Fístula Aortoentérica Primária

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Fístula aorfoentérica primária
As fístulas aortoentéricas podem ser primárias ou secundárias. As últimas são complicações
conhecidas de pacientes submetidos a cirurgias reconstrutivas da aorta. Enquanto estas são
relativamente comuns, as fístulas aortoentéricas primárias são raras. Há cerca de 200 casos
publicados na literatura mundial. Relata-se o caso de uma mulher de 71 anos com fístula
aortoentérica primária que apresentava sangramento gastrointestinal de repetição. O
diagn6stico etiol6gico foi feito somente durante a cirurgia, mediante o achado de um aneurisma
a6rtico comunicando-se com o jejuno, apesar da exaustiva investigação pré-operat6ria. Alguns
aspectos clínicos e cirúrgicos dessa doença são discutidos.
Unitermos: Fístula aortoentérica primária, aorta, sangramento.
A
s fístulas aortoentéricas podem
ser primárias ou secundárias e
constituem-se causas incomuns
de hemorragia gastrointestinal 5.9, 10, 12 •
As fístulas secundárias são complicações bem conhecidas de pacientes
submetidos a cirurgias de reconstrução da
aorta abdominals,n. A incidência dessas
fístulas varia de 0,4 a 2,4% nas cirurgias
aórticas em que se utiliza prótese vascular!1. As fístulas primárias são raras,
geralmente conseqüência da erosão de
aneurisma aórtico para intestino, havendo
cerca de 200 casos descritos na literatura
mundiap,n.
Relata-se, nesta publicação, um caso
de fístula aortoentérica primária aortojejunal e discutem-se alguns de seus
aspectos clínicos e cirúrgicos.
Mulher de 71 anos, mulata, internada
em setembro de 1993 no Hospital das
Clínicas de Ribeirão Preto - USP para
investigação, apresentando hemorragia
digestiva alta (HDA). Referia um episódio
de hematêmese e melena há 45 dias, com
repercussão hemodinâmica importante.
Tratava-se de uma paciente obesa, hipertensa, em uso de propanolol há nove anos
e ácido acetilsalicílico há dois anos.
Referia, ainda, tratamento para estafilococcia no pé e sacroileíte no quadril direito
há dois anos. A endoscopia digestiva alta
(EDA) revelou a presença de esofagite e
de úlcera gástrica cicatrizada. No novo
episódio de sangramento, além desses
achados endoscópicos, visualizou-se
hemorragia duodenal, sem sítio específico.
Outros exames foram realizados na
tentativa de esclarecimento da etiologia da
HDA. A seriografia de esôfago, estômago '
e duodeno, do trânsito intestinal e a ultrasonografia abdominal foram normais. O
aortograma e arteriografia seletiva do
tronco celíaco e mesentéricas mostraram
a presença de aneurisma de aorta abdominal de 3,3 cm de diâmetro com 7,5 cm
de extensão, abaixo das renais e acima da
bifurcação das ilíacas, além de ateromatose difusa. A paciente manteve
sangramento contínuo de pequena monta
durante o período de investigação, caracterizado por melena, até que houve um
sangramento importante e abrupto, com
redução acentuada do hematócrito e choque
circulatório. À laparotomia de emergência
encontrou-se um aneurisma de aorta
abdominal, bocelado, de 5 cm de diâmetro
e 8 cm de extensão, com uma fístula
puntiforme para o jejuno a cerca de 20 cm
do ângulo de Treitz (Fig. 1), além de hérnia
hiatal. Procedeu-se à aneurismectomia,
interpondo-se prótese de Dacron (reta)
com técnica de inclusão, rafia do jejuno,
crurorrafia hiatal e confecção de válvula
anti-refluxo à Lind. Iniciou-se antibioticoterapia no pré-operatório com cefoxina
CIR. VASCo ANGIOL. 11: 73-76,1995
Oswaldo leno Castilho Junior
Médico Residente da Disciplina de
Cirurgia Vascular Periférica
José Sebastião dos Santos
Professor Assistente da Disciplina de
Gastroenterologia Cirúrgica
Luis Cesar Peres
Professor Doutor do Departamento
de Patologia da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto - USP
Jesualdo Cherri
Professor Doutor da Disciplina de
Cirurgia Vascular Periférica
Carlos EIi Piccinato
Professor Associado e Chefe da
Disciplina de Cirurgia Vascular
Periférica
Trabalho realizado no Departamento de
Cirurgia, Ortopedia e Traumatologia do
Hospital das CITnicas da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto - USP
que, em decorrência do achado cirúrgico,
foi substituída por ceftriaxona, utilizada
por mais quatro dias.
A evolução pós-operatória foi satisfatória e a paciente recebeu alta no sétimo
dia após a cirurgia. Está bem, com dez
meses de seguimento.
LOCAL
N'DECASOS PORCENTUAl
Estõmago
7
3
Duodsno:
170
81
j)rimeira porção
segunda porção
terceira porção
quarta porção
não especificado
1
6
115
16
32
0,5
3
55
7,5
15
Intestino Delgado
19
9
jejuno
íleo
não especificado
10
4
5
4
2
2,5
Cólon
14
7
Tabela 1: Local do Intestino envolvido em 210
casos de fístula aortoentérica primária"
"(228 casos revisados; 18 não traziam informações quanto ao local de envolvimento do
intestino).
Oswaldo Teno Castilho Junior e cols.
Fístula aortoentérica primória
Figura 1: Detalhe da peça cirúrgica mostrando o orifício da lístula aortoentérlca a parllr
da lace aórtlca (o orifício 101 ampliado).
o exame anatomo-patológico confirmou a presença de aneurisma aterosclerótico da aorta com fístula, a qual
ocorre em local de interrupção da camada
média (Fig. 2).
foram descritas fístulas com todas as
porções do trato gastrointestinal lo . O
jejuno, como no caso apresentado, foi
descrito em 4,5% dos casos (Tabela 1).
. Não há condições para se estabelecer
a causa definitiva da fistulização da aorta
para o jejuno no caso relatado; a rotura
provavelmente se fez espontaneamente e
está relacionada à presença do aneurisma.
O antecedente de infecção estafilocócica
no pé e quadril direitos aparentemente não
influiu no evento.
A tríade clássica de apresentação da
fístula aortoentérica primária inclui dor
abdominal, massa abdominal palpável e
sangramento gastrointestinal 1.4.
A freqüência de aparecimento de dor
abdominal ou lombar é de 63% dos casos,
massa palpável 48 % , melena 41 % e
hematêmese 38% I.
O diagnóstico pré-operatório requer
alto grau de suspeição 1.6. A ocorrência de
fístula aortoentérica em pacientes com
HDA de difícil diagnóstico etiológico que
são portadores ou não de aneurisma da
aorta abdominal ou de massa abdominal
palpável deve ser considerada. Os pacientes com dor abdominal vaga e febre,
que desenvolveram massa abdominal
palpável subitamente, deveriam ser
submetidos a ultra-sonografia (US) ou
tomografia computadorizada (TC) para a
DISCUSSÃO
o primeiro caso de fístula aortoentérica
foi relatado por Sir Astley Cooper em
18297 .4, e Heberer, em 1957, descreveu
pela primeira vez o tratamento com,
sucesso dessa afecçã0 3 .4.
A fístula aortoentérica primária tem
várias causas. Num levantamento de casos
relatados em língua inglesa até 1992,
Calligaro e cols. encontraram 91,5% dos
casos relacionados a aneurismas de aorta
abdominal (69% ateroscleróticos e 22,5%
infecciosos) e 8,5% dos casos relacionados a outras causas: carcinoma,
espontânea, infecciosa, por radioterapia,
diverticulite, úlcera duodenal, colelitíase
e corpo estranho I .
O sítio mais comum da fístula é o
duodeno, especialmente sua terceira
porção (81%)1. Acredita-se que tal fato se
deva ao íntimo contato dessa porção do
duodeno com a aorta lO • No entanto, já
Figura 2: Corte hlstológlco da parede do aneurisma. Nota-se à direita a luz da aorta contendo
Ilbrlna e coágulo sanguíneo (A). Logo abaixo a íntima mostra-se espessada à custa de placa
ateromatosa (8). A camada média (C) apresenta Interrupção no local da lístula (O). (H e E,
aumento originai 25 vezes.)
CIR. VASCo ANGIOL. 11:
Oswaldo Teno Caslilho Junior e cols.
Ffslula aorloenlérica primária
exclusão de aneurisma aórtico infectado
ou pseudo aneurismas que potencialmente
podem se fistulizar! . Os exames subsidiários disponíveis não são precisos para
o diagnóstico da fístula aortoentérica
primária. A TC parece ser o método de
escolha, com melhores resultados que a
EDA, a US e a arteriografia l . Entretanto,
a recomendação da literatura mundial é
que se siga a ordem usual para investigação de HDA, iniciando-se pela EDA.
A US revelando a presença de aneurisma
de aorta abdominal pode ser útil e a
arteriografia, se as condições do paciente
permitirem sua realização, pode ser
diagnóstica na vigência de sangramento
durante o exame. Vários autores chamam
a atenção para o fato de haver um intervalo
entre o pri meiro sangramento (sangramento precursor ou premonitório,
"herald bleeding") e o sangramento fatal
em que é possível a intervenção com boas
chances de sucesso 4.6.7.12.13 . Chega a 32%
o percentual de casos em que este
intervalo é superior a sete dias I. Exceto
pelo relato de Goenka e cols.6 , não foram
encontrados outros com tempo de sangramento tão prolongado como o do caso
apresentado (cerca de 45 dias).
O tratamento da fístula aortoentérica
primária é cirúrgico. Calligaro e cols.!
encontraram 74% de mortalidade global
em pacientes com fístula aortoentérica
primária, sendo que 51 % destes morreram
antes do tratamento cirúrgico e nenhum
dos pacientes não operados sobreviveu I.
Nos pacientes operados, a sobrevivência
foi de 54% . Ao contrário das fístulas
aortoentéricas secundárias, recomenda-se
o fechamento primário da porção do trato
gastrointestinal acometida e o reparo da
aorta com prótese, a não ser que haja
infecção e presença de pus no local da
fístula 1.2.3.4.7 . Nesta situação recoitiêódase o fechamento do coto de aorta, após
excisão do tecido infectado e revascularização extra-anatômica dos membros
inferiores l •5 . O uso de antibióticos de largo
espectro por tempo prolongado também é
recomendação de vários autores 3 . 13 . No
caso relatado, entretanto, a paciente teve
boa evolução com antibioticoterapia por
período curto (4 dias).
Em conclusão, a fístula aortoentérica
primária é uma doença rara e com alto
índice de mortalidade. A dificuldade do
diagnóstico é bem conhecida, mas este
deve ser sempre lembrado diante de um
paciente que se apresenta com HDA,
principalmente se associada a dor abdominal e massa abdominal palpável ou
diagnóstico prévio de aneurisma de aorta
abdominal já que, na maioria das vezes,
existe tempo hábil para a intervenção
entre o primeiro episódio de sangramento
e o fatal.
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PRIMARY AORTO-ENTERIC
FISTULA
Aorto-enteric fistulas can be
either primary or secondary. The
latter are known complications of
reconstructive aortic surgery. The
former are rare and the number of
reported cases in the world literature
is about 200. We present the case
of a 71 year-old woman with a
primary aorto-enteric fistula between
an aortic aneurysm and the jejunum,
presenting recurrent gastrointestinal
bleeding .
Despite a thorough pre-operative
work-up, the etiologic diagnosis was
only made at operation. Some clinicai
and surgical features of this problem
are discussed.
Key words: Aorta , bleeding ,
aorto-enteric fistula.
intra-aneurysmal abcess caused by
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