defesa.
Apenas critérios de obrigatoriedade da ação penal, de
economia processual e da necessidade de reafirmação do
poder do Estado frente à criminalidade, os dois últimos
tipicamente decorrentes do princípio inquisitório, que
232
Pela atual redação o artigo 383 do Código de Processo Penal brasileiro
permite que o juiz atribua nova qualificação jurídica ao fato imputado ao réu,
para corrigir erro de qualificação, ainda que em razão disso venha a aplicar pena
mais grave. É a denominada emendatio libelli, descrita nestes termos: Art. 383.
O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou
da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.
Com essa redação e a pretexto de corrigir erro de qualificação da denúncia, o
juiz poderá, por exemplo, reconhecer o concurso material entre o crime de falso
e o de estelionato, quando o Ministério Público imputou somente o de
estelionato em virtude de entender que este crime absorveu o falso (crime fim
absorvendo o crime meio). E tudo isso sem a audiência prévia do réu.
repudiamos, conferirão suporte a atitudes do tipo que
autoriza o juiz, de ofício, a proceder à modificação da causa
de pedir.
Em percuciente análise acerca da correlação entre
acusação e sentença, no direito brasileiro, Diogo Malan
talvez seja hoje o único autor a chamar atenção para a
permanência inquisitorial embutida no Código de Processo
Penal de 1941, nesta área específica e para a política de
segurança pública que ela expressa.
Assinala Malan:
―O golpe de Estado de 1937 foi justificado pela
necessidade de se reforçar a autoridade governamental,
garantindo-se a ordem pública, a legalidade e as
instituições sociais – em meio a uma conjuntura de
crise de autoridade, causada pelas tensões sociais: a
autoridade nacional pressupõe uma ordem una e
orgânica, e o princípio da autoridade é reforçado como
um pilar em torno do qual se constrói a
nacionalidade‖.233
Acrescenta Malan:
―As ferramentas que serviram a essa restauração
da autoridade estatal foram o estado de guerra, o
Tribunal de Segurança Nacional, a reforma da Lei de
Segurança Nacional e o próprio Digesto Processual
Penal: o terreno da lei surge, assim, como um espaço
privilegiado para a racionalização da autoridade e
para a ocultação do discurso da violência, uma vez que
este utiliza a linguagem da ordem e da lei‖.234
Ora, quando ocorre de o processo penal assumir as
prerrogativas de Estatuto de Segurança Pública, no lugar de
Código de implementação de garantias constitucionais, o
processo se afasta, naturalmente, do leito seguro e
democrático de um processo de partes, conforme o princípio
233
234
MALAN, Diogo Rudge. A Sentença..., op. cit., p. 4.
Idem.
acusatório, pelo qual responsavelmente o autor avalia e
ajuíza a sua pretensão, consoante a compreensão que detém
da qualificação jurídica dos fatos provados.
Supor que o Ministério Público não saiba qualificar
juridicamente os fatos apurados no inquérito policial é estar
em rota de colisão com a realidade. Eventuais erros materiais
podem ser corrigidos pelo juiz, ouvido o acusador e o réu.
Pontos de vista diferentes sobre a qualificação jurídica,
porém, não podem ser impostos ao acusador, sob pena de o
juiz tomar o lugar dele.
É razoável que se possibilite ao acusador modificar, em
face das provas surgidas durante a audiência, a qualificação
jurídica do fato, quer reconhecendo outro mais grave, quer
reconhecendo outro de igual ou menor gravidade que o
original. Porém, admitir que o juiz o faça afronta o princípio
acusatório, o que não é aceitável, mas se admite, quando
muito, em uma medida de preservação das garantias do
acusado, modificando-se a qualificação jurídica do fato para
outra, que corresponda à infração de igual ou menor
gravidade.
São, contudo, condições sine qua non de validade da
alteração que o fato novo esteja descrito na acusação inicial
(ou no chamado aditamento), portanto deve estar contido
nela com todas as suas circunstâncias, e à defesa deve ser
oferecida oportunidade de debater e, eventualmente, se
entender o defensor necessário, produzir provas, para que
somente então seja proferido decreto condenatório. A
desclassificação de roubo para furto, por exemplo, será
possível porque o fato furto está contido no roubo. Não será
possível, porém, reconhecer uma qualificadora do furto não
descrita de forma expressa na denúncia por roubo.
O ideal, conforme o princípio acusatório, é que apenas
ao autor seja permitido alterar a qualificação jurídica do
fato, em qualquer hipótese. Se o acusador persistir na
posição original, com a qual o juiz não concorda, cabe a este
absolver o acusado, o que não impediria o processo pelo fato
realmente verificado, já que este não foi objeto de
deliberação, com força de coisa julgada.
Aqui, entretanto, mudamos nossa opinião em relação às
duas edições antecedentes do Sistema Acusatório. No início
defendíamos que não afetava a hipótese o princípio da
proibição de bis in idem235 porque o fato julgado,
independentemente da qualificação jurídica que as partes lhe
atribuam, é diferente do fato real, revelado ao longo do
processo.
Não é bem assim, A regra é que ninguém será
processado duas vezes pelo mesmo fato. A exceção em
termos de garantia em prol do acusado só pode favorecer o
acusado. Assim, independentemente de o fato real ser
reconduzido de alguma forma ao tipo de crime expressado
na causa de pedir da ação penal deduzida no processo
concluído, numa relação qualquer de continente a conteúdo
(como no exemplo de furto e roubo, em que o furto está
contido no roubo), o segundo processo está proibido.
A oportunidade de a acusação demonstrar o fato sobre o
qual funda a sua pretensão é única. De acordo com a
Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n.
678/92) ou o acusador demostra a correção da sua pretensão
ou não poderá mais processar o réu.
Assim ocorre, segundo defendemos, como conseqüência
das implicações políticas e jurídicas do princípio do favor
rei, atuando como obstáculo aos abusos que inevitavelmente
poderiam advir da divergência de juízos entre o acusador e o
julgador.
Em conclusão, diga-se também que mesmo o simples
ajustamento da qualificação jurídica da infração penal, em
obediência ao princípio jura novit curia, ainda quando a
petição inicial acusatória descreva minuciosamente o fato,
haverá de ser promovido antes da emissão da sentença,
assim como as partes têm de ser provocadas para se
manifestarem sobre circunstâncias que agravam ou
diminuem a pena, tornando a matéria alvo do debate
contraditório, que é o núcleo fundamental da máxima
235 Ver artigo 8º, nº 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos Decreto nº 678/92.
acusatoriedade.236
Na Espanha, decidiu o Tribunal Constitucional, sobre o
assunto, da seguinte forma:
Correspondiendo, ante todo, al Tribunal la
calificación jurídica de tales hechos en virtud del
principio iura novit curia, sin que pese a ello esa
calificación sea aleja al debate contradictorio, el
cual recae no sólo sobre los hechos, sino también
sobre su calificación jurídica. (STC. 105/1993, de
23 de novembro de 1993)237
Em Portugal, onde há constitucional previsão da adoção
do sistema acusatório, a disciplina da alteração substancial
dos fatos está condicionada à seguinte máxima: Para além
da introdução do facto em juízo, à acusação tem por função
a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do
processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se
entenderem consubstanciarem um crime.238 Assim, há para
236
O artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro dispensa a audiência
prévia da defesa e da acusação nos casos em que o juiz reconhece agravantes
não alegadas pelo autor da ação penal. Isso também viola o princípio acusatório.
237 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 121. Enrique Ruiz Vadillo
também, por sua vez, traz à luz decisão do Tribunal Superior Espanhol,
proferida em 28 de setembro de 1989, cujos termos são, literalmente, os
seguintes: No se puede penar un delito más grave que el que haya sido
objeto de acusación; No se puedem castigar infracciones que no hayan
sido objeto de acusación; No se puede considerar un delito distinto del que
fue objeto de acusación, aunque las penas sean iguales o incluso cuando la
correspondiente al delito innovado sea inferior a la del delito objeto de
acusación a menos que reine entre ellos una patente y acusada
homogeneidad; No puedem apreciarse circunstancias agravantes o
subtipos penales que no hayam sido invocados por la acusación... (El
Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del
Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, pp. 33-34). Acrescenta este
último que o processo penal é um tríptico, sendo imprescindível que exista
um acusador, um acusado e um juiz, o qual não pode ocupar outra posição
que não seja a de julgar, porque, de outro modo, estará sendo, ao mesmo
tempo, acusador e juiz.
238 Isasca, Frederico. Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no
Processo Penal Português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 54.
o juiz limitação temática, traçando-se as fronteiras da
pesquisa das provas. A ampliação da acusação, como
registramos, demanda a iniciativa do acusador e, a partir de
determinada etapa do processo, consentimento do próprio
réu em se ver processado conforme a alteração, dando
origem ao chamado caso julgado de consenso.239
O foco no poder de definição do crime imputado ao réu
e o tratamento dispensado à matéria pelo Código de Processo
Penal brasileiro de 1941, inspirado no Código Rocco,
demonstram que a manipulação das funções processuais
para atribuir ao juiz atividade de parte autora, com
independência da gestão da prova, encarna a política
criminal da inquisitorialidade.
A gestão das provas nas mãos do juiz também
caracteriza a inquisitorialidade. E é assim porque deduzir
provas e deduzir a acusação são comportamentos
processuais das partes que se movem no processo motivadas
por interesses distintos do interesse do juiz. Este é ditado
pela imparcialidade e a presunção de inocência atua como
princípio constitucional de controle dessa imparcialidade.
Modificar o teor da acusação e produzir provas de ofício são
atividades que, em suma, atentam contra a presunção de
inocência.240
239 Isasca, Frederico. Ob. cit., p. 59.
Comissão instituída no âmbito do Miistério da Justiça, mediante Aviso n.
1.151, de 29 de outubro de 1999, presidida por Ada Pellegrini Grinover,
apresentou diversos anteprojetos de reforma do Código de Processo Penal
brasileiro. Entre eles está o que se transformou no Projeto de Lei n. 4.207/01,
que cuida da emendatio libelli e da mutatio libelli, respectivamente previstas
nos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal. Para adequar os citados
dispositivos legais ao princípio acusatório estes passaram a ter a seguinte
redação: Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia
ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em
conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. § 1º. As partes, todavia,
deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a
sentença. §2º. A providência prevista no caput deste artigo poderá ser adotada
pelo juiz no recebimento da denúncia ou queixa. §3º. Se, em conseqüência de
definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão
condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. §4º.
Tratando-se de infração da competência do Juizado Especial Criminal, a este
240
De tudo quanto foi exposto, acredita-se tenhamos
abordado os elementos que emolduram o princípio
acusatório, quer avaliado na estática observação das funções
primordiais no processo, quer em vista da dinâmica
determinada pelas relações sucessivas e ordenadas entre os
principais sujeitos: autor, réu e juiz.
Cabe, do que foi referido, mencionar que a presença, no
ordenamento jurídico, do princípio acusatório, é
fundamental para a constituição do sistema acusatório, mas
não suficiente.
Os clássicos autores, citados na introdução deste item,
tiveram, a nosso juízo, a lucidez de perceber que o princípio
democrático projetado no processo penal não se esgota, tãosomente, no modo como os sujeitos processuais se portam,
em relação à lide ou ao caso penal. É indispensável, também,
estabelecer um estatuto do próprio processo, concernente à
forma como aparece perante a sociedade, na qualidade de
instrumento legítimo de solução deste caso.
Nesta hipótese, as normas e princípios sobre a forma
processual estão reciprocamente vinculados ao modelo de
processo penal democrático, apenas uma das variáveis
possíveis, mas aquela escolhida politicamente para ser
implementada. Aí entram em jogo a oralidade e a
publicidade.
3.2.3. CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA ACUSATÓRIO
serão encaminhados os autos. Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se
entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova
existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida
na acusação, o Ministério Público poderá aditar a denúncia ou queixa, se em
virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública,
reduzindo-se a termo o aditamento quando feito oralmente. §1º. Ouvido o
defensor do acusado e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de
qualquer das partes, designará dia e hora para a continuação da audiência, com
inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de
debates e julgamento. §2º. Aplicam-se ao previsto no caput deste artigo as
disposições dos §§ 3º e 4º do art. 383. §3º. Havendo aditamento, cada parte
poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de três dias. §4º. Não recebido o
aditamento, a audiência prosseguirá.
Com efeito, Ferrajoli destaca que a oposição dicotômica
entre acusatório e inquisitório implica em designar uma
dupla alternativa: de um lado, modelos opostos de
organização judicial; de outro, métodos diferentes de
averiguação judicial.
Do primeiro ponto defluem distintas concepções de juiz
penal, enquanto do segundo dimanam dois tipos diversos de
juízos.241 Na seqüência, adverte o doutrinador que se pode
chamar acusatório a todo sistema processual que concebe o
juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das
partes e o juízo como uma contenda entre iguais iniciada
pela acusação, a quem compete o ônus da prova,
enfrentada a defesa em um juízo contraditório, oral e
público e resolvida pelo juiz segundo sua livre convicção.
A organização da Justiça Criminal, portanto, configura
o ambiente em que o processo será instaurado e se
desenvolverá. E as estruturas processuais terminam
contaminadas pelas modernas burocracias em que se
constituem os Poderes Judiciários atuais, de tal modo que a
Justiça Criminal será mais ou menos acusatória, com
independência da previsão legal do princípio da tripartição
de funções, conforme forem mais ou menos favoráveis a isso
as próprias burocracias estatais.
O princípio acusatório não sobrevive em modelos de
Justiça Criminal dominados pela escrituração. Tampouco
tem espaço em processos sigilosos.
É isso que será examinado nos itens subseqüentes.
3.2.3.1. Da Oralidade
Na lição clássica de Francisco Morato,242 compreendese por oralidade a forma procedimental em virtude da qual
estão reunidos os seguintes caracteres:
241 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 564.
242 Morato, Francisco. ―A Oralidade‖, in Processo Oral, Rio de Janeiro:
Forense, 1940, pp. 1-24.
• a predominância da palavra falada;
• a imediatidade da relação do juiz com as partes e com
os meios de prova;
• a identidade física do órgão judicante em todo
decorrer do processo;
• a concentração da causa no tempo.
Não se concebe procedimento penal no curso do qual
atos de instrução criminal, tal seja, de aquisição e
conservação das provas e de debates sobre o material
incorporado, para o fim de conformação da convicção
judicial, desdobrem-se no tempo, distantes uns dos outros e
praticados perante diferentes juízes.
Desde o interrogatório do acusado, nas hipóteses legais
em que esteja previsto, até a audiência das razões finais das
partes, a concentração dos atos processuais é imperativo de
bom senso e de respeito ao direito ao julgamento justo, o que
demanda, dadas as peculiaridades da expressão oral,
fundamente o juiz sua decisão sobre aquilo com o que
diretamente teve contato.
Deve ser salientado que não é necessário que a sentença
seja proferida oralmente, desde que seus fundamentos
tenham decorrido da força do contato imediato com as
provas, que vão impregnar o raciocínio judicial. Nem
tampouco se dispensa a documentação dos atos praticados.
Porém, o que é virtualmente da natureza do sistema
acusatório, como proposição de uma estrutura voltada à
efetivação do justo processo, é que, consoante há mais de
cinqüenta anos afirmava Chiovenda, a audiência seja
utilizada para o trato da causa.243
Lúcio Bittencourt advertia com precisão que livre
convencimento sem processo oral é pura ficção.244
243 Chiovenda, Giuseppe. ―A Oralidade e a Prova‖, in Processo Oral, Rio de
Janeiro: Forense, 1940, pp. 1-24 e 129-149.
244 Lúcio Bittencourt apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito
Processual Penal, vol. I, p. 73.
Há que se considerar também, como faz Hassemer,245
que o caráter do processo penal reflete com grande clareza a
racionalidade de uma cultura jurídica e a discussão política
acerca das posições jurídicas na produção do caso e na
preparação da sentença,246 postulado fundamental em
nosso pensamento a respeito do sistema acusatório. O
processo penal tem caráter histórico e político.
Este tipo de processo se orienta em direção a uma
espécie de procedimento que assegure a máxima
contraposição dialética, sem perder de vista a noção básica
de que não há dialética sem possibilidade de diálogo (dia:
reciprocidade; logos: razão). E o diálogo pressupõe a
compreensão do caso e das posições que os sujeitos
processuais legitimamente devem ocupar, assim como a
existência de um espaço onde possa ser travado.
Explicando: a ênfase na oralidade como componente
democrática do processo penal e elemento constitutivo do
sistema acusatório tem a ver com o reconhecimento de que
os métodos de aplicação do direito, ou melhor, de
interpretação das regras jurídicas e de sua efetiva aplicação
aos casos concretos, não abrangem toda a atividade
intelectual do juiz quando sentencia.
Os que conhecem a atividade de decidir têm clara a
idéia de que a valoração dos fatos pelo juiz não se expressa
de forma completa na sentença. Novamente recorrendo a
Hassemer, vale dizer que haverá sempre uma parte de dita
valoração que permanece oculta, que fica no âmbito da
CONVICÇÃO ÍNTIMA.247 Nem mesmo o dever de motivação
das decisões tem o poder de fazer revelar todas as forças que
combinaram para levar o julgador a adotar determinada tese.
Mais do que isso, na constituição da conclusão a
propósito da existência da infração penal e da
responsabilidade do imputado há a tendência de o juiz levar
245 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch,
1984.
246 Ob. cit., p. 172, tradução livre.
247 Hassemer, Winfried. Ob. cit., p. 145.
em conta as impressões registradas por ele durante o
processo, formando sua convicção com base nelas, mas
explicitando-a por meio de referência a métodos de
interpretação — gramatical, histórica, teleológica ou
sistemática — que em verdade servem apenas para expor
racionalmente a própria conclusão, definida com
anterioridade.
Os que têm experiência forense sabem que não
raramente as partes acreditam, em virtude do modo como o
juiz dirige a audiência, que determinado tipo de prova está
exercendo significativa influência na formação da convicção
do julgador e acabam se surpreendendo quando leêm a
sentença e descobrem que para o juiz a prova decisiva era
outra, sobre a qual as partes não perceberam qualquer
espécie de atenção diferenciada. Isso ocorre quando o
mesmo juiz preside o processo do início ao fim e é ainda
mais grave e perigoso quando são diferentes juízes, cada qual
participando de uma etapa processual, os responsáveis pela
aquisição e ingresso da prova no processo e por sua avaliação
definitiva.
Daí Hassemer distinguir, a nosso juízo com razão, entre
os métodos de produção e de apresentação do resultado do
processo, relacionando as chamadas técnicas de
interpretação ao último caso.248
Para que a análise dos casos penais não se perca em um
círculo de interpretação de textos — dos textos que
registram, nem sempre fielmente, os depoimentos das
testemunhas, aos das razões das partes e da sentença — é
indispensável que o diálogo processual tenha lugar em um
ambiente apropriado, no qual as provas sejam produzidas, as
partes possam debater livremente e o juiz decida
compreendendo na maior e melhor dimensão possível o que
provavelmente aconteceu.
A interpretação de textos será sempre atribuição de
significados pelo intérprete; no entanto, como sublinha Lage,
248 Hassemer, Winfried. Ob cit., p. 148.
todo texto implica versões ou teorias sobre os fatos,249 razão
por que não existe texto descomprometido, o que em
processo penal pode constituir veículo de injustiças e de
perseguição política, social ou econômica.
A oralidade deixa de ser, exclusivamente, uma questão
de predominância da palavra falada para se constituir em
exigência de que uma causa não seja decidida por juiz que
não haja tido contato direto com as provas e com os
argumentos das partes, em um ambiente capaz de
proporcionar condições ideais de diálogo.
Conseqüência do que está assinalado é que, além da
natural identidade física do juiz, o julgamento dos recursos
deve ficar restrito ao conhecimento de matéria
exclusivamente jurídica, a não ser que seja permitido às
partes desenvolver atividade probatória em segundo grau de
jurisdição; ademais, o emprego das modernas tecnologias de
comunicação terá de considerar a possibilidade de o juiz,
destinatário das provas, ouvir, pessoalmente, as testemunhas
mas não se deve aceitar que a inquirição delas, do réu ou
mesmo que toda audiência tenha lugar em um ambiente
hostil à liberdade de todos os envolvidos.
O Tribunal Constitucional Espanhol, na sentença
96/1987, decidiu que o vínculo entre o Estado de Direito e a
exigência de imparcialidade do julgador impunha a
declaração de nulidade de julgamento levado a cabo em
prisão de segurança máxima, onde supostamente foram
cometidas pelos funcionários as agressões contra os
detidos.250
Não custa lembrar, com María Josefina Martinez, que a
tensão entre forma escrita e oral do processo penal foi
resolvida no século passado (Séc. XX), em favor da forma
escrita, porque os autos do processo (registro escrito dos atos
processuais) tornaram-se espécie de ―produto direto‖ da
249 Lage, Nilson. Controle da Opinião Pública, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 103.
250 López Ortega, ob. cit., p. 87.
tradição burocrática do Estado moderno.251
A admissão de que a forma oral faz diferença – e não é
mero capricho da moderna doutrina do processo penal -, está
ditada pela compreensão da ideologia que orientou a
escrituração no início do Séc. XX.
Com efeito, como bem ressaltou Josefina Martinez, a
forma escrita foi implementada como resultado do
reconhecimento da superioridade da razão. A suprema
capacidade humana de compreender a sua existência e
perceber as leis da natureza que a regem refletia a postura
científica positivista dominante no início do século passado.
Quebrar as amarras com o divino (com suposta ordem
natural emanada de Deus) e descobrir fórmulas racionais de
regulação de todos os fenômenos passou a ser a obsessão
daqueles tempos.
O governo dos homens também haveria de ser
orientado pela racionalidade e as burocracias deveriam
exprimir esse domínio da razão em todas as etapas da gestão
pública dos conflitos.
Paradoxalmente, a realidade é que em termos de
processo penal a burocracia da Inquisição fora a primeira a
se instalar na Europa, muito antes do sucesso do positivismo
e do direito natural fundado na razão. E a funcionalidade da
burocracia do Sistema de Justiça Criminal da inquisição,
com a previsão de seus recursos de ofício e a forma escrita
dos atos processuais, revelara-se eficiente mecanismo de
controle social.252
Assim, apesar de um primeiro momento de Reformas
Processuais ter-se voltado à oralidade,253 o século XIX e o XX
251
JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, in: Sistemas Judiciales, Ano 4,
n. 7, Buenos Aires, Centro de Estudios de Justicia de las Americas – CEJA,
2004, p. 4.
252
MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires,
Editores del Puerto, 2002, p.261.
253
Vale a pena acompanhar a resenha de Franco Cordero acerca do
desaparecimento e da reencarnação da Ordenação Criminal francesa de 26 de
agosto de 1670, eliminada entre 1790 e 1800 e ressurgida dos debates
viram florescer os processos penais da matriz européia
continental (de que o nosso Código de Processo Penal de
1941 é herdeiro direto) construídos em cima de estruturas
burocráticas da inquisição.
Como foi dito, a forma escrita subtrai o contato do juiz
com acusado e testemunhas. Incensada pelo culto à razão,
faz supor que este contato é desnecessário: afinal, o que a
visão direta da audiência pode ministrar que já não esteja
nos autos?! O que não está nos autos não está no mundo!
O mesmo poder de dominação que a Justiça Eclesiástica
exercia por meio da Inquisição, em um mundo de poucos
letrados e multidões de analfabetos, passou a ser exercido
pelos órgãos do Estado, que manejavam (manejam) a
linguagem técnica do Direito (e ainda mais técnica dos
autos) para impor o Poder do Estado ao ditar decisões
penais.
Novo paradoxo: ninguém poderá escusar-se de cumprir
a lei por alegar ignorância, desconhecimento da lei! Ainda
que seja analfabeto. Todavia, as fórmulas escritas dos
procedimentos penais estão acessíveis a poucos! Como
controlar o conteúdo de justiça da sentença penal se não se
compreende os termos da sentença fora do linguajar técnicojurídico? E, também e mais importante, como participar do
―diálogo‖ processual se a maioria das intervenções no
processo é escrita e, por isso, essas intervenções exigem
habilidade especial de que só advogados, Ministério Público
e juízes são dotados?
A oralidade converte-se em condição de participação
efetiva no processo. Sem a mediação da forma escrita o
acusado poderá se fazer ouvir, a vítima e as testemunhas
também, e as decisões não terão como se ocultar em
linguagens estranhas à vida cotidiana.
Neste ponto percebe-se que oralidade não é mera
questão de forma. A matriz acusatória depende dela para
definir os papéis concretos exercitados pelos sujeitos
legislativos, na forma do Código de Instrução Criminal de 1808. CORDERO,
Franco. Procedimiento..., op. cit., p. 26-59.
processuais. A defesa oral, na frente do réu, exige que o
defensor demonstre conhecimento da causa e se empenhe
em busca do resultado mais favorável ao acusado. Não
bastam reiterações de manifestações escritas anteriores. Da
mesma maneira a acusação deverá se posicionar sobre a
prova. E o juiz exporá as razões de sua decisão. A troca de
papéis (mutatio libelli) entre acusação e juiz é bastante
dificultada.
É bem verdade que a cultura autoritária, legado da
Inquisição, produz suas permanências. Assim, é válida a
advertência de Josefina Martinez quanto à tendência de
transformar os processos orais criados com as Reformas na
América Latina em processos escritos, na prática, com a
recolocação da escrituração no centro mediante recurso a
apresentação de memoriais após as audiências.254 O cuidado
está em não permitir que isso signifique a renovação da
centralidade da escrituração, com todos os defeitos acima
enunciados, preservando-se a identidade física do juiz e o
pronunciamento fundamentado das partes.
Meios mecânicos ou eletrônicos de registro fiel das
intervenções de partes e testemunhas contribuirão, por
certo, para a adoção da filosofia da oralidade.
3.2.3.2. Da Publicidade
A publicidade também se insinua como característica do
sistema acusatório, na medida em que o segredo, como ficou
assentado em outra passagem, é compatível, como regra
geral, exclusivamente com regimes autoritários e processos
penais inquisitórios.
I. DA PUBLICIDADE TRADICIONAL
Cumpre dizer, em abono ao acima mencionado, que a
publicidade tanto pode ser analisada como decorrência da
254
JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, op. cit., p. 6.
necessidade de participação do público na gestão da coisa
pública, inclusive, evidentemente, na gestão das decisões
judiciais sobre os casos penais, como pode ser vista na
condição de dar ao público, na qualidade de espectador,
satisfação a respeito da maneira como os agentes do Estado
exercem as suas funções.
Neste último caso, frisa com seguro fundamento Vicente
Greco Filho, atende a publicidade à função de garantia das
outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei,255 por
cujo meio podem os cidadãos controlar, de forma adequada,
o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos,
além da moralidade e impessoalidade da ação estatal. Sem
perigo inaceitável para o sistema, a publicidade fica limitada
somente nas situações pertinentes à preservação de outros
direitos fundamentais, por meio da coordenação do exercício
de tais direitos, de acordo com o princípio da
proporcionalidade.
Justamente em virtude das restrições designadas
expressamente na Constituição da República de 1988,
classifica-se em publicidade para as partes e em geral e, sob
outro aspecto, em imediata e mediata, definindo-se a
publicidade interna como orientada com exclusividade às
partes.256
A eleição da publicidade como elemento comum e
permanente do processo permite-nos chegar à conclusão de
que, contemporaneamente, o próprio processo pode ser
definido como procedimento público em contraditório.
Reduzida a publicidade, fora dos casos expressamente
previstos nas Constituições e nas leis (no Brasil, na
Constituição da República), os atos processuais não estarão
aptos a produzir efeitos jurídicos, sendo, por isso, inválidos.
De acordo com o magistério de López Ortega, a
publicidade para as partes, ou interna, significa que todos os
255 Greco Filho, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades, São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 113.
256 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, p.
75.
atos processuais das partes, do juiz e dos demais sujeitos
deverão ser conhecidos na totalidade e tempestivamente pela
parte adversa,257 razão por que defende que este modelo de
publicidade está ligado ao princípio do contraditório.
É evidente que os atos de investigação criminal
(inquérito policial e outros) dependerão, na maioria das
vezes, da preservação do sigilo para que conduzam a
resultados positivos. Pode-se dizer, então, que estes atos,
embora procedimentais e sujeitos ao princípio da legalidade,
não têm valor processual, não são atos processuais, e,
independentemente de passarem pelo filtro do contraditório,
nunca estarão dotados da aptidão para produzir efeitos
jurídicos. Todavia, no curso da investigação preliminar, atos
processuais de natureza cautelar poderão ser necessários e
deverão ser praticados. Neste caso, a publicidade interna
funciona como referimos anteriormente, ao tratarmos da
Defesa, de forma diferida, muito embora não se possa
recusar à Defesa acesso às informações porventura obtidas e
aos procedimentos adotados por ordem judicial.
Em perspectiva parecida colocam-se as questões dos
procedimentos híbridos, que não são exclusivamente
investigação criminal (etapa de preparação para o exercício
da ação penal) e também não são processos penais em sua
inteireza, pois nem sempre estão munidos de eficácia
jurídica para dar ensejo a soluções de mérito definitivas,
capazes de submeter decisões à qualidade de coisa julgada
material.
No Brasil, temos o termo circunstanciado, previsto no
artigo 69 da Lei no 9.099/95, que substitui o inquérito
policial em relação às chamadas infrações penais de menor
potencial ofensivo. Trata-se, sem dúvida, de modalidade de
investigação criminal cuja instauração define a priori quem é
o investigado e quem é o suposto ofendido, de sorte a
estabelecer posições processuais que serão importantes
conforme o desenrolar do procedimento.
A rigor, como procedimento de investigação, o termo
257 López Ortega, ob. cit., p. 41.
circunstanciado deveria estar protegido pelo sigilo peculiar a
toda investigação criminal. No entanto, as regras dos artigos
74, 75 e 76 da Lei, prescrevendo a possibilidade de o
investigado, do ofendido e do Ministério Público chegarem a
acordo sobre a composição do conflito em torno de infração
penal de menor potencial ofensivo, transação a ser
homologada por sentença, gera a necessidade de dotar estes
procedimentos do mesmo tipo de publicidade que
acompanha os processos penais tradicionais.
De outra maneira, estaríamos subtraindo do público os
mecanismos de solução destes conflitos de interesses, cuja
solução, em que pese não importar em aplicação de pena
privativa de liberdade, poderá representar frustração aos
princípios de moralidade, legalidade e impessoalidade.
Convém ressaltar que no caso brasileiro a Emenda
Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, modificou
a redação do artigo 93, inciso IX, da Constituição da
República, no trecho em que trata do sigilo.
A redação original era a seguinte:
Art. 93. [...]
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse
público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às
próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.
Este dispositivo está em harmonia com o artigo 5º,
inciso LX, da Constituição da República brasileira, que não
foi alterado pela referida Emenda:
Art. 5º. [...]
LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos
processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse
social o exigirem.
Pela nova redação, trazida pela Emenda 45, o artigo 93,
inciso IX, da Constituição da República brasileira passa a ter
a seguinte redação:
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as
decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a
presença, em determinados atos, às próprias partes e seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a
preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
não prejudique o interesse público à informação.
Em nossa opinião, a mudança do dispositivo
constitucional há de ser interpretada com todo cuidado. A
regra permanece sendo a publicidade dos atos processuais. A
exceção não pode prejudicar o direito de defesa a ponto de
inviabilizá-lo. Portanto, a cláusula ―em casos nos quais a
preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
não prejudique o interesse público à informação‖ há de ser
interpretada como exigência de ponderação dos interesses
em jogo, com prevalência do interesse público à informação.
Somente quando o predomínio deste interesse público
transformar-se em causa de dano à honra, imagem ou
qualquer outro direito protegido por estar inserido na esfera
de intimidade da pessoa afetada (que, por exemplo, pode ser
a vítima do processo), caberá ao juiz, fundamentadamente,
restringir o sigilo.
Não será possível inverter a regra de tutela prevista na
Constituição para restringir sempre a publicidade e limitar
os casos de presença do acusado em sala de audiências, e
somente em casos excepcionais autorizar a presença dele.
A publicidade externa será tratada no item subseqüente,
tendo em vista as características dos atuais meios de
comunicação.
II. DOS JUÍZOS PARALELOS DA IMPRENSA
É preciso salientar que nos dias atuais a nota de
democracia referida ao moderno processo penal há de
propor nova reflexão no tocante à publicidade, por conta da
modificação tanto da esfera pública, que não mais se
restringe ao Estatal ou não se confunde com ele, como em
virtude da verdadeira revolução proporcionada pelo
desenvolvimento das tecnologias de comunicação e sua
forma de penetração e influência na complexa sociedade de
massas.
Habermas recorda a trajetória liberal do princípio da
publicidade, focalizando o fato de, nos tempos das
revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, na Europa
Ocidental, a publicidade procurar submeter a pessoa ou a
questão ao julgamento público, tornando as decisões
políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública.258
Nos dias de hoje, porém, o controle empresarial dos
meios de comunicação de massas, a lógica da
competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a
distorção da própria noção de publicidade, que, antes de
incentivar a participação democrática da maioria das pessoas
relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país, anula
essa participação, constroem uma nova realidade,
paradoxalmente virtual ou espetacular.
No mesmo texto, Habermas provoca nossa observação,
acentuando que:259
Na mudança de função do Parlamento, tornase evidente a natureza problemática da
‗PUBLICIDADE‘ enquanto princípio de organização
da ordem estatal: de um princípio de crítica
(exercida pelo público), a ‗PUBLICIDADE‘ teve
redefinida a sua função, tornando-se princípio de
uma integração forçada (por parte das instâncias
demonstrativas — da administração e das
associações, sobretudo dos partidos). Ao
deslocamento plebiscitário da esfera pública
parlamentar corresponde uma deformação no
consumismo cultural da esfera pública jurídica.
Com efeito, os processos penais que são
suficientemente
interessantes
para
serem
documentados e badalados pelos meios de
comunicação de massa, invertem, de modo
análogo, o princípio crítico da ‗PUBLICIDADE‘, do
258 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984, p. 235.
259 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, ob. cit., pp. 241-242.
tornar público; ao invés de controlar o exercício da
justiça por meio dos cidadãos reunidos, serve cada
vez mais para preparar processos trabalhados
judicialmente para a cultura de massas dos
consumidores arrebanhados.
Garapon igualmente adverte para o poder (contrapoder)
da mídia e a maneira como é empregado especialmente nos
casos penais,260 ao tempo em que Pierre Bourdieu analisa
com competência a influência da sociedade espetacular, da
ansiedade midiática e da informação como mercadoria de
consumo sobre os juízes, destacando que há aqueles que nem
sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das
normas internas do campo jurídico mas que podem servirse da televisão para mudar as relações de força no interior
de seu campo e provocar um curto-circuito nas hierarquias
internas.261
Nos mesmos moldes, em 1995, chamávamos atenção
para isso no artigo ―Opinião Pública e Processo Penal‖,262
preconizando nova postura diante do fenômeno da mídia e
das suas relações com o processo penal.
A exploração das causas penais como casos
jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva
à constatação de que, ao contrário do processo penal
tradicional, no qual o réu e a Defesa poderão dispor de
recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em
igualdade de posições e paridade de armas com o acusador
formal, o processo paralelo difundido na mídia é superficial,
emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos
igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista.
A disparidade de tratamento que, em muitas ocasiões, é
260 Garapon, Antoine. Juez y Democracia, Espanha: Flor del Viento, 1997, pp.
90-110.
261 Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.
81.
262 Prado, Geraldo. ―Opinião Pública e Processo Penal‖, in Ensaios Críticos
sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 1995.
tratada como cobertura isenta e lisa do meio de
comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face
dos investigados quando porventura estes integram ou são
vistos como parte das elites políticas, econômicas ou
intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir
algumas danosas conseqüências: a presunção de inocência
sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é
difundida como da pessoa responsável pela infração penal; e
em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos
têm de suportar durante o período de exposição do caso pela
mídia transfigura os procedimentos seculares de apuração e
punição, passando subliminarmente a idéia do caráter
obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se
soma a percepção do processo penal como meio demorado
de se fazer justiça em comparação com a ―célere‖ e ―perfeita‖
investigação da mídia.
É indiscutível que em semelhante situação o devido
processo legal e a liberdade de imprensa sofrem e assim esta
última, que se apresenta como direito civil elementar em
uma sociedade democrática, pode terminar produzindo em
seu extremo aquilo que deveria evitar: um modelo
autoritário de exercício de poder, em virtude de que os
procedimentos acabam tendo valor exclusivamente formal.
Convém aprofundar um pouco mais a análise para
trazer à tona a questão dos procedimentos ilegais de
apuração dos fatos, de que os meios de comunicação se
socorrem em muitas oportunidades, e que transmitem a
imagem do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga
verdade real, agora com nova roupagem), amplamente
documentado e provado, supostamente cabendo à Justiça
tão-só sacramentar o veredicto de condenação e punir o
culpado.263
Como consignado na primeira parte deste trabalho, a
263
Renovo aqui a sugestão da leitura do texto de Aury Lopes Jr. sobre
evidência, prova, tempo e processo penal. Introdução Crítica ao Processo Penal:
Fundamentos da Instrumentalidade Garantista, Rio de Janeiro, Lumen Juris,
2004.
organização do sistema de direitos fundamentais em sua
etapa inicial considerou a necessidade histórica de conter o
poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes nas
liberdades públicas.
Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao
Estado são conferidos poderes cujo exercício implica em
virtual interferência na esfera privada das pessoas,
ameaçando o status de dignidade de que devem ser
portadores todos os seres humanos, independentemente de
quaisquer outras considerações.
No plano do processo penal, a proibição do emprego da
tortura, a garantia da inviolabilidade física, do domicílio, das
comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras
destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos
indivíduos, sendo que a crônica do exercício arbitrário do
poder registra o emprego do processo penal como forma de
exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis,
naturalmente ao mesmo tempo em que se procurava
controlar as ações que realmente atentavam contra
interesses expressivos das comunidades.
Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o
poder no instante de encontrar um pretexto para
excepcionar o emprego de meios processuais racionais e
éticos de apuração das infrações penais, de sorte que a defesa
social fundamentou discurso de compressão de exercício de
direitos fundamentais em condições de justificar o processo
penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na
Europa Ocidental.
Apesar disso, o movimento de internacionalização dos
direitos fundamentais, iniciado após o fim da Segunda
Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível
conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes
direitos, obrigando o Estado a perseguir o delito e punir o
delinqüente com as armas dispostas em um regime de estrita
legalidade e eticidade.
Ocorre que o desenvolvimento da comunicação de
massas, em um contexto de sociedade capitalista e tomando
a forma cada vez mais acentuada de empresas transnacionais
de comunicação (as grandes corporações, que monopolizam
estes meios), edificou novo tipo de poder, neste caso fora do
Estado.
A lógica de freios e contra-pesos não funciona em
relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em
virtude do consumo massivo das informações que veiculam.
O emprego da censura não é aceitável, pois no lugar de
eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o
extermínio da liberdade de informação e expressão.264
Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento
geral das corporações do ramo, a liberdade de imprensa é
ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em
importante medida a liberdade de informação de que fazem
uso os operadores da imprensa e que tem sido fundamental
para esclarecer as pessoas (detentoras do direito a serem
informadas) a respeitos de fatos relevantes da vida pública e
social.
Com base nisto, parece que o controle das situações de
conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal
está em se proibir à imprensa aquilo que é igualmente
proibido ao Estado, isto é, fazer uso de informações obtidas
criminosamente.
Como a censura prévia é impossível,265 duas alternativas
podem ser consideradas: o recurso aos mecanismos de
responsabilidade tradicional, de natureza reparatória; e a
intransigente proibição de que as partes do processo lancem
mão das provas obtidas dessa maneira, a qualquer título.
Ademais, a fidelidade ao sistema acusatório implica em
estipular que a sede para a solução dos conflitos de
264
Sobre censura é indicada a leitura de Liberdade de Informação e o Direito
Difuso à Informação Verdadeira, de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 129-135, que no mesmo trabalho
pesquisa o projeto da chamada ―Lei da Mordaça‖.
265 López Ortega refere a experiência do direito inglês, com as limitações
prévias à liberdade de informar asseguradas pelo emprego da medida
denominada contempt of court, prevista no Contempt of Court Act, de 1981.
Assinala que na Grã-Bretanha o interesse do público na liberdade de expressão
deve ceder ante o interesse do público de não impedir ou ameaçar gravemente
o curso da justiça. Ob. cit., p. 70.
interesses de natureza penal é — e sempre deverá ser — o
processo judicial. Portanto, o ponto de vista defendido em
―Opinião Pública e Processo Penal‖, em 1995, continua
válido. Nos casos de intensa exploração pela mídia, é
conveniente que se proceda ao desaforamento temporal,
suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o
estado de excitação social.
Finalmente, visando resguardar a coerência interna
entre os diversos elementos constitutivos do sistema
acusatório, quando confrontados com a publicidade pósmoderna, convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo
qual, em virtude da ordem ministerial de 27 de novembro de
1959, completada pelo ofício circular de 22 de abril de 1985,
o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados
escritos, destinados à imprensa, a fim de evitar informações
errôneas.266 A propósito destes comunicados, deve a lei
garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer
uso de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a
liberdade de informação como também o exercício desta
liberdade verdadeiramente como função social.
É sempre bom lembrar que as portas fechadas aos
esclarecimentos públicos
—
que
devem
ocorrer
excepcionalmente, em casos de repercussão, quando
flagrantemente uma informação tida como errônea ganha
curso livre e é capaz de conformar a opinião pública — são
ultrapassadas por conta de práticas clandestinas,
insuscetíveis de serem controladas.
O processo penal democrático necessita da publicidade
dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se
coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores
que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir
os excessos.
3.2.4. A TÍTULO DE CONCLUSÃO
São estas, em síntese, as características de sistema e
266 López Ortega, ob. cit., p. 74.
princípio acusatórios, pesadas e sopesadas as correntes
doutrinárias envolvidas em seu estudo. Várias também são,
como vimos, as opiniões, algumas das quais são até mesmo
opostas ou conflitantes entre si, motivo por que é
conveniente encerrar este tópico com a advertência de José
António Barreiros:267
Não há, assim, um conceito aprioristicamente
fundado de estrutura acusatória — a que os
concretos ordenamentos processuais penais se
tenham que sujeitar — mas uma filosofia da
máxima acusatoriedade possível, que só após a
análise especificada de cada ordenamento
processual
penal
se
poderá
delinear
concretamente no que à sua caracterização
fundamental respeita.
A aferição da constitucionalidade de um
sistema processual penal passa, deste modo, não
pela subsunção estática dos institutos jurídicos
concretos que ela admita aos comandos abstractos
da Constituição mas pela análise ponderada da
respectiva estrutura constitutiva, tendo em vista
recortar-lhe os grandes princípios estruturadores,
reconstituir-lhe o jogo de inter-relações dos vários
agentes nele participantes, extractar-lhes os
módulos, fases e graus de procedimento.
Trata-se, ao invés de muitos outros casos em
que a constitucionalidade esteja em causa, de
aferir um sistema, com toda a globalidade de
inter-relações, uma estrutura, com toda a
complexidade do seu modo particular de
configuração.
267 Barreiros, José António. ―A Nova Constituição Processual Penal‖, in
Portugal — O Sistema Político Constitucional. Mario Batista Coelho
(coord.), Lisboa: Instituto de Ciências Jurídicas, 1989, p. 769.
4. A Eleição
Acusatório
Constitucional
do
Sistema
No Brasil, certamente não é tarefa simples assinalar
com precisão que sistema processual penal vigora ou em
outras épocas que sistema imperou. A forma de definir a
questão passa pelos interesses que movem os juristas,
motivados pelo sentido e função que atribuam ao Processo
Penal e pela maneira como vivem ou viveram a experiência
política do seu tempo,
4.1. Breve Histórico do Processo Penal Brasileiro
Na verdade, até mesmo o estudo da história do processo
penal no Brasil, e por conta disso o estudo dos sistemas
processuais penais, não é fácil, na medida em que o olhar do
pesquisador tantas vezes está condicionado às formas mais
visíveis nos dias atuais, resultantes da predominância
cultural, política e econômica de origem européia.
Do modo de enxergar a sociedade e os mecanismos de
composição dos conflitos de natureza penal e de solução dos
casos penais é possível deduzir uma maneira de ver o
processo penal brasileiro aceita passivamente como natural.
A partir dessa forma naturalizada de enxergar o processo
penal emitem-se juízos de valor e se consideram — ou não —
válidas e científicas determinadas experiências históricas
com exclusão de outras, sobre as quais não é raro a doutrina
sequer dedicar alguma mínima atenção.
É o que ocorre com as práticas penais mais antigas. Em
realidade, se o esquecimento ou falta de curiosidade sobre os
tempos primitivos, no Brasil, pode haver sido gerado pelo
que Eduardo Galeano designou como o fato de até que os
leões tenham seus próprios historiadores, as histórias das
caçadas continuarem glorificando apenas o caçador, é
importante, em uma perspectiva crítica, resgatar a história
oculta, pelo que pode nos ensinar de nós mesmos e das
alternativas que a ordem social, política e jurídica tem
condições de oferecer.
Neste contexto, quase sempre olvidamos que os
portugueses, ao chegarem nestas terras, encontraram uma
população de cerca de dois milhões de pessoas, que
ocupavam a Costa Atlântica e tinham a partilhar, em
circunstâncias
desconhecidas
para
os
europeus,
características comuns.1
É da tradição dos nossos estudos jurídicos, talvez para
não termos de refletir sobre as condições e as conseqüências
do genocídio perpetrado desde o ciclo das grandes
navegações, nada dedicarmos a esta quadra da nossa vida
política e social ou, quando muito, situarmos o estudo do
período indígena e dos índios de um modo geral como
atividade secundária e não influente, situada na ante-sala de
um edifício maior onde reside a escravidão negra.2
Nilo Batista acrescenta a estes aspectos duas outras
dificuldades, opostas agora aos que se animam ao estudo das
práticas penais no direito indígena: de uma delas falamos
quando abordamos o desenvolvimento das estruturas de
composição dos conflitos nas sociedades simples e consiste
na ausência de distinção entre um direito penal e um direito
civil e, conseqüentemente, entre métodos específicos de
resolução dos conflitos que eventualmente se verifiquem. A
diferença não se resume aos métodos ou procedimentos e
envolve uma concepção de organização social e econômica
homogênea e coletivista, em relação à qual as demandas por
justiça acabam sendo de tipo diverso; da outra pode-se dizer
que se trata da técnica de interpretação das práticas penais
mediante a correta aplicação daquilo que foi chamado de
raciocínio ou pensamento pré-lógico.3
Pode-se extrair para o nosso estudo, todavia, a
1 Ribeiro, Darcy. Diários Índios, São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 12.
2 Monteiro, John Manuel. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens
de São Paulo, São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 8.
3 Batista, Nilo. ―Práticas Penais no Direito Indígena‖, in Revista de Direito
Penal, vol. XXXI, Rio de Janeiro: Forense, 1982, pp. 75-86.
constatação que os nativos organizavam-se em conjuntos
tribais, com lideranças bélicas mas responsáveis pelo
provimento de decisões da vida material e social, que
estavam sempre sujeitas ao consentimento de seus
seguidores.
Ao lado dos rituais místicos e das guerras entre tribos,
decisivamente influentes na ordem social, dada a
fragmentação política existente, havia a propriedade comum
dos meios de produção, despreocupada do sentido de
circulação de bens e acumulação de riquezas que está na base
da organização produtiva capitalista.4
Com tal conformação social, não é de estranhar que as
situações de conflito segundo a nossa percepção não
merecessem dos indígenas a atenção que lhes dispensamos,
salvo quando derivadas da ação de pessoas de outros grupos
sociais, gerando aí confrontos e guerras.
Ainda assim, pelo que disso resultou, o conjunto destas
práticas pode ser interessante quando visto no contexto da
convivência com costumes europeus. Se o processo de
expansão cultural dos portugueses, difundido no Brasil em
virtude da dominação político-econômica e da subjugação
das populações nativas, determinou o desenrolar histórico
adiante analisado, não é inviável do ponto de vista da
antropologia lançar mão da idéia de sistemas de adaptação,
desenvolvida entre outros por Darcy Ribeiro,5 para
considerarmos a experiência da chamada República dos
Guaranis (1610 — 1768).
4 Colocando em termos adequados a questão da influência que a interação com
os portugueses e a suposta influência destes últimos podem haver tido sobre a
ordem econômica indígena, Monteiro salienta que A oferta de gêneros por
parte dos índios (aos colonos) não foi... uma simples ‗resposta‘ econômica a
uma situação de mercado... Assim, cabe ressaltar que o escambo ganha
sentido apenas na medida em que se remete à dinâmica interna das sociedades
indígenas. Longe de se enquadrarem no contexto de uma economia de
mercado em formação, as relações de troca estavam vinculadas
intrinsecamente ao estabelecimento de alianças com os europeus (ob. cit., p.
32), estratégia que se revelou desastrosa e contribuiu para o declínio intenso da
população nativa, submetida ao processo de incorporação da cultura européia.
5 Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório, p. 68.
Com efeito, a República dos Guaranis, instituída no sul
da América do Sul, em área parcialmente compreendida em
território brasileiro, nos dias atuais, caracterizou-se pela
manutenção dos aspectos igualitários da ordem econômica
indígena, englobando, por princípio de fraternidade e em
consideração a inimigos comuns, significativa parcela de
povos que antes viviam em antagonismo.
Talvez comunista demais para os cristãos burgueses ou
cristã demais para os comunistas da época burguesa, como
salientou Lugon,6 a comunidade então estabelecida conheceu
um modelo de direito penal com as características das
práticas penais indígenas, mencionadas por Nilo Batista,
mas com a mediação efetiva de procedimentos em virtude
dos quais um homem presumivelmente culpado era
conduzido ao juiz, sem correntes nem algemas de espécie
alguma, por muito grave que fosse o delito. Nenhuma pena
era aplicada arbitrariamente ou sem prévio inquérito.
Cada
caso,
mesmo
pouco
importante,
era
conscienciosamente estudado. As testemunhas eram
ouvidas e acareadas.7
Comparada com a violência da justiça pública que
estudaremos em seguida, herdada de Portugal e Espanha, e
mesmo com a brutalidade da justiça privada, feudal,
implementada inicialmente pelos donatários das capitanias
hereditárias e depois pelos senhores de escravos, não há
dúvida de que a justiça dos guaranis e dos jesuítas
representou inestimável registro de progresso em direção à
humanidade.
Do ponto de vista hegemônico na doutrina, começamos
a nossa história de independência processual penal quase
simultaneamente com a história da nossa independência
política. A Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador,
depois da dissolução autoritária da Assembléia Constituinte,
trouxe, em seu artigo 179, a previsão dos denominados
6 Lugon, Clovis. A República Comunista Cristã dos Guaranis, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977.
7 Lugon, Clovis. A República Comunista Cristã dos Guaranis, ob. cit., p. 93.
direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros,
estabelecendo significativas garantias, conforme o espírito
liberal que impregnou o século XIX.
À euforia liberal correspondeu, no plano específico do
processo penal, a edição das Decisões nos 78 e 81, do
Governo, determinando aos juízes a fundamentação das
sentenças e declarando a incompetência, para funcionar no
julgamento, daqueles que houvessem atuado na fase de
devassa. Em 1832, finalmente, editou-se o Código do
Processo Criminal de Primeira Instância, o primeiro Código
de Processo Penal brasileiro.
Pierangelli destaca, argutamente, que toda e qualquer
crítica que se faça ao Código do Processo Criminal do
Império, deve ter em conta o momento histórico que era
vivido.8 Por essa razão, se considerarmos a brutalidade dos
procedimentos das Ordenações Filipinas haveremos de
acatar a tese da evolução do sistema processual que as
sucedeu, em que pese a intensa concentração de poderes nas
mãos dos juízes de direito, municipais e de paz, encarregados
de deflagrar o processo penal condenatório, por crime
público, independentemente de provocação do ofendido ou
de qualquer do povo.
Cumpre salientar que, ao lado da atuação judicial exofficio, que permitia ao magistrado iniciar e formar o corpo
de delito e iniciar e concluir a sumária inquirição das
testemunhas (sumário de culpa), havia as designadas ação
penal pública (a cargo do promotor público ou de qualquer
do povo, ut civis), particular e as denúncias policiais.9
Situação interessante ocorreu depois da abdicação do
primeiro Imperador, com a edição da Lei nº 261, de 3 de
dezembro de 1841, que veio a tornar mais rigoroso o
procedimento, entre outros motivos, pelo deslocamento das
funções jurisdicionais dos juízes municipais e de paz para o
chefe de polícia e seus delegados, antecipando o que, em
8 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes
Legislativas, p. 99.
9 Idem, pp. 107-118.
relação às contravenções penais, e mais tarde, aos crimes de
homicídio e lesões corporais culposos, viria a acontecer, com
a edição do Código de Processo Penal de 1941 e da Lei n o
4.611/65. Na época, a transmutação rigorosa deu ensejo à
observação, também de grande atualidade, do deputado
liberal Álvares Machado, cuja reprodução é merecida:10
Parece que os meus colegas entendem que,
restringindo liberdades, evitarão crimes e
desordens. Por ventura, o Livro V das Ordenações,
apesar das penas e dos castigos horrorosos, evitou
aquele caso de tentativa de morte contra a pessoa
sagrada d‘El Rei D. José? Evitou a prática de
crimes comuns? Evitou a nossa independência e o
nosso sistema liberal?
Com a proclamação da República, em 1889, voltou-se a
sentir os solavancos das mudanças políticas, muito embora,
desde 1871, houvesse ganhado corpo o movimento de
reforma da lei processual anterior.
A introdução de um modelo federalista, inspirado no
norte-americano, repercutiu de modo a deferir aos estados
membros a competência legislativa em termos de processo
penal, malgrado alguma reserva decorrente das disposições
sobre direitos fundamentais, na Constituição de 1891 (artigo
72), bem como uma limitada previsão, em termos de
processo penal, contida em várias leis federais.11
A verdade sobre o(s) sistema(s) do processo penal no
Brasil, a partir de então, pode ser resumida nas anotações de
Frederico Marques:12
Quando a pluralidade processual foi
instaurada, era nosso processo penal informado
pelos
seguintes
princípios:
oralidade
de
10 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 180.
11 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes
Legislativas, p. 160.
12 José Frederico Marques, apud José Henrique Pierangelli, Processo Penal:
Evolução Histórica e Fontes Legislativas, pp. 158 e 160.
julgamento e processo escrito para a instauração
ou formação da culpa; contraditório pleno no
julgamento e contraditório restrito no sumário de
culpa; processo ordinário para os crimes
inafiançáveis e afiançáveis comuns ou de
responsabilidade, com plenário posterior à
formação da culpa; inquérito policial servindo de
instrumento de denúncia ou queixa, apenas nos
crimes comuns; o processo especial estabelecendo
desde logo a plenitude da defesa nos crimes
comuns; a propositura e titularidade da ação
penal, de acordo com o que dispunha o artigo 407,
do Código Penal... essa fragmentação contribuiu
para que se estabelecesse acentuada diversidade
de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou
a aplicação da lei penal.
Nova mudança política, em 1930, traz consigo,
naturalmente, novos ventos, valendo mencionar que, em
1935, por força das disposições transitórias da Carta de 1934
(artigo 11), nomeou-se uma comissão de juristas para
proceder à elaboração do projeto do novo código unificado,
havendo sido cogitada, na ocasião, a adoção do modelo do
juizado de instrução.
Finalmente, depois da instalação do Estado Novo,
mediante o golpe de estado de 1937, veio à luz, pelo DecretoLei no 3.689, de 3 de outubro de 1941, o Código de Processo
Penal brasileiro, que, salvo por algumas alterações pontuais,
vigora até hoje, produto do labor e da cultura de Cândido
Mendes de Almeida, Vieira Braga, Narcélio de Queiroz,
Florêncio de Abreu, Roberto Lyra e Nelson Hungria.
Encontrar a melhor qualificação do sistema processual,
cuja estrutura13 decorre das normas editadas no atual Código
de Processo Penal, repita-se, não é tarefa fácil. Para tanto,
basta considerarmos as opiniões antagônicas dos mestres
13 Perspectivada, aqui, como conjuntos pré-relacionantes e conformativos da
realidade (Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 5).
Frederico Marques, Hélio Tornaghi e Rogério Lauria Tucci.
O primeiro, em obra lapidar, recentemente republicada,
assinala a existência de uma estrutura acusatória de nosso
processo penal, salientando que o chamado sistema misto
ou francês, com instrução inquisitiva e posterior juízo
contraditório e de forma amplamente acusatória, também
não pode informar nossas leis de processo,14, enquanto
Tornaghi sublinha que o Direito brasileiro segue um sistema
que, com maior razão, se poderia denominar misto, isto
porque a apuração do fato e da autoria é feita no inquérito
policial (somente nos crimes falimentares o inquérito é
judicial), enquanto o processo judiciário é acusatório, em
suas linhas gerais.15 Tucci também esposa a tese do sistema
misto, fundado na inquisitoriedade peculiar dos atos
preliminares de apuração das infrações penais.16
4.2. Características do Sistema Processual Brasileiro
Ainda restringindo nossa abordagem ao texto do Código
de Processo Penal, conforme aplicado por juízes e tribunais,
passamos ao exame do estatuto jurídico dos sujeitos
principais e da forma como a atuação deles se desenvolve,
ordenada e sistematicamente, objetivando, deste modo,
avaliar em que medida a lei processual penal modelo abraça
um dos sistemas.
Com efeito, iniciamos pela aproximação às atividades
debitadas ao autor da ação penal e ao juiz, na forma como se
articulam e se desenvolvem a partir do instante em que se
noticia a existência da infração penal.
Desde a promulgação da Constituição da República de
1988, em 5 de outubro, está vedada a iniciativa em processo
condenatório, por crime de ação pública, salvo pelo
Ministério Público ou, em excepcional hipótese, pelo
14 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp.
73 e 71, respectivamente.
15 Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 20.
16 Tucci, Rogério Lauria. Persecução Penal, Prisão e Liberdade, pp. 79-80.
ofendido, conforme dispõem, respectivamente, os artigos
129, inciso I, e 5o, inciso LIX,17 da Carta Magna, sendo certo
que há crimes cuja ação penal é de iniciativa privativa do
ofendido e há outros que, embora de ação pública, exigem a
representação do ofendido (ou de quem tenha qualidade
para representá-lo) ou a requisição do Ministro da Justiça.18
A propositura da ação penal condenatória, todavia, está
condicionada à demonstração prévia, pelo autor, das
condições mínimas de viabilidade da pretensão que objetiva
deduzir. Isso decorre, não se questiona, da tutela
constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1o,
inciso III, da Constituição da República), projetada, no
campo do processo penal, pela exigência de justa causa para
a
sua
deflagração,
sob
pena
de
caracterizar,
irremediavelmente, coação ilegal, a ser arrostada por habeas
corpus.19
Assim, faz-se necessária, antes da propositura da ação
penal condenatória, qualquer que seja ela, a realização de
uma investigação criminal, que a rigor demanda a
instauração de inquérito policial ou peças de informação
(artigos 5o e 27 do Código de Processo Penal), visando
17 Artigo 129, inciso I, da Constituição da República: São funções institucionais
do Ministério Público: I- promover, privativamente, a ação penal pública, na
forma da lei; artigo 5º, inciso LIX, da Constituição da República: será admitida
ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo
legal.
18 Embora polêmico o tema, não há despropósito em afirmar a existência de
uma ação popular de natureza mista, político-penal, como a definiu o Supremo
Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Segurança nº 21.263-DF, em
28/5/1993, relator Ministro Carlos Velloso (publicado no Ementário de decisões
do STF, volume 1.705, p. 202), a respeito da ação de impeachment do
Presidente da República, dos Ministros de Estado e Ministros do Supremo
Tribunal Federal.
19 Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República: A República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: III- a dignidade da pessoa humana; artigos 647 e 648, inciso I,
do Código de Processo Penal: Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém
sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua
liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. A coação
considerar-se-á ilegal: I- quando não houver justa causa.
reunirem-se indícios de autoria e prova razoável da
existência da infração penal.20
Pelas leis vigentes, o inquérito policial, quase sempre
um procedimento de natureza jurídica administrativa, é
dirigido pela autoridade policial encarregada do exercício da
atividade de polícia judiciária (artigo 144, § 1o, inciso IV, e §
4o, da Constituição da República), enquanto as peças de
informação, de caráter oficial, têm lugar em crime de ação
pública, quando a notícia da infração penal é levada
diretamente e por escrito ao conhecimento do Ministério
Público.
O inquérito policial, pelas regras atuais, é sigiloso,
escrito e não contraditório, podendo ser instaurado, em todo
o caso, se for hipótese de apuração de crime de ação pública
incondicionada, de ofício, pela autoridade policial, ou por
requisição do juiz ou do membro do Ministério Público, ou
em decorrência de notícia crime levada à autoridade policial
por qualquer pessoa.
Ainda em se tratando de crime de ação pública
incondicionada, é possível a instauração do inquérito, à vista
da comunicação espontânea do próprio indiciado ou em
virtude da instauração de auto de prisão em flagrante ou de
auto de resistência (artigos 301 e 292 do Código de Processo
Penal), ou, por derradeiro, a requerimento do ofendido, em
consideração ao interesse público na repressão das infrações
e punição de seus autores, que irá refletir na obrigatoriedade
da ação penal pública. Se o crime a apurar, contudo, for de
ação penal privada ou pública condicionada, o início do
inquérito demandará manifestação do ofendido ou de quem
tenha qualidade para representar ou requisitar (artigos 5o, §§
4o e 5o, e 24 do Código de Processo Penal).
Logo se vê, pela distribuição da legitimidade para início
20
Em realidade, a investigação criminal não é obrigatória, desde que o autor da
ação penal apresente ao juiz indícios de autoria e da infração penal, o que
poderá ser feito por meio de documentos particulares, nos casos de ação penal
privada. Todavia, a forma mais comum de pesquisar o suporte probatório
mínimo e demontrar a existência de justa causa tende a ser a investigação
criminal e entre as suas espécies predomina o inquérito policial.
das investigações, que, embora a ação penal só possa ser
proposta pelo Ministério Público ou pelo ofendido (ou seu
representante legal), conforme o caso, além deles está o juiz
autorizado a ordenar a instauração de inquérito, em crime de
ação pública incondicionada.
Verberando contra a previsão, salientou Sérgio Demoro
Hamilton, nos idos de 1974, que a ortodoxia acusatória do
processo penal brasileiro exigia mais do que simplesmente
afastar do juiz a possibilidade de iniciá-lo, mediante o
procedimento aventado no artigo 531 do Código de Processo
Penal, sendo caso, também, de proibir-lhe a requisição da
instauração de inquérito, como, aliás, previa o artigo 249 do
denominado Anteprojeto Frederico Marques (artigo 221 do
Anteprojeto relacionado à Portaria no 320, de 26 de maio de
1981, do Ministério da Justiça),21 recomendando noticiasse o
magistrado o fato delituoso do qual tomasse conhecimento
ao Ministério Público.
Cremos, todavia, em que pesem o prestígio intelectual e
a cultura do ilustre processualista, que a permissão para o
juiz requisitar a instauração de inquérito não difere,
substancialmente, da autorização legal para noticiar crime de
ação pública, diretamente ao Ministério Público, como, é
certo, já estatui o código em vigor, por meio da disciplina
contida em seu artigo 40. Em ambos os casos,
independentemente de quem seja o destinatário da
informação sobre a infração penal, o juiz, ao noticiá-la,
elabora, ainda que provisoriamente, um juízo de valor a
respeito da existência do crime e, eventualmente, da
positivação de indícios de autoria, dando origem a
procedimentos oficiais, que não poderão ser desprezados.
A base de sustentação da autorização legal parece
situar-se na compreensão da necessidade de repressão penal,
na grande maioria dos casos, em vista do interesse
predominantemente público na tutela penal dos bens
21
Hamilton, Sérgio Demoro. ―A Forma Acusatória Pura, uma Conquista do
Anteprojeto‖, in Revista de Direito Penal, nº 13/14, jan-jun/1974, pp. 6467.
jurídicos, vinculado ao valor segurança, explicitamente
prestigiado no caput do artigo 5o da Constituição. Sendo
assim, qualquer que seja a modalidade de intervenção
judicial, voltada à comunicação oficial da existência provável
de infração penal a apurar, o magistrado que vier a noticiá-la
estará comprometido na sua imparcialidade, razão por que,
nas duas hipóteses, sustentamos que estará quebrado um
dos pilares básicos do sistema e também do princípio
acusatório, tal seja, a imparcialidade judicial.
A medida da violação do sistema, porém, corresponde
ao anseio de não deixar fora da persecução penal fatos que,
de ordinário, não chegariam ao conhecimento da autoridade
policial ou do Ministério Público, critério de ordem política
que, incidindo no campo do processo, ainda que antes da
instauração deste, pode ser equilibrado pelo afastamento do
feito daquele juiz que noticiou a infração. O juiz de um
processo civil entre partes capazes, sem intervenção do
Ministério Público, que constate o emprego de documento
falso deverá comunicar o fato ao Ministério Público. Sem
essa comunicação dificilmente o Ministério Público tomaria
conhecimento da existência do crime previsto no artigo 304
do Código Penal.
Aplica-se, assim, o princípio da proporcionalidade, para
coordenar a atuação dos direitos fundamentais à segurança e
ao justo processo, sempre à base do princípio acusatório.
É imperioso ressaltar que, se a instauração da
investigação pode, em excepcionais situações, derivar de
ordem judicial, a orientação sobre os caminhos a seguir e a
pesquisa e a crítica ao material probatório colhido, em todos
os casos a cargo do juiz, na fase pré-processual,
especialmente se a ação penal pública não é proposta por
falta de suporte mínimo probatório (artigos 10 e 28 do
Código de Processo Penal), violentam, decisivamente, o
princípio acusatório.
Com efeito, não há razão, dentro do sistema acusatório
ou sob a égide do princípio acusatório, que justifique a
imersão do juiz nos autos das investigações penais, para
avaliar a qualidade do material pesquisado, indicar
diligências, dar-se por satisfeito com aquelas já realizadas
ou, ainda, interferir na atuação do Ministério Público, em
busca da formação da opinio delicti.22
A imparcialidade do juiz, ao contrário, exige dele
justamente que se afaste das atividades preparatórias, para
que mantenha seu espírito imune aos preconceitos que a
formulação antecipada de uma tese produz, alheia ao
mecanismo do contraditório.
Assim, por ocasião do exame da acusação formulada,
com o oferecimento da denúncia ou queixa, o juiz estará em
condições de avaliar imparcialmente se há justa causa para a
ação penal, isto é, se a acusação não se apresenta como
violação ilegítima da dignidade do acusado.
Neste plano, a manutenção do controle, pelo juiz, das
diligências realizadas no inquérito ou peças de informação, e
do atendimento, pelo Promotor de Justiça, ao princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública, naquelas hipóteses
em que, em vez de oferecer denúncia, o membro do
Ministério Público requer o arquivamento dos autos da
investigação, constitui inequívoca afronta ao princípio
acusatório, como foi analisado anteriormente.
Em vista disso, e por considerarem que a partir de 1988,
com a nova Constituição, o processo penal brasileiro
realmente aderiu ao modelo acusatório, alguns tribunais, a
nosso juízo acertadamente, têm editado atos normativos que
regulam a tramitação dos autos de investigação criminal
diretamente entre as unidades de polícia judiciária e os
órgãos do Ministério Público.
Assim, o Provimento no 07, de 14 de abril de 1997, do
Corregedor Geral de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios, e o Provimento no 47, de 12 de novembro de
1996, do Vice-Presidente e do Corregedor do Tribunal
Regional Federal da 1a Região, ambos impugnados por Ações
Diretas de Inconstitucionalidade,23 perante o Supremo
22
23
Ver item 3.2.2.1 – II – Da Acusação.
Respectivamente, ADIN 1605-9-DF, Relator Ministro Sydney Sanches, e
ADIN 1579-6-DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence.
Tribunal Federal, sem notícia de deferimento de medida
liminar ou julgamento da causa até a presente data.
Vale, pois, reproduzir aqui o texto do Provimento no 07,
acima referido, pelo que tem de bem ilustrativo a respeito do
tema:
Considerando que o Ministério Público é
instituição essencial à função jurisdicional do
Estado;
Considerando que a Constituição Federal de
1988 conferiu ao Ministério Público relevantes
funções na defesa da ordem jurídica e dos direitos
individuais
e
coletivos,
redefinindo
sua
competência e atribuições;
Considerando que pela atual Constituição são
funções institucionais do Ministério Público, entre
outras, promover privativamente a ação penal
pública; exercer o controle externo da atividade
policial; requisitar diligências investigatórias e a
instauração de inquérito policial;
Considerando as medidas adotadas pelo
Tribunal Regional Federal da 1a Região, Estados
do Rio de Janeiro e Bahia, no sentido de adequar
os procedimentos investigatórios aos atuais
mandamentos constitucionais;
Considerando que a remessa, distribuição e
exame de inquéritos policiais, e ordenação de
diligências pelo Juiz, antes da remessa ao
Ministério Público, ensejam a demora nas
investigações em detrimento da rápida apuração
da verdade real;
Considerando a decisão proferida pela 2a
Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios na Reclamação no
1.068/96;
Considerando o requerimento encaminhado
pelo Procurador-Geral de Justiça do Ministério
Público do Distrito Federal e dos Territórios, que
originou o P. A. nº 03.912/97;
RESOLVE:
Artigo 1o Somente serão admitidos para
distribuição às Varas Criminais da Justiça do
Distrito Federal os inquéritos policiais e outras
peças de informação, nos casos de intervenção
obrigatória do Ministério Público, quando houver:
a) denúncia ou queixa;
b) pedido de arquivamento;
c) inquérito instaurado, a requerimento da
parte, para instruir ação penal privada e que deve
aguardar, em juízo, sua iniciativa (Código de
Processo Penal, artigo 19);
d) pedidos de prisão preventiva, busca e
apreensão, prisão temporária e outras medidas
cautelares;
e) comunicação de prisão em flagrante ou
qualquer outra forma de constrangimento aos
direitos fundamentais previstos na Constituição;
Parágrafo único. Independentemente de
distribuição, o Juiz encarregado de supervisionar
o Serviço de Distribuição encaminhará ao
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
o inquérito policial, peças de informação ou
procedimento em que não couber distribuição
(Código de Processo Penal, artigos 5o e 40).
Artigo 2o A devolução do inquérito pelo
Ministério Público à autoridade investigante, para
novas diligências, far-se-á independentemente de
sua tramitação pelo Judiciário, mesmo nos casos
anteriores à vigência deste provimento onde o
inquérito policial tenha sido distribuído a uma das
varas criminais.
Artigo 3o Este provimento entrará em vigor
30 (trinta) dias após a sua publicação, revogadas
as disposições em contrário.
Publique-se, registre-se e cumpra-se.
Na mesma direção estão o anteprojeto de código de
processo mencionado e o projeto de lei no 31, de 1995, de
iniciativa do Senador Pedro Simon, sendo certo que, se o
segundo postula a tramitação direta dos autos de inquérito,
entre o membro do Ministério Público e a autoridade
policial, retirando do juiz também a possibilidade de
requisitar a instauração da investigação, o primeiro, ainda
mais completo e sistemático, acrescenta que o controle da
obrigatoriedade, no (não) exercício da ação penal pública,
fica entregue ao próprio Ministério Público, por meio do seu
Conselho Superior, notificando-se o indiciado e o ofendido.24
Em idêntico sentido dispõe o Projeto de Lei n. 4.209/01,
preparado por Comissão presidida pela jurista Ada Pellegrini
Grinover, nos termos da Portaria 61 do Ministério da Justiça,
editada em 20 de janeiro de 2000.
Este projeto traz a seguinte redação para o artigo 28 do
Código de Processo Penal:
Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, após a
realização de todas as diligências cabíveis, convencer-se da
inexistência de base razoável para o oferecimento de
24
Anteprojeto, artigo 234: Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas
as diligências cabíveis, se convencer da inexistência de fundamento
razoável para a propositura da ação penal, promoverá o arquivamento
dos autos de inquérito policial ou das peças informativas, fazendo-o
fundamentadamente. § 1º Cópia da promoção de arquivamento será
remetida pelo signatário, sob pena de incorrer em falta grave, no prazo
de três dias, ao Conselho Superior do Ministério Público, intimados dessa
providência, dentro de igual prazo, mediante carta registrada, o
indiciado e o ofendido, ou seu representante legal. § 2º Até que, em sessão
do Conselho Superior do Ministério Público, seja homologada ou rejeitada
a promoção de arquivamento, poderão o indiciado e o ofendido, ou seu
representante legal, apresentar razões escritas, que serão autuadas com a
cópia referida no § 1º. § 3º A promoção de arquivamento, com ou sem
razões dos interessados, será submetida a exame e deliberação do
Conselho Superior do Ministério Público, conforme dispuser o seu
Regimento. Se, deixando de homologá-la, concluir o Conselho pelo
cabimento da ação penal, designará, desde logo, outro órgão do
Ministério Público para oferecer a denúncia. § 4º O membro do Conselho
Superior do Ministério Público, a quem incumbir relatar a deliberação de
que trata o § 3º, poderá, quando entender necessário, requisitar os autos
de inquérito policial ou peças informativas, bem como quaisquer
diligências (art. 227).
denúncia, promoverá, fundamentadamente, o arquivamento
dos autos da investigação ou das peças de informação.
§ 1o Cópias da promoção de arquivamento e das
principais peças dos autos serão por ele remetidas, no prazo
de três dias, a órgão superior do Ministério Público, sendo
intimados dessa providência, em igual prazo, mediante carta
registrada, com aviso de retorno, o investigado ou indiciado e
o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo.
§ 2o Se as cópias referidas no parágrafo anterior não
forem encaminhadas no prazo estabelecido, o investigado, o
indiciado ou o ofendido poderá solicitar a órgão superior do
Ministério Público que as requisite.
§ 3o Até que, em sessão de órgão superior do Ministério
Público, seja ratificada ou rejeitada a promoção de
arquivamento, poderão o investigado ou indiciado e o
ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo,
apresentar razões escritas.
§ 4o A promoção de arquivamento, com ou sem razões
dos interessados, será submetida a exame e deliberação de
órgão superior do Ministério Público, na forma estabelecida
em seu regimento.
§ 5o O relator da deliberação referida no parágrafo
anterior poderá, quando o entender necessário, requisitar os
autos originais, bem como a realização de quaisquer
diligências reputadas indispensáveis.
§ 6o Ratificada a promoção, o órgão superior do
Ministério Público ordenará a remessa dos autos ao juízo
competente, para o arquivamento e declaração da cessação
de eficácia das medidas cautelares eventualmente
concedidas.
§ 7o Se, ao invés de ratificar o arquivamento, concluir o
órgão superior pela viabilidade da ação penal, designará
outro representante do Ministério Público para oferecer a
denúncia."(NR)
Como se vê, a tendência consiste em afastar o juiz desta
etapa, entregando-lhe apenas a função de decidir sobre
medidas
cautelares
que
incidam
sobre
direitos
fundamentais.
Na verdade, não há motivo para ser de outra forma,
uma vez que é inconcebível, sistematicamente, desconfiar-se
do Promotor de Justiça que pleiteia o arquivamento, uma vez
que a ação do integrante de uma instituição permanente e
essencial à função jurisdicional do Estado, como é o caso do
Ministério Público (artigo 127, caput, da Constituição da
República), está erguida sobre princípios de legalidade e
moralidade, próprios a toda atividade estatal. É de se
presumir que o Promotor de Justiça atue de conformidade
com tais máximas, funcionando o controle interno e a
intervenção do ofendido como mecanismos suficientes para
velar pela legalidade da decisão do Ministério Público.
Portanto, o controle interno do princípio da
obrigatoriedade da ação penal, em uma segunda etapa, por
órgão colegiado do próprio Ministério Público, a nosso juízo,
desde que permeado pela intervenção do ofendido e do
indiciado, satisfaz plenamente à aspiração de exame da
legalidade da atuação do representante do parquet, sendo
absolutamente desnecessária, e até mesmo indesejável, a
intervenção judicial para assinalar ao órgão de acusação
pública, como hoje ocorre, que deve acusar, ainda que a
decisão definitiva esteja nas mãos do Procurador-Geral de
Justiça.
Acaso atendido o pleito judicial, manifestado pela
discordância quanto ao pedido de arquivamento dos autos de
investigação criminal, pedido este formulado pelo Promotor
de Justiça, não há dúvida de que o acusado tem a temer pela
tendenciosidade precocemente demonstrada pelo juiz, antes
mesmo da dedução da ação penal. Dizia-se com razão, na
Idade Média, que aquele que tem um juiz por acusador,
precisa de Deus como defensor. E, às vezes, isso não é
suficiente.
Portanto, na linha perspectivada em um sistema
acusatório, ainda que nesta hipótese o sistema esteja
reduzido à sua expressão mais pura, a do princípio
acusatório, a intervenção judicial, voltada ao controle da
realização das investigações básicas para a deflagração da
ação penal, é algo completamente anômalo, a ser expurgado
do ordenamento jurídico, sob pena de violação das regras
básicas pertinentes à distribuição de funções, com a garantia
para o acusado da imparcialidade do seu julgador.
Ocorre, todavia, que, até a presente data, pelo que se
tem notícia, o eg. Supremo Tribunal Federal não só não
declarou a invalidade da norma contida no artigo 28 do
Código de Processo Penal, aplicada com alguma freqüência
em todos os Estados da Federação, como ainda, conforme
veremos, ao tratarmos da Lei no 9.034/95, em um primeiro
momento ratificou a atuação preliminar de investigação,
desenvolvida ou diretamente controlada pela autoridade
judiciária25.
Releva frisar que diferente é a situação gerada pelo
indispensável controle pelo juiz, na etapa preliminar, das
medidas constritivas de direitos fundamentais, pela reserva
de função jurisdicional, estabelecida no artigo 5o, incisos
XXXV, LIII, LIV e LV, da Constituição da República.26
25
Ao apreciar requerimento de medida liminar para sustar a aplicação do artigo
3º da Lei nº 9.034/95, em ação direta de inconstitucionalidade promovida pela
Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL – (ADI 1517 MC/UF),
o Ministro relator, Maurício Corrêa, entendeu que as atividades de investigação
do juiz, na fase de inquérito, não violavam regras constitucionais. Ocorre que,
por maioria de votos, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu
julgar procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida
pelo Procurador-Geral da República, com o mesmo objeto, e declarar a
inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do
juiz investigador (ADI 1570/UF, rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em
12 de fevereiro de 2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso).
26 Artigo 5º, inciso XXXV, da CR: A lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito; inciso LIII: ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente; inciso LIV: ninguém será
privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; inciso LV:
Assim, objetivada, pelo virtual autor, providência
preparatória que implique em restrição a direito
fundamental (liberdade, disponibilidade sobre o patrimônio,
intimidade), a medida só poderá concretizar-se depois de
ponderado exame, pelo juiz, da presença dos pressupostos
característicos das cautelares, além, é claro, da subsunção do
caso concreto às hipóteses de cabimento legalmente
previstas, com a ressalva constitucional da prisão em
flagrante, sujeita, por sua própria natureza, a exame
posterior de legalidade e necessidade.27
Cabe ao juiz decidir pela decretação da prisão
preventiva, no curso do inquérito policial, ou ainda pelo
deferimento da interceptação das comunicações telefônicas e
busca e apreensão de bens ou pessoas. Estas medidas estão
incluídas na chamada reserva jurisdicional de função.
Sabe-se que, se não há, à semelhança do Processo Civil,
disposições específicas sobre um processo penal cautelar, em
livro próprio, no Código de Processo Penal, de fato é inegável
a existência de medidas cautelares no processo penal,
destinadas à proteção dos processos de conhecimento e
execução penais.28
Como sublinhado linhas atrás, na fase preparatória há
um número significativo de providências que inauguram
relações jurídicas de natureza cautelar, predispostas à tutela
da liberdade do investigado, virtual acusado, ou da aquisição
das provas, tais como a autorização para busca domiciliar,
aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral
são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes.
27 Artigo 5º, inciso LXI, da CR: ninguém será preso senão em flagrante delito
ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,
salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar,
definidos em lei; inciso LXII: a prisão de qualquer pessoa e o local onde se
encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do
preso ou à pessoa por ele indicada; inciso LXVI: ninguém será levado à prisão
ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem
fiança; inciso LXV: a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela
autoridade judiciária.
28 Barros, Romeu Pires de Campos. Processo Penal Cautelar, Rio de Janeiro:
Forense, 1982.
apreensão de coisas, prisão temporária e preventiva etc.
Neste caso, embora a natureza preponderante das
investigações continue sendo administrativa, adere a ela a
cautelaridade singular das referidas providências, sujeitas,
naquilo que importa em compressão de direitos
fundamentais, ao conhecimento e deliberação judicial e às
regras do devido processo legal, ainda que, por conta dos
objetivos visados e da eficácia da própria investigação, o
contraditório tenha de ser diferido.
Portanto, a coerência com os ditames do princípio
acusatório, à vista da implicação de um devido processo
penal cautelar, em fase anterior ao processo de
conhecimento condenatório, exigirá a iniciativa dos
encarregados da investigação ou do titular do direito de ação,
até o que o juiz deverá permanecer inerte, sob pena de
quebra da imparcialidade.
Não se diga que o juiz penal dispõe de um poder geral
de cautela, que o autoriza a, ex officio, promover as
providências cautelares que julgue pertinente, pois tal poder,
como no processo civil, não se exercita sem provocação da
parte no feito cautelar,29 compreendendo-se como especial
permissão para prover, na tutela dos processos principais,
atuais ou potenciais, medidas a rigor não previstas na
casuística típica das cautelares.30
Quando se trata da tutela dos mais importantes bens de
um indivíduo, não é admissível supor que o encarregado de
decidir sobre a sua fruição ou não seja alguém que tenha, na
fase que antecede ao processo, espontaneamente tomado a
iniciativa de ordenar a prisão do investigado ou a apreensão
de uma arma que esteja na casa dele, sob a suspeita
29 Galeno Lacerda, todavia, sustenta que a disposição do artigo 797 do Código
de Processo Civil, autorizando o juiz a determinar medidas cautelares, sem
audiências das partes, em caráter excepcional, configura verdadeira permissão
legal, excepcional, de provimento cautelar ex officio, ao contrário da regra
instituída no artigo 2º do mesmo diploma e da posição adotada por muitos
tribunais (RT 607/57). Lacerda, Galeno. Comentários ao Código de Processo
Civil, vol. VIII, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1984, pp. 110-111.
30 Lacerda, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 135.
exclusivamente sua, do juiz, de que se trata da arma do
crime.
Para isso, estão equipados a Polícia e o Ministério
Público, os quais, por lidarem diretamente com a matéria e
possuírem interesse na elucidação da infração penal, com a
condenação de seu eventual autor, são, a nosso juízo, os
legitimados a requererem providências cautelares, o mesmo
se aplicando, mutatis mutandis, ao ofendido, se o crime é de
ação que dependa da sua iniciativa.
A exceção é pertinente à tutela da liberdade, mediante
determinação, de ofício, da liberdade provisória, em
consideração ao princípio do favor rei, à presunção da
inocência e ao papel garantista do princípio acusatório na
sua harmonia com os demais princípios.
Portanto, é estranho ao sistema acusatório, porque
incompatível com o princípio acusatório, o poder do juiz, por
exemplo, de ofício decretar a prisão preventiva do indiciado
(artigo 311 do Código de Processo Penal).31 Em que pese tal
conclusão, também neste tópico não há, do Supremo
Tribunal Federal, reserva quanto à declaração da
constitucionalidade (ou expresso reconhecimento de
inconstitucionalidade) da mencionada previsão.
Visto o que antecede o processo condenatório, cabe
agora passar ao tratamento de algumas questões pertinentes
ao processo propriamente dito.
Com efeito, ficou salientado que, pelo princípio
acusatório, cumpre ao acusador, público ou particular,
determinar o objeto do processo, o que faz por meio da
articulação da acusação, definindo a causa de pedir da ação
penal, que sustentará o pedido de aplicação da sanção. Isso
não significa que o juiz esteja vinculado à qualificação
jurídica atribuída ao fato pelo acusador, porque ao juiz
31 Artigo 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal,
caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do
Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da
autoridade policial. Também a revogada Lei de Falências (Decreto-lei 7.661/45,
artigo 193) previa a inconstitucional decretação da prisão preventiva de ofício. A
regra não foi reproduzida na Lei n. 11.101/05.
cumpre conhecer o direito — jura novit curia — nem
tampouco que o réu seja prejudicado por um equívoco de
expressão da tipificação penal mais adequada, na medida em
que se defende do fato, que deve estar descrito,
satisfatoriamente, na inicial.32
Mas, nos dois casos, alguns cuidados são absolutamente
essenciais, uma vez que a casuística sistemática dos
procedimentos penais, no direito brasileiro, leva em conta a
qualificação jurídica da conduta e, ainda, no que toca ao
exercício da defesa, esta não pode pressupor, sob pena de
prejudicar-se, que o juiz venha a corrigir a classificação
jurídica do fato e, quiçá, aplicar ao acusado pena mais grave,
ou seguir o caminho equivocado inicialmente trilhado pelo
acusador.
Em vista do exposto, o sistema acusatório, que demanda
plenitude de defesa e contraditório, em face da pretensão do
processo justo, assegura a emendatio libelli, prevista no
artigo 383 do Código de Processo Penal,33 na fase de
sentença, mas aplicável a todo o tempo (quanto antes,
melhor), principalmente se resultar em significativa
alteração do procedimento.34
Ver item 3.2.2.2 – III – A Mutatio Libelli.
33 Artigo 383. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que
constar da denúncia ou queixa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar
pena mais grave.
34 Muito embora preconizemos aqui, para validade do processo, que a
emendatio libelli em nenhuma hipótese surpreenda a defesa, instituindo-se o
debate contraditório em consideração ao reconhecimento daquela que é,
segundo o juiz, a acertada qualificação jurídica da infração, o eg. Supremo
Tribunal Federal decidiu diferentemente, como se pode observar no habeas
corpus nº 73.389-SP, julgado pela 2ª Turma, cujo relator foi o Exmo. Ministro
Maurício Correa, publicada a decisão em 6 de setembro de 1996, no Diário de
Justiça da União: ―Habeas Corpus‖. ―Emendatio libelli‖. Réu denunciado pelos
crimes de estelionato e de apropriação indébita e condenado pelo crime de
falsidade ideológica. Falta de intimação do acusado em face da
desclassificação: cerceamento de defesa não configurado. 1. Ocorre emendatio
libelli (CPP, art. 383) e não mutatio libelli (CPP, art. 384) quando o réu é
denunciado pelos crimes de estelionato e de apropriação indébita, porém
resulta condenado por falsidade ideológica, uma vez que a denúncia descreve
perfeitamente o fato delituoso mas nela consta qualificação penal diversa. 2. A
nova tipificação emprestada pelo juízo, em face da instrução processual, não
32
Em 1989, no exercício das funções judicantes,
recebemos denúncia do Ministério Público, por crime de
desacato à autoridade judiciária, cometido por advogado, no
curso de um processo civil, com atribuição ao juiz da prática
de fato definido como crime, isso por petição.
No despacho inicial, na verdade, decisão, haja vista a
conduta efetivamente descrita, a denúncia foi recebida,
emendando-a para classificar o crime na moldura penal da
calúnia, detalhada na vestibular com todos os seus elementos
e circunstâncias.
A alteração pareceu apropriada, tendo em conta a
diversidade de procedimento, um dos quais, acertado, com a
possibilidade de oferecer ao acusado a exceção da verdade.35
Justamente este tipo de controle, deduzido, a princípio
ou no decorrer do processo, até a sentença, permitirá que o
acusado não fique refém da classificação jurídica emanada
da acusação, em virtude da qual poderá, ou não, incidir um
modelo de processo consensual, poderá, ou não, ser cabível a
prisão preventiva ou a liberdade provisória, com ou sem
fiança.
Os critérios de classificação das infrações penais são,
pois, na exata medida em que se respeita o princípio
constitucional da reserva legal,36 na edição de leis
incriminadoras, determinados por modos de apreciação
dogmaticamente objetivados e, assim, passíveis de serem
controlados pelo juiz sem ferimento ao direito de iniciativa
das partes.
Da mutatio libelli
constitui cerceamento de defesa ou oblívio ao devido processo legal, porquanto
o acusado se defende dos fatos narrados na denúncia e não do delito nela
qualificado. 3. Hipótese em que a falta de intimação do acusado, em face da
desclassificação do delito, não configura cerceamento de defesa. 4. Habeas
Corpus indeferido.
35 Em decisão proferida em 26/11/1990, no habeas corpus nº 11.896/90,
julgado pela 1ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal, tendo como relator o
eminente juiz Pirajá Pires, a emendatio libelli inicial foi mantida.
36 Artigo 5º, inciso XXXIX: Não há crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal.
Porém, se é viável, conforme a máxima acusatoriedade,
a aplicação do disposto no artigo 383 do Código de Processo
Penal, o mesmo não acontece com a previsão contida no
dispositivo seguinte, que autoriza, sob diferentes aspectos, a
modificação substancial da acusação, por força da alteração
do fato investigado, consoante as provas produzidas,37
ultrapassando-se, em alguns casos, o perímetro traçado pela
imputação contida no pedido acusatório.
É imperioso, desde logo, ressaltar que a mutatio libelli
se refere a uma mudança de perspectiva, relativamente a
elementares ou circunstâncias do fato sobre o qual se funda a
pretensão, em decorrência de provas surgidas durante a
instrução, mas não corresponde ao acréscimo de uma nova
acusação ou de uma acusação por novos fatos.
Se isso ocorrer, se na instrução vierem à tona novas
infrações penais de ação penal pública incondicionada,
lembra Frederico Marques,38 cabe ao juiz dar a notícia crime
a quem de direito (artigo 40 do Código de Processo Penal).
Apesar disso, no primeiro caso previsto na lei —
mudança das circunstâncias ou elementares da conduta, com
preservação ou atenuação da pena — sem que seja necessária
ou exigível qualquer intervenção do acusador, admite-se que
o juiz amplie a esfera das quaestiones facti, como,
igualmente, assinala Frederico Marques,39 intervenha o
magistrado no âmbito interno do direito de ação, por meio
37 Artigo 384: Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica
do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância
elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa,
baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se
quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas. Parágrafo
único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe
aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o
Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta
houver sido instaurado o processo em crime de ação penal pública, abrindo-se,
em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova,
arrolando até três testemunhas.
38 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, p.
239.
39 Marques, José Frederico. Elementos... , vol. II, ob. cit., p. 238.
da modificação da causa de pedir.
Como tivemos a oportunidade de ressaltar, uma
alteração dessa natureza só é compatível com o princípio
acusatório se decorrer da iniciativa do autor. De outro modo,
violado estará sendo o mencionado princípio, ainda que, pela
ponderação com o da justiça material, mitigado o efeito
negativo pela implementação do contraditório que terá de
instaurar-se, possa, com as reservas indicadas no item
3.2.2.2, aceitar-se o tratamento legal dispensado.
A Comissão referida anteriormente, presidida por Ada
Grinover, propõe que a mutatio libelli em qualquer
circunstância dependa de modificação da acusação pelo
autor da ação penal, estando vedada alteração de ofício.
A nosso juízo, contudo, a mais grave violação ao
princípio da congruência, decorrente do acusatório, é vista,
no processo penal brasileiro, no artigo 408, § 4o, do Código.
No citado dispositivo está consignado que, por ocasião da
Pronúncia — decisão interlocutória que admite a acusação
por crime doloso contra a vida e remete o processo ao
Tribunal do Júri — o juiz não ficará adstrito à classificação
do crime, feita na queixa ou denúncia, embora fique o réu
sujeito à pena mais grave, atendido, se for o caso, o disposto
no art. 410 e seu parágrafo.
A dispensa do aditamento à denúncia corresponde a
uma verdadeira autorização deferida ao juiz, para que este
modifique a acusação, independentemente da vontade do
acusador, ainda que importe na aplicação, no futuro, de pena
mais grave. Só precioso critério de matiz inquisitória,
disfarçado em economia processual e obrigatoriedade da
ação penal (de ofício), para explicar a medida. Ainda assim,
o Supremo Tribunal Federal não lhe declarou, que seja do
nosso conhecimento, a inconstitucionalidade,40 embora
40 O Supremo Tribunal Federal contenta-se com a ―implícita‖ descrição da
novel figura jurídico-penal na inicial, o que, à toda evidência, é o mesmo que
dispensar o juiz de concitar o acusador a alterar a acusação (aditar a inicial).
Assim, na decisão transcrita na RT 336/495, referida por Hermínio Alberto
Marques Porto (Júri, 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 87). No mesmo
diapasão segue o Superior Tribunal de Justiça, conforme a decisão no Recurso
setores significativos da doutrina concordem que a real
aplicação da disposição está condicionada à manifestação do
acusador.41
Finalmente, também em termos de mutatio libelli,
temos no Brasil o mesmo tipo de resistência que em Portugal
se enfrenta quanto ao que se considera violação, pelo
Ministério Público, da reserva de função jurisdicional, por
pretender atribuir ao fato que descreve na denúncia uma
qualificação jurídica,42 dispondo, deste modo, do poder de
determinar o tipo de procedimento e, o que nessa linha de
argumento também se deduz, de até mesmo impedir a
liberdade provisória,43 ou estabelecer, conforme perspectiva
criativa, uma nova forma de prisão que não seja em flagrante
ou decorrente de ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente: a prisão por opinio
delicti,44 não prevista na Constituição.
Em que pese o respeito que merece quem sustenta a
violação do monopólio de função jurisdicional pelo acusador,
ao classificar juridicamente o fato, daí decorrendo uma série
de conseqüências no conjunto das relações jurídicas
processuais, sob pena de arrostar o princípio acusatório o
juiz não pode atribuir à conduta do acusado objeto de sua
atenção, e limite da sua futura decisão, uma qualificação
distinta da operada pela denúncia ou queixa, se entre o fato
narrado e esta qualificação promovida pelo acusador há
Especial nº 11070, da 6ª Turma, publicado no Diário de Justiça da União, p. 477
(citado por Damásio Evangelista de Jesus, in Código de Processo Penal
Anotado, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 283).
41 Marrey, Adriano; Franco, Alberto Silva; e Stoco, Rui. Teoria e Prática do
Júri, 6ª ed. São Paulo: RT, 1997, pp. 226-227.
42 Pode-se dizer, naturalmente, o mesmo do ofendido, na ação penal de
iniciativa privada.
43 De acordo com o artigo 2ª, inciso II, da Lei nº 8.072/90, Lei dos Crimes
Hediondos, nos processos por crimes definidos como hediondos e assemelhados
em seus efeitos, todas essas infrações são insuscetíveis de liberdade provisória.
44 Embora não concordemos com o argumento, temos de reconhecer a força da
inteligência do Defensor Público fluminense, Paulo Alves Ramalho, que, em
suas defesas nos Tribunais criminais do Rio de Janeiro, e em Brasília, nos
Tribunais superiores, cunhou, pelo que é do nosso conhecimento, a expressão
prisão por opinio delicti do acusador.
perfeita sintonia.
Pode ser, por exemplo, que os fatos apurados na
investigação criminal sejam diferentes do narrado na inicial
(possuir drogas para uso próprio em lugar da conduta de
trazer substância entorpecente, para fins de venda); pode ser
que a descrição contida na denúncia ou queixa seja fruto de
algum delírio, estando desconectada dos fatos efetivamente
investigados.
Há, portanto, nestas hipóteses, desrespeito à exigência
de justa causa para a ação penal pelo fato delirantemente
deduzido, se a inicial for recebida pelo juiz e o processo penal
condenatório seguir o seu curso normal, conformado à
equivocada e abusiva classificação.
O caso é de rejeição da inicial, liminarmente ou pela via
do habeas corpus, por falta de justa causa, extinguindo-se o
processo, e não de se modificar o teor da acusação, por ato
do juiz, com significativa perda da confiança que o acusado e
a própria sociedade possam depositar na imparcialidade do
magistrado e, o que é relevante, com ingerência do juiz sobre
a causa de pedir e o pedido, isto é, em suma, sobre o
conteúdo da própria acusação, direito do autor.
A rejeição da denúncia ou queixa, nesta situação, apesar
dos
autos
de
investigação
criminal
revelarem
superficialmente a existência de uma infração penal,
garantindo o princípio acusatório, coloca-o em primeiro
plano e reserva ao princípio da obrigatoriedade da ação
penal pública, quando for o caso, uma posição secundária,
porque a liberdade do acusado é mais importante, como
direito fundamental, que a suposta necessidade de processar
sempre, por todos os fatos.
Ademais, conciliam-se os princípios, ulteriormente, se,
transitada em julgado a decisão de rejeição da inicial, nova
acusação for formulada, pelo fato verdadeiramente
verificado na investigação, não estando ao abrigo da coisa
julgada, pois esta só alcança o fato principal, que tiver sido
objeto da sentença (artigo 110, § 2o, do Código de Processo
Penal).45
De se notar que a rejeição da denúncia ou queixa, por
falta de justa causa, corresponde a uma decisão
necessariamente provisória sobre o mérito, à semelhança da
sentença em processo cautelar, desde que não verse a
propósito de causa extintiva da punibilidade.
Malgrado todas as considerações expostas, a linha
decisória predominante no eg. Supremo Tribunal Federal é
outra, como se pode aferir do relato de julgamento, pela
Segunda Turma, divulgado no denominado Informativo STF
de 8 a 12 de dezembro de 1997, no 96, publicado em 17 de
dezembro, no Diário de Justiça da União e elaborado pela
Assessoria da Presidência do Supremo Tribunal Federal a
partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das
Turmas e do Plenário:
Segunda Turma
Recebimento da Denúncia e Desclassificação
Considerando que não cabe ao juiz, ao receber
a denúncia, desclassificar o crime nela narrado —
hipótese distinta da prevista do art. 383 do CPP
(―O juiz poderá dar ao fato definição jurídica
diversa da que constar da queixa ou da denúncia,
ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena
mais grave.‖), que faculta ao magistrado tal
possibilidade no momento de prolatar a sentença
— a Turma deferiu, em parte, habeas corpus
interposto contra decisão do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro que recebera queixacrime oferecida contra o paciente pelo crime de
injúria e não de calúnia contra autoridade pública,
tal como descrito na queixa (arts. 20, combinado
com o art. 23, III, da Lei 5.250/67, Lei de
Imprensa). No mesmo julgamento, ponderou-se, à
45
Artigo 110, § 2º, do Código de Processo Penal: A exceção de coisa julgada
somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido
objeto da sentença.
vista da jurisprudência do Tribunal, que tanto o
ofendido quanto o Ministério Público têm
legitimidade concorrente para promover ação
penal, quando se trate de ofensa propter officium.
Precedentes citados: RE 104.478-MS (DJU de
4/10/85), HC 64.966-SP (DJU de 12/6/87), HC
74.649-DF (DJU de 10/10/97) e INQ. 726-RJ (RTJ
154/410). HC 76.024-RJ, rel. Min. Maurício
Corrêa, 12/12/97.
Releva salientar, no tocante à disciplina das provas, que
a autorização prevista na parte final do artigo 156 do Código
de Processo Penal, assim como, por exemplo, a disposição
contida no artigo 209 do mesmo diploma,46 conferindo ao
juiz poderes processuais de produção da prova, representa,
conforme assinalamos ao abordarmos as características do
sistema acusatório, violência flagrante ao referido modelo,
quer em razão de atribuir ao juiz o que é direito das partes,
conexo ao de ação e de defesa, e portanto, no primeiro caso,
vinculado à acusação, quer por colocá-lo na difícil posição de
investigador imparcial.
Todo investigador parte de uma premissa, que aceita
como verdadeira, a ela se vinculando psicologicamente. No
máximo, no exercício de poderes assistenciais ao acusado,
visando tornar real a desejável paridade de armas e, em
busca da justiça material, sem violar o princípio da
presunção da inocência, estará o juiz autorizado a
determinar provas cuidadosamente, mas consciente de que
não respeitará, em concreto, o princípio acusatório.
Embora em outros julgados não siga essa linha, na
irretocável decisão do Pretório Excelso, que inicia o nosso
46 Artigo 156 do Código de Processo Penal: A prova da alegação incumbirá a
quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir
sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto
relevante; artigo 209 do citado diploma: O juiz, quando julgar necessário,
poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes. § 1º Se ao
juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se
referirem.
trabalho, visualiza-se, em determinado ponto, que merece
ser transcrito, a idéia-força da atividade probatória como
pertinente às partes, em especial à acusação, que tem o ônus
de demonstrar os fatos sobre os quais alicerça a sua
pretensão. Assim, pois, está consignado:
Nenhuma acusação penal se presume
provada. Não compete ao réu demonstrar a sua
inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar,
de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado.
Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito
positivo, a regra, que, em dado momento histórico
do processo político brasileiro (Estado Novo),
criou, para o réu, com a falta de pudor que
caracteriza os regimes autoritários, a obrigação
de o acusado provar a sua própria inocência
(Decreto-Lei no 88, de 20/12/37, art. 20, no 5).47
Do recurso de ofício
Para finalizar, limitando o exame aos aspectos
principais do processo de conhecimento, sem prejuízo de
reconhecer na execução penal, atualmente, carente da
iniciativa do autor (salvo de modo restrito no caso de
aplicação exclusiva de multa), da oralidade e de mais intensa
publicidade, uma forma inquisitória mitigada pelo
contraditório, deve ser objeto de menção o duplo grau
obrigatório, denominado também recurso de ofício.
No artigo 574 do Código de Processo Penal está prevista
a submissão da decisão proferida ao exame obrigatório pelo
tribunal, como condição de eficácia da sentença. Assim, em
relação à absolvição sumária do procedimento do júri, à
decisão que concede habeas corpus, como também àquela
47 Habeas Corpus nº 73.338-7, impetrado em favor de José Carlos Martins
Filho em face do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator Min.
Celso de Mello. Acórdão da 1ª Turma, publicado no Ementário nº 1.855-2, do
Supremo Tribunal Federal.
que concede a reabilitação (artigo 746 do Código de Processo
Penal), ou ainda arquiva inquérito ou absolve acusado, em
crime contra a saúde pública ou economia popular (artigo 7o
da Lei no 1.521/51), deve o juiz, independentemente de
provocação, submetê-la ao reexame obrigatório.
Ada Grinover, Antônio Magalhães e Antônio Scarance
asseveram que não encontra embasamento a classificação
dos recursos, quanto à iniciativa, em voluntários e de ofício.
Para os doutrinadores, qualquer recurso depende da
iniciativa da parte, sendo sempre meio voluntário de
impugnação.48 Daí concluem que o chamado recurso de
ofício se apresenta como condição de eficácia da sentença.
Apesar disso, a doutrina tem considerado a categoria jurídica
em questão como recurso, malgrado anômalo49 ou
necessário,50 cujo fundamento reside em se tratar de
exigência do Estado, ditada por razões diversas, para
assegurar obrigatoriamente, o duplo grau de jurisdição...
para maior tutela dos interesses em jogo.51
Por isso, igualmente é recusada a alegação de sua
inconstitucionalidade por contrastar com a norma
predisposta no artigo 129, inciso I, da Constituição da
República, conforme leciona Mirabete.52
Com a devida vênia dos que defendem ponto de vista
contrário, nossa posição está em não ter sido acolhido pela
Constituição, com a conformação que atualmente lhe defere
a lei processual, o chamado recurso de ofício.
Sem dúvida alguma, não se trata de recurso, pois como
tal entendemos o desdobramento do exercício dos direitos de
48 Grinover, Ada Pellegrini; Gomes Filho, Antônio Magalhães; Fernandes,
Antônio Scarance. Recursos no Processo Penal, São Paulo: RT, 1996, p. 34.
49 Mirabete, Processo Penal, p. 587.
50 Tourinho Filho, Processo Penal, tomo 4, p. 263.
51 Idem, p. 266.
52 Convém analisar a decisão proferida no Recurso em Sentido Estrito nº
248/97-Cabo Frio, pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro, relator Desembargador Paulo Ventura, dando integral aplicação à
Súmula 423 do e. Supremo Tribunal Federal (Não transita em julgado a
sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex
lege).
ação e de defesa, que deve exigir como requisito prévio o
interesse da parte, e promover, no seu processamento, de
acordo com as normas de um devido processo legal, o
contraditório interpretado como a dialeticidade que limitará
o meio de impugnação, objetiva e subjetivamente, e
proporcionará melhores condições de uma justa solução do
conflito.
Como não há contraditório possível entre juiz e acusado
no processo penal inspirado pelo princípio acusatório e como
temos como imperativo constitucional este princípio,
verdadeira condição de validade constitucional dos atos
processuais, a sua dedução, visando impugnar decisão
favorável ao acusado, é contrária à Constituição.
É preciso que se afirme claramente que, mesmo despido
da roupagem de recurso, pela ausência do requisito da
voluntariedade, o duplo grau obrigatório está previsto na lei
exclusivamente para condicionar a eficácia de decisões
favoráveis ao acusado, tais como as que o absolvem
sumariamente, no procedimento do júri ou por crime contra
a saúde pública, ou ainda julgam procedente pedido de
habeas corpus.
Não há como disfarçar que o interesse público (estatal?)
protegido mediante a atual conformação do duplo grau
confunde-se com os interesses de defesa social que são
perceptíveis a partir da consideração da repressão penal
como vetor de uma ordem social que prestigia tal tutela
prioritariamente.
Em tudo se assemelha a disposição ao contido no inciso
II do artigo 669 do Código de Processo Penal, que prevê que
só depois de passar em julgado a sentença absolutória, por
crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por
tempo igual ou superior a oito anos, será ela exeqüível.
À evidência o requisito acima mencionado, quanto à
suspensão da imediata execução da sentença (art. 669, inciso
II, do Código de Processo Penal), não tem mais aplicação
porque atinge de plano o princípio da presunção da
inocência. Se o réu é presumido inocente mesmo diante de
sentença condenatória ainda passível de ser impugnada por
recurso, por óbvio que com mais razão atuará o princípio se
houver sido absolvido, não concorrendo em nenhum sentido
a quantidade de pena cominada ou a gravidade da infração
penal. Somente em um Estado extraordinariamente
displicente com os princípios basilares das liberdades
públicas, semelhante norma haveria de produzir efeito.
E é exatamente isto o que ocorre com o recurso de
ofício, no processo penal brasileiro, hoje. O acento da
preocupação do legislador não está, como deveria, na
adequada tutela dos direitos fundamentais, de que tanto se
falou neste trabalho. A ênfase toda recai na suspeição
incidente sobre sentenças favoráveis ao acusado (ou
investigado, ou condenado, no caso do habeas corpus), que
podem indevidamente beneficiá-lo.
Ora, não é possível esconder que a dúvida sobre o acerto
de tal tipo de decisão representa uma dupla desconfiança:
primeiramente, suspeita-se que o juiz não saiba apreciar
corretamente os casos em que beneficia o acusado, muito
embora, quando a sentença é condenatória, não se presuma
a mesma dificuldade; em segundo lugar, e mais uma vez,
admite-se que o Ministério Público pode ficar
negligentemente inerte diante de decisão injusta ou nula
favorável ao réu, apesar de também não se cogitar de
negligência se a decisão é contrária ao acusado.
Em ambos os casos, a tutela levada a efeito nada mais
significa que uma presunção contra a inocência do agente,
presunção que além de tudo está calcada na suposição da
inércia do Ministério Público e, portanto, na necessidade de
prolongar o processo penal para além do provimento judicial
de resolução do conflito acatado pelas partes.
Há contraste com o princípio acusatório. Mas esta
confrontação seria aceitável, na perspectiva constitucional,
se estivesse voltada à tutela dos interesses do acusado. Nesta
hipótese, o princípio da proporcionalidade, somado ao favor
rei e inspirado no de justiça material, justificariam a
compressão das normas que positivam o princípio
acusatório. Um recurso de ofício de decisão condenatória,
aplicando pena de prisão por longo período, em regime
rigoroso, violaria o sistema acusatório, todavia poderia ser
aceito em face do critério de proporcionalidade antes
mencionado.
Como acontece exatamente o oposto, há de ser afastado
o duplo grau obrigatório ou recurso de ofício. 53
Da compreensão cênica
Neste capítulo 4, dedicado ao Sistema Acusatório e o
processo penal brasileiro, na terceira edição acrescento este
item, sobre posicionamento das partes em sala de
audiências.
Para o leitor estrangeiro desta obra (se é que existe)
falar em assento das partes em sala de audiências criminais
pode parecer, à primeira vista, incompreensível. Afinal, na
caminhada em direção ao estabelecimento do status de
autonomia das partes frente ao juiz, que marca o
enraizamento do Sistema Acusatório no resto do mundo, o
lugar ocupado pelas partes na sala de audiências é
considerado projeção desse status e tem a finalidade de
deixar evidente a independência do Ministério Público e da
Defesa em relação ao juiz.
E o Sistema Acusatório é isso: ausência de vínculo de
subordinação das partes ao juiz e compreensão de que, se o
juiz tem o poder de decidir, as partes têm o direito de
participar do processo e cooperar no sentido de que se
produza a melhor (mais justa) decisão possível.
Em todos os lugares, portanto, é questão elementar
distinguir o Ministério Público do Tribunal, assegurando ao
Ministério Público local na sala de audiências que não o
confunda com o juiz.
Há, porém, as jaboticabas. Estas são tipicamente
brasileiras, já se disse. Talvez elas não sejam os únicos
produtos exclusivamente brasileiros que deram certo. Por
53
Marcellus Polastri Lima igualmente salienta a inconstitucionalidade do
recurso de ofício, com precisa fundamentação, com a qual concordamos. Curso
de Processo Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 151.
cautela, porém, não devemos nos esquecer da advertência do
escritor: cuidado com o que só existe no Brasil e não é
jaboticaba!
A razão dessas linhas é comentar que a combinação de
princípios e regras que compõem o Sistema Acusatório,
definindo seus elementos, deve ultrapassar o umbral das
coisas teóricas e chegar à cultura. Sem a vivência cotidiana a
nos revelar as contradições entre o dever ser de respeito às
igualdades e o ser concreto de frustração deste objetivo, nós
brasileiros em determinado momento chegamos a achar
natural e perfeita a instituição da escravidão.
Muitas vezes somente a ruptura tem capacidade de
transformar a realidade. Persuadir as forças dominantes a
abrir mão da situação de conforto gerada pela dominação é
acreditar em uma inocência do poder desmentida no dia-adia.
Para a ruptura, porém, é preciso antes a posição de
estranhamento. São os antropólogos que nos lembram disso.
Quando todos os conviventes de uma determinada sala
diariamente se encontram e estão de terno e gravata, há a
tendência a aceitar que os demais seres viventes também
usam terno e gravata o dia todo! É preciso, pois, estranhar,
duvidar da normalidade das coisas e fixar o espírito
questionador para buscar na história a razão de ser das
categorias e instituições do direito e, sendo o caso,
transformá-las.
A se acreditar na ―normalidade‖ da escravidão,
estaríamos ainda hoje sob a égide do estado anterior à Lei
Áurea, que libertou os escravos no Brasil em 13 de maio de
1888. A tradição que nos orienta é aquela que condiz com os
propósitos democráticos de expansão da liberdade que, no
passado, era bem de posse de poucos, mas hoje é promessa
constitucional para a fruição de todos.
Feita a digressão necessária é o caso de registrar que em
nenhum outro país o Ministério Público com atuação na área
criminal se senta no lugar destinado ao tribunal, isto é, ao
lado do juiz. Não se trata de um problema na Europa ou nos
Estados Unidos da América, pois quando o Ministério
Público conquistou autonomia em face do juiz, com o fim da
inquisição, conquistou, conseqüentemente, o direito de não
ser confundido com o tribunal. Trata-se de direito do
Ministério Público.
Por que no Brasil, hoje, ainda é diferente e na sala de
audiências criminais o Ministério Público se senta ao lado do
juiz?
O antropólogo Roberto DaMatta, na explêndida análise
do dilema brasileiro e no tópico dedicado à igualdade,
formula uma tentativa de explicar outra genuína criação
brasileira: o argumento de autoridade expresso na máxima
―você sabe com quem está falando!‖
De acordo com Roberto DaMatta, a definição de traços
hierarquizantes na sociedade brasileira, percebida por
Machado de Assis, explica a reinvenção do princípio da
igualdade, por meio da qual a posição social assegura a
validade do argumento que é empregado não para
convencer, mas para dissuadir.54
Na realidade, segundo nossa ótica, a diferença do estado
da matéria no Brasil, em comparação com outros países, é
ditada pelo fato de não ter se completado o processo de
autonomia do Ministério Público.
Com efeito, o Ministério Público é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado. Isso
é indiscutível. Também merece ser colocado em relevo que
em sociedades com baixa densidade de organização social,
como é o nosso caso, instituições como o Ministério Público
são fundamentais para a consolidação da democracia, pois
que postulam a tutela efetiva de direitos difusos e coletivos
que beneficiam grandes setores da população que, de outra
maneira, estariam fora do circuito de gozo desses direitos.
De 1988 para cá o Ministério Público deu passos largos
para ocupar espaço condizente com as funções
constitucionais e hoje, no horizonte das vitórias que a
democracia brasileira computa é inegável a parcela de
54
DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro, 6ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p. 203.
responsabilidade dessa instituição.55
A autonomia administrativa, econômica e financeira do
Ministério Público também foi alcançada em boa medida, da
mesma forma que o poder de gestão da própria instituição
com independência do poder de origem político-partidária.
A questão examinada neste tópico se coloca, pois, com
exclusividade na seara penal. E o campo penal, no Brasil,
como demonstrado ao longo do trabalho, que tem ficado
impermeável à cultura da acusatoriedade.
Foi visto como ainda hoje se defende a existência de
poderes probatórios do juiz. Ligou-se o fato à idéia de que a
jurisdição penal está inserida no programa de segurança
pública do Estado e não dirigida à defesa das garantias
processuais, entre as quais há de ser ressaltado o direito ao
julgamento por juiz imparcial. Salientou-se que o mesmo
ocorre quando se trata de deferir ao juiz o poder de modificar
o conteúdo da acusação (mutatio libelli). Em ambas as
situações a ordem jurídica infraconstitucional procura
enquadrar as funções do Ministério Público, que é olhado
com desconfiança, como se seus membros não pudessem ser
dotados de liberdade para agir em defesa da sociedade. É
preciso, segundo a lógica inquisitorial que preside estes
institutos (artigos 156, parte final, e 384 do Código de
Processo Penal), transformar o juiz em fiscal do Ministério
Público. E isso é feito desde antes do processo (artigo 28 do
Código de Processo Penal), com a atribuição ao juiz do
controle da obrigatoriedade da ação pública.
Como sabem os sociológos56 as práticas sociais têm
55
Basta ver neste ano de 2005 as ações efetivas do Ministério Público contra a
remanescência do trabalho escravo e a negação de efetividade aos direitos à
saúde e educação. Com base em ações coletivas promovidas pelo Ministério
Público, vários grupos de pessoas foram libertados da cndição análoga a de
escravo e outros tantos tiveram acesso a remédios e escolas que, de outro modo,
não ficariam acessíveis.
56
Convém examinar a pesquisa coordenada por Sérgio Adorno, na USP,
intitulada Dossiê Judiciário.: Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as
mortes que se contam no Tribunal do Júri (Revista USP, 21, março-abril-maio
de 1994, p. 132).
mais força que as ordens do direito emanadas
abstratamente. Não fossem suficientes as amarras jurídicas
mencionadas, a enlaçar o Ministério Público ao juiz, colocase o próprio Promotor de Justiça fisicamente ao lado do juiz.
É claro que além da óbvia mensagem subliminar
endereçada ao réu, de que a justiça penal tem função
repressiva, motivo pelo qual juiz e Ministério Público estão
aliados na tarefa de punir, há outra igualmente sutil, dirigida
ao próprio Ministério Público. Segundo esta interpretação, a
posição do Ministério Público ao lado do juiz é justificada
por discurso que ressalta a importância da instituição,
todavia deixa abaixo da superfície a intenção de controle
judicial das funções de persecução.
Não há dúvida de que os objetivos latentes podem não
se realizar por conta da autonomia com que cada membro do
Ministério Público se comporta. Isso, também, é aplicável ao
instituto da mutatio libelli, à produção de provas de ofício
pelo juiz e à posição do Procurador-Geral de Justiça, que no
exercício da atividade posta pelo artigo 28 do Código de
Processo Penal poderá manter o ponto de vista (decisão) do
Ministério Público que oficiou pelo arquivamento da
investigação criminal.
A questão está naquilo que foi objeto de advertência no
início do trabalho. Em uma democracia privilegia-se o
governo sob a égide das leis e não de acordo com a
arbitrariedade incontrolável do ser humano.
Assim, não basta ao juiz a confiança na própria
imparcialidade. É necessário que se afaste do processo se
antes funcionou como perito (artigo 252 do Código de
Processo Penal). Assim, não basta para as partes (Ministério
Público e Defesa) confiança na autonomia do Ministério
Público e na não intervenção do juiz na atuação do
Ministério Público. É necessário que o Ministério Público
ocupe o seu lugar de parte, na sala de audiências, mantendo
o juiz eqüidistante do Ministério Público e da Defesa.
Essas são considerações sobre o tema que, em
realidade, não deixam de levar em conta os argumentos
apresentados pelos juzes criminais do Rio de Janeiro,
Rubens Casara e André Nicolitt, nas decisões pioneiras
proferidas na 2ª Vara Criminal de Itaperuna (MS/proc.
2004.078.00039) e em Arraial do Cabo (proc.
2003.005.000056-7), objeto de mandado de segurança, com
base em conceitos defendidos por Hassemer e Habermas.
Também foram considerados os argumentos do voto
condutor do acórdão proferido na Sétima Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pelo
Desembargador Eduardo Mayr, Relator do Mandado de
Segurança n. 035/04, que manteve a decisão de deslocar o
Ministério Público da posição ao lado do juiz para outra
simétrica a da Defesa e a tese exposta pelo jurista e
Desembargador do Rio de Janeiro, Silvio Teixeira, citado por
Rubens Casara nas informações do mandado de segurança.
Por igual foram considerados os argumentos de Lênio
Luiz Streck, em artigo denominado A CONCEPÇÃO CÊNICA
DA SALA DE AUDIÊNCIA E O PROBLEMA DOS
PARADOXOS, recebido com carinho e que em breve será
publicado no site www.leniostreck.com.br.
Conclusão do capítulo 4
De tudo o que foi visto é possível ratificar a advertência
feita no começo deste item. Tal seja, de que no Brasil,
certamente não é tarefa fácil assinalar com precisão, acima
dos interesses que movem os juristas, motivados pelo
sentido e função que atribuam ao Processo Penal e pela
maneira como viveram a experiência política do seu tempo,
que sistema processual vigora ou que sistema em outras
épocas imperou.
Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que
assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício
da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos
os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e
contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado
da sentença condenatória, a presunção da inocência, e a que,
aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente
e imparcial, são elementares do princípio acusatório,
chegaremos à conclusão de que, embora não o diga
expressamente, a Constituição da República o adotou.
Verificando que a Carta Constitucional prevê, também,
a oralidade no processo, pelo menos como regra para as
infrações penais de menor potencial ofensivo, e a
publicidade, concluiremos que se filiou, sem dizer, ao
sistema acusatório.
Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos
sujeitos processuais e a dinâmica que entrelaça todos estes
sujeitos, de acordo com as posições predominantes nos
tribunais (principalmente, mas não com exclusividade no
Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa salvo
admitir, lamentavelmente, que prevalece, no Brasil, a teoria
da aparência acusatória.
Muitos dos princípios opostos ao acusatório
verdadeiramente são implementados todo dia. Tem razão o
mestre Frederico Marques ao assinalar que a Constituição
preconiza a adoção e efetivação do sistema acusatório.
Também tem razão Hélio Tornaghi, ao acentuar que há
formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo
penal brasileiro, o que melhor implica em considerá-lo, na
prática, misto. O princípio e o sistema acusatórios são, por
isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um
novo Código de Processo Penal e um novo fundo cultural,
consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar
realidade.
5. -O Sistema Acusatório e a Legislação
Processual Posterior à Constituição
Um exame mesmo superficial da Constituição da
República revela ao estudioso do Direito Penal que a
preocupação dos constituintes, em matéria penal, não se
restringiu somente à determinação de normas de conteúdo
ético-jurídico, voltadas à contenção do poder punitivo
estatal, mas agora, também, demonstrou significativa
mobilização, em face da disposição de juízos de valor sobre a
substância da proibição.
Trata-se de uma perspectiva de incriminação de
condutas cogitada pela própria lei maior.
Temos, assim, a previsão, no artigo 98, inciso I, da
instituição de juizados especiais criminais, competentes para
o julgamento de infrações penais de menor potencial
ofensivo,1 correspondendo tal juízo à tese, amplamente
difundida na Alemanha e em outros países, de que há um
número importante de fatos delituosos que justificam a
intervenção do Estado, porém não exigem, como natural
contrapartida, a imposição de graves sanções penais.
No pólo oposto, há as infrações de especial ou maior
gravidade, tendo a Constituição se referido diretamente aos
crimes hediondos, à tortura, ao tráfico ilícito de
entorpecentes, ao terrorismo, à prática de racismo e à ação
de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem
1
Artigo 98, inciso I, da Constituição: A União, no Distrito Federal e nos
Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por
juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o
julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e
infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos
oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a
transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro
grau.
constitucional e o Estado Democrático.2
Em todos os casos, é possível perceber o reflexo
imediato da atitude constitucional no campo processual, não
só pela mecânica de compressão dos direitos fundamentais,
com diferentes propósitos, mas também porque o
procedimento penal consensual não pode ser exatamente
igual ao de apuração de infrações penais mais sofisticadas.
A natureza desigual das ações delituosas e das formas
mais recomendadas à eficácia da apuração, levando em
consideração os fins manifestados pela Carta Constitucional,
impele o ordenamento jurídico a estruturar diferentes
procedimentos. A isso podemos denominar princípio da
adequação dos procedimentos, cujos mandamentos têm por
destinatários tanto o legislador como o juiz penal.
Dedicaremos este capítulo ao estudo das características
do modelo processual pertinente à investigação da
denominada ação de organizações criminosas, daquele
relativo às infrações penais de menor potencial ofensivo, e da
disponibilidade jurídica de uma importante técnica de
aquisição de provas — a interceptação das comunicações
telefônicas —, não avançando sem, antes, advertir que
objetivo da abordagem não é o de comentar as leis, mas de
verificar apenas aquilo que nelas as vincula ao sistema
acusatório, eleito também na Constituição da República,
teórica e praticamente.
Comecemos, pois, em obediência à ordem cronológica
do aparecimento dos diplomas legais e à forma instrumental
como se articulam.
2
Artigo 5º, inciso XLII, da Constituição: a prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos
da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de
graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles
respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se
omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de
grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o
Estado Democrático.
5.1. -A Lei de Controle do Crime Organizado3 e a Lei
das Interceptações Telefônicas
Observo ao leitor que permanecem válidas todas as
objeções formuladas sobre o tema nas duas primeiras
edições do Sistema Acusatório.
Assim, a análise crítica acerca da cultura inquisitorial
identificada na aceitação inicial da aplicação do artigo 3º da
Lei nº 9.034/95, percebida no indeferimento de medida
liminar em ação direta de inconstitucionalidade promovida
pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil –
ADEPOL – (ADI 1517 MC/UF), sob o argumento de que as
atividades de investigação do juiz, na fase de inquérito, não
violavam regras constitucionais, é válida, ainda que o
Supremo Tribunal Federal tenha mudado completamente
sua posição.
Por maioria de votos, Tribunal Pleno do Supremo
Tribunal Federal decidiu julgar procedente pedido em ação
direta de inconstitucionalidade proposta pelo ProcuradorGeral da República, com o mesmo objeto, e declarar a
inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que
instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF, rel.
Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de
2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso).
São vários, porém, os projetos de lei com previsão de
criação da figura do juiz de instrução no Brasil e a atualidade
da crítica reforça a tarefa de defesa da Constituição da
República de 1988, que também está a cargo da doutrina.
Também a análise sobre sigilo bancário está superada
pelo advento da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de
2001.
Por isso e pelo valor histórico dos argumentos que
foram apresentados por ocasião de defesa pública deste
trabalho, o texto a seguir foi mantido inalterado.
3
A respeito do tema, remeto o leitor ao nosso trabalho Crime Organizado,
Rio de Janeiro: Impetus, 2000.
Em 4 de maio de 1995, entrou em vigor a Lei no 9.034,
que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a
prevenção e repressão de ações praticadas por
organizações criminosas.
A iniciativa demonstra a preocupação dos poderes
públicos com a adequação da legislação, para tentar
controlar o crime organizado, na seqüência da tendência de
aumento da repressão, denominada de filosofia, política
criminal ou movimento de Lei e Ordem, em consideração ao
afirmado incremento da criminalidade violenta e sofisticada.
Em concreto, a lei editada procurou aparelhar os órgãos
encarregados do controle social repressivo, conferindo,
especialmente ao Judiciário, instrumentos normativos, por
meio dos quais deseja alterar o panorama processual,
incentivando a participação do juiz na busca da verdade real.
Na época da edição da mencionada lei, comentamos que
foram instituídas, para isso, novas atribuições do juiz.4
Acentuávamos, já naquele momento, que a busca das provas
da autoria e da existência da infração penal, pelo juiz, por
mais grave que possa parecer o delito, compromete a
imparcialidade daquele que vai decidir, dentro de uma
perspectiva de que a jurisdição difere do exercício da ação
penal e que este, por sua vez, não se resume a deflagrar-se o
processo por meio da petição inicial, compreendendo, ainda,
as práticas da ação cautelar, no tocante à aquisição e
preservação das provas, além dos demais atos desenvolvidos
no curso do processo de conhecimento, com o escopo de
conformar a convicção judicial.
Tratando a lei da disciplina da persecução preparatória
da ação penal, inseriu o juiz nesta tarefa, em que pesem às
conseqüências do seu envolvimento, nas atividades
preliminares à apresentação da lide.
Repita-se, portanto, que, pelo menos do ponto de vista
psicológico, por mais sereno que seja o magistrado, sua
inserção na mencionada atividade implicará certo grau de
4
Prado, Geraldo; Douglas William. Comentários à Lei Contra o Crime
Organizado, Belo Horizonte: Del Rey, 1995.
comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o
julgador do ponto de equilíbrio que, como garantia das
partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial.5
Com efeito, a imparcialidade do juiz é o pilar de
sustentação do tríptico do princípio acusatório, basilar em
um processo penal democrático, de tal sorte que lhe entregar
funções diversas daquelas típicas do exercício da jurisdição
— dizer o direito e atuá-lo praticamente — acaba
desnaturando o instrumento.
Apesar dos avisos de preocupação que na ocasião
emitimos, concretamente acabamos por sustentar que não se
devia, a priori, acoimar de inconstitucional a entrega de
atividades probatórias ao juiz, na fase preliminar, porquanto,
ainda que limitadamente, este teria condições de desenvolver
a sua atuação com base nos poderes processuais conferidos
pelo abordado artigo 156, parte final, do Código de Processo
Penal ou, com maior freqüência, ou propriedade, no âmbito
do processo penal cautelar, preservando os direitos
fundamentais do investigado.
Acrescentamos que, nas hipóteses em que a obtenção e
seleção de dados viessem a servir de pilar da denúncia, não
estaria o magistrado impedido de funcionar no processo de
conhecimento, salvo se resultasse da instrução preliminar a
emissão de um juízo de valor.
Hoje vemos este posicionamento como típica
interpretação da lei, em conformidade com a Constituição,
porém, contra legem, modalidade interpretativa reputada
por Canotilho como inapta a conferir validade à norma
interpretada.
Segundo o mestre português, impõe que o aplicador de
uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa
norma através de uma interpretação conforme à
constituição, mesmo que através dessa interpretação
5
Garantia forte, assinalaria Ferrajoli, como tal classificando aquelas que, em
um sistema garantista, comportam diretamente a nulidade dos desvios, a
minimização da discricionariedade dos poderes de investigação e a
supressão dos poderes de disposição impróprios, cujo exercício é fonte
inevitável de abusos (Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 594).
consiga
uma
concordância
entre
a
norma
infraconstitucional e as normas constitucionais.6
Ao afiançarmos a constitucionalidade dos dispositivos
da Lei no 9.034/95, designadores ao juiz de funções de
persecução,7 porque poderia dar cabo delas com isenção,
sem parcialidade, ou com fundamento em uma intervenção
cautelar jurisdicional, assinalamos à lei uma interpretação
que não condiz com a sua letra e com o seu espírito.
O que realmente deseja o legislador é maior eficácia
persecutória, mais repressão, e por essa razão antecipa a
intervenção judicial e oferece ao juiz as condições que o
titular da ação penal deveria dispor, para preparar-se com
vista à deflagração da citada ação, e exigindo do magistrado,
em troca, sutilmente, a incorporação de um interesse público
ou institucional voltado à repressão dos delitos.
No mesmo sentido, em 24 de julho de 1996, foi editada
a Lei no 9.296, que regulamenta o inciso XII do artigo 5o da
Constituição, dispondo sobre os casos e formas de
interceptação das comunicações telefônicas.
O que nos interessa para o exame da conformidade ao
sistema acusatório é o artigo 3o, caput, pelo qual são
designados os legitimados a por em marcha o procedimento,
aparecendo menção à atuação do juiz, de ofício,8 enquanto
ao acusado e seu defensor negou-se qualquer referência
expressa.
Reafirma-se que a pesquisa e seleção de provas,
6
7
8
Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, pp. 235-236.
Funções que este deve desempenhar pessoalmente, recolhendo e
selecionando informações que venham a servir de suporte para potencial
acusação
Artigo 5º, inciso XII, da Constituição: é inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das
comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas
hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação
criminal ou instrução processual penal; artigo 3º da Lei nº 9.296/96: A
interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo
juiz, de ofício, ou a requerimento: I — da autoridade policial, na
investigação criminal; II — do representante do Ministério Público, na
investigação criminal e na instrução processual penal.
principalmente se não há ação penal proposta, para o
julgador importa na emissão, expressa ou tácita, de juízos de
mérito antecipados, que não se confundem, por exemplo,
com as sentenças estatuídas no artigo 516 do Código de
Processo Penal — que rejeitem a denúncia ou queixa em vista
do convencimento da improcedência da ação penal — ou
que igualmente rejeitem a inicial acusatória fundada na falta
de justa causa, porquanto nestes casos a ação penal é
proposta pelo autor, que para ela se prepara sem a
colaboração do juiz.
Muito embora não se controverta sobre o fato de que a
preservação do sistema acusatório não inviabiliza a adoção
de medidas destinadas a garantir o êxito ou evitar a
frustração dos processos de conhecimento condenatório e de
execução penal, tratando-se aí de tutela cautelar. Também
neste caso são requisitadas as manifestações dos
interessados (a Polícia ou o virtual autor da ação penal)
consoante as considerações anteriores, não tendo sentido
que o juiz atue de ofício, implementando providências que se
mostrem inúteis para aqueles interessados ou denunciem a
suspeita do juiz em relação ao investigado — com a inversão,
na prática, do princípio da presunção da inocência.
Numa solução de compromisso, chegamos a concluir, a
respeito da Lei no 9.034/95, que só seriam considerados
constitucionais os atos do juiz, relativos à obtenção,
pessoalmente, de elementos de prova, se decorrentes da
necessidade da medida, na presença do fumus boni juris,
devendo, todavia, à vista da imprescindível preservação da
imparcialidade do julgador, dar-se este por impedido sempre
que, à colheita de dados ou informações, seguir-se a sua
seleção, de modo a executar tarefa típica de perito.9
Pode-se compreender a dificuldade de conciliação dos
preceitos, à luz da matéria que se avalia, e que, com efeito,
consiste nas disposições adiante transcritas, reforçadas,
posteriormente, pela regulação da interceptação das
9
Prado, Geraldo e Douglas, William. Comentários à Lei Contra o Crime
Organizado, pp. 36-37.
comunicações telefônicas como meio de prova:
Art. 3o Nas hipóteses do inciso III, do art. 2o
desta Lei, ocorrendo possibilidade de violação de
sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a
diligência será realizada pessoalmente pelo juiz,
adotado o mais rigoroso segredo de justiça.
§ 1o Para realizar a diligência, o juiz poderá
requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza
da função ou profissão, tenham ou possam ter
acesso aos objetos do sigilo.
§ 2o O Juiz, pessoalmente, fará lavrar auto
circunstanciado de diligência, relatando as
informações colhidas oralmente e anexando cópias
autênticas dos documentos que tiverem relevância
probatória, podendo, para esse efeito, designar
uma das pessoas referidas no parágrafo anterior
como escrivão ad hoc.
§ 3o O auto de diligência será conservado fora
dos autos do processo, em lugar seguro, sem
intervenção de cartório ou servidor, somente
podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as
partes legítimas da causa, que não poderão dele
servir-se para fins estranhos à mesma, e estão
sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal em
caso de divulgação.
§ 4o Os argumentos de acusação e defesa que
versarem sobre a diligência serão apresentados
em separado para serem anexados ao auto da
diligência, que poderá servir como elemento na
formação da convicção final do juiz.
§ 5o Em caso de recurso, o auto de diligência
será fechado, lacrado e endereçado em separado
para o juízo competente para a revisão, que dele
tomará conhecimento sem intervenção das
secretarias e gabinetes, devendo o relator dar
vistas ao Ministério Público e ao Defensor em
recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o
julgamento sejam mantidos em absoluto segredo
de justiça.
Luiz
Flávio
Gomes
apresentou
objeção
à
constitucionalidade dos referidos dispositivos que,
inegavelmente, deferem ao juiz iniciativas probatórias,
assinalando que a lei de controle do crime organizado
acabou criando... uma monstruosidade, qual seja, a figura
do juiz inquisidor, nascida na era do Império Romano, mas
com protagonismo acentuado na Idade Média.10
Salienta o culto professor paulista, na esteira do
magistério de Ferrajoli, que o sistema acusatório configurase à base de um juiz como sujeito passivo, rigidamente
separado das partes, ao passo que, no sistema inquisitório, o
juiz procede de ofício, na busca das provas,11 sendo
exatamente essa última a atitude esperada dele, pelo
legislador, diante dos diplomas estudados.
A motivação psicológica ou social do deslocamento da
figura do juiz, conforme a função de investigação que lhe é
designada pelas citadas leis, consiste em uma concepção do
poder jurisdicional e da verdade que a sentença há de conter,
ao final de um virtual processo condenatório, em tudo
distinta dos padrões epistemológicos encarnados pelo
sistema acusatório. Ferrajoli aduz com convicção que o
método
inquisitivo
expressa
uma
confiança
tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua
capacidade de alcançar a verdade.12 É exatamente esta
confiança resoluta na bondade do poder que o sistema
acusatório renega, afastando o juiz do conflito, antes da sua
dedução pelas partes, e complementando a atividade
jurisdicional com preceitos de oralidade, publicidade,
legalidade dos procedimentos e motivação das decisões, pois
que se tem por premissa a desconfiança no poder como fonte
10
11
12
Gomes, Luiz Flávio. Crime Organizado: Enfoques criminológico, jurídico
(Lei 9.034/95) e Político-criminal, 2ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 133.
Idem, p. 135.
Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 604.
autônoma da verdade.13
Muito embora a concordância das duas afirmações que
se seguem tenha a aparência de uma evidência, incontestável
à primeira vista, uma delas a respeito da eleição
constitucional do sistema acusatório e, portanto, do
princípio que lhe confere a designação, e a outra, resultante
do reconhecimento que, ao atribuir ao juiz a realização
pessoal de diligências de investigação, com seleção do
material apurado, sem provocação dos interessados, tais
sistema e princípio são violados, concretamente o Supremo
Tribunal Federal não a aceita assim e se posiciona
diferentemente.14
Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram
propostas perante a e. Corte, com pedido de medida liminar,
sob o fundamento da invalidade de se conferir as atividades
persecutórias em questão ao juiz, sendo certo que, até a
presente data, apenas um dos casos foi apreciado,
indeferindo-se a liminar. Vale, pelo que importa em termos
de assinalar à eleição do sistema acusatório uma
constitucionalidade meramente simbólica, na linha
preconizada por Marcelo Neves, transcrever a nota do
julgamento da liminar, pelo Plenário, divulgada no
Informativo no 69, de 28 de abril a 5 de maio de 1997, do eg.
Supremo Tribunal Federal:
Diligências realizadas por juiz - I
Indeferida a cautelar requerida pela
Associação dos Delegados de Polícia do Brasil —
ADEPOL em ação direta de inconstitucionalidade
contra o art. 3o e seus parágrafos da lei federal no
13
Idem.
Ver mudança de posição do Supremo Tribunal Federal, noticiada no início
deste item O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar
procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo
Procurador-Geral da República, para declarar a inconstitucionalidade do artigo
3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF,
rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de 2004, com voto
vencido do Ministro Carlos Velloso).
14
9.034/95, que — dispondo sobre o acesso a dados,
documentos e informações fiscais, bancárias,
financeiras e eleitorais durante a persecução
criminal que verse sobre ação praticada por
organizações criminosas — estabelece que,
―ocorrendo possibilidade de violação de sigilo
preservado pela Constituição ou por lei, a diligência
será realizada pessoalmente pelo juiz‘ o qual ‗fará
lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando
as informações colhidas oralmente e anexando
cópias autênticas dos documentos que tiverem
relevância probatória...‖. A referida lei determina,
ainda, que ―o auto de diligência será conservado
fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem
intervenção de cartório ou servidor, somente
podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as
partes legítimas na causa, que não poderão dele
servir-se para fins estranhos à mesma, e estão
sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal, em
caso de divulgação‖.
Diligências realizadas por juiz - II
O Tribunal, por maioria de votos, entendeu
que os argumentos sustentados pela autora da
ação — usurpação da função de polícia judiciária
(CF, art. 144, § 1o, IV, e § 4o), ofensa ao devido
processo legal (art. 5o, LIV) devido ao
comprometimento da imparcialidade do juiz na
apreciação de provas por ele próprio colhidas e
ofensa ao princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX)
— não possuíam a relevância jurídica necessária
para o deferimento da liminar. À vista dessas
alegações, considerou-se: a) que o magistrado tem
poderes instrutórios e a investigação criminal não
é monopólio da polícia judiciária; b) que a coleta
de provas não antecipa a formação de juízo
condenatório; c) que a CF autoriza restrições ao
princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX). Vencido
o Min. Sepúlveda Pertence, que deferia a liminar
por violação ao princípio do devido processo legal
por entender que a coleta de provas desvirtua a
função do juiz de modo a comprometer a
imparcialidade deste no exercício da prestação
jurisdicional. ADIN 1.517-DF, Rel. Min. Maurício
Corrêa, publicada em 30 de abril de 1997.15
Sublinhando o Supremo Tribunal Federal a existência
de poderes judiciais de investigação, opta a e. Corte por uma
concepção restrita de princípio acusatório, excluindo do
conceito os elementos pertinentes à atuação do juiz, na
instrução, e sinalizando neste sentido não apenas na direção
dos procedimentos que a Lei no 9.034/95 criou, como
também em relação a todos aqueles instituídos para o
processo penal de conhecimento condenatório, o que vai
refletir, sem dúvida, na validade da interceptação telefônica
determinada de ofício. Ada Grinover, militando entre os que
declaram a inconstitucionalidade dos citados preceitos da Lei
no 9.034/95,16 concita a não-aplicação desta lei, editada
muito mais em conta da sua eficácia simbólica, como
verdadeiro e acabado exemplo de legislação-álibi, do que
propriamente por causa de alguma fé inabalável nos
predicados intelectuais dos juízes.
Outro importante ponto de (des)conexão com o sistema
acusatório, na Lei nº 9.034/95, refere-se à publicidade dos
procedimentos.
Deve ser observado que o cuidado que a legislação
aparenta dispensar à intimidade e vida privada pode ser
alcançado sem distorção do sistema acusatório, e com a
exigência, aliás sempre presente, em se cuidando de
15
As Ações são as seguintes: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.517-6DF, requerida pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil —
ADEPOL, sendo relator o Ministro Maurício Corrêa, e Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 1.570-2-DF, requerida pelo Procurador-Geral da
República, sendo relator também o Ministro Maurício Corrêa.
16 Grinover, Ada Pellegrini. ―O Crime Organizado no Sistema Italiano‖, in O
Crime Organizado (Itália e Brasil): A Modernização da Lei Penal. Penteado,
Jaques de Camargo (coord.), pp. 13-29.
informações bancárias, dos interessados na aquisição dos
elementos de convicção baterem à porta do Judiciário,
requerendo-os17.
Cumpre à justiça, então, o papel que a Constituição lhe
impõe, de garante dos direitos fundamentais, sem embaraçar
a ação de investigação e atormentar a consciência dos
acusados com especulações sobre a imparcialidade do
julgador.
Exemplo disso pode ser visto na jurisprudência pacífica
do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal
Federal, que deliberaram, em várias oportunidades, antes da
edição da lei sob comento, o modo de ordenação e execução
da colheita de informações pertinentes à esfera íntima do
indivíduo. O objetivo da orientação jurisprudencial consistiu
na proteção do direito à vida privada, de índole
constitucional, isso embora o Ministério Público, mesmo
antes do advento da Lei no 8.625/93, tenha reivindicado, à
luz do artigo 29 da Lei no 7.492/86, o acesso às informações
bancárias, o que só lhe era deferido no estreito âmbito dos
crimes previstos no citado estatuto.
A este respeito, convém trazer à colação ao menos o
seguinte acórdão, do não menos prestigiado Tribunal
Regional Federal da 2a Região:
Habeas Corpus — Gerentes Administrativos
de Bancos Particulares — Quebra de Sigilo
Bancário.
I — Somente ao Poder Judiciário e às CPI‘s do
Legislativo cabe decidir sobre quebra do sigilo
bancário, ex vi do art. 38 da Lei no 4.595/64. O
dispositivo não foi revogado pelo artigo 129, VI, da
Constituição Federal que, dispondo sobre os
poderes do Ministério Público, inclui os de
17
Hoje a matéria pertinente ao sigilo bancário está tratada na Lei
Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001. Recomenda-se a leitura do
excelente livro de Juliana Garcia Belloque, Sigilo Bancário (São Paulo, RT,
2003).
requisitar informações e documentos para instruir
procedimentos
administrativos
de
sua
competência.
O pressuposto é a existência de procedimentos
administrativos de competência do Ministério
Público.
Além disso, o dispositivo carece de
regulamentação por lei complementar (art. 129,
VI). Quanto ao artigo 29 da Lei no 7.492/86,
permite ele a requisição pelo Ministério Público de
documento ou diligência a ―qualquer autoridade‖.
A autoridade, no caso, seria dirigente do
Banco Central e não o gerente do banco, que não é
titular de cargo ou função pública. Em suma,
mesmo em se admitindo a legitimidade do
Ministério Público para requisitar a quebra do
sigilo bancário em caso de crime econômico, tal
requisição deveria ter sido dirigida ao Banco
Central, ao qual poderiam as impetrantes fornecer
os dados sem incidir nas penas cominadas ao
crime de quebra de sigilo bancário.
II — Ordem de habeas corpus concedida.18
Convém destacar que no plano constitucional agitou-se
a problemática da reserva da vida privada em face dos
processos judiciais, consignando-se, textualmente, a
providência de restrição da publicidade nas estritas
hipóteses de defesa da intimidade e interesse social — artigo
5o, inciso LX, da Constituição da República — sem perda de
consistência do aspecto de garantia do sistema acusatório,
porque, em verdade, preserva do dano quer o agente, cuja
inocência se presume, quer a vitima, que poderia ficar
submetida a vexames e constrangimentos com a exibição
pública dos seus tormentos.
18
Habeas corpus nº 93.02.18736-5-Rio de Janeiro. Tribunal Regional
Federal da 2ª Região. Impetrante: Miguel Reale e outro. Relator:
Desembargador Federal Chalu Barbosa. 7/3/1994.
A esse propósito, salientou Celso Ribeiro Bastos que em
muitas circunstâncias o interesse maior de reserva se opõe à
publicidade. Sem dúvida a publicidade funciona como
garantia das partes, da coletividade em geral e do
magistrado, as primeiras colocadas ao abrigo de medidas
arbitrárias e premeditadamente injustas, a comunidade
resgatada em um conceito de controle democrático sobre os
atos judiciais, e o magistrado protegido contra insinuações e
maledicências19.
O segredo de justiça, contudo, não anula as conquistas
da democracia burguesa, relativas à exigência de motivação
das decisões judiciais, celebração do devido processo legal e,
como sua conseqüência lógica, a estabilização do
contraditório e da ampla defesa em um processo de estrutura
acusatória.
Somente quando o interesse público determinar, ou a
preservação da intimidade não puder prescindir do sigilo,
caberá excluir a publicidade, com as cautelas recomendadas
pelo artigo 93, inciso IX, da Constituição da República, sem
que fique afetado o sistema acusatório, pois se preserva, por
vassalagem à própria Constituição, o acesso à informação
pela parte e seu advogado, inclusive, se for o caso, pelo
representante do assistente, durante o processo, pois que a
assistência só poderá ser adequadamente exercida com o
conhecimento integral do material probatório.20
Ao final, a própria sentença há de ser publicada, não se
lhe colocando as fronteiras do segredo, incompatível com o
processo penal democrático, de tal sorte que os elementos de
convicção poderão vir a público para o julgamento da
opinião pública sobre a ação da própria justiça, forma
legítima de controle dos atos dos agentes estatais.
Diga-se ainda, ao final deste tópico, que a omissão do
19
Bastos, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, vol. II. São
Paulo: Saraiva, 1989, p. 285.
20
Verificar o comentário sobre a nova redação do artigo 93, inciso IX, da
Constituição da República, determinada pela Emenda Constitucional n. 45. A
matéria foi comentada neste livro quando da análise da publicidade interna do
processo.
acusado e de seu defensor entre os legitimados a propor a
interceptação das comunicações telefônicas, como meio de
demonstrar os fatos alegados e obter um resultado
processual favorável, denota inconsciente voto repressivo
quanto ao emprego da lei, com prejuízo do princípio da
paridade de armas, sequer objeto de especulação justamente
em virtude da percepção das funções repressivas da
jurisdição penal.
Esta lacuna deve ser colmatada pela aplicação do
princípio da igualdade das partes, de índole constitucional,
estendendo-se ao acusado os mesmos recursos de que pode
dispor a acusação.
Em vista do exposto, concluímos acentuando a
inconstitucionalidade do tratamento dispensado pelas Leis
no 9.034/95 e no 9.296/96 ao juiz, levando em conta a
quebra do princípio acusatório.
Somente forte inclinação cultural a favor de uma
postura tipicamente inquisitória, sem que isso possa
representar qualquer juízo de valor que não seja jurídico,
fundamenta a preservação das medidas reguladas no citado
diploma, cuja invalidade deve ser objeto de declaração, pelos
juízes e tribunais mediante recusa de aplicação da lei
inconstitucional.
No tocante à publicidade do processo, com a reserva de
que a sua limitação deve obedecer a critérios fixados pela
própria Constituição — defesa da intimidade e interesse
social — fica consignado que o procedimento do primeiro
estatuto especial só é aplicável, sem os excessos que prevê,
resguardando-se a intimidade dos envolvidos até o instante
da prolação da sentença, ato público por excelência,
garantindo-se, assim, outra pilastra do sistema acusatório.
5.2. A Lei dos Juizados Especiais21
21 Especificamente sobre a suspensão condicional do processo remeto o leitor
ao nosso trabalho Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Comentários e
Anotações, 3ª ed., em co-autoria com Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Pequeno enxerto consta do
Também aqui o leitor deve ser advertido que entre as
duas edições anteriores e esta terceira o autor aprofundou
idéias e modificou pontos de vista.
As obras citadas na nota de rodapé anterior indicam as
obras específicas sobre Juizados Especiais Criminais nas
quais o leitor terá a oportunidade de examinar a fundo os
mecanismos de solução consensual dos casos penais.
Este item, todavia, oferece visão panorâmica da
estrutura processual da suspensão condicional do processo e
da transação penal, ambas à luz dos princípios que regem o
sistema acusatório.
O leitor não deverá desconsiderar o registro anterior, no
sentido de que as práticas penais de consenso, tais como a
suspensão condicional do processo e a citada transação
penal, ainda estão em busca de sua teoria processual e que os
ajustes ao modelo acusatório são forçados.
Ficou consignado que os elementos que determinam a
existência dos sistemas processuais estão vinculados aos
sujeitos processuais e ao modo como atuam, além da relação
que se estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre
o fato. Por isso estas categorias não se prestam ao fim de
definir o modelo fundado no consenso. Para este modelo está
colocado o desafio da sua compreensão, que significará
desenhar com clareza o estatuto do juiz e das partes.
Entenda-se que a análise destas categorias de acordo
com os padrões do sistema acusatório é ―forçada‖ por conta
das diferentes funções que o processo penal tradicional
desempenha, quando comparado ao processo penal de
consenso, o que foi objeto de análise no item 3.1.
Apesar disso, hoje o complexo de garantias processuais
que está à disposição é fruto da busca pela implementação do
sistema acusatório. Justifica-se, assim, que se parta daí para
uma teoria garantista da Justiça Penal Consensual, com
comentário à suspensão condicional do processo. Acerca da transação penal
volto a recomendar a leitura do livro Elementos para uma Análise Crítica da
Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
consciência das duras críticas decorrentes de se aceitar
soluções penais que não tenham sido fundamentadas em
provas, mas em acordo entre o Ministério Público e o réu.
Nestes termos, começamos pela observação de
Figueiredo Dias acerca das ―novidades‖ do processo penal
português, engendradas no Código que foi editado para
consolidar os ideais e princípios introduzidos pela
Constituição democrática.
Figueiredo Dias salientou que a atitude de legalidade
que caracteriza o direito penal, não significa exigência de que
a cada crime cometido e esclarecido corresponda, por
necessidade, um processo penal.22
Soluções que representem a assunção do papel do
direito punitivo como ultima ratio são alternativas de
controle social indispensáveis nessa virada de milênio23.
Assim, consagra-se o princípio da mínima intervenção, pelo
qual, dada a gravidade indiscutível da sanção penal, com
todas as deletérias conseqüências que a acompanham,
recomenda-se a ativação da força máxima penal somente em
situações de real seriedade.
As inovações incorporadas ao cenário do processo penal
brasileiro, por meio da Lei no 9.099, de 26 de setembro de
1995, procuram acompanhar os grandes movimentos
ideológicos, políticos e culturais que têm motivado os ramos
mais progressistas da criminologia, no chamado Mundo
Ocidental.
O passo dado, se não foi o ideal em alguns aspectos,
conferindo mínima margem de elasticidade ao conceito de
infração penal de pequeno potencial ofensivo, representou,
obediente à nossa Constituição, profunda ruptura de dogmas
intocáveis, até 1988, no campo do direito e do processo
penal.
A singular aplicação de dois institutos diferentes de
tudo quanto até então existia — a transação penal,
22 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de
Processo Penal, p. 25.
23
A obra originalmente é do fim do século XX.
principalmente, e a suspensão condicional do processo — e,
mais do que isso, opostos ao pensamento corrente da
aplicação da pena como forma exclusiva de resolução dos
casos penais,24 talvez nos tenha encontrado despreparados.
De se dizer que a tônica das modificações em questão
envolveu aspectos tais como a efetividade do processo, o
acesso à justiça e a concepção unitária do conflito,
revitalizando também o papel da vítima e a promoção do
consenso, palavra-chave para entendermos os novos
institutos, tudo conforme uma visão prática e real do
processo, desafetado e, em alguns pontos, imunizado contra
o vírus do excesso de formalismo.25
Ressalva deve ser feita ao papel da vítima, pois que se
cabe ao Direito Penal tutelar os interesses dela, o processo
penal pouco pode fazer para ajudá-las, pois que é disposto a
proteger a situação do acusado. De toda forma, a justiça
penal consensual reposiciona a vítima no cenário do
processo.
Compreender as novas categorias processuais —
transação e suspensão condicional do processo — só é viável,
eficazmente, recorrendo-se ao dogmatismo jurídico,
apontado algumas vezes como o principal responsável pelo
divórcio entre o mundo dos fatos e a realidade do processo,
com o conseqüente desprestígio da Justiça.
Nessas horas de ausência de paradigmas próximos, e de
alguma perplexidade, o dogmatismo resgata o seu real valor,
na medida em que encerra as variedades de técnicas de
abordagem de um fenômeno da vida em sociedade, acima e
além de qualquer polêmica, em si mesmo complexo.
24 Desprezou-se, em nosso caso necessariamente, a prudente recomendação de
introduzir o novo sem perder de vista o tradicional, que assinala a nossa
identificação cultural e histórica, a partir do peculiar modo de vermos o mundo
(Exposição de Motivos do Código de Processo Penal Português).
25
Em Elementos para Análise uma Crítica da Transação Penal (op. cit.)
procuramos demonstrar que a Justiça Penal Consensual adota discurso de
suavidade em termos de aplicação do Direito Penal, todavia aprofunda o
processo de expansão deste Direito, para alcançar conflitos que ficariam de fora
da incursão do Sistema Penal caso valesse de fato o princípio da intervenção
mínima.
5.2.1. DA TRANSAÇÃO PENAL
Para iniciarmos o estudo, a partir da transação penal,
visando identificar a existência de pontos de contato entre a
estrutura sobre a qual se ergue e o princípio acusatório,
algumas considerações preliminares são essenciais.
Com efeito, na maioria estamos todos de acordo em que
o processo é instrumental e, destarte, tudo o que vier a
operar nesta perspectiva há de considerar a natureza e as
características do direito material em disputa, pela via do
instrumento.
Contudo, Barbosa Moreira já advertia para o fato de
que, mesmo simplificada, a relação processual se desenvolve
como atividade realizada, por assim dizer, intra muros, em
grande parte a cargo de pessoas nas quais se presumem
conhecimentos especializados,26 sendo necessária a
compreensão dos conceitos e alcances verdadeiros de cada
mecanismo posto à disposição dos sujeitos. Para isso deverá
o intérprete e operador do Direito se valer de dados que
fogem muito ao senso comum, sob pena de naufragarmos em
uma vã tentativa de modernização.
Alguns anos passados da edição da Lei no 9.099/95, e
até agora a doutrina diverge sobre o que efetivamente
significa a transação penal no Direito Brasileiro.
A medida está prevista como resultado de uma
atividade iniciada pelo Ministério Público quando, em caso
de infração penal de menor potencial ofensivo, o juiz
homologar proposta do órgão estatal de acusação, aceita pelo
investigado, orientado por defensor, aplicando pena nãorestritiva da liberdade.27 A infração penal deverá ser de ação
26
27
Barbosa Moreira, José Carlos. ―Sobre a Multiplicidade de Perspectivas no
Estudo do Processo‖, in Temas de Direito Processual - Quarta Série, São
Paulo: Saraiva, 1989, p. 11.
Artigo 61 da Lei nº 9.099/95: Consideram-se infrações penais de menor
potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os
crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano,
excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial; artigo
penal pública incondicionada ou condicionada28 e, além
disso, a hipótese não poderá ser de arquivamento da
investigação (arquivamento do termo circunstanciado).
Querem certos autores qualificar como sentença
meramente declaratória a decisão que lhe dá vida, enquanto
outros, enxergando na decisão função ou efeito
condenatório, assim a classificam e a partir daí tendem a
negar-lhe a constitucionalidade.29 Há, finalmente, os autores
que optaram por terceiro gênero, tal seja, o de ser
simplesmente homologatória, com ou sem eficácia de título
executivo.30
Da definição do modelo de sentença, acreditamos seja
possível investigar a questão básica da iniciativa para a
transação, cujo resultado, a nosso juízo, será idêntico ao da
76: Havendo representação ou tratando-se de crime de ação pública
incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público
poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou
multas, a ser especificada na proposta. § 1º Nas hipóteses de ser a pena de
multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade. § 2º Não se
admitirá a proposta se ficar comprovado: I - ter sido o autor da infração
condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por
sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no
prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos
termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social
e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser
necessária e suficiente a adoção da medida. § 3º Aceita a proposta pelo
autor da infração e seu defensor, será submetido à apreciação do Juiz. §
4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da
infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não
importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir
novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos. § 5º Da sentença
prevista no parágrafo anterior caberá apelação referida no art. 82 desta
Lei. § 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não
constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins
previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos
interessados propor ação cabível no juízo cível.
28 Nesta última hipótese, se tiver havido representação e não se tiver
conseguido a conciliação entre a vítima e o suposto autor do fato.
29 Assim, Rogério Lauria Tucci, apud Cláudio Antônio Soares Levada, ―A
Sentença do artigo 76, da Lei nº 9.099/95, é declaratória‖, in Boletim do
Instituro Brasileiro de Ciências Criminais, nº 35, novembro, 1995, São
Paulo.
30 Grinover, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais, São Paulo: RT
1995, p. 134.
suspensão condicional do processo, vinculando as categorias
ao sistema processual sufragado pela Constituição.
Acreditamos, de início, que os argumentos elencados
em defesa deste ou daquele ponto de vista, apesar da
qualidade dos doutrinadores, não compreenderam todas as
possibilidades da classificação. Sem dúvida serviram ao
propósito de validar o esforço de sistematização, porque
expuseram as conseqüências práticas de considerarmos a
sentença em tela condenatória ou não condenatória, de sorte
a determinarmos o âmbito integral de aplicação da norma.
Nosso pensamento é de que a sentença em questão é
condenatória, de tipo sumário, e que emerge em seu meio
instrumental definido por alguns doutrinadores como o
devido processo legal da transação penal, apesar da objeção
de inconstitucionalidade oposta pelo esvaziamento de
qualquer tipo de atividade considerada própria ao devido
processo legal (atividade probatória, fundamentação das
decisões e efetividade do contraditório).
Pelo que de elucidativo importará ao nosso estudo
passemos, então, ao exame da classificação das sentenças.
A sentença, ato pelo qual se põe fim ao processo, com ou
sem julgamento do mérito (artigo 162, § 1o, do Código de
Processo Civil), pode ser classificada de diversas maneiras,
predominando a sistematização que a considera a partir das
funções ou efeitos que produzirá. Com isso as sentenças são
distinguidas entre as que meramente declaram, constituem
e condenam, conforme produzidas em processos cujas ações
sejam, por sua vez, predominantemente do mesmo tipo, ao
exigirem como provimento jurisdicional o simples
acertamento de um situação jurídica duvidosa, a criação,
modificação ou extinção de uma situação ou relação jurídica,
ou a imposição ao réu de uma prestação — no caso do
processo penal, de uma sanção.
Esta é a classificação tradicional, denominada
tripartida,31 em oposição à classificação quíntupla, em
31
Pará Filho, Tomás. Estudo Sobre A Sentença Constitutiva, São Paulo:
LAEL, 1973, p. 39.
sentenças de declaração, constitutivas, de condenação,
executivas e mandamentais, de Pontes de Miranda, que não
logrou sucesso na doutrina nacional.
Tendo por pressuposto quer a função exercitada pelo
ato judicial — como é o caso da sentença constitutiva — quer
os efeitos que produz, autorizando o exercício pelo Estado do
monopólio da força para concretizar a sanção imposta —
como ocorre com a sentença de condenação — a decisão
aparece ao fim de um processo dialético, no qual as partes
estão contrapostas, porém não necessariamente imunes aos
argumentos umas das outras.
Sendo assim, é natural, e com freqüência acontece no
processo civil, que o exercício da função ou a produção do
efeito venham a ser queridos por autor e réu,
simultaneamente, e que, em se tratando de direito
disponível, somente caiba ao juiz homologar tal disposição
de coisas, extinguindo o processo.
Há efetivo poder discricionário na atuação das partes,
que elegem, em consenso, a solução que reputam a mais
viável, conforme o direito.
Resolve-se o conflito de interesses por mútua
concessão, muitas vezes arrimada em estado de ânimo
prévio, no entanto impossível de ser validado
independentemente da intervenção estatal, tal como ocorre
com as ações constitutivas necessárias, das quais a de
separação judicial é a sua mais famosa ilustração.
Releva notar, portanto, que a homologação nada mais
representa senão a forma pela qual o juiz soluciona o conflito
ou o caso, impondo uma determinada sanção ou criando,
modificando ou extinguindo situações jurídicas. Todas as
sentenças de homologação, ditadas em processo de
conhecimento, cabem em um ou outro modelo, conforme o
conteúdo do ato ou os efeitos que intenta produzir.
Sendo assim, a classificação apresentada pelos ilustres
doutrinadores Ada Grinover, Antonio Magalhães, Antonio
Scarance e Luiz Flávio Gomes não resolve a questão de nos
posicionarmos sobre se é ou não condenatória a decisão de
homologação da transação penal.32
Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, por
sua vez inovam, pois defendem que a multa ou a providência
restritiva de direitos incidentes em razão da sentença de
transação penal, do artigo 76 da Lei do Juizado Especial
Criminal, não caracterizam sanção penal em sentido estrito,
entre outros motivos porque o caráter imperativo das penas
não se coadunaria com o consenso pretendido, em virtude do
qual a decisão depende da aceitação, pelo suposto autor do
fato, da proposta levada a efeito pelo órgão do Ministério
Público, ensejando a prolação de uma sentença sui generis,
de mera homologação da transação.33
Ao aceitarmos o ponto de vista dos ilustres professores,
nem mesmo assim teríamos condições de deferir à sentença
em questão esta classificação especial, isto porque ainda que
não autorize a execução em caso de não implemento
espontâneo34, quando há condições para se cumprir o
pactuado, é indiscutível que se vislumbra uma alteração na
situação jurídica do agente, permitindo a extinção da
punibilidade e com isso vedando a dedução em juízo de
pretensão punitiva baseada no mesmo fato.
Outra vez ocorre a tendência de a sentença inserir-se em
uma das classificações tradicionais, embora discordemos,
pelas razões mais adiante expostas, do interessante ponto de
vista deduzido.
É curial recordar-se que as sentenças de mera
declaração, constitutivas e de condenação distinguem-se
entre si em razão dos efeitos principais perseguidos pelas
partes e produzidos pelo ato judicial, não importa a forma
32 Grinover, Ada Pellegrini et al., ob. cit,. pp. 90 e 134.
33 Demercian, Pedro Henrique e Maluly, Jorge Assaf. Juizados Especiais
Criminais: Comentários, Rio de Janeiro: AIDE, 1996, pp. 61-66.
34
A impossibilidade de execução das penas impostas via transação penal
decorre da ausência de previsão legal, exceto para a cobrança da pena de multa.
Não se pode perder de vista o princípio da reserva legal, pelo qual não há crime
nem pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição
da República).
que tomam ao surgirem.
Eduardo Couture asseverava, a propósito, que são
sentencias declarativas, o de mera declaración, aquellas
que tienen por objeto la pura declaración da existencia de
un derecho,35 enquanto são chamadas constitutivas as
decisões que:
En primer término... cream un estado jurídico
nuevo, ya sea haciendo cesar el existente, ya sea
modificándolo, ya sea sustituyéndolo por otro... En
segundo lugar, integran esta clase de sentencias
aquellas que deparan efectos jurídicos de tal índole
que no podrían lograrse sino mediante la
colaboración de los órganos jurisdiccionales: el
divorcio etc.36
Finalmente, são de condenação todas aquellas que
imponen el cumplimiento de una prestación, ya sea en
sentido positivo... ya sea en sentido negativo...37
Mantendo, entretanto, a classificação original, não deve
ser totalmente afastada a conclusão de Enrico Tulio
Liebman, no sentido de se aceitar a existência da sentença
condenatória sumária, fruto de um processo condenatório
especial, que assim se caracteriza em face do tipo de
cognição que admite.38
A lição do mestre peninsular, muito embora haja tido
por inspiração procedimentos diversos daquele objeto de
nosso estudo, aplica-se à hipótese vertente, como pode ser
visto do seguinte texto:
Nesses casos, pois, taxativamente previstos
em lei, a ação condenatória considera-se
privilegiada, porque pode levar à prolação da
35
Couture, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil, Buenos
Aires: Depalma, 1988, p. 315.
36 Idem, p. 320.
37 Idem, p. 318.
38
Hipótese de cognição sumária pode ser extraída das tutelas de urgência, quer
no processo civil, quer no processo penal.
sentença condenatória com base em uma cognição
sumária (isto é, incompleta ou superficial) dos seus
pressupostos substanciais normais; e, justamente
por essa razão, leva o nome de ação condenatória
sumária.39
As ainda recentes inovações no Processo Civil
trouxeram à tona a discussão acerca das cognições possíveis
nos diversos procedimentos, conforme a natureza das
decisões perseguidas. Sobre o assunto, aliás, o magistério de
Cândido Dinamarco não podia ser mais feliz, ao distinguir
entre cognição exauriente e cognição sumária, a primeira
destinada a provocar na convicção do julgador a certeza
jurídica, enquanto à outra basta o convencimento sobre a
probabilidade40 de existência dos fatos alegados pelas partes,
dos quais são extraídas certas conseqüências jurídicas.
A discutível constitucionalidade da cognição sumária,
no âmbito de um processo penal condenatório marcado pela
articulação entre a busca da verdade e o pleno exercício da
ampla defesa, garantia constitucional, será avaliada mais
adiante.
De acordo com o que vimos, digladia-se na doutrina
sobre ser a sentença homologatória em exame declaratória
ou condenatória.
Apesar de não ter se pronunciado expressamente,
acreditamos que para Damásio de Jesus a sentença de
transação penal é declaratória, até porque, ao se manifestar
sobre os efeitos da decisão judicial, aduz que esta não gera:
a) condenação; b) reincidência (§ 4o); c)
lançamento do nome do autor do fato no rol dos
culpados (§ 4o, parte final); d) efeitos civis; e)
maus antecedentes.41
39
Liebman, Enrico Tulio. Manual de Direito Processual Civil, vol. I. Rio de
Janeiro: Forense, 1985, p. 187.
40 Dinamarco, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil. São
Paulo: Malheiros, 1995, p. 144.
41 Jesus, Damásio E. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São
Paulo: Saraiva, 1995, p. 68.
Certamente segue a mesma linha Claudio Antonio
Soares Levada, no ensaio a que nos referimos.
É natural que todos os juízos que decorram da
investigação científica sejam provisórios, de sorte que, feita
essa ressalva, não aceitamos a classificação.
Segundo a própria Constituição, ninguém será privado
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
(artigo 5o, inciso LIV), garantindo-se, assim, a
jurisdicionalização da sanção penal, em virtude do que, como
foi dito no início do trabalho, é necessário que haja processo
para que se imponha a pena. Nulla poena sine judicio.
Ora, sendo ponto pacífico o dever de existência do
processo, pois não há sentença sem processo, refletimos que
a função da sentença nele emitida não seja meramente
declarar o que, sem a decisão, seria considerado incerto.
Nunca se pensou que, sendo a pena por definição a
conseqüência jurídica da infração penal a sanção penal
preexista ao processo. A infração penal é reconhecida pelo
processo, mas tem a sua existência como fato histórico
marcada, independentemente do ajuizamento da ação.
Basta considerarmos a cifra oculta dos crimes para
concluirmos que não são todas as infrações penais seguidas
da aplicação da sanção, bem como as penas só aparecem
como tais se logicamente antes, na sentença mesma,
reconhecer o juiz a ocorrência do crime.
Observe-se que ainda que se convença da prática do
delito, se extinta a punibilidade por alguma causa, o juiz não
imporá pena, motivo suficiente, segundo pensamos, para não
aceitarmos a idéia de que a sanção antecede ao processo,
sendo apenas declarada, quando da homologação.
A sentença que impõe a pena, ainda que fruto de acordo
entre as partes traz algo mais, além do simples
reconhecimento da existência do crime ou da contravenção.
Carrega em seu bojo a autorização para que se exija do
suposto autor do fato, coativamente, determinada prestação.
A execução de forma autônoma, tendo por base uma
sentença — título judicial — é uma característica do processo
que sucede o de conhecimento condenatório.
Não deve assustar a idéia de transação sobre a sanção,
partindo-se do correto pressuposto de que, se é pena, não
cabe negociar a sua aplicação.
O que ocorre, a nosso juízo, é que se transaciona tendo
por objeto a qualidade e a quantidade de determinadas
sanções, nunca se serão ou não aplicadas, pois, em se
tratando de infrações de ação penal pública, cumpre ao
Ministério Público propor a ação penal tradicional, em não
havendo acordo.
O princípio da consensualidade, de magnitude
constitucional, resolve a questão, possibilitando assim a
convergência de vontades exclusivamente sobre a sanção,
pois que não se negocia a realidade de se exigir a sua
imposição.
Finalmente, entendemos que o sofisticado argumento,
trazido à colação por Demercian/Maluly, em artigo citado,
sobre não serem a multa e as providências restritivas de
direito sanções penais em sentido estrito, também colide de
frente com o texto legal e não merece ser aceito, porque é a
própria lei que denomina de pena restritiva de direito ou
multa (artigo 76, caput) as medidas em tela, assinalando que
a condenação não fique constando dos registros criminais
(artigo 84, parágrafo único).
Nem sempre a escolha do nomen juris do instituto, pelo
legislador, é a mais feliz. Todavia, tanto a multa como as
penas restritivas de direito são consideradas sanções penais,
em razão de que sempre se tenha exigido fossem aplicadas
somente pelo devido processo legal em resposta ao
reconhecimento da responsabilidade penal do acusado.
Ainda que o suposto autor do fato queira submeter-se à
multa, sem o processo não poderá fazê-lo e a própria relação
processual, sem os requisitos mínimos para a sua existência
e validade — prova da existência da infração penal e indícios
de autoria — não será instaurada por falta de justa causa.
Portanto, se as medidas em foco derivam de um crime
(ou contravenção), não se discute a nosso ver que se trata de
sanções penais, nada havendo de sui generis no seu processo
de imposição que lhe contamine a natureza jurídica, embora
seja diferente no que toca a diversos aspectos de seu
procedimento e ao tipo de cognição que é produzida em seu
interior.
Poder-se-ia argumentar, dada a novidade da matéria,
que estamos diante de uma sentença constitutiva necessária,
no plano penal.
Em um primeiro instante ficamos animados a deste
modo caracterizar a sentença, pois que, diferentemente da
decisão emitida em processo condenatório comum, o
princípio da consensualidade opera em certa medida,
fazendo valer — ainda que com restrições — a vontade dos
principais atores: o acusador oficial e o (suposto) autor do
fato.
Seria o caso de imaginarmos uma deliberação anterior
ao processo, condicionada ao ajuizamento da manifestação,
para que se transforme a situação jurídica do autor do fato.
Clamam-se como constitutivas as decisões proferidas na
Revisão Criminal e a de interdição de direitos prevista no
artigo 47 do Código Penal,42 na sentença condenatória.
Na segunda hipótese, porém, como também na que está
sendo objeto de nossos estudos, não parece correto falar em
função constitutiva, quando temos a imposição de uma
prestação, cuja execução poderá ensejar — em alguns casos
necessariamente ensejará — um processo autônomo de
execução.
A sempre lembrada distinção de Pará Filho, em virtude
da qual a imposição de uma prestação (leia-se, sanção penal)
faz a diferença entre a sentença condenatória e a
constitutiva, que se basta a si mesma, na medida em que
transforma uma situação jurídica, deve ser invocada para
afastarmos a idéia de função constitutiva.
Resta, pois, trabalharmos com o modelo de sentença de
condenação, em face do qual existem algumas causas de
perplexidade. A prudência é a melhor conselheira diante da
42 Cintra, Antonio Carlos de Araújo, et al. Teoria Geral do Processo. 10ª ed.
São Paulo: Malheiros, 1994, p. 304.
novidade, adverte com razão Alberto Silva Franco, que
provoca a meditação quando, por oportuno, acrescenta:
Como entender que se possa, mediante um
acordo, aplicar, por força do art. 76 da Lei no
9.099/95, pena restritiva de direitos ou multa,
conversíveis em pena privativa de liberdade, sem
que o acusado responda ao devido processo
legal?43
Mais ainda, na mesma linha e levando em conta o
fundamento de legitimidade democrática do exercício da
função jurisdicional, cabe também indagar com Ferrajoli
como é possível conceber o nexo entre crime e sanção a
partir de um comportamento processual do acusado e não
do valor de verdade sobre a existência da infração penal e a
responsabilidade de seu autor, demonstrado ao longo do
processo, em contraditório.44
Parece que a resolução da perplexidade não decorre da
admissão de que, à vista dos requisitos definidos em Lei, o
Ministério Público esteja vinculado ao ato de propor o
acordo sobre a pena, porque se constitui em direito público
subjetivo do autor do fato, o que só faz aumentar as
dificuldades.
Segundo essa linha de pensamento, recusando-se o
Ministério Público a oferecer a proposta, o juiz não está
inibido de tomar a iniciativa, como parte da doutrina e
mesmo alguns tribunais se inclinam a aceitar.45
Boletim IBCCrim, São Paulo, nº 35, p. 9, nov/1995. ―Os questionamentos
provocados pela Lei nº 9.099/95‖. Atualmente, por força do disposto na
Lei nº 9.268, de 1/4/1996, a multa penal é considerada dívida de valor e
não pode mais ser convertida em prisão.
44 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 609.
45 A Escola Superior da Magistratura criou uma Comissão Nacional para a
Interpretação da Lei nº 9.099/95, presidida pelo Ministro Sálvio de
Figueiredo Teixeira e composta dos Ministros Luiz Carlos Fortes de Alencar
e Ruy Rosado de Aguiar Júnior, dos Desembargadores Weber Martins
Batista, Fátima Nancy Andrighi e Sidnei Augusto Beneti, dos Professores
Ada Pellegrini Grinover e Rogério Lauria Tucci e do Juiz Luiz Flávio
43
Fosse dessa maneira, estaríamos diante de literal
desrespeito ao que dispõe o artigo 129, inciso I, da
Constituição, que defere ao Ministério Público privatividade
para a propositura da ação penal pública, pois outra não
pode ser a natureza da iniciativa do Ministério Público, salvo
a de exercício de direito de ação condenatória, pela forma
sumária e consensual, porquanto não há pena sem processo
e, pelo princípio acusatório, não há processo condenatório
sem ação. Nulla poena sine judicio. Nullum judicium sine
accusatione.
Para Afrânio Silva Jardim o procedimento instituído
pelo artigo 76 da lei é o devido processo legal para a
imposição daquelas sanções,46 cumprindo, pela clareza e
objetividade da abordagem, transcrevê-la:
Por outro lado, estabelecemos uma premissa
para compreensão do sistema interpretativo
proposto: quando o Ministério Público apresenta
em juízo a proposta de aplicação de pena não
privativa de liberdade, prevista no art. 76 da Lei
no 9.099/95, está ele exercendo a ação penal, pois
deverá, ainda que de maneira informal e oral —
como a denúncia — fazer uma imputação ao autor
do fato e pedir a aplicação de uma pena, embora
esta aplicação imediata fique na dependência do
assentimento do réu. Em outras palavras, o
Gomes. Das conclusões a que chegaram ressalta a Décima Terceira (Se o
Ministério Público não oferecer proposta de transação penal e suspensão
do processo nos termos dos arts. 79 e 89, poderá o juiz fazê-lo), que
preserva a iniciativa do órgão de acusação estatal, quanto a transação, na
fase preliminar, o que é inócuo, se admite a iniciativa judicial,
posteriormente, após o ajuizamento da causa mediante denúncia oral. O
Superior Tribunal de Justiça, no recurso de Habeas Corpus nº 6.410-PR,
na sua 6ª Turma, tendo por relator o Ministro Vicente Leal (Recorrentes:
Omires Pedroso do Nascimento e outro e recorrido o Tribunal Regional
Federal da 4ª Região), em decisão de 13/5/1997, deliberou que a suspensão
condicional do processo é direito subjetivo do réu, cabendo ao juiz decidir
por ela mesmo quando omisso o órgão de acusação pública.
46 Jardim, Afrânio Silva. ―Os Princípios da Obrigatoriedade e da
Indisponibilidade nos Juizados Especiais Criminais‖, in Boletim do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 48, São Paulo, nov/1996.
promotor de justiça terá que, oralmente como na
denúncia, descrever e atribuir ao autor do fato
uma conduta típica, ilícita e culpável,
individualizando-a no tempo (prescrição) e no
espaço (competência de foro). Deverá, outrossim, a
nível de tipicidade, demonstrar que tal ação ou
omissão caracteriza uma infração de menor
potencial ofensivo (competência de juízo), segundo
definição legal (art. 61). Vale dizer, na proposta se
encontra embutida uma acusação penal
(imputação mais pedido de aplicação de pena).47
Talvez careça de explicação a questão probatória,
colocada em relevo à luz da consensualidade, pela qual a
busca da verdade é substituída pela prevalência da vontade
convergente das partes ou, como prefere Ferrajoli, porque a
prova e a sanção penal não são mais objeto principal da
atividade jurisdicional, que se concentrará na conduta
processual do réu e na (escassa) gravidade da infração penal.
Para os defensores do devido processo legal da
transação penal a resposta é encontrada no fato do
dispositivo legal conter regras gerais e abstratas, aptas a
considerar o desenvolvimento regular do processo de
proposta de pena, iniciado a partir do oferecimento, pelo
Ministério Público, de sua proposta de sanção.
Existem requisitos objetivos e subjetivos que devem ser
observados, sendo certo que o autor do fato estará
acompanhado de defensor, sob pena de nulidade da
transação.
Entendemos que o exercício da ampla defesa vem
sustentado na obrigatoriedade da orientação do autor do fato
por advogado, além da necessidade de se documentar a
proposta, que será feita oralmente.
A escrituração, nestes casos, não fere o objetivo de
diminuição da formalidade do procedimento, porque
47
Jardim, Afrânio Silva. ―Os Princípios da Obrigatoriedade
Indisponibilidade nos Juizados Especiais Criminais‖, ob. cit.
e
da
resultará da redução a termo de pronunciamento oral do
Ministério Público, servindo ao propósito de precisar a res in
judicio deducta, para o fim de evitar a renovação indevida da
demanda e assegurar que o procedimento está sendo
aplicado a fatos legalmente previstos, conforme suporte
mínimo probatório que também está sujeito a ser analisado
pelo defensor e pelo juiz.
Em conjunto com este dado, que expõe claramente a
justa causa para a modalidade especial de ação penal
condenatória, acrescentamos que a tese da impossibilidade
de se renunciar ao exercício de direitos fundamentais, em
vista de um conflito instaurado entre o particular e o Estado,
está sendo mitigada pela própria Constituição da República
em consideração à autodeterminação do acusado e por conta
do juízo de benefício que possa concretamente auferir se
transacionar. Se o réu pode confessar, apesar de lhe ser
assegurado o direito a não se incriminar — nemo tenetur se
detegere —, estamos andando na mesma direção quando
aceitamos possa ele transigir sobre a sanção penal, desde que
não se lhe sacrifique a própria liberdade, nem mesmo
indiretamente, o que o princípio da proporcionalidade
estaria a impedir.
Mais importante de tudo está em que ao acusado, que a
lei por estranhas razões quis denominar autor do fato, é
necessário informar minuciosamente em que consiste a
transação penal e quais são as suas conseqüências. Trata-se
do dever de instrução que condiciona a validade que se
operará da renúncia a mais ampla defesa.
Enquanto o ideal da jurisdição penal está relacionado ao
grau de verdade que a sentença deve conter, e, portanto, a
limitação à ampla defesa e ao contraditório, ainda que
prevista na Constituição, deve ser evitada, a projeção das
alternativas penais derivadas das soluções consensuais é, no
marco cultural de hoje, representativa da estratégia em
direção a descriminalização das condutas, reservando-se o
direito e o processo penal para as infrações que ao juízo da
comunidade mereçam mais séria reprovação.
Positivada a constitucionalidade da transação penal48,
apesar da baixa densidade das garantias fundamentais, cabe
sublinhar que, ao contrário do que já foi defendido,49 a
consciência da prevalência constitucional do princípio
acusatório não permite que o juiz inicie, de ofício, como
verdadeira jurisdição sem ação, tal modelo processual, ainda
que o representante do Ministério Público não tenha
oferecido a proposta à luz do entendimento pessoal da
ausência de condições subjetivas, do que discorda o
magistrado.
Pode-se frisar, embora não seja certo, que semelhante
postura equivale a estabelecer um âmbito de
discricionariedade para a atuação do órgão de acusação, a
ponto de introduzir, indiretamente, o princípio da
oportunidade.
Tratando do sistema espanhol Teresa Deu menciona
que tal campo de discricionariedade não pode ser justificado,
de maneira semelhante ao que ocorre no Direito
Administrativo, isto porque a aplicação do princípio da
legalidade penal, em sua faceta jurisdicional, impede a
implantação de critérios de oportunidade que incidam sobre
a existência, ou não, da persecução penal.50
A primeira ressalva, incidente sobre a objeção, deflui do
fato de que as alternativas postas à disposição do órgão de
acusação implicam, necessariamente, na propositura da ação
penal.
Não sendo caso de arquivamento, ou o Promotor de
Justiça oferece a proposta de pena não restritiva da liberdade
ou oferece a denúncia. Nos dois casos, oferecendo-se
proposta de transação penal ou denúncia, não vigora
48
Essa é hoje a posição dominante, contra a qual nos manifestamos em
Elementos, op. cit.
49 Prado, Geraldo. ―Da Natureza Jurídica da Sentença Homologatória de
Acordo sobre a Pena — Lei nº 9.099/95‖, in Caderno Científico do Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade Gama Filho, nº 4, ano III, Rio de
Janeiro, 1996, pp. 31-46.
50 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 38-39.
princípio algum de oportunidade. A segunda oposição referese à possibilidade do acusado deixar de fruir um benefício
acessório, embora importante, ao tipo específico de
condenação, em consideração à opinião do Promotor de
Justiça. Figueiredo Dias, tantas vezes citado, assevera que
deferir ao Ministério Público alguma discricionariedade não
significa criar um espaço onde possam frutificar tratamentos
privilegiados ou discriminatórios, mas, sim, reconhecer a
importância que a instituição merece no contexto da
construção democrática da política criminal.
Aos abusos que podem decorrer do fato do Promotor de
Justiça indevidamente, na visão do juiz, não oferecer a
proposta de pena, opõe-se a possibilidade de controlar-se a
ação, no âmbito interno do Ministério Público, velando-se
por sua moralidade e impessoalidade. Basta, para isso,
recorrer-se à aplicação analógica do controle pelo
Procurador-Geral, regulado no artigo 28 do Código de
Processo Penal.
Mesmo se no lugar da proposta o representante do
Ministério Público opte pelo oferecimento direto da
denúncia, o procedimento deverá ser sustado para que o juiz
remeta ao Procurador-Geral os autos, alertando quanto à
desatenção sobre a obrigatoriedade da solução consensual.
Caso o Procurador-Geral concorde com o Promotor de
Justiça, não haverá o necessário consenso a conferir base à
transação e, em vista disso o processo retomará seu curso
natural. Se for o contrário, caberá ao próprio ProcuradorGeral formular a proposta de pena ou delegar a formulação a
outro Promotor de Justiça, homologando o juiz o acordo, se
este for concretizado, e deixando de receber a denúncia já
oferecida porque o conflito haverá sido resolvido
definitivamente.
O ideal, todavia, para a completa aproximação ao
princípio acusatório, estaria em a lei prever que antes de
oferecer a denúncia oral e à semelhança do que propomos
sobre o arquivamento, o Promotor de Justiça comunicasse
ao Conselho Superior do Ministério Público as razões do não
oferecimento da proposta, disso dando ciência ao ofendido e
ao investigado. Chancelada a solução, em instância superior,
teríamos o controle da atuação do Promotor de Justiça sem
incluir o juiz em uma etapa ainda precoce e preparatória da
ação penal tradicional.
A objeção de ordem prática derivada quer da
dificuldade que o acervo de autos de investigação pudesse
opor ao eficiente funcionamento do Conselho Superior do
Ministério Público, ou ainda em virtude da perda de
celeridade que a implantação da providência poderia
acarretar, teria de ser arrostada pela adequada estruturação
pessoal e material da instituição, de modo a torná-la apta a
apresentar respostas rápidas e eficazes às demandas que
dizem respeito à persecução penal.
A garantia da preservação do princípio acusatório, com
o inegável reconhecimento das graves funções atribuídas aos
membros do Ministério Público, justificaria com sobra o
aperfeiçoamento da instituição.
A objeção de ordem jurídica dos defensores da
transação penal como direito público subjetivo do acusado,
quanto ao exercício deste direito ser controlado não pelo
Judiciário, do qual não se pode excluir a apreciação de lesão
ou ameaça de lesão a direito, mas pelo titular da ação
condenatória, estará superada à vista da natureza jurídica da
proposta de transação — ação penal condenatória especial
não tradicional e não direito público subjetivo do réu — em
razão do que se pode afirmar que ninguém pode invocar o
direito de sofrer sanção penal.
Quando se assevera que, em determinadas condições, o
condenado tem direito público subjetivo ao sursis se está
afirmando que, com a sua responsabilidade determinada
legalmente, em um processo penal com ampla defesa e
contraditório, reconhece-se que entre as alternativas de pena
a correta e adequada é aquela representada pelo sursis.
Entretanto, na ausência de proposta de pena não temos
como argumento as alternativas de sanção consideradas
concretamente, porque sequer se concluiu sobre a existência
da infração penal e a responsabilidade do agente. Há um
processo condenatório, com requisitos de validade e eficácia,
a ser percorrido e superado antes das alternativas penais
emergirem.
5.2.2. DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO
O mesmo acontece quando se trata da suspensão do
processo.51 Ficou consignado em passagem anterior que o
exercício do direito de ação não se esgota com o
oferecimento da acusação. Pelo contrário, o conjunto de
relações processuais que ordenadamente se sucedem, a
partir daí, depende dos atos processuais que,
reciprocamente, vinculam, ligam, autor, réu e juiz.
Admitir-se, como o faz a conclusão da Comissão de
Interpretação da Lei no 9.099/95 ou o mencionado acórdão
do e. Superior Tribunal de Justiça, que o juiz pode propor
(ou decidir pela, forma literal que não esconde a realidade da
medida) a suspensão do processo, que, por sua vez, resultará
na extinção da punibilidade do acusado, ao final do prazo
51
Artigo 89 da Lei nº 9.099/95: Nos crimes em que a pena mínima
cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei,
o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão
do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo
processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os
demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art.
77 do Código Penal). § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor,
na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o
processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes
condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II proibição de freqüentar determinados lugares; III - proibição de
ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para
informar e justificar suas atividades. § 2º O Juiz poderá especificar
outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que
adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. § 3º A suspensão será
revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por
outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.
§ 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado,
no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra
condição imposta. § 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará
extinta a punibilidade. § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de
suspensão do processo. § 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista
neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos.
assinado, sem iniciativa ou concordância do autor, é dispor
do conteúdo material do feito, à revelia de uma das partes,
quebrando, assim, uma das estacas de sustentação do
triângulo.52
5.2.2.1. Da Natureza Jurídica — Primeira Parte
Afirmar a natureza jurídica de um determinado
instituto significa indicar a que categoria geral aquele
instituto específico está integrado.
No caso da suspensão, o fenômeno percebido consiste
em o Ministério Público formular proposta ao réu, visando
obter dele certos comportamentos positivos e negativos ao
longo de um tempo determinado, de modo a ver declarada
extinta a punibilidade do acusado pelo crime que funda a
causa de pedir da ação penal.
Para que a extinção da punibilidade se concretize, é
necessário que o acusado, orientado por seu Defensor, aceite
a proposta e o juiz a homologue. Provas não serão
produzidas e o acordo somente será válido se aperfeiçoado
depois de recebida a denúncia, com a constatação da
existência de justa causa para a ação penal.
Finalmente, a medida só é cabível para determinado
grupo de infrações penais, originando-se a extinção de
punibilidade na hipótese de consumação do período de prova
sem revogação.
Parece fora de dúvida que há dois aspectos distintos a
serem estudados: a proposta que se formula e a decisão que a
homologa, depois da proposta ser aceita pelo réu. Além
disso, há de se considerar os efeitos que gera a nãorevogação da suspensão.
No tocante à formulação da proposta, duas correntes
52
O Supremo Tribunal Federal resolveu em definitivo a questão por meio do
verbete 696 da Súmula, cujo teor é o seguinte: Reunidos os pressupostos legais
permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o
Promotor de Justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao
Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo
Penal.
digladiam no direito brasileiro. De um lado, estão os
defensores de que se trata de direito público subjetivo do
acusado; do outro, estão os que postulam sua qualidade de
parte integrante do direito de ação.
A nosso juízo, a definição da natureza jurídica da
proposta de suspensão do processo está condicionada à
verificação do que acontece quando a proposta é aceita pelo
réu e homologada pelo juiz.
É fácil verificar que a suspensão condicional do
processo efetivamente nada suspende. Ao contrário da
suspensão do processo, prevista no artigo 366 do Código de
Processo Penal, que paralisa o curso do processo de
conhecimento em relação à atividade de instrução,
impedindo dessa maneira que o pedido de condenação seja
apreciado pelo juiz, e das demais situações de suspensão
processual derivadas da necessidade de aguardar decisão de
questão prejudicial pertinente ao estado de pessoa (artigo 92
do Código de Processo Penal), e eventualmente nos
incidentes de falsidade (artigo 145 do Código de Processo
Penal) e de insanidade (artigo 149 do Código de Processo
Penal), a suspensão condicional do processo paralisa apenas
a marcha processual destinada à produção das provas pelas
partes.
O autor da ação penal e o réu poderão encontrar uma
forma de composição do conflito de interesses penal que não
dependa de ficar demonstrada a existência da infração penal
e a responsabilidade do processado.
No lugar das provas dos fatos que sustentam as
pretensões das partes, figuram as atitudes que o réu se
compromete a adotar e o autor entende suficiente. Com isso,
vencido o período de prova, se a suspensão condicional do
processo não for revogada, considera-se definitivamente
solucionada a questão penal, isto é, com força de coisa
julgada material.
Note-se que se tratará de decisão de mérito, sujeita a
consolidar coisa julgada material tanto quanto as sentenças
absolutórias. À semelhança do que acontece no processo
civil, as soluções de mérito no âmbito penal não ficam
restritas aos casos de julgamento do pedido do autor, com a
condenação ou absolvição do réu. Também no âmbito penal
as soluções consensuais impõem definitiva resolução do
conflito (vide a transação penal), ao tempo em que o
reconhecimento da prescrição ou de qualquer causa de
extinção da punibilidade cumpre o mesmo papel da
declaração da prescrição e da decadência, no processo civil,
levando à extinção do processo com julgamento do mérito.
Diante deste quadro, é válido assinalar que a suspensão
condicional do processo imporá às partes outro percurso
processual distinto da caminhada probatória, mas orientado
pelo mesmo fim desta última, tal seja, oferecer definitiva
solução ao conflito de interesses penal. Só haverá paralisação
da atividade de instrução mediante produção de provas,
estando o juiz, por isso mesmo, impedido de julgar o pedido
do autor. No mais, o processo seguirá em busca da solução
que, de acordo com a legislação, é eficaz para recompor o
tecido social supostamente afetado pelo delito. Não há
suspensão propriamente dita.
As condições da proposta e da suspensão não são pena
criminal e a sentença homologatória não tem natureza de
condenação. Antes, a suspensão representa justamente a
opção legislativa pela não condenação como forma de
composição do conflito, em situação bastante semelhante,
por exemplo, à prescrição.
Como as condições da suspensão do processo não têm
caráter de sanção, nunca poderão equivaler às sanções
principais ou alternativas previstas na legislação penal. A
solução realmente exclui a aplicação de qualquer pena e por
essa razão é inviável socorrer-se o juiz das medidas
prescritas como sanções criminais, ainda que ao argumento
de que não poderão ser implementadas compulsoriamente. A
implementação compulsória das penas configura mera
possibilidade das penas derivadas de condenação criminal
transitada em julgado, que poderão ser executadas sem
oposição do condenado (pagamento de multa, prestação
pecuniária etc.) e não considera os efeitos psicológicos das
providências.
Com tudo isso, o que se constata é que a suspensão
condicional do processo atua como meio de composição do
conflito de interesses penal, pelo qual veicula-se causa de
extinção da punibilidade. A decisão de suspensão é
homologatória e a suspensão tem natureza jurídica de
procedimento penal de conhecimento. Em si mesma, não é
direito do réu ou do autor. É tão-só o devido processo legal
de uma forma especial de composição do conflito.
5.2.2.2. Da Natureza Jurídica — Segunda Parte
Com base nestas considerações, é possível definir a
natureza jurídica da proposta.
Com efeito, se a suspensão condicional do processo
constitui modelo de procedimento de resolução do conflito
de interesses que opõe de forma atenuada a pretensão
acusatória à pretensão de resistência da defesa, é natural que
a proposta represente um dos caminhos pelos quais o Estado
busca alcançar a efetividade do direito penal, efetividade que
consiste na restauração de uma hipotética paz social, mas
que também pode ser compreendida como esforço de
harmonização de interesses contrapostos, de sorte a
proporcionar condições dignas de vida para todos os
envolvidos no drama do delito.
Ora, a instauração do processo penal de condenação
não pode ser tida como direito do acusado. Da mesma
maneira, não é certo falar que o indivíduo, ainda não
processado, tem direito a algum tipo de sanção penal. O
acusado terá direitos, deveres, ônus e faculdades no processo
penal. Não terá, porém, direito a que o titular da ação penal
o processe como o agente não tem direito a sofrer pena.
A submissão do réu ao processo acontece
compulsoriamente e depende da presença de requisitos
pertinentes à ação (as chamadas condições da ação) e ao
processo (a justa causa e os pressupostos processuais).
A submissão de alguém a uma sanção criminal depende
de estarem provadas a existência do delito e a
responsabilidade penal da pessoa acusada, com
independência dela ter confessado (incisos LIV e LV do
artigo 5o da Constituição da República e artigo 158 do Código
de Processo Penal).
Por fim, é necessário sublinhar de uma vez por todas
que o direito de ação não se esgota, no processo penal de
condenação, no ato de oferecer a denúncia ou queixa, como
Ada Pellegrini Grinover teve a oportunidade de acentuar.53
Assinala a jurista que:
Nessa ampla acepção, ação e defesa não se
exaurem, evidentemente, no poder de impulso e no
uso das exceções, mas se desdobram naquele
conjunto de garantias que, no arco de todo
procedimento,
asseguram
às
partes
a
possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de
produzirem suas provas, de aduzirem suas razões,
de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em
juízo, para a tutela de seus direitos e interesses,
utilizando toda ampla gama de poderes e
faculdades pelos quais se pode dialeticamente
preparar o espírito do juiz.
Diante do exposto, mostra-se irrefutável a tese de que a
proposta de suspensão representa um dos elementos
constitutivos do direito de ação penal condenatória. Direito
de ação que em uma de suas faces se apresenta como o
direito de estar em juízo e pedir ao juiz a adoção de uma
solução diferente da pena criminal, nos casos em que a lei
autoriza esta solução.
O poder de impulso típico da promoção da ação penal é
complementado com a indicação, pelo autor, de que o Estado
ficará satisfeito com a aplicação de medida distinta da pena
criminal, visando resolver o conflito que a pretensão do
acusador carrega.
53
O Processo Constitucional em Marcha: Contraditório e Ampla Defesa em
Cem Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, São Paulo:
Max Limonad, 1985, p. 11
Esta posição, além de guardar coerência com o sistema
processual acusatório estruturado constitucionalmente,
velando pela autonomia da ação em face da jurisdição e
reservando à defesa a tarefa de resistir à pretensão, é a única
que assimila por inteiro a idéia da solução consensual do
conflito de interesses penal.
Assim é que as soluções só podem ser denominadas de
consenso se ambos os interessados estiverem de acordo
quanto ao estipulado. O fundamento de uma resolução dessa
natureza é a autonomia da vontade, que só existirá
plenamente se o acusador e o acusado puderem concorrer
com a sua vontade livremente. Não haveria autonomia de
vontade se uma das partes estivesse obrigada a transigir!
Portanto, é acertada a posição do Supremo Tribunal
Federal quando aponta para a iniciativa do Ministério
Público relativamente à formulação de proposta de
suspensão (Habeas Corpus no 74.153-3–SP, rel. Min. Sydney
Sanches, impetrante Edmo Pontes de Magalhães, jul.
3/12/1996).54
5.2.2.3. Da Natureza Jurídica — Terceira Parte
Fixada a natureza jurídica da proposta, cabe indagar: o
que fazer se o Ministério Público, sem justificativa, deixar de
formular a proposta?
Em primeiro lugar, temos que destacar que a decisão do
Ministério Público a respeito do oferecimento da proposta
não é ato vinculado, no sentido estrito. Por ato vinculado,
entende José dos Santos Carvalho Filho55 aquele praticado
em virtude de uma situação de fato, delineada na norma
legal, de modo tal que, verificada a situação de fato, ao
54
55
Em outra decisão, porém, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a
necessidade da proposta do Ministério Público, mas o voto expressamente
referiu-se a esta proposta como direito subjetivo do acusado (Habeas
Corpus nº 75.197-1-PR, rel. Min. Moreira Alves, impetrante Lúcio Jatobá,
1ª Turma, jul. 19/8/1997, unânime), seguindo assim a posição pioneira do
Superior Tribunal de Justiça (RHC nº 6.410/PR, rel. Min. Vicente Leal,
recorrente Omires Pedroso do Nascimento, por maioria).
Manual de Direito Administrativo, 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2000, p. 82.
agente nada mais caiba senão praticar o ato. O motivo do ato
é motivo de fato e não de direito.
Não é o que ocorre relativamente à proposta.
Examinando o artigo 89 que está sendo comentado, resulta
claro que um dos requisitos para a homologação da
suspensão é a simetria entre a situação pertinente à conduta
e, do outro lado, aquela que se extrai dos requisitos do
sursis, o que se traduz da expressa remissão ao artigo 77 do
Código Penal.
A Lei no 9.099/95 parece orientada a permitir a solução
alternativa somente se for adequada à culpabilidade do
acusado (artigo 77, inciso II, do Código Penal). Ora, isto
significa dizer que há de ser levado a cabo um juízo prévio —
provisório e antecipado — sobre a reprovação pessoal da
conduta indicada na denúncia.
E é inevitável que este juízo seja conotativo, pois apenas
com atribuição de valor ao comportamento, em caráter
provisório e tendo em vista as informações da investigação
criminal, será possível conceber a correspondência
hipotética entre a culpabilidade e o merecimento da solução
diferenciada da pena criminal.
Por conta desse fator, todos os componentes da situação
fática que autoriza a proposta não estão presentes de
imediato, a ponto de transformar a própria situação de fato
em motivo de fato e subordinar o ato do Ministério Público,
vinculando-o. Uma intervenção do agente (leia-se Ministério
Público) se faz necessária e o papel desta intervenção é o de
determinar a concreta política criminal aplicável em cada
caso, gerando a eleição pelo Ministério Público da situação
fática que motivará a aplicação da regra jurídica e a
formulação da proposta. A culpabilidade do agente comporta
a solução da suspensão? Em caso afirmativo, o Ministério
Público formula a proposta; caso contrário, de forma
fundamentada deixa de fazê-lo. Somente o exame da
situação de fato, pelo Ministério Público, indicará a
propriedade de se formular a proposta de suspensão.
Com isso, é correto afirmar que o ato do Ministério
Público é discricionário, muito embora o espaço de atuação
seja bastante limitado. Acrescente-se que discricionariedade
não se confunde com arbitrariedade, que estará presente na
ação desvinculada de qualquer situação de fato prevista na
lei.56
A atuação do Ministério Público deverá ser
fundamentada, tanto quando oferece a proposta como
quando deixa de fazê-lo, propiciando o controle necessário
ao juízo de discricionariedade — com exclusão da
arbitrariedade — e às regras que regulam a vida democrática,
pois não há poder jurídico legítimo em uma democracia que
se exerça sem a possibilidade real de controle.
Caso o acusado e/ou o juiz entendam que a proposta
tinha de ser apresentada e indevidamente não o foi, terá
inteira aplicação o artigo 28 do Código de Processo Penal,
por analogia. Com efeito, dispõe este artigo que, se o
Promotor de Justiça deixar de oferecer denúncia quando
devia fazê-lo, pronunciando-se pelo arquivamento, o juiz,
discordando, remeterá ao Procurador-Geral os autos de
inquérito ou peças de informação. O Procurador-Geral então
insistirá no arquivamento ou exercerá a ação penal,
oferecendo denúncia ou designando outro Promotor de
Justiça para oferecê-la. Trata-se de uma forma de controlar o
exercício da ação penal pública, regulada pelo princípio da
obrigatoriedade.
De acordo com nosso entendimento, a proposta de
suspensão constitui modalidade alternativa de exercício da
ação penal pública. Assim, estará o Ministério Público
obrigado a exercitá-la sempre que presentes os requisitos
legais. Caso o Promotor de Justiça ou Procurador da
República deixe de formular a proposta, o juiz controlará a
inércia relativamente ao exercício da ação penal pública,
remetendo os autos ao Procurador-Geral. Ao ProcuradorGeral caberá dar a última palavra, formulando a proposta ou
ratificando seu não-oferecimento.
Outra solução que despreze a intervenção do Ministério
Público além de não preservar a estrutura fundamental
56
Carvalho Filho, José dos Santos. Ob. cit., p. 82.
acusatória de nosso processo penal ferirá gravemente o
princípio da autonomia de vontade das partes, obrigando o
Ministério Público a acatar solução definitiva do conflito de
interesses ainda quando discorde dela. Será o mesmo que
reduzir o exercício de ação penal ao mero ato de denunciar,
retirando do Ministério Público a condição de parte.
A feição acusatória eleita na Constituição não permite
ao juiz tal providência, cumprindo-se o controle da
legalidade, impessoalidade e moralidade da abstenção do
representante do Ministério Público, exclusivamente no
âmbito interno da sua instituição, pela provocação ao
Procurador-Geral.
Por todo o exposto, defendemos que só estará
preservado o princípio acusatório se a suspensão condicional
do processo for homologada em face da livre manifestação
do acusador e do acusado.
Este tem sido o entendimento do eg. Supremo Tribunal
Federal, conforme pode ser vislumbrado das decisões, cujas
ementas, para finalizar, transcrevemos a seguir:
Habeas Corpus.
Improcedência da alegação de não ter sido o
defensor do ora paciente intimado para a
apresentação das razões de apelação.
No caso, por não haver o Ministério Público,
quando do oferecimento da denúncia, proposto a
suspensão do processo, não há razão para
decretar-se a nulidade deste a partir desse
oferecimento.
Habeas corpus indeferido, determinando-se a
restituição dos autos da ação penal à origem.57
Habeas Corpus. Impetrado contra acórdão
que, em 13/12/95, sem pedir manifestação do
Ministério Público sobre a admissibilidade da
57
Habeas corpus nº 75.197-PB, julgado pela 1ª Turma, relator Ministro
Moreira Alves, publicado do Diário de Justiça da União em 24/10/1997.
suspensão do processo prevista no art. 89 da Lei no
9.099/95, em vigor desde 27/11/95, confirmou a
sentença de 19/6/95, que condenara o paciente a
15 dias de detenção e 50 dias-multa, por
infringência do art. 330 do Código Penal.
Efeito
retroativo
das
medidas
despenalizadoras instituídas pela citada Lei no
9.099 (Precedentes do Plenário: inquérito no 1.055,
D.J. de 24/5/96).
Pedido deferido para, anulados o acórdão e a
sentença, determinar-se a remessa dos autos da
ação penal ao Tribunal Especial Criminal, para a
aplicação, no que for cabível, do disposto nos
artigos 76 e 89 da Lei no 9.099-95.58
58
Habeas corpus nº 74.017-CE, julgado pela 1ª Turma, relator Ministro
6. A Execução Penal e o Sistema Acusatório1
Com razão, Yadira Calvo lembra, ao tratar da
discriminação sexual em todos os níveis, que se supõe que
Deus escreve certo por linhas tortas; porém não os seres
humanos, que quando torcem as linhas o fazem porque têm
torcidas também as intenções.2
Assim é em termos de Direito e da mesma maneira
quando tratamos de Democracia, principalmente na América
Latina e de modo mais específico no Brasil.
Muito embora tenha parecido a muitos que a
promulgação da Constituição, em 1988, haja representado o
ponto culminante da transição para a democracia, os reflexos
de uma ordem jurídica democrática não são visíveis para
além dos contornos meramente formais da Democracia
procedimental. Por ordem democrática real, é preciso desde
logo fixar, entendemos algo mais que a simples conexão de
procedimentos entre elementos dispostos a assegurar a
participação popular, livre e direta, na eleição dos
representantes no Congresso e no Executivo. Em companhia
de Lola Aniyar, preferimos optar por um conceito
substancial, em virtude do qual a existência de três pilares
básicos é imprescindível para condensar o verdadeiro
significado do termo: que o poder seja ascendente, isto é,
que vá das camadas populares, para cima; que seja
utilitário, pois que responda a interesses generalizáveis;
que tenha capacidade para conter os abusos de poder.3
1
2
3
Trabalho elaborado para publicação na Revista Jurídica da Faculdade de
Direito Iguaçu – UNIG e na Revista Juris Poiesis, do Curso de Mestrado
em Direito da Universidade Estácio de Sá, que serviu de base para a
palestra com o mesmo título, proferida no VI Simpósio Nacional — Direito
Penal e Processual Penal — ―Novas Idéias — Novos Rumos”, em
30/4/1999, no Hotel Glória, Rio de Janeiro, pelo Instituto de Direito.
Calvo, Yadira. Las Líneas Torcidas del Derecho, San José: ILANUD, 1996,
p. 5.
Aniyar, Lolita. Democracia y Justicia Penal, Caracas: Congreso de la
República, 1992, p. 7.
De concreto, a implementação de uma democracia com
essas características é um projeto dinâmico e sempre não
totalmente realizável, porque pressupõe um nível de
igualdade social, econômica e jurídica que não corresponde à
nossa realidade e, o que é mais grave, a um futuro que sequer
hoje a maioria dos brasileiros aspira.
Da democracia aparente ao processo penal
democrático aparente o passo não é largo e costuma ser
dado sem dificuldade, infelizmente, por conta do mesmo tipo
de cultura que embarga os esforços de redução da criminosa
distorção na distribuição de rendas, prêmios e castigos em
nossa sociedade.
No campo do processo penal de conhecimento, mais
visível e interessante para a própria dramaturgia do Estado
Espetáculo, várias garantias são dispostas pelo direito para
aqueles que têm condições de acesso a melhores recursos
jurídicos, e também, em grau variável, para todos os demais
acusados. Assim, exige-se que um juiz imparcial aprecie a
demanda do acusador, em um ambiente filtrado pelo
contraditório, que só é possível graças à ampla defesa
assegurada pela direta participação do acusado no processo e
pela intervenção de Defensor profissional. As provas
valoradas ao final devem ter sido obtidas de forma lícita e o
julgamento
há
de
ser,
normalmente,
público,
fundamentando-se a decisão.
Cumprida a trajetória do processo de conhecimento,
resta, para os definitivamente condenados, expiar a culpa,
termo religioso que bem demonstra o sentido que a aplicação
da sanção e a execução penal ainda têm.
No momento inicial da execução penal, vislumbra-se
claramente a distorção do primeiro eixo deste tipo de
processo. Antes de ser um árbitro imparcial de um conflito
entre partes — Ministério Público e condenado — por uma
dessas situações peculiares à ideologia com projeção no
mundo jurídico, o juiz deve tomar e manter a iniciativa da
execução, à semelhança do modelo inquisitório. Do ponto de
vista subjetivo, verifica-se o fenômeno da transferência, para
o magistrado da execução, das responsabilidades geradas
pela suposta expectativa social, de que o condenado seja
efetivamente castigado.
A teoria crítica, tão importante na década passada, por
evidenciar as incoerências do discurso jurídico,
desmoralizando a tese de que a prisão é eficaz método de
reintegração social do condenado, acaba de certa forma
manipulada pelos defensores de uma vivência social
autoritária, conservadora e discriminatória, que dela
recolhem somente um retalho para justificar a retribuição
pela retribuição, porque possivelmente, dizem, nada mais é
possível fazer pela socialização!
Perde-se o contato com o sentido de humanidade que
deve guiar toda ação estatal opressiva pela própria natureza
e se substitui tal exigência de humanidade pela expectativa
de que o juiz fará o condenado perceber de maneira
indiscutível a gravidade da conduta que o levou a ser punido
e, portanto, a ser afastado real ou simbolicamente, mediante
a prisão ou substitutivos penais, da comunidade dos seres
humanos saudáveis!
Tendo por alicerce demandas sociais dessa qualidade é
que um juiz, na execução, é chamado a cumprir o seu papel,
em flagrante contraste com as exigências constitucionais de
uma jurisdição imparcial e voltada à implementação de
medidas de justiça social. É justamente por força dessa
distorção que a posição do juiz no processo de execução tem
de ser repensada em bases mais democráticas,
simultaneamente com a convicção na eficácia dos
procedimentos jurídicos para conter os abusos.
A falência factual do propósito de ressocialização da
sanção penal, denunciada pela teoria crítica, se não pode
levar, contemporaneamente, à abolição da intervenção
punitiva institucionalizada, como a conhecemos, importa em
duas conclusões que dimensionam a intervenção do juiz na
execução da pena: sem que seja necessária uma profunda
reflexão crítica cabe ao juiz compreender que a integração
social dos condenados, qualquer que tenha sido a sanção
eleita, é uma via de mão dupla, exigindo adaptações tanto da
parte de quem sofre a pena como da sociedade e do Estado,
este devedor de tantos serviços sociais elementares para
diminuir a pobreza; além disso, do condenado não se pode
exigir mais do que a sentença impõe e tudo o que se deve
exigir dele há de estar condicionado pelo fim de humanizar
as relações sociais presentes e futuras.
Em um quadro com tais notas, o juiz funciona atento
para eliminar os abusos durante este processo e pronto para
resolver as controvérsias sobre a execução do julgado, seus
limites e possibilidades, e a respeito da tutela dos inúmeros
interesses jurídicos do condenado.
Colocar o juiz no ponto central do procedimento de
execução penal acarreta, como conseqüência inevitável, levar
o Ministério Público para a extremidade da relação, como
permanente parte autora da execução, em todos os seus
momentos, como acontece em Portugal, enquanto o
condenado passa a ter, obrigatoriamente, presença decisiva
na definição do curso da sua vida, durante a execução da
pena, influindo, pessoalmente e por seu Defensor, na
conformação da convicção judicial.4
É possível, a partir daí, começar a desenhar um modelo
de procedimento em contraditório na execução, que, na visão
de Elio Fazzalari, mencionado por Antônio Magalhães
Gomes Filho, pode ser identificado pela simetria das
posições subjetivas, a sua mútua implicação e a substancial
paridade que se traduzem para cada um dos participantes,
na possibilidade de dialogar não episodicamente, mas
sobretudo de exercitar um conjunto de controles, reações e
escolhas.5
4
5
Antonio Magalhães Gomes Filho salienta, com razão, que a defesa do
condenado no processo de execução penal não se confunde, pois,
simplesmente, com a eventual oposição às pretensões dos órgãos estatais
incumbidos de promover o cumprimento das penas impostas, mas se
caracteriza, antes de tudo, como um conjunto de garantias através das
quais o sentenciado tem a possibilidade de influir positivamente no
convencimento do juiz da execução, sempre que se apresente uma
oportunidade de alteração da quantidade ou da forma da sanção punitiva
(―A Defesa do Condenado na Execução Penal‖, in Execução Penal, Ada
Pellegrini Grinover (coord.), São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 41).
Antonio Magalhães Gomes Filho, ob. cit.
É verdade que isso não basta e que, se alcançássemos a
excelência do procedimento contraditório na execução, ainda
assim a vida e as perspectivas do condenado sofreriam
somente pequena alteração.
A nosso juízo, a arquitetura ideal da execução está
ligada a reformulações na prática e na cultura da execução
penal. Na prática porque, como salientava Marcuse, se a
teoria trabalha com o universo estabelecido do discurso, que
é aquele de um mundo não livre, o pensamento dialético que
na essência nada mais significa que diálogo com a razão, é
sempre destrutivo e qualquer libertação que ele possa trazer
é libertação em pensamento, em teoria. Porém, o
desencontro entre pensamento e ação, teoria e prática é, ele
mesmo, sublinhava o filósofo, parte de um mundo não livre,
de sorte que nenhum pensamento e nenhuma teoria podem
desfazê-lo. É necessário atuar incisivamente sobre a
realidade, guiando-se pela teoria, se o propósito é
transformar para melhor, visando alcançar um modo de
tratamento da pessoa condenada mais de acordo com a
pauta de valores éticos difundida no meio social. Nesta
perspectiva, Wolfgang Leo Maar6 adverte que os problemas
éticos demandam soluções práticas. A postulação de uma
nova praxis importa em modificar a cultura da e na execução
penal, alterar o sentido do patrimônio simbólico dos modos
padronizados de pensar e de saber que se manifestam,
expressamente, através da conduta social de todos os
principais atores.
Compreende-se melhor o desafio à vista da seguinte
hipótese, certamente bem real: mesmo que o processo de
execução esteja sendo regularmente impulsionado pelo
Ministério Público, à diferença do que ocorre hoje, e no seu
desenvolvimento normal a Defesa postulasse, para ilustrar,
tutela jurídica consistente na aplicação da lei penal posterior
benéfica, que prevê substitutivos à prisão (Lei no 9.714/98), a
um caso de condenação de traficante de drogas a três anos de
6
―Introdução a Marcuse: Em busca de uma ética materialista‖, in Herbert
Marcuse: Cultura e Sociedade, São Paulo: Paz e Terra, 1997.
reclusão, pena mínima, uma solução fora de parâmetros
puramente ideológicos, com raciocínio do tipo o tráfico de
drogas é um crime grave e, portanto, seus autores a priori
não merecem a substituição, não seria de se esperar.
Vamos buscar um exemplo menos polêmico:
Caio, reincidente em crime doloso, condenado a dezoito
anos de reclusão, em regime fechado, trabalha internamente
durante nove anos. Como para cada três dias de trabalho é
possível a remição de um dia de pena, Caio tem direito a
remir três anos de sua pena, que ficaria reduzida a quinze
anos, nove dos quais cumpridos! Acontece que, de acordo
com o artigo 127 da Lei de Execução Penal (Lei no 7.210/94),
o condenado que for punido por falta grave perderá o direito
ao tempo remido, de sorte que se Caio, num dia menos
inspirado, cometer falta grave, por essa indisciplina receberá
a sanção adicional correspondente a três anos de reclusão,
pena superior à de muitos crimes!
O episódio de um único dia de Caio na prisão poderá
determinar uma virada decisiva e negativa na continuidade
da vida do condenado, eliminando aquilo que ainda é a
insulada e frágil garantia da sociedade no retorno dele ao
convívio social amplo: sua esperança.
Enfrentando a questão no Rio de Janeiro, o juiz Marco
Aurélio Belizze, em decisão fundada na eqüidade,
reconheceu o excesso imprevisto para o legislador (excesso
culposo, provavelmente) e, aplicando por analogia as
condições do indulto, encontrou solução razoável, que não
importou em sacrifício inconstitucional da posição jurídica
do condenado, limitando a perda dos dias trabalhados aos
doze últimos meses, parâmetro inspirado nos decretos de
indulto.7 Hipoteticamente, de três anos de reclusão, o saque
em conta de um condenado pode atingir quatro meses!
Só se tornou possível a solução equilibrada e justa
porque o juiz soube, inspirado na constitucional proibição do
excesso, mediar o conflito entre partes opostas e atender a
7
Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, processo nº 90/02843-2,
decisão de 10/7/1998.
interpretação legal mais condizente com os direitos
fundamentais, premissa básica da democracia.
Isso não tira, todavia, o caráter excepcional da decisão.
A seguir prestigiados autores, como Mirabete,8 os juízes
decretam a revogação da remição, que termina por alcançar
a totalidade do tempo trabalhado e atingir o condenado,
punindo-o hoje com o sacrifício de tanto tempo empenhado
muito antes de viver o problema que resultou na falta grave.
Por isso é que, a nosso juízo, a reformulação teórica do
processo de execução há de implicar em alterações práticas
sensíveis no plano cultural. Além do deslocamento do
julgador para o ponto central do processo de execução,
deixando ao Ministério Público a iniciativa, é imperativo que
se assegure a dinâmica do contato pessoal entre juiz e
condenado, propiciada verdadeiramente pela predominância
da forma oral de procedimento, que pode oferecer ao juiz
algo das sensações e das dificuldades experimentadas pelos
condenados no cumprimento das mais variadas modalidades
de pena e dar ao magistrado, que as desconhece, o sentido
dos limites e possibilidades reais dos seres humanos em
condições desfavoráveis.
Hassemer chama a isso de compreensão cênica, cujo
objetivo consiste em, reconhecendo-se as peculiaridades da
comunicação humana que não está limitada a palavras, e
menos ainda a palavras escritas, que o juiz interpreta na hora
de julgar como se estivesse interpretando um texto escrito,
uma obra literária qualquer, fornecer as condições de
comunicação próximas ao ideal.9 O sentido dos gestos, tom
de voz, a força de argumentos que um defensor pouco hábil
desconsidera e, principalmente, a possibilidade do
condenado sentir-se confiante para revelar ao juiz,
diretamente, as experiências mais arbitrárias que possa estar
sofrendo, tudo isso demonstra que a forma primeira do
8
9
Mirabete, Júlio Fabrini. Execução Penal, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1992, p.
319.
Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch,
1984.
procedimento de execução deve ser a oral, ao contrário do
que está preconizado no artigo 196 da lei de execução. Hoje o
procedimento na execução penal é tudo, menos
predominantemente oral.
O Projeto de Lei no 2.687-96, em tramitação no
Congresso, prevê a modificação dos artigos 195 a 197 da LEP
e introduz o procedimento oral e a audiência como regra. É
limitado quanto à possibilidade das partes provarem, o que
deve ser melhorado, contudo, avança ao incorporar a
audiência, que tende a reduzir as distâncias entre o juiz e o
condenado, seu jurisdicionado na execução.
Um procedimento oral, no qual, ainda conforme
Hassemer, o juiz desça do seu pedestal e encare as partes
como pessoas portadoras de direitos e deveres, ônus e
faculdades, e que esteja inserido em um contexto de
distribuição rigorosa das funções na execução, entre juiz,
Ministério Público e condenado, assistido por Defensor,
pode oferecer soluções equânimes, justas, para situações
diferenciadas no transcurso do processo, em virtude das
quais mesmo ao condenado por tráfico não se negue,
sistematicamente e sem motivação jurídica, quando for o
caso, a substituição da prisão por outra medida.
A oralidade envolverá aí, por outro lado, cuidados
especiais com o emprego da tecnologia no procedimento de
execução. Enquanto é indiscutível que a era da informática e
da telemática pode oferecer vantagens indiscutíveis, em
termos de controle do tempo de duração das penas e
medidas e da celeridade na produção dos atos jurídicos
necessários, um dos pressupostos elementares do processo
oral está em permitir o contato direto entre o juiz e a parte,
contato que não deve ser mediado por sofisticados recursos
de transmissão de voz e imagem, distanciando fisicamente os
protagonistas do processo e deixando um deles isolado em
ambiente que lhe pode ser hostil, justamente aquele sujeito
mais necessitado da segurança que o contato direto
proporciona.
A cultura pós-moderna implicada em determinadas
atitudes, louváveis sob inúmeros aspectos, porque visam
agilizar e melhorar a prestação jurisdicional, tem de se
render à realidade instrumental da tecnologia. Ela não vale
por si, como o processo igualmente não é um fim em si
mesmo!
A tecnologia é importante pelos resultados que a sua
aplicação prática proporciona, de modo que, se estes
resultados não atendem aos objetivos de propiciar uma
adequada tutela jurídica, devem justificar o abandono, ainda
que provisório, do recurso mais sofisticado. No caso, o
contato pessoal, na velha conhecida audiência, se causa
transtornos de locomoção, segurança etc., é um aparente
atraso que, em termos de processo jurisdicional, humaniza e,
neste sentido, acaba sendo um atraso progressista, algo
como DE VOLTA PARA O FUTURO. Seguindo este caminho,
creio que não necessitaremos temer pela advertência de
Boaventura de Sousa Santos, de que um dia teremos
pateticamente de inventar, sempre com atraso, o que já
tivemos quando éramos atrasados.10
Às vantagens da audiência devemos somar a
conveniência, no caso de presos, tendo em vista a sempre
alegada dificuldade de transporte e segurança, do ato
realizar-se nas unidades prisionais. Um dos pontos mais
sensíveis e de mais delicada solução jurídica está relacionado
aos desvios e excessos de execução, medida que não exclui a
audiência no tribunal, mas a complementa.
Quantas vezes o indivíduo devia estar cumprindo pena
em regime semi-aberto ou aberto e, apesar da penitenciária
ter essa qualificação, na prática, o sistema é fechado.
Quantas vezes a única progressão se dá exclusivamente de
sistemas mais fechados para outros apenas menos fechados!
Pior, todos sabemos que o artigo 88 da LEP, que trata das
mínimas condições físicas dos cárceres, é sistematicamente
desrespeitado pelos governos estaduais. São excessos na
execução das penas, conforme a tipologia desenhada no
artigo 185 da LEP, que o juiz poderá perceber in loco,
10
Santos, Boaventura de Sousa. Pelas Mãos de Alice, São Paulo: Cortez, 1995,
p. 67.
reforçando o seu dever de fiscalizar ao mesmo tempo em que
o jurisdicionado tem certeza, porque está em audiência com
o juiz, no próprio ambiente carcerário, que o magistrado
haverá de leva-los em consideração na hora de decidir sobre
os pleitos deduzidos. Se as partes tradicionalmente têm o
direito de serem ouvidas pelo juiz — é dito que têm direito ao
seu dia na corte — o juiz passa a ter o direito ao seu dia na
prisão: one day in jail.
Para os presos, é benéfica a configuração procedimental
com essas características, aproximando o juiz da realidade de
vida do condenado, se houver a pretensão de convencê-los da
justiça intrínseca da ordem jurídica.
No plano processual, algumas conseqüências podem ser
desde logo percebidas:
a) quanto ao excesso de execução, além da providência
jurídica óbvia de eliminação da medida excessiva ou
desviada — por exemplo, transferindo-se o preso para
unidade compatível com as exigências da fase de execução —
caberá imaginar a viabilidade de pretensões jurídicas que
não se restrinjam à indenização preceituada no artigo 5o,
inciso LXXV, da Constituição da República, mas que,
aplicando o princípio da proporcionalidade, importem na
compensação quantitativa de sanção pela violência
qualitativa constatada. Verdadeira e jurídica redução da
pena. De lembrar que se outro preso, condenado ao mesmo
tempo de reclusão em regime idêntico, vai sofrer uma
limitação da sua liberdade na mesma porção de tempo a ser
suportada por este, em visível excesso, há quebra do
princípio constitucional da isonomia, que o Poder Judiciário
não pode deixar de coibir;
b) QUANTO AOS ADOLESCENTES, rompe-se muitas
vezes a ideologia do senso comum, que pode inspirar alguns
juízes, levando-os a crer na eficácia da internação como
medida estacionária da situação de conflito. Muitas vezes, o
caráter banal da internação está fundamentado na crença em
uma eficácia corretiva dela, absolutamente distante da
realidade, como demonstra a criminologia. O juiz, ao ter
contato direto com o cárcere e com o adolescente em
cumprimento de medida em condições concretas, estará
melhor instruído para pesar o que realmente pretende
internando o jovem e não se deixará iludir pela denominação
comum de ―Escolas‖ ou ―Educandários‖ que muitas destas
unidades ostentam.
Muitas outras questões mereceriam ser enfocadas, mas
a limitação de tempo permite tão-só citá-las, para orientar a
meditação dos interessados: o cabimento da execução penal
provisória, idealizada tendo em vista interesses reais do
condenado; a possibilidade jurídica do Ministério Público
recorrer a favor do processado, durante a execução; o não
cabimento do mandado de segurança para impedir a
imediata execução de decisão favorável ao condenado; o
procedimento do recurso de agravo (semelhante na execução
penal ao do recurso em sentido estrito); o caráter
jurisdicional pleno da execução, para englobar a questão das
faltas graves e suas conseqüências; a impossibilidade da
regressão de regime cautelar (objeto de recente decisão do
Des. Valmir da Silva, do Rio de Janeiro); e, finalmente, o
debate sobre se o preso tem direito a não progredir de
regime (por conveniência, segurança ou conforto, por
exemplo).
A teoria jurídica pode e deve fornecer os elementos
indispensáveis à construção de um processo de execução
penal mais humanizado e comprometido com os fins da
sanção, reformulando em linhas gerais o atual. Já se disse
que, embora disponha de duzentos e quatro artigos, a lei de
execuções penais dedica apenas dezoito ao processo,
demonstrando, em linhas gerais, como há muito salientou
Ada Grinover, uma certa falta de atenção da lei para com as
garantias processuais das partes e da jurisdição.11
Temos certeza que a elaboração de um novo processo de
execução, no entanto, não é suficiente para remodelar as
relações sociais penetradas pelo problema do crime.
11
Grinover, Ada Pellegrini. ―Anotações sobre os Aspectos Processuais da Lei
de Execuções Penais‖, in Execução Penal. Ada Pellegrini Grinover (coord).
São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 15.
A democracia no processo penal de execução,
preconizada no início, a ser alcançada, em síntese, por
intermédio do reforço à estrutura caracteristicamente de
acusação, com distribuição rigorosa de funções, e levando em
conta, no futuro, um procedimento oral, ainda que repercuta
na mentalidade dos operadores jurídicos de modo a tornálos protagonistas em um enredo de respeito aos direitos
fundamentais, é só um dos caminhos em direção ao contexto
democrático mencionado por Lola Aniyar.
A democracia substancial, que é o nosso postulado,
acaba algo parecida com a utopia e, como tal, novamente nas
palavras de Boaventura de Souza Santos, está a indicar os
caminhos a seguir, muito embora apenas vislumbre nas
sombras de um futuro incerto o lugar de chegada. Semicega
a utopia democrática, diria Boaventura, enxerga o processo
de execução penal carente de mudanças, mas reclama
também a democratização do sistema penal como um todo e
a humanização do controle social hoje extraordinariamente
brutal. É preciso e urgente redimensionar o papel das classes
populares em todo o percurso ideal deste sistema. E o fim ou
destino desta utopia, gostaríamos que fosse a emancipação
dos grupos carentes da sociedade. SE É SEMICEGA A UTOPIA
DEMOCRÁTICA, QUEM SABE NÃO É TAMBÉM SEMIVIDENTE
E NOS INDIQUE, AO FINAL, COMO PONTO DE CHEGADA E
REPOUSO DA EMANCIPAÇÃO, UMA SOCIEDADE JUSTA,
LIVRE E FRATERNA. UMA SOCIEDADE VERDADEIRAMENTE
SOCIALISTA.
7. Conclusão
De tudo quanto foi exposto, cabe agora articular os
tópicos fundamentais do trabalho, não sem antes registrar
que, malgrado a advertência contida no texto, de que a
aferição da constitucionalidade de um sistema processual
passa pela estática concordância entre as funções
processuais e também pela ponderação da dinâmica de
relações que se estabelecem, o fundo cultural é determinante
fator de efetivação de sistema e princípios constitucionais,
impondo-se a evolução em direção à plena democracia
simultaneamente com a aproximação às expectativas sociais.
Desse modo, a recíproca relação entre o mundo direito e o
mundo real potencializará a semente, no campo do processo
penal, de um sistema que não seja apenas aparentemente
acusatório, mas torne ambos, princípio e sistema
acusatórios, realidade, conjugando eficaz tutela da segurança
de todos e da dignidade de quantos venham a sujeitar-se ao
processo penal.
São estas, pois, as principais conclusões:
1. o processo penal condenatório rege-se por padrões
normativos, de origem constitucional, que traduzem
limitações significativas ao poder punitivo do Estado;
2. as limitações do processo penal estão a princípio
traçadas, levando em conta a efetivação dos direitos
fundamentais;
3. por sua vez, a efetivação dos direitos fundamentais
só tem lugar em um Estado Democrático, fundado no
princípio da divisão dos poderes, de tal sorte que o processo
penal, espaço jurídico dentro do qual os direitos
fundamentais são mais exigidos, tutelados e, em
circunstâncias excepcionais, comprimidos, deve ser um
processo penal democrático;
4. a democracia no processo penal projeta a tutela dos
direitos fundamentais e da disciplina constitucional da
divisão dos poderes em seu interior e resulta na
implementação do princípio da divisão de funções no
próprio processo, atribuindo-se a diferentes sujeitos as
atividades principais de acusar, defender e julgar;
5. o sucesso na implementação de um processo penal
estruturado dessa forma depende não apenas da
normatividade constitucional, como da existência de um
fundo cultural que reconheça a validade prática de um tal
sistema, em atenção aos justos anseios de proteção e
segurança da comunidade;
6. de outra forma, a Constituição produz eficácia
meramente simbólica e a regulação dos seus princípios
esbarra em processos de interpretação que lhes reduzem o
alcance e significado;
7. visto assim, o processo hermenêutico adquire
relevante valor, comportando apenas interpretações
conforme à Constituição, como condição de validade das
normas ordinárias;
8. da interpretação derivada da articulação das
normas
constitucionais
que
disciplinam
direitos
fundamentais, instituem a privativa atuação do Ministério
Público, no exercício da ação penal pública, e reservam ao
juiz a função de decidir os conflitos de interesses, além de
preconizar a publicidade do processo e a oralidade do
procedimento, resulta a convicção de que a Constituição
preocupou-se com a inserção de princípios determinantes da
estrutura e do modelo de processo penal;
9. o modelo eleito não é original mas sim o produto da
evolução, cujo conhecimento contribui para edificar critérios
de avaliação dos sistema e princípios;
10. não existe uma compreensão exclusiva e
unicamente válida sobre que elementos compõem os
sistemas processuais, variando conforme a história dos
povos e o enfoque teórico que conferem à questão do
comportamento delituoso e seu modo de controle, de sorte
que nem sempre coincidem as visões histórica e teórica dos
sistemas;
11. é possível, todavia, determinar alguns pontos
convergentes, sendo que, relativamente ao sistema
acusatório, há, além do pacífico reconhecimento de que se
fundamenta na divisão das tarefas de acusar, defender e
julgar (princípio acusatório), concordâncias sobre as
exigências de publicidade e oralidade;
12. a definição do que se compreende por acusação é
elementar na delimitação da área de atuação do acusador e
do juiz;
13. optou-se, neste aspecto, por inserir a acusação no
conceito de ação penal — importando na imputação de uma
infração penal, com pedido de aplicação da sanção — e,
assim, extrair todas as conseqüências possíveis, quer no
tocante à delimitação do objeto do processo, quer quanto à
distribuição das atividades probatórias ;
14. reconheceu-se que as leis processuais ordinárias
brasileiras, de acordo com o maneira como estão sendo
aplicadas, não respeitam totalmente as fronteiras traçadas
pelo princípio acusatório;
15. ficou evidente, em face da interpretação
predominante, que o conceito de princípio acusatório está
reservado à iniciativa de demandar, a partir do que, o dogma
da verdade real se instala e, com ele, fortes tendências de
investigação judicial;
16. a legislação especial, consoante tem sido
interpretada e aplicada, não foge à regra, vigorando a crença
na existência de poderes de instrução do juiz, além e acima
do direito à prova das partes;
17. finalmente,
questiona-se
a
suposta
discricionariedade do Ministério Público quanto à
implementação das soluções de consenso incorporadas pela
Lei no 9.099/95, a partir da previsão constitucional contida
no artigo 98, inciso I, debatendo-se, em vista disso, sobre o
lugar que ocupa a instituição em um processo penal
democrático, fundado na legalidade e na acusatoriedade;
18. concluímos, afirmando que, de fato, a Constituição
da República optou pelo sistema acusatório, mas o
ordenamento jurídico processual ainda está distante da
máxima acusatoriedade, razão pela qual recomenda-se que,
propondo-se a reforma do processo penal, como
conseqüência da transformação constitucional operada em
1988, coloque-se de lado a aparência acusatória e efetive-se a
estrutura que, democraticamente, divide tarefas, funções e
responsabilidades.
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ANEXO
Da Lei de Controle do Crime Organizado:
crítica às técnicas de infiltração e escuta ambiental1
1
Este artigo sintetiza as idéias apresentadas em 21 de abril de 2001,
no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, no Simpósio Novos Rumos, Novas
Idéias, promovido pelo Instituto de Direito – ID.
1. Introdução
Em 11 de abril passado foi sancionada a Lei n.
10.217/2001, que alterou dispositivos da Lei n. 9.034/95,
conhecida também como Lei de Controle do Crime
Organizado2.
É necessário desde logo salientar que em virtude da
nova redação conferiu-se previsão legal à interceptação
ambiental e à infiltração de agentes, consistindo a infiltração,
nos termos da Lei, em atuação de agentes de polícia ou de
inteligência
em
organizações
criminosas,
sob
falsa
identidade, para capturar provas de infrações penais
supostamente praticadas por integrantes das referidas
organizações.
O objetivo deste texto é colocar em destaque a
inconstitucionalidade de ambas as providências, inspiradas
em modelos de política criminal dotados de características
distintas daquelas que defluem da ordem jurídica brasileira.
2. A proteção da intimidade e da vida privada como direitos
constitucionais e a autodeterminação informativa
Para melhor compreender as questões críticas e
problemáticas advindas da aplicação da mencionada lei,
situando a análise tanto no campo do direito processual
penal de índole constitucional como no da política criminal,
que estabelece as linhas mestras do programa de controle da
criminalidade, é preciso lançar luz sobre o fato de que, nos
dias atuais, o direito à vida privada e à intimidade pode ser
severamente
afetado
pela
difusão
descontrolada
de
informações cuja obtenção acaba sendo facilitada pelo
emprego de tecnologias sofisticadas de comunicação e
informação.
Os modernos bancos de dados pessoais, que evoluem para a
formação
de
verdadeiros
dossiês
de
personalidades
individuais3, permitem a permanente devassa da vida
privada das pessoas, ao que se soma o aparato de câmaras e
O texto da Lei n. 10.217/01
www.direitosfundamentais.com.br.
2
pode ser
obtido no site
microfones capazes de captar imagens e sons, sem que as
pessoas visadas ou os interlocutores se dêem conta de que
estão sendo vigiados. Isso, é claro, não induz à formação de
juízos de valor a priori. Não se trata de questionar toda e
qualquer
utilização
de
meios
refinados
de
registro,
armazenamento, tratamento e transmissão de dados,
imagens ou sons, como se estivéssemos a julgar e condenar a
sociedade tecnológica (ou de informação como preferem
alguns), comparando-a com um passado de simplicidade e
harmonia total, que na realidade nunca existiu.
O ponto sobre o qual gira o eixo deste trabalho pode
ser fixado a partir da idéia de que a facilidade de disposição
das citadas informações não raro proporciona o seu emprego
para fins de controle social e mesmo de violação de
interesses vitais das pessoas, sem que os indivíduos
prejudicados disponham de recursos eficientes e rápidos de
Chama a atenção para o denominado dossiê genético, questionado
pela incomensurável potencialidade lesiva aos interesses vitais das
pessoas.
3
neutralização dos efeitos perversos conseqüentes à invasão
de sua privacidade.
É bastante razoável supor que a disposição de
câmaras que ficam parcialmente ocultas em agências
bancárias e aeroportos previna situações problemáticas. Da
mesma maneira, pudesse o médico em caso de emergência
dispor de informações seguras a respeito das condições de
saúde daquele paciente até então desconhecido, cujo
atendimento de urgência se impõe, é claro que as chances de
que essa pessoa seja atendida satisfatoriamente aumentam
de modo significativo. Ninguém pode ser contra isso.
A questão crítica aparece quando as informações não
são usadas em benefício da maior parte das pessoas que
compõem o núcleo social ou ainda quando o emprego das
informações é precedido por desproporcional violação da
esfera privada das pessoas.
Há muito se sabe que a pretexto de controlar (ou
combater) a criminalidade, os grupos e classes sociais
dominantes
empregaram
meios
violentos
voltados,
claramente,
à
desfavorecidos,
neutralização
desprivilegiados
dos
ou
setores
sociais
simplesmente
contestatórios4. Em um mesmo contexto eram tratados os
agentes responsáveis por atos que atentavam contra os
interesses individuais mais importantes (vida, integridade
física, honra) e aquelas outras pessoas que reivindicavam
mudanças radicais da ordem estabelecida, como no caso da
repressão
aos
movimentos
operários,
mediante
incriminação, nos séculos XIX e XX.
Em retrospectiva é concebível especular que os
movimentos de humanização e racionalidade, de corte
liberal, que marcaram o iluminismo e a modernidade no
plano do direito penal e do processo, tiveram eficácia
limitada mesmo nos países da Europa Ocidental, onde foram
gerados, sendo que nos chamados Estados periféricos nem
4 George Rusche e Otto Kirchheimer.in Pena y Estructura Social,
Colombia, Temis, 1984.
isso, tendo sido reduzidos à mínima expressão, de eficácia
basicamente retórica5.
Mesmo assim, a idéia-força de consolidação da
modernidade, fundada em um direito de cunho ético e
dirigida
à
transformação
social,
com
redução
das
desigualdades, proporcionou a edificação de uma estrutura
de direitos e garantias de natureza penal que, a par de
controlar a resposta estatal aos atos criminosos, atenuandolhe a brutalidade, buscou definir o Estado como entidade
cujos atos de seus agentes deveriam situar-se nos marcos de
uma legalidade prenhe de legitimidade e conformada
eticamente. Desse modo, os atos de repressão, apuração e
punição das infrações penais e de seus autores não seriam de
forma alguma equiparáveis aos atos dos próprios agentes de
delito.
O emprego da tortura e de outros meios cruéis para a
descoberta da verdade foi repudiado – ainda que na prática
tenha sido tolerado ou incentivado por regimes de vocação
5
Sobre o tema recomendo a leitura do artigo – Revista Doutrina n. 11,
autoritária – e a aquisição e introdução de provas obtidas
por meios ilícitos esbarraram em firme objeção doutrinária,
jurisprudencial e, finalmente, legal-constitucional.
Não obstante o princípio de reserva de lei para
comprimir,
legitimamente,
o
exercício
de
direitos
fundamentais, o certo é que de nada valeria a citada garantia
se os agentes do Estado Administração, encarregado da
repressão e apuração das infrações penais, pudessem decidir
diretamente os casos de restrição ao exercício dos direitos
que conformam a dignidade humana. Há aí nesta hipótese,
claramente, a percepção de que o Estado-Administração tem
interesse direto e atua como parte, de sorte que seus agentes
dirigem suas ações ao fim de coletar provas da existência de
crimes e da responsabilidade dos supostos autores.
A tensão com os interesses das pessoas investigadas
– que não são necessariamente culpadas e não podem ser
tratadas como tal até que seja definitivamente pronunciada
decisão condenatória – é inevitável.
Rio de Janeiro, Instituto de Direito (ID) ano 2001.
A única solução cabível para resolver este conflito
entre interesses legítimos repousa em atribuir a órgão
imparcial o poder exclusivo de conhecer as pretensões de
limitação dos direitos fundamentais alheios, julgando
quando realmente é necessário ou imprescindível reduzir a
esfera de exercício destes direitos em prol de interesses
prevalecentes.
Por
isso
cumpre
reconhecer
a existência de
verdadeira ―reserva constitucional de função‖, atribuível ao
Poder
Judiciário
para
examinar
as
demandas
dos
responsáveis pelas investigações criminais, que estejam
interessados em obter provas ou assegurar a eficácia prática
de virtual decreto condenatório fazendo uso de medidas
coercitivas dirigidas contra o investigado ou processado e
seus direitos fundamentais.
A postura de imparcialidade do juiz, no processo
penal, independentemente de expressar a recomendável
eqüidistância entre pretensões que lhe são submetidas, na
expectativa de que receberão solução justa, não tendenciosa,
funciona também como garantia de que os interesses vitais
dos membros da comunidade, vinculados entre si por um
moderno pacto social6, não serão postergados salvo em casos
extremos, em benefício do conjunto do grupo social após
ponderada avaliação dos interesses em jogo.
Nessa dimensão entende-se a razão por que a
limitação dos direitos fundamentais não é auto-aplicável e
porque o juiz sempre terá de julgar as situações concretas,
padecendo de inconstitucionalidade os dispositivos legais
que imponham, automaticamente, restrição ao exercício de
direitos fundamentais sem apreciação da necessidade,
adequação e proporcionalidade das medidas de limitação7,
como ocorre, por exemplo, com a proibição de deferimento
Vale sublinhar que o pacto social contemporâneo concebido pelo
autor, diferentemente da versão liberal clássica engendrada por
LOCKE e HOBBES, compreende as distintas posições sociais dos
membros da comunidade e se orienta a reduzir as diferenças naquilo
em que – para citar BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS – a
diferença desfavorece as pessoas.
7 Trata-se de aplicar à hipótese o critério da proporcionalidade,
definido por CANOTILHO da seguinte maneira: ―O princípio
considerado significa, no âmbito das leis interventivas na esfera de
liberdades dos cidadãos, que qualquer limitação a direitos seja feita
deve ser apropriada, exigível e na justa medida, atributos que
permitem identificar o conteúdo jurídico do cânone da
proporcionalidade em sentido amplo: adequação; necessidade;
proporcionalidade entre meios e fins (sentido estrito).‖
6
de liberdade provisória em processo por crimes hediondos e
equiparados8.
O exercício deste controle, que é de necessidade,
adequação e proporcionalidade, está prejudicado nos termos
da Lei n. 10.217, como veremos adiante.
3. A infiltração e a escuta ambiental
3.1. Questão prévia
Antes porém de cuidar de examinar como a Lei n.
10.217/01 entrou em rota de colisão com a Constituição da
República, no tocante à violação indevida de direitos
individuais fundamentais, vale dedicar algumas palavras ao
tipo legal de crime organizado – ou mais precisamente, ao
tipo legal de crime de associação criminosa, se neste caso
não há heresia no uso do termo precisar.
Com efeito, o tipo legal de crime tem importantes
funções, estudadas pela dogmática penal, de que salienta a
função de garantia, exercida de modo a permitir aos
indivíduos
8
em
Lei n. 8.072/90.
geral
conhecer
com
antecedência
os
comportamentos penalmente proibidos, assegurando-lhes a
possibilidade de omitir a conduta capaz de violar a norma
penal.
Para tanto, é imprescindível que a lei penal
incriminadora contenha termos e expressões de significado
inequívoco, isto é, unívoco9, para que a conduta vedada seja
passível de ser apreciada e compreendida por todos. De nada
serviria pois um tipo penal contendo palavras de sentido
variado, duvidoso, impreciso e até mesmo contraditório,
carecedor de eficácia para orientar o comportamento dos
indivíduos desejosos de evitar a comissão do ato ilícito penal.
A mera estipulação prévia, em lei penal, ainda que votada
regularmente pelo Parlamento e introduzida de maneira
formalmente regular na ordem jurídica, não sana deficientes
redações de tipos penais, com abuso de expressões vagas,
ambíguas e polissêmicas, sendo por si só fator de invalidade
da norma jurídica em posição de contrariedade com a ordem
constitucional.
9
JUAREZ CIRINO.
O nullum crimen nulla poena sine legem, deduzido
do artigo 5o, inciso XXXIX, da Constituição da República,
não se satisfaz apenas com a estipulação prévia da conduta
penalmente relevante. Para que haja perfeita harmonia entre
a norma penal incriminadora e a regra constitucional de
garantia é indispensável que a lei realmente defina a conduta
censurável, indicando claramente os seus elementos e as
suas circunstâncias10.
Desde o advento da Lei n. 9.034/95 advertíamos
para a grave situação deflagrada por seu artigo 1o., uma vez
que,
fazendo
menção
de
regular
meios
de
provas
concernentes a associações ou organizações criminosas,
girava sua bateria indistintamente para os integrantes de
quadrilhas ou bandos, como é natural na forma definida no
artigo 288 do Código Penal11.
A atenção foi reivindicada principalmente para o fato
de a lei em questão autorizar providências de intensa
Assim, FRANCISCO ASSIS TOLEDO, em Princípio Básicos de
Direito Penal, São Paulo, Saraiva.
10
restrição de direitos fundamentais – algumas das quais
inconstitucionais –, que poderiam ser aplicadas a autores de
infrações penais de escassa gravidade e mesmo aos
integrantes de bandos cuja existência, embora perturbadora
da tranqüilidade social, poderia ser controlada sem recurso a
medidas extremas. De frisar, uma vez mais, na linha do
magistério de CANOTILHO, que a adoção de recursos
capazes de cercear o exercício de direitos fundamentais está
na direta dependência da necessidade de adotá-los, na
medida em que de outro modo não é possível evitar a lesão
de direitos igualmente significativos e fundamentais.
Na verdade, o alvo da política criminal espelhada na
Lei
n.
9.034/95
eram
as
organizações
criminosas
responsáveis por crimes de expressivo potencial ofensivo,
marcadamente os de corrupção estrutural e os violentos, de
índole patrimonial. Portanto, as medidas de restrição então
incorporadas ao arsenal de controle da criminalidade grave
poderiam, dada a defeituosa redação da lei, ser aplicadas
11
Ver GERALDO PRADO e WILLIAM DOUGLAS em Crime
indistintamente, sem a prudência inerente ao critério da
proporcionalidade.
Para fugir ao desacerto legal parte da doutrina
inclinou-se a sustentar que o legislador havia criado novo
tipo de delito de associação – tomar parte de organização
criminosa -, chegando a indicar os novos elementos em cuja
presença seria possível falar em organização criminosa12.
Ocorre, todavia, que a função de criação de tipos
penais é reservada, com exclusividade, ao legislador, nos
termos do mencionado inciso do artigo 5o, da Constituição
da República. Desse modo, constatando-se a impossibilidade
de distinguir em abstrato quais são os destinatários das
medidas restritivas, sem com isso invadir a seara da lei,
ficam os juízes impedidos de aplicá-la. Essa é a única solução
que preserva a integridade da Constituição mas não foi a
eleita pelos tribunais.
Organizado, Niterói, IMPETUS, 2000.
12 Assim, por exemplo, LUIZ FLÁVIO GOMES reivindica para as
organizações criminosas a previsão de acumulação de riqueza
indevida; hierarquia estrutural; planejamento empresarial, uso de
meios tecnológicos sofisticados, alto poder de intimidação, conexão
local, regional ou internacional com outra organização criminosa etc.
É provável, todavia, que o alerta da doutrina tenha
repercutido nos gabinetes governamentais. Como podemos
observar com facilidade, o novo texto do artigo 1o, da Lei n.
9.034/95, com a redação que lhe confere a Lei n. 10.217/01,
procura deixar evidente o alcance dos dispositivos legais,
assinalando que os meios operacionais para a prevenção e
repressão de ações praticadas por organizações criminosas
poderão ser utilizados em procedimentos de investigação
que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas
por
quadrilhas ou
bandos
ou,
frise-se,
associações
criminosas de qualquer tipo.
Portanto, no lugar de corrigir a redação infeliz do
texto
original,
optou-se
pela
via
flagrantemente
inconstitucional, ao negar a diferenciação necessária,
reconhecida por várias legislações de outros Estados, como é
o caso da Italiana, que trata da associação de tipo mafioso13.
13
A Associação de Tipo Mafioso - artigo 416 bis do Comissões
Parlamentares de Inquérito, pela doutrina italiana pressupõe ―Uma
lógica de domínio e de conquista ilegal e violenta do espaço de poder
O anteprojeto de reforma da Parte Especial do
Código Penal, no Título VIII – Dos Crimes Contra a Paz
Pública – inova com redação mais feliz que a atual. De
acordo com sua exposição de motivos, destacando que ―o
fato está em expansão não só no Brasil como no exterior. Se
a Quadrilha ou Bando, como anota a doutrina, quase
sempre se ajusta aos crimes de bagatela, diferente,
preocupando se apresenta a – Organização criminosa (art.
278)‖, sublinha os contornos do tipo penal proposto,
oferecendo a seguinte redação: “Constituírem, duas ou mais
pessoas,
organização,
comprometendo
ou
tentando
comprometer, mediante ameaça, corrupção, fraude ou
real‖ (ANTOLISEI - Manuale di Diritto Penale - Parte Speciale - II Crime contra a ordem pública). GAETANO NANULA (1996), in La
Lotta Alla Mafia, e GIULIANO TURONE (1995), in Il Delito di
associazione mafiosa, caracterizam a associação de tipo mafioso por
uma rigorosa hierarquia de poder e de funções, exprimindo, ainda,
uma poderosa força de intimidação, derivada da eficiência, da unidade
indecifrável e da estrutura organizacional, sujeitando seus integrantes
violência, a eficácia da atuação de agentes públicos, com o
fim de cometer crimes – Reclusão, de quatro a oito anos‖.
Ainda conforme a exposição de motivos ―busca-se impedir
também a conexão internacional. Aliás, a literatura
qualifica esse delito como ‗Crime sem Fronteira‘.‖
Do
jeito
que
está
na
Lei
n.
10.217
a
inconstitucionalidade persiste, uma vez que não diferencia
situações desiguais, permitindo ao juiz analisar os casos em
que será necessário reprimir mais intensamente o exercício
de determinados direitos elementares à dignidade da pessoa
humana.
3.2. A proteção da intimidade e da vida privada
Examinando agora as novas técnicas de investigação
introduzidas pela Lei 10.217, é certo que há visível tensão
entre elas e a tutela da intimidade e da vida privada.
à omertà. O tipo penal alcança até mesmo as influências da
organização sobre as ações político-partidárias.
O argumento primário dos que postulam expressiva
restrição da proteção à intimidade e vida privada costuma
estar fundamentado politicamente na concepção de que a
garantia destes interesses se coloca como questão típica do
direito burguês e que tratar do acesso a informações nesse
nível significa assegurar a proteção de criminosos do
colarinho branco e membros de oligarquias corruptas
encastelados
nos
governos,
agentes
políticos
que
historicamente estiveram bem protegidos pelo Direito e são
grandiosos em suas fraudes e danos que causam a um
número expressivo de pessoas.
Na ótica da efetividade dos direitos que constituem o
esqueleto normativo do denominado Estado de Direito, na
América Latina, é certo que a profundidade e extensão da
aplicação destes direitos revela-se como mais uma entre
tantas práticas de discriminação e controle social autoritário.
Com efeito, há direitos civis reconhecidos desde a
Constituição do Império do Brasil. A atuação prática destes
direitos, todavia, na maior parte das vezes esteve dirigida à
proteção dos grupos sociais historicamente mais bem
situados na pirâmide social. Não há erro em afirmar que a
República foi proclamada, no caso brasileiro, mas o
sentimento republicano raramente foi compartilhado por
pessoas de todos os segmentos sociais. Isso se deve ao fato de
a República – como a monarquia pós-independência – terem
sido movimentos políticos verticais, produzidos de cima para
baixo, do cume para a base da sociedade, base esta que,
excluída do gozo das riquezas, permaneceu durante longo
tempo desconhecendo o significado da cidadania.
Isso marca sobremodo a percepção peculiar ao senso
comum, nos quadrantes dos países periféricos e semiperiféricos, de que os direitos fundamentais são, na
realidade, escudos artificiais de que se valem parcelas das
elites para elidir sua responsabilidade quando flagrados
violando a norma penal.
A disfunção histórica em termos de efetividade de
direitos fundamentais no Brasil e no restante da América
Latina não nos permite, no entanto, tomar como medida de
injustiça social a pretensão de tutela de interesses vitais para
todas as pessoas, com independência da sua situação social,
nem tampouco deixar de reconhecer que determinados
direitos não são essencialmente fundamentais14, muito
embora sejam tratados como se fossem, ampliando
indevidamente o âmbito de segurança de valores que
realmente dizem respeito a apenas uma fração da
comunidade.
Pelo contrário, o viés estritamente discriminatório
que marcou a dura relação entre exercício de direitos
fundamentais e a condição de determinados atores políticos
serve para demonstrar de que maneira a manipulação destes
direitos funciona como fonte de contenção das reivindicações
sociais e de que forma a ampliação, tanto no nível horizontal
(dos sujeitos que devem ser protegidos das ações contra seus
direitos fundamentais) como vertical (da profundidade da
proteção, com a implementação de ações judiciais de fundo
14 Como é o caso do sigilo bancário, que está baseado em relação de
confiança mas que terminou sendo interpretado, equivocadamente ao
nosso juízo, como emanação da personalidade.
constitucional)
poderá
servir
de
instrumento
para
neutralizar a tendência de congelamento da atual situação de
desigualdade15.
Desprezar
a
função
política
dos
direitos
fundamentais é, ao meu juízo um enorme equívoco, como
salienta igualmente LÖIC WACQUANT em sua obra PUNIR
OS POBRES: A NOVA GESTÃO DA MISÉRIA NOS
ESTADOS UNIDOS16.
O exame das estratégias que unem políticas sociais e
criminais em torno do controle social punitivo, nos países
centrais, demonstra como a penetração na intimidade das
pessoas que integram os chamados grupos sociais marginais
ou suspeitos (as minorias que atemorizam o imaginário das
classes médias) pode ser empregada para criar novos guetos,
dominados por um moderno, complexo, competente e difuso
PANÓPTICO.
15 Penso que a difusão dos direitos fundamentais – políticos e sociais –
contém enorme potencial de transformação da sociedade, com
capacidade para romper as barreiras erguidas pelas diferenças
econômicas e sociais.
16 Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 2001.
Diferentemente das tendências de criminologia
crítica e sociologia do direito penal, o Movimento de Lei e
Ordem, a que se filiam as práticas de política criminal
orientadas à restrição dos direitos à intimidade e vida
privada17, estipula funções basicamente repressivas para
conter os grupos sociais rebeldes, setores da sociedade que
supostamente põem em risco a lógica do capital e do
mercado18.
O fenômeno da criminalidade transnacional, em
grande medida expressão do caráter transnacional que
caracteriza a economia da era da globalização, com seu
permanente e descontrolado fluxo de capitais, recebe o
tratamento de criminalidade grave à semelhança do modelo
de criminalidade política que na década de 1970 marcou
Filiação evidente tanto da Lei n. 9.034/95 como da Lei n. 10.217/01.
Na obra mencionada LÖIC WACQUANT sublinha que as políticas
sociais são quase inexistentes ou nulas e não criam condições reais
para a transferência de rendas e universalização dos benefícios
decorrentes do emprego prático das novas tecnologias. Por outro lado,
as agências sociais norte-americanas dispõem de um completo banco
de dados que permite controlar as populações empobrecidas, fazendo
fluir dos bancos de dados sociais aos criminais e vice-versa
informações vitais para determinar, por exemplo, áreas de
concentração das populações negras e orientar as investigações
criminais em cima do conhecido perfil de criminoso.
17
18
Itália e Alemanha. Com isso, o aparato bélico legalizado
nestes países ganha insuspeita credibilidade, como conjunto
de recursos eficazes para a descoberta de criminosos
perigosos e a punição deles.
De lembrar, com MANUEL AUGUSTO ALVES
MEIRES19, que é da legislação anti-terrorismo que emerge,
ao nível legislativo, a figura do provocador, parente direto do
nosso infiltrado, aceita pelo Tribunal Constitucional Alemão,
por supor a eficácia da justiça penal, ―indispensável à
realização da justiça material‖20.
Posta nestes termos, a questão da eficácia repressiva
destes instrumentos encobre os efeitos negativos que o
cotidiano da justiça criminal no Brasil não cansa de
constatar: a ausência de controle real sobre os agentes
encarregados da investigação criminal, quando estes são os
únicos responsáveis pela gestão das técnicas de investigação
que invadem o âmbito privado das pessoas, atua como forte
19 O Regime das Provas Obtidas por Agente Provocador em Processo
Penal, Coimbra, Almedina, 1999, p. 27.
20 Idem, p. 28.
fator de corrupção e violência, degradando as relações entre
a população e as autoridades. Isso acontece no cotidiano das
cidades brasileiras, quando as casas da periferia são
invadidas sem mandado e quando os informantes da polícia
de fato fazem parte dos grupos de criminosos que a mesma
polícia devia tentar controlar, de tal maneira que para as
populações das áreas carentes acaba sendo tarefa difícil
delimitar o espaço dentro do qual os agentes do poder
público atuam para defendê-las daquele outro em que estas
mesmas populações são reféns destes agentes como o são
dos grupos criminosos.
Nos países centrais o sistema de garantias funciona
relativamente nas oportunidades em que é acionado para
proteger os cidadãos. No Brasil e no restante da América
Latina o sentimento difuso de que as garantias processuais
não alcançam os mais pobres é reforçado pela certeza de que
os
Estados
não
dispõem
de
Defensorias
Públicas
permanentes e bem equipadas. Aliás, sequer um sistema
judiciário com plantões freqüentes é encontrado em todos os
lugares, de modo a garantir o rápido acesso à justiça
daqueles eventualmente atingidos por atos arbitrários.
Ora, se diante de quadro semelhante o PANÓPTICO
se instala nos Estados centrais para, a pretexto de combater
a criminalidade, controlar imensas parcelas dos grupos
sociais tidos como potencialmente perigosos (imigrantes
latinos, negros etc.), como supor que no Brasil – e em
qualquer outro país da América Latina – a liberdade de
invasão na esfera da vida privada e intimidade não servirão
exatamente para acentuar o grau de discriminação que
caracteriza nossos sistemas penais?
Até porque, somente para ficarmos com um singelo
exemplo, retirado do campo de (im)possibilidade de
aplicação da Lei n. 10.217/01, de onde virão os agentes
policiais que estarão infiltrados nos órgãos dirigentes dos
grandes grupos econômicos, se porventura houver suspeita
da prática de crimes do colarinho branco?21 Parece evidente
que o alvo são as quadrilhas formadas por sujeitos
recrutados nas periferias, distinguindo aí, mais uma vez, os
modelos de criminalidade conforme o grupo social a que
pertencem os agentes de delito.
Neste cenário comprometido pela violação da
intimidade e vida privada, com escuta ambiental e atuação
de
agentes
infiltrados,
AUTODETERMINAÇÃO
o
chamado
INFORMATIVA,
direito
à
compreendido
como direito de o sujeito sobre o qual são armazenadas
informações conhecer previamente os limites de emprego
futuro dessas mesmas informações, está previamente
prejudicado. E mais. Não obstante a exigência legal de o juiz
deferir ambas as medidas – autorização para que agentes
policiais sob disfarce se infiltrem em quadrilhas e bandos e
escuta ambiental – é indiscutível que nenhum controle
judicial sobre as informações coletadas e até mesmo sobre as
ações levadas a efeito pelos infiltrados será eficaz.
Neste sentido, a lei brasileira criou condições para os
agentes infiltrados decidirem questões que em muitas
21
No Seminário a que me referi na nota 1 esta foi das indagações da
hipóteses um único Ministro do Supremo Tribunal Federal
não poderia decidir sem fundamentar sua decisão e
submetê-la ao controle do colegiado e do Ministério Público:
tal seja, se é caso ou não de entrar em determinada
residência e ouvir as conversas alheias, interceptando-as por
qualquer meio!
A constante atuação do infiltrado colocará insolúvel
problema de ordem processual-constitucional: como não
compreendê-la como violação das comunicações e do
domicílio sem ordem judicial e como não atentar para a
flagrante
violação
da
AUTODETERMINAÇÃO
INFORMATIVA?
Aceitando a posição defendida por HASSEMER e
SÁNCHEZ, de que o direito à AUTODETERMINAÇÃO
INFORMATIVA – que não é nenhum invento de nossos dias
- tem como elementos constitutivos a transparência do
desenvolvimento para o cidadão, possibilidades de controle e
platéia, que realçou o caráter discriminatório da chamada infiltração.
correção e a proteção absoluta do âmbito básico da pessoa22,
é incontestável que pelo menos nestes dois últimos aspectos
haverá grave atentado contra a liberdade com a efetivação
quer da escuta ambiental quer da infiltração.
Em
NOVAS
TENDÊNCIAS
DO
DIREITO
PROCESSUAL23 ADA GRINOVER advertia para as graves
conseqüências advindas do emprego da escuta ambiental.
Sublinhava a mencionada autora que ―o interrogatório subreptício
do
indiciado
ou
acusado,
clandestinamente
gravado, constitui inequivocamente prova ilicitamente
obtida, não só em face dos princípios gerais (de proteção à
vida privada) acima expostos, mas ainda por contrariar
frontalmente as regras de advertência quanto ao direito ao
silêncio, incluído na garantia do nemo tenetur‖.
A infiltração, por sua vez, representa verdadeira
autorização em branco, dada pelo juiz, para que o agente
22 HASSEMER, Winfried e SÁNCHEZ, Alfredo Chirino. El Derecho a
la Autodeterminación Informativa y los Retos del Procesamiento
Automatizado de Datos Personales, Buenos Aires, Del Puerto, 1997,
p. 6.
23 GRINOVER, Ada Pellegrini, Rio de Janeiro, Forense Universitária,
1990, p. 67.
infiltrado ingresse nos mais variados domicílios, suspeitos
ou
não
de
abrigar
provas
de
infrações
penais,
independentemente do exame judicial prévio de estrita
necessidade, adequação e proporcionalidade em cada
oportunidade!
Mais grave: a lei permite que o agente infiltrado não
integre os corpos das polícias responsáveis pela investigação
criminal, indiciando perigosa tendência de militarização da
tarefa de persecução penal, sem embargo de uma nociva
espécie de cooperação penal internacional, que poderá
comprometer nossa soberania.
4. A título de conclusão
As medidas previstas na Lei n. 10.217/01 apontam
um falso problema: são inconciliáveis as demandas de
punição dos autores das infrações penais se não houver
drástica
restrição
fundamentais.
ao
exercício
de
certos
direitos
Na minha opinião,
o controle
repressivo da
criminalidade passa pelo aperfeiçoamento das polícias, a
disposição de maiores e melhores recursos materiais e o
respeito à dignidade dos policiais que atuam em todas as
etapas – preventivas e de investigação – que compõem o
circuito de atuação diretamente em contato com as práticas
delituosas. Isso não significa que os índices de criminalidade
recuarão significativamente, pois é certo que há outros
vetores – políticos, econômicos e sociais - que influenciam
decisivamente o processo de incriminação e que parecem
não ser afetados imediatamente pela capacidade de reação
do sistema repressivo.
A restrição de direitos fundamentais, por sua vez –
remédio vendido às escâncaras no mercado global –, poderá
produzir mais presos mas não necessariamente mais justiça,
mesmo quando se tem em mente tão-só as decisões do
judiciário criminal.
O resultado provável da limitação dos direitos
fundamentais em Estados de escassa tradição democrática e
republicana tende a ser, segundo penso, o aumento das
posições sociais vulneráveis e a fragilidade das próprias
instituições democráticas para atender as demandas sociais.
A promiscuidade no trato de direitos fundamentais nada
acrescenta à cultura da indispensabilidade destes direitos e
ao importante valor da dignidade de todas as pessoas que
integram o grupo social, elemento básico de coesão da
comunidade e de constituição de um ambiente de
solidariedade, compreensão e harmonia.
GERALDO PRADO
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