Carta aos Irmãos

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Suplemento digital da revista Terceira Civilização
Carta aos Irmãos
Matéria de Estudo — Budismo na Vida Diária
Escrito de Nitiren Daishonin
“Carta aos Irmãos”
(The Writings of Nichiren Daishonin, v. 1, p. 493.)
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A explanação deste escrito a ser utilizada nas atividades do BVD
foi publicada na revista Terceira Civilização, edição no 514, de junho de 2011.
1
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Carta aos Irmãos
O
1. A era Yung-ping começou em 58
(era cristã). A dinastia T’ang terminou em 907.
2. A frase “traduções mais antigas”
refere-se aos sutras traduzidos
para o chinês principalmente por
Kumarajiva (344–413) e Paramartha (499–569), que enfatizavam a
trans­missão do verdadeiro significado. Já a frase “traduções mais novas” corresponde àquelas feitas por
Hsüan-tsang (602—664) e por tradutores contemporâneos, que deram grande ênfase à tradução literal.
2
Sutra de Lótus é o coração dos oitenta mil ensinos e a essência das doze
divisões das escrituras. Os budas de todas as três existências atingem a
iluminação porque tomam esse sutra como mestre. Os budas das dez direções conduzem os seres vivos empregando o ensino do veículo único [o Sutra de Lótus]
como seus olhos.
Ao entrar no repositório do sutra e examinar sua coleção completa, descobri que
existem duas versões dos sutras e tratados trazidos para a China entre a era Yung-p’ing
da última dinastia Han e o final da dinastia T’ang.1 Há 5.048 volumes das traduções
mais antigas2 e 7.399 das mais novas. Cada sutra afirma, em face de seu conteúdo, ser
o ensino que supera todos os outros. No entanto, a comparação revela que o Sutra de
Lótus supera todos os outros assim como o céu supera a terra. Esse sutra eleva-se sobre
os outros como a nuvem que se eleva sobre a lama da terra. Se compararmos os outros
sutras às estrelas, o Sutra de Lótus é como a Lua; se compararmos os outros sutras ao brilho das lanternas, fogueiras, estrelas ou da Lua, o Sutra de Lótus é tão brilhante quanto
o Sol. Esta é uma comparação generalizada.
Em particular, o Sutra de Lótus contém vinte princípios extraordinários. Os dois
mais importantes são os ensinos de kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes
mundos no passado e os de incontáveis kalpa de um sistema de grandes mundos do
passado. O primeiro é descrito no capítulo “Parábola da Cidade Imaginária,” contido
no terceiro volume. Suponha que alguém reduza um sistema de grandes mundos a pó.
Depois isso, ele pega essa porção de pó, percorre mil sistemas de grandes mundos em
direção ao leste e derruba uma partícula. Ele percorre outros mil sistemas de grandes
mundos no leste e derruba uma segunda partícula de pó. Ele continua fazendo a mesma
coisa, derrubando uma partícula de pó após a outra até esgotar todas as partículas de
pó do universo inteiro. Então, o viajante reúne todos os sistemas de grandes mundos
do caminho que ele havia tomado, independentemente de eles terem ou não recebido
a partícula de pó, e reduz todos a pó. O viajante então coloca essas partículas de pó em
uma fileira, e espera passar um kalpa inteiro para colocar cada partícula. Após o primeiro kalpa ter passado, ele coloca a segunda partícula, e depois a terceira, até que passem
todos os kalpa correspondentes a cada uma das partículas. A duração total de tempo
representada pela passagem de todos esses kalpa é referida como um período de kalpa
de partículas de pó de um sistema de grandes mundos.
Foi nesse longo período — no remoto passado indicado pela extensão de kalpa de
um sistema de grandes mundos — que os três grupos de ouvintes, incluindo Shariputra,
Mahakashyapa, Ananda e Rahula, ouviram o Sutra de Lótus de um bodhisattva que era
o décimo sexto filho do Buda Excelência da Grande Sabedoria Universal. No entanto,
iludidos por influências negativas, eles abandonaram o Sutra de Lótus. Regrediram para
os sutras Guirlanda de Flores, Sabedoria, Grande Coleção ou Nirvana, ou mergulharam
ainda mais nos sutras Mahavairochana, Profundos Segredos ou Meditação, ou até mes-
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mo desceram aos ensinos Hinayana dos sutras Agama. Continuando nessa decadência,
eles chegaram até a prática das boas ações dos mundos celestial e humano, e por fim,
aos caminhos do mal. Durante esse período de kalpa de partículas de pó de um sistema
de grandes mundos eles frequentemente renasceram no inferno dos incessantes sofrimentos. Algumas vezes, renasciam nos sete grandes infernos ou, com menos frequência,
nos mais de cem infernos.3 Em raras ocasiões, eles renasceram no mundo dos espíritos
famintos, dos animais ou dos asuras, e, somente após kalpa tão incontáveis quanto as
partículas de pó, eles puderam renascer novamente no mundo celestial ou humano.
O segundo volume do Sutra de Lótus afirma: “Ele renascerá repetidamente no inferno, vagando nesse local como se este fosse um jardim, e tomará os outros maus caminhos da existência por seu próprio lar”.4 Aqueles que cometem os Dez Maus Atos caem
no inferno do renascimento de repetidas torturas ou no inferno das cordas negras,5 onde
passarão quinhentas existências ou mil anos infernais. Aqueles que cometem os Cinco
Atos Malignos caem no inferno de incessantes sofrimentos e renascem repetidamente
neste mundo após já terem permanecido lá por um kalpa médio.
Por que, então, aqueles que abandonam o Sutra de Lótus caem no inferno de incessantes sofrimentos e têm de permanecer nesse local por um número de kalpa inimaginavelmente grande? Nesse momento, o mau ato de descartar a fé no Sutra não parece
ser, nem de longe, algo tão terrível quanto matar os próprios pais. Porém, se uma pessoa
matasse os próprios pais por uma, duas, dez, cem, mil, dez mil, cem mil, um milhão
ou mesmo cem milhões de existências, ela não permaneceria no inferno durante um
período de kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes mundos. Mesmo se uma
pessoa matasse um, dois, dez, cem, mil, dez mil, ou tantos quantos cem milhões de
budas, ela deveria permanecer no inferno durante um período de incontáveis kalpa de
partículas de pó de um sistema de grandes mundos? No entanto, os três grupos de ouvintes tiveram de sofrer durante um período de kalpa de partículas de pó de um sistema
de grandes mundos e os grandes bodhisattvas, durante um período de incontáveis
kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes mundos por terem cometido o ato
maligno de abandonar o Sutra de Lótus. Isso mostra quão esse ato maligno é inimaginavelmente terrível.
Falando de maneira simples, se uma pessoa golpear o ar, ela nada sentirá, mas se
golpear uma rocha, sentirá dor. O ato maligno de matar uma pessoa do mal é leve comparado ao de matar uma pessoa do bem, que é grave. Se uma pessoa mata alguém que
não é seu parente, isso será como golpear a lama, mas se a pessoa mata os próprios pais,
isso será como golpear uma rocha. Um cão pode latir para um cervo sem correr o risco
de ser atacado; porém, se latir para um leão, com certeza será destroçado. Um asura que
tentou engolir o Sol e a Lua teve sua cabeça partida em sete pedaços. Por Devadatta ter
ferido o Buda, a terra rachou e o engoliu vivo. A gravidade de um mau ato depende de
quem é a vítima.
3. Em seu Profundo Significado do
Sutra de Lótus, Tient’ai lista 136
tipos de infernos — oito grandes
infernos; cada um contendo dezesseis infernos secundários. O
último e o pior dos oito grandes
infernos é o de incessantes sofrimentos. A questão é que os sofrimentos que uma pessoa passa
depende da natureza e do grau de
seus atos malignos.
4. Sutra de Lótus, terceiro capítulo.
5. O inferno do renascimento de
repetidas torturas é o primeiro dos
oito grandes infernos, onde as vítimas são retalhadas com espadas
e espancadas com barras de ferro,
mas seus corpos são imediatamente regenerados e elas sofrem
o mesmo tormento repetidamente. O inferno das cordas negras é
o segundo dos oito grandes infernos, onde seus habitantes têm
seus corpos costurados no meio
ou dilacerados por machados em
brasa. Acredita-se que a tormenta
nesse inferno é dez vezes pior que
no inferno de renascimento de repetidas torturas.
3
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6. Trecho baseado em uma passagem da obra Biografias de Eminentes
Reverendos da Dinastia Sung.
7. Princípios Extraordinários do Sutra
de Lótus.
8. Crimes conforme definições
contidas no código Taiho (Lei no
702) e no código Yoro (757). São
eles: rebelar-se contra o imperador;
(2) causar danos às tumbas ou aos
palácios imperiais; (3) trair a nação;
(4) matar os próprios parentes; (5)
matar a esposa ou mais de três
pessoas pertencentes à outra família; (6) roubar ou danificar propriedades religiosas ou imperiais; (7)
conduta desleal com os próprios
pais ou parentes veteranos; e (8)
assassinar o próprio mestre ou outros superiores.
4
O Sutra de Lótus representa os olhos de todos os budas. É o verdadeiro mestre do
próprio Buda Sakyamuni, o lorde dos ensinos. Se uma pessoa despreza uma palavra
ou mesmo um traço do Sutra, esse ato maligno será mais grave que matar os próprios
pais por dez milhões de vezes ou que ferir todos os budas das dez direções. É por isso
que aqueles que abandonaram o Sutra de Lótus tiveram de sofrer por um período de
kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes mundos ou de incontáveis kalpa de
partículas de pó de um sistema de grandes mundos. Além disso, é extremamente difícil
encontrar uma pessoa que exponha esse sutra exatamente como ele ensina. Isso é ainda
mais difícil que uma tartaruga de um único olho encontrar um pedaço de madeira de
sândalo flutuando, ou que alguém suspender o Monte Sumeru com um fio do caule
de um lótus.
O Grande Mestre Tz’u-en foi o discípulo do Mestre Tripitaka Hsüan-tsang e o mestre do imperador T’ai-tsung. Ele não somente era um sábio versado nas escrituras sânscritas e chinesas, mas também havia memorizado todos os ensinos do Buda. As cinzas
do Buda caíam da ponta de sua pena e seus dentes irradiavam luz.6 Seus contemporâneos respeitavam-no como se ele fosse o Sol e a Lua, e as pessoas das gerações posteriores
buscaram avidamente seus ensinos como direcionamentos para suas vidas. Não obstante, o Grande Mestre Dengyo o denunciou, declarando que, apesar de louvar o Sutra de
Lótus, ele destrói sua essência.7 O significado dessa afirmação é que, embora tivesse a
intenção de louvar o Sutra de Lótus, no final, ele o destruiu.
Houve uma época em que o Mestre Tripitaka Shan-wu-wei era o rei de Udyana, na
Índia. Ele abdicou do trono, tornou-se um monge e, no curso de sua prática budista,
viajou para mais de cinquenta regiões da Índia e foi capaz de dominar todos os ensinos
esotéricos e exotéricos do Budismo. Mais tarde, Shan-wu-wei viajou para a China e
tornou-se o mestre do imperador Hsüan-tsung. A partir de então, todos os reverendos
da Preceitos-Verdadeira Palavra da China e do Japão tornaram-se seus seguidores. A despeito de ter sido uma pessoa tão nobre, ele morreu repentinamente, atormentado por
Yama, o lorde do inferno, mas todos ficaram sem compreender a razão disso.
Eu, Nitiren, acredito que isso aconteceu porque, apesar de Shan-wu-wei ter sido primeiro um devoto do Sutra de Lótus, quando leu o Sutra Mahavairochana, ele o declarou
superior ao Sutra de Lótus. Da mesma maneira, não foi por eles terem cometido os Dez
Maus Atos ou os Cinco Atos Malignos que Shariputra, Maudgalyayana e seus companheiros estavam destinados a ficar presos nos maus caminhos da existência durante um
período de kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes mundos ou incontáveis
kalpa de partículas de pó de um sistema de grandes mundos. Nem foi porque eles provocaram rebeliões ou qualquer outro dos Oito Maus Atos.8 Foi pela razão de terem
conhecido uma pessoa que era má influência e que terem descartado o Sutra de Lótus
para abraçar os sutras provisórios.
O Grande Mestre Tient’ai comentou: “Se encontrarem um mau amigo, perderão
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suas mentes da verdade”.9 “Mentes da verdade” indicam a mente que acredita no Sutra
de Lótus, enquanto “perder” significa trair a própria fé no Sutra de Lótus e transferi-la
aos outros sutras. No Sutra [de Lótus] consta: “...no entanto, quando lhes é oferecido
o remédio, eles se recusam a ingeri-lo”.10 Tient’ai afirmou: “Aqueles que perderam suas
mentes recusam-se a tomar o remédio eficaz, ainda que este lhes seja oferecido. Perdidos
em meio aos sofrimentos de nascimento e morte, eles fogem para outra terra”.11
Sendo assim, os seguidores do Sutra de Lótus devem temer aqueles que tentam
obstruir sua prática mais que aos bandidos, arrombadores, assaltantes noturnos, tigres,
lobos ou leões — mais até que a invasão dos mongóis. Este mundo é a morada do Rei
Demônio do Sexto Céu. Todas as pessoas têm sido governadas pelo Rei Demônio
desde o tempo sem início. Ele não somente construiu a prisão dos vinte e cinco domínios da existência12 nos seis caminhos e confinou a humanidade nesse espaço, mas
também transformou esposas e filhos em algemas, e pais e soberanos em redes que escondem os céus. A fim de enganar a mente da verdade da natureza de Buda, ele induz
as pessoas a beber o vinho da ganância, da ira e da estupidez e as alimenta apenas com
os pratos do mal que as fazem ficar prostradas no chão dos três maus caminhos. Quando encontra as pessoas que mudaram seu coração para o bem, ele age para detê-las. Ele
[o Rei Demônio] está determinado a fazer os seguidores do Sutra de Lótus caírem no
inferno; porém, quando fracassa, tenta enganá-los desviando-os para o Sutra Guirlanda de Flores, que se parece com o Sutra de Lótus.
Essas ações foram conduzidas por Tu-shun, Chih-yen, Fa-tsang e Ch’eng-kuan.13
Assim, Chia-hsiang e Seng-ch’uan foram os maus companheiros que, ardilosamente
desviaram os seguidores do Sutra de Lótus a cair de volta nos sutras da Sabedoria. Do
mesmo modo, Hsüan-tsang e Tz’u-en [foram más influências que] levaram-nos ao Sutra dos Profundos Segredos, enquanto Shan-wu-wei, Chin-kang-chih, Pu-k’ung, Kobo,
Jikaku e Chisho [foram más influências que] persuadiram-nos a seguir o Sutra Mahavairochana. Bodhidharma e Hui-k’o [foram influências negativas que] desviaram-nos para
a escola Zen, enquanto Shan-tao e Honen [foram más influências que] induziram-nos
a seguir o Sutra da Meditação. Em cada um dos casos, o Rei Demônio do Sexto Céu
possuiu esses homens de sabedoria a fim de enganar as pessoas de bem. É isso que o
Sutra de Lótus quer dizer quando afirma em seu quinto volume: “Demônios maléficos
se apossarão das pessoas”.14
O grande demônio da escuridão fundamental pode até mesmo entrar nos corpos dos
bodhisattvas que atingiram a iluminação quase perfeita e bloquear a possibilidade de
eles atingirem a o benefício da perfeita iluminação do Sutra de Lótus. Que facilidade ele
tem de obstruir a prática daqueles que estão nos estágios mais inferiores! O Rei Demônio se apossa dos corpos das esposas e dos filhos para que eles desviem seus maridos ou
pais do caminho correto. Ele também se apossa do soberano a fim de ameaçar o devoto do
Sutra de Lótus, ou possui os pais e as mães, e os fazem repreender seus devotados filhos.
9. Profundo Significado.
10. Sutra de Lótus, 16o capítulo.
11. Profundo Significado.
12. Subdivisões do mundo tríplice —
catorze domínios do mundo do desejo, sete do mundo da forma e quatro
do mundo da não forma. Todos os
vinte e cinco caem na categoria dos
seis caminhos ou mundos inferiores.
13. Tu-shun (557—640), Chih-yen
(602—668), Fa-tsang (643—712)
e C’heng-kuan (738—839) foram
os fundadores e sucessivos patriarcas da escola Guirlanda de Flores.
Chia-hsiang (549—623), mencionado na frase seguinte, é algumas
vezes considerado o fundador da
escola Três Tratados, e Seng-ch’üan
era um praticante veterano da mesma escola.
14. Sutra de Lótus, 13o capítulo.
5
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15. Essa história aparece no Tratado
sobre a Grande Perfeição da Sabedoria. Certa vez, quando Shariputra
praticava o caminho de bodhisattva, um brâmane implorou-lhe por
seu olho. Shariputra concedeu-lhe
seu pedido; porém, o brâmane ficou
tão revoltado com odor do olho que
o atirou ao chão e o esmagou. Vendo isso, Shariputra abandonou sua
prática Hinayana e, como resultado,
falhou em atingir a iluminação.
16. Sutra de Lótus, décimo capítulo.
17. Ibidem, 14o capítulo.
6
O príncipe Sidarta desejava renunciar a seu título; porém, seu filho já havia sido concebido. Por essa razão, seu pai, o rei Suddhodana advertiu-o a adiar sua partida para se
tornar um monge até que a criança nascesse. O demônio aproveitou da situação e adiou
o nascimento da criança por seis anos. Shariputra iniciou sua prática de bodhisattva no
distante passado, na última era após o falecimento do Buda Zentara. Ele já havia praticado por sessenta kalpa quando o Rei Demônio do Sexto Céu começou a se incomodar
com o fato de que, dentro de quarenta kalpa, Shariputra completaria sua prática. Então,
o demônio disfarçou-se de brâmane e implorou pelos olhos do bodhisattva. Shariputra
acabou lhe concedendo um olho, porém, daquele momento em diante, ele perdeu a
determinação de continuar sua prática e a abandonou: como resultado, caiu no inferno
de incessantes sofrimentos por incontáveis kalpa.15
Seiscentos e oitenta milhões de seguidores leigos da era após o falecimento do Buda
Grande Adorno foram enganados pelo monge Terra de Sofrimentos e três outros monges de forma a denunciar o monge Prática Universal e, em consequência disso, eles caíram no mesmo inferno e lá permaneceram por kalpa tão incontáveis quanto as partículas da terra. Os homens e as mulheres da última era do Buda Rei Som de Leão seguiram
o monge Intenção Superior que observava os preceitos, mas que enganou o monge Raiz
da Alegria; por isso, eles caíram no inferno, onde permaneceram por incontáveis kalpa.
O mesmo acontece com os discípulos e seguidores leigos de Nitiren. No Sutra de
Lótus consta: “Uma vez que o ódio e a inveja em relação a esse sutra abundam mesmo
durante a existência do Aquele que Traz a Verdade neste mundo, quão piores eles não
serão após o seu falecimento?”16 E também:
“Ele enfrentará grande hostilidade no mundo e será difícil de acreditar”.17 O Sutra
do Nirvana afirma: “Ao sofrer uma morte prematura, refutações, maldições ou humilhações, ataques de varas e bastões, aprisionamento, fome, adversidades ou outros obstáculos menores nesta existência, a pessoa poderá escapar do inferno”. O Sutra Parinirvana diz: “Essas pessoas podem carecer de roupas e alimentos, buscar a riqueza em vão,
nascer em família pobre e de posição social inferior ou que mantém visões errôneas, ou
ser perseguidas pelo soberano. Podem experimentar vários outros sofrimentos e retribuições. É por causa dos benefícios obtidos por proteger a Lei que elas serão capazes de
amenizar seus sofrimentos e retribuições nesta existência”.
Essas passagens significam que nós, que agora acreditamos no correto ensino [do
Sutra de Lótus], no passado cometemos o ato maléfico de perseguir seus praticantes
e, como resultado, estamos destinados a cair em um terrível inferno no futuro. No entanto, os benefícios obtidos por meio da prática do correto ensino são tão imensos que,
ao enfrentarmos sofrimentos mais leves nesta existência, podemos mudar o carma de
sofrer terrivelmente no futuro. Conforme o sutra [Parinirvana] afirma, as calúnias que
cometemos no passado podem ser a causa de várias retribuições, tais como nascer em
uma família pobre ou que mantém visões errôneas, ou ainda ser perseguido pelo sobe-
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rano. Uma “família que mantém visões errôneas” significa aquela que calunia o correto
ensino, e “ser perseguido pelo soberano” indica aquele que vive sob o poder de um governante maléfico. Estes são os dois sofrimentos com os quais vocês [irmãos Ikegami]
estão se confrontando agora. Para que possam expiar o ato maligno de suas calúnias
passadas, vocês sofrem a oposição de seus pais, que mantêm visões errôneas e têm de
viver na época de um governante que persegue o Sutra de Lótus. O Sutra expõe esse
ponto de maneira perfeitamente clara. Podem ter a certeza de que caluniaram o correto
ensino no passado. Se tiverem dúvidas em relação a isso, serão incapazes de superar os
pequenos sofrimentos desta existência. Então, acabarão sendo vencidos pela oposição
de seu pai e se verão forçados a abandonar o Sutra de Lótus. Lembrem-se de que, se
isso acontecer, não somente cairão no inferno, mas também levarão seus pais ao grande
inferno Aviti, causando indescritíveis sofrimentos a todos. O mais importante é manter
a forte determinação de atingir o caminho.
Ambos têm mantido sua fé no Sutra de Lótus; por essa razão, agora estão se libertando de seus atos malignos do passado. Por exemplo, as imperfeições do ferro ficam
aparentes quando este é forjado. Quando uma rocha é submetida ao fogo, ela simplesmente se transforma em cinzas, mas o ouro se torna puro ouro. Esta provação, mais que
qualquer outra, confirmará sua genuína fé, e as dez filhas-demônios do Sutra de Lótus
com certeza os protegerão. O demônio que apareceu diante do garoto Montanhas de
Neve para testá-lo era, na verdade, Shakra. A pomba que foi salva pelo rei Shibi era o
rei celestial Vaishravana.18 É até possível que as dez filhas-demônios tenham possuído
seus pais e o estejam atormentando a fim de testar sua fé. Qualquer fraqueza na fé será
a causa para o arrependimento. O veículo que capota logo à frente é um alerta para
quem vem atrás.
Nesta presente era, não há outra forma a não ser aspirar ao caminho. Vocês podem
odiar este mundo, mas não há como escapar dele. As pessoas do Japão certamente sofrerão grandes infortúnios em um futuro próximo. A revolta19 que estourou no décimo
primeiro dia do segundo mês do nono ano de Bun’ei (1272) foi como as flores sendo
açoitadas por um temporal ou como rolos de seda queimando num inferno. Como é
possível não odiar um mundo como o nosso?
No décimo mês do décimo primeiro ano de Bun’ei, as pessoas das ilhas Iki e Tsushima20 foram massacradas com um único golpe. Como podemos dizer que isso não tem
nada a ver conosco? Os soldados que partiram para confrontar os invasores — quão
arrasados não devem estar! Tiveram de deixar para trás seus pais idosos, filhos pequenos, jovens esposas e seus preciosos lares para defender um mar sem sucesso. Quando
veem nuvens no horizonte, imaginam que são bandeiras inimigas. Quando olham para
os barcos pesqueiros, pensam que são navios de guerra mongóis e ficam paralisados de
terror. Uma ou duas vezes ao dia eles sobem as colinas para examinar o mar. Três ou
quatro vezes no meio da noite eles carregam e descarregam os cavalos. Apesar de ainda
18. De acordo com Grande Perfeição
da Sabedoria e Guirlanda de Histórias de Nascimento, a pomba que
foi salva pelo rei Shibi era a deusa Vishvakarman. Ver “Shibi” no
Glossário de Os Escritos de Nitiren
Daishonin.
19. Essa passagem refere-se ao con­
flito que eclodiu em Kamakura e
Quioto como resultado da rivalidade pelo poder dentro da família
governante Hojo.
20. Esta é uma referência à invasão
de Iki e Tsushima, ilhas de Kyushu,
por tropas mongóis.
7
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21. O lorde Wada é Wada Yoshimori (1147—1213), um oficial militar do
regime Kamakura, que entrou numa
cilada para lutar contra o clã Hojo e
cuja família inteira foi destruída. A
expressão “governador de Wakasa”
alude a Miura Yasumura (m. 1247),
que estava relacionado a Hojo por
matrimônio, mas foi acusado de
traição. Toda a sua família e ele perderam suas vidas em batalhas
8
estarem vivos, eles se sentem como se estivessem no mundo dos asura. Tudo isso e mais
as adversidades que vocês têm enfrentado podem fundamentalmente ser devido ao fato
de o governante desta nação ter se tornado um inimigo do Sutra de Lótus. Sua oposição
foi instigada pelos caluniadores do correto ensino, particularmente pelos observadores
dos preceitos e pelos reverendos da Nembutsu e da Preceitos-Verdadeira Palavra. Devem
perseverar em meio a essa provação e comprovar por si próprios os benefícios do Sutra
de Lótus. Eu, Nitiren, também vou convocar insistentemente os deuses celestiais. Agora, mais do que nunca, não devem demonstrar nem sentir qualquer temor.
As mulheres são fracas, e suas esposas devem provavelmente ter abandonado a fé.
Não obstante, cerrem seus lábios e jamais esmoreçam em sua fé. Sejam corajosos como
Nitiren na ocasião em que ele agiu e advertiu Hei no Saemon-no-jo. Apesar de não seguirem o caminho da iluminação, os filhos do lorde Wada e do governador Wakasa,21
bem como os guerreiros sob o comando de Masakado e Sadato, lutaram até a morte a
fim de preservarem sua honra. A morte vem para todos, ainda que tudo pareça estar
normal. Por isso, jamais sejam covardes, ou se tornarão alvos de zombarias.
Estou profundamente preocupado com vocês dois. Por isso, vou contar-lhes uma
história que será significativa para vocês. Dois príncipes chamados Po I e Shu Ch’i eram
filhos do governante Ku-chu na China. O pai fez seu testamento deixando o trono para
o filho mais novo, Shu Ch’i; ainda assim, após o seu falecimento, Shu Ch’i recusou
subir ao trono. Po I implorou que Shu Ch’i assumisse o cargo; porém, Shu Ch’i insistiu que
Po I, seu irmão mais velho, deveria subir ao trono em seu lugar. Po I persistiu, expressando sua indignação à atitude do irmão mais novo de contrariar a vontade do pai. Shu
Ch’i concordou que o testamento de seu pai deixava claro que este o havia escolhido; no
entanto, ele continuou a recusar o trono, alegando que não suportava deixar seu irmão
mais velho de lado.
Assim, os dois irmãos decidiram abandonar a província de seus pais e partiram para
outra região, onde passaram a servir o rei Wen de Chou. Pouco tempo depois, a província foi atacada e o rei Wen foi morto pelo rei Chou da dinastia Yin. Passados pouco menos de cem dias da morte do rei Wen, seu filho, o rei Wu, preparava-se para lutar contra
o rei Chou, mas Po I e Shu Ch’i, segurando firme nas rédeas de seus cavalos, tentaram
persuadi-lo do contrário, dizendo: “O senhor deveria guardar luto durante três anos
após o falecimento de seu pai. Se começar uma guerra agora, essa atitude poderia ser
considerada filial?” O rei Wu ficou furioso com tal reação e avançou para matar os dois;
porém, T’ai-kung Wang, seu conselheiro, impediu-o.
Os dois se decepcionaram tanto com esse rei que o abandonaram e se retiraram para
o Monte Shou-yang, onde passaram a sobreviver apenas de samambaias. Certo dia,
uma pessoa chamada Ma Tzu passou pelo local e perguntou: “Por que se esconderam
num lugar como este?” Eles contaram a Ma Tzu tudo o que haviam vivenciado, e ele
retrucou: “Sendo assim, essas samambaias também não pertencem ao rei?” Ao serem
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repreendidos, os irmãos pararam de se alimentar das plantas. Os céus não costumam
abandonar homens nobres. Assim, um deus surgiu diante deles na forma de uma cerva
e lhes ofereceu leite. Quando o animal partiu, Shu Ch’i disse: “Se o leite da cerva tem
um sabor tão doce, sua carne deve ser ainda melhor!” Po I tentou silenciá-lo, mas os céus
já haviam ouvido sua exclamação; como resultado, os irmãos foram completamente
abandonados. Por isso, eles acabaram morrendo de fome. Mesmo que uma pessoa aja
corretamente por toda a sua vida, uma única palavra pode arruiná-la. Desconhecendo os
pensamentos que mantêm em seus corações, eu me preocupo profundamente com vocês.
Quando o Aquele que Traz a Verdade Sakyamuni era um príncipe, seu pai, o rei
Suddhodana, recusava-se a perder seu único sucessor e, por essa razão, não permitia
que o príncipe renunciasse à sua posição real. O rei manteve dois mil soldados em
guarda nos quatro portões do palácio para evitar que o príncipe partisse. Não obstante,
o príncipe acabou saindo do palácio contra a vontade de seu pai. Nos assuntos seculares,
os filhos têm o dever de obedecer a seus pais; porém, no caminho da iluminação, a desobediência aos pais indica, fundamentalmente, uma atitude de devoção filial. O Sutra
Contemplação da Mente-Solo explica a essência da devoção filial da seguinte maneira:
“Quando a pessoa renuncia às obrigações e ingressa na vida budista, ela será capaz de
verdadeiramente retribuir a todos os débitos de gratidão”.22 Em outras palavras, com o
propósito de entrar no verdadeiro caminho, a pessoa abandona seu lar contra a vontade
de seus pais e atinge a iluminação. Quando a pessoa age dessa forma, ela poderá realmente retribuir ao débito de gratidão que tem com eles.
Nos assuntos seculares, também, se os pais de uma pessoa provocam transtornos, ela
estará agindo com devoção filial se recusar a segui-los. Isso é mencionado no escrito O
Clássico da Devoção Filial. Quando o Grande Mestre Tient’ai engajou-se na meditação
sobre o Sutra de Lótus, ele viu seus pais falecidos sentados no seu colo a fim de obstruírem sua prática budista. Isso foi a ação do demônio celestial, que tomou a forma de seu
pai e de sua mãe para que pudessem impedi-lo.
Contei-lhes a história de Po I e Shu Ch’i. Há mais uma lição que devem aprender com
a história. O imperador Ojin, que agora é o Grande Bodhisattva Hatiman, foi o décimo
sexto soberano do Japão. O imperador Ojin tinha dois filhos: o primeiro era o príncipe
Nintoku e o segundo, o príncipe Uji. O imperador transferiu seu trono para o filho mais
novo, Uji. Após o falecimento do pai, Uji pediu a seu irmão mais velho que assumisse o trono, mas este o repreendeu dizendo: “Como pode negar-se a cumprir o desejo de nosso pai?”
Um se opunha à opinião do outro e, durante três anos, ninguém assumiu o trono.
Em consequência disso, o povo sofreu profundamente. Foi como se uma maldição
tivesse caído sobre a nação; assim, o príncipe Uji finalmente pensou: “Enquanto eu
estiver vivo, meu irmão não vai assumir o trono”. Então, ele cometeu suicídio. Diante
disso, o príncipe Nintoku levou um grande choque e caiu no desespero. Vendo seu sofrimento, o príncipe Uji voltou à vida a fim de encorajar seu irmão e, em seguida, partiu
22. Essa passagem não aparece
no Sutra Contemplação da Mente-Solo, mas é citada no escrito A
Floresta de Gemas do Jardim da Lei
como uma passagem do Sutra Salvação pelos Homens de Pura Fé. A
“vida budista” no contexto do sutra
indica uma vida monástica; porém,
nessa carta, Daishonin interpreta
isso como uma vida baseada na fé
à Lei Mística.
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Carta aos Irmãos
23. Essa história aparece nas Crônicas do Japão, na parte sobre o
imperador Nintoku.
24. Bodhisattvas que curam doen­
ças físicas e mentais. De acordo
com o capítulo “Rei Adorno Maravilhoso” do Sutra de Lótus, em
uma prévia existência, eles foram os
irmãos Repositório Puro e Visa Pura,
que converteram seu pai, o rei Adorno Maravilhoso, ao correto ensino.
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novamente. Consta na História que, quando o príncipe Nintoku ascendeu ao trono, a
nação tornou-se pacífica e passou a receber, anualmente, oitenta cargas de barcos dos
três reinos coreanos de Silla, Paekche e Koguryo.23
Houve outros casos em que o relacionamento entre os filhos de nobres governantes
não era harmonioso. Que laços possibilitaram a vocês, irmãos, continuar em tal harmonia? Seriam vocês os renascimentos de Repositório Puro e Visão Pura ou a personificação dos bodhisattvas Rei dos Remédios e Superior dos Remédios?24 Quando seu pai
deserdou Tayu no Sakan, pensei que Hyoe no Sakan se recusaria a ficar ao lado de seu
irmão, o que tornaria mais difícil a compreensão de seu pai e a possibilidade de ele voltar
atrás em sua deserção. Se o que o garoto Tsuruo me disse é verdade, vocês tomaram a
mesma decisão. Fiquei tão feliz com isso que escrevi outra carta. Poderia haver outra
história mais maravilhosa que a de vocês?
O Registro das Regiões Ocidentais conta sobre um ermitão que vivia no Parque dos
Cervos, em Varanasi, na Índia, que aspirava ao domínio dos poderes ocultos. Ele aprendeu a transformar tijolos e cascalhos em pedras preciosas e mudar a forma de humanos e
animais, mas ainda não conseguia viajar em ventos e nuvens ou para o Palácio dos Imortais. A fim de concretizar esses objetivos, o ermitão levou como assistente um homem
de integridade. Dando-lhe uma longa espada, o ermitão instruiu o homem a posicionar-se no canto de uma plataforma de prática, segurar sua respiração e não pronunciar uma
única palavra. Se o homem conseguisse permanecer em silêncio a noite inteira, até o
amanhecer, o ermitão acreditava que poderia dominar o oculto. Determinado, o ermitão
sentou-se no centro da plataforma segurando outra longa espada e recitando encantamentos. Ao pedir que seu assistente fizesse um juramento, o ermitão disse: “Mesmo ao custo de
sua vida, não pronuncie uma única palavra!” O homem respondeu: “Mesmo que eu morra,
nem uma única palavra sairá desses lábios”.
Assim eles passaram a noite até que, quando o alvorecer estava prestes a surgir, o
homem subitamente soltou um grito e o ermitão simultaneamente falhou em sua tentativa. Ele repreendeu o homem, dizendo: “Como pôde quebrar sua promessa? Isso é
deplorável! Sentindo um profundo arrependimento, o homem desabafou: “Eu cochilei
durante algum tempo e, num sonho, meu mestre anterior apareceu e me repreendeu. Porém, resisti a isso e não pronunciei uma única palavra, pois meu débito de gratidão com
o senhor é imenso. Meu outro mestre ficou furioso e ameaçou me decapitar, mas mesmo
assim eu não disse nada. Por fim, fui decapitado e, quando vi meu corpo seguindo sua
jornada da morte para a próxima existência, minha dor foi indescritível. Apesar disso, não
me pronunciei. Mais tarde, renasci numa família brâmane no sul da Índia. A dor que senti ao entrar e sair do útero foi insuportável; contudo, prendi minha respiração sem chorar.
Cresci, tornei-me um homem e me casei. Meus pais faleceram; meu filho nasceu; sofri e
me alegrei, mas não expressei uma única palavra. Levando a vida dessa maneira, cheguei
aos meus 65 anos. Então, minha esposa me disse: ‘Se continuar se recusando a falar, vou
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Carta aos Irmãos
matar sua adorada criança’. Pensei na mesma hora que já havia chegado nos meus últimos anos de vida e que, se meu filho fosse morto, eu não poderia gerar outro. Sentindo
um desejo de gritar... acordei repentinamente”. O ermitão lastimou: “Não fomos fortes
o bastante. Você e eu fomos enganados por um demônio. Nossa tarefa terminou em fracasso”. Lamentando o ocorrido, o homem de integridade disse: “Por eu ter sido tão fraco,
o senhor falhou em dominar o oculto”. O ermitão retrucou pesarosamente: “É minha
culpa não ter lhe advertido o suficiente antes”. Não obstante, conforme o registro afirma,
o homem ficou tão transtornado de não ter podido cumprir seu dever com o ermitão que
remoeu esse sentimento e acabou morrendo miseravelmente.
Na China, o ocultismo desenvolveu-se a partir do Confucionismo e, na Índia, essa prática pode ser encontrada nos ensinos não budistas. Não obstante, não está nem próximo
dos ensinos Hinayana dos sutras Agama, muito menos do ensino da conexão, específico
ou perfeito. Por essa razão, como poderia ser comparado ao Sutra de Lótus? Os quatro demônios se opõem fortemente ao domínio mesmo de uma arte tão superficial quanto
o ocultismo. Assim, quão maiores não serão as perseguições a serem enfrentadas pelos
discípulos e seguidores leigos da pessoa que é a primeira a abraçar e propagar no Japão os
sete caracteres do Nam-myoho-rengue-kyo, o princípio fundamental do Sutra de Lótus.
É impossível imaginar, o que dirá descrever em palavras.
O escrito Grande Concentração e Discernimento do Grande Mestre Tient’ai é a essência dos ensinos de sua existência e o coração de todos os ensinos sagrados do Buda.
Durante os mais de quinhentos anos após o Budismo ter sido introduzido na China, dez
mestres fizeram seu advento — sete no norte e três no sul. A sabedoria desses mestres
era tão brilhante quanto o Sol e a Lua e suas virtudes foram enaltecidas por toda a nação;
ainda assim, eles estavam confusos quanto a que sutras eram superficiais ou profundos, inferiores ou superiores, e quanto à ordem em que eles haviam sido expostos. Foi
o Grande Mestre Tient’ai Chih-che que não somente esclareceu os ensinos do Buda,
mas também estabeleceu a joia dos desejos do instante da vida contendo os três mil
mundos do repositório dos cinco caracteres do Myoho-rengue-kyo e o concedeu a todas
as pessoas das três nações.25 Esse ensino originou-se na China. Nem mesmo os eruditos
da Índia foram capazes de estabelecer um conceito tal como este. Por isso, o Grande
Mestre Chang-an comentou: “Jamais houve algo que pudesse ser comparado ao brilho
e a serenidade da concentração e do discernimento,”26 e “Mesmo os eruditos da Índia
não podiam ser comparados a ele”.27
A doutrina dos Três Mil Mundos num Único Momento da Vida, revelada no quinto
volume de Grande Concentração e Discernimento, é especialmente profunda. Se propagá-la, os demônios surgirão sem falha. Se isso não acontecesse, não haveria maneira de
saber que este é o ensino correto. Numa passagem do mesmo sutra consta: “Conforme
a prática progride e a compreensão aumenta, os três obstáculos e as quatro maldades se
manifestam de forma confusa, competindo uns com os outros para interferir... A pessoa
25. Índia, China e Japão.
26. Introdução ao Grande Concentração e Discernimento.
27. Profundo Significado, principal obra
de Tient’ai compilada por Chang-an.
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Carta aos Irmãos
28. As sete outras escolas são as
três escolas Hinayana, Tesouro da
Análise Dharma, Estabelecimento
da Preceitos-Verdadeira Palavra, e
as quatro escolas Mahayana, Características do Dharma, Três Tratados,
Guirlanda de Flores e Preceitos-Verdadeira Palavra.
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não deve ser nem influenciada nem amedrontada por eles. Se for influenciada, ela será
conduzida para os maus caminhos. Se ficar amedrontada, sua prática será obstruída”.
Essa afirmação não somente se aplica a mim, mas também é um direcionamento para
meus seguidores. Faça deste o seu louvável ensino e transmita-o como o eixo da fé para
as futuras gerações.
Os três obstáculos que aparecem nessa passagem são os obstáculos dos desejos mundanos, do carma e da retribuição. O obstáculo dos desejos mundanos indica os impedimentos à prática causados pela ganância, ira, estupidez, e outros parecidos; o obstáculo
do carma representa os impedimentos causados pela esposa ou pelos filhos, e o obstáculo da retribuição são os impedimentos causados pelo soberano ou pelos pais. Das quatro
maldades, as funções do Rei Demônio do Sexto Céu são desse último tipo.
No Japão atual, muitas pessoas declaram ter dominado a prática de concentração e
discernimento. No entanto, existe realmente alguém que tenha enfrentado os três obstáculos e as quatro maldades? A afirmação [de Grande Concentração e Discernimento
relacionada aos três obstáculos e às quatro maldades]“Se uma pessoa cai sob a influência deles, ela será conduzida para os maus caminhos” indica não somente os três maus
caminhos, mas também os mundos dos seres humanos e celestiais e, no geral, todos
os nove mundos. Por essa razão, com exceção do Sutra de Lótus, todos os sutras — os
dos períodos Guirlanda de Flores, Agama, Exatidão e Igualdade, Sabedoria, Nirvana e
Mahavairochana — conduzirão as pessoas aos maus caminhos. Além disso, com exceção da escola Tendai, os adeptos das outras sete escolas28 são, na verdade, guardiães do
inferno que levam outros aos maus caminhos. Mesmo na escola Tendai há aqueles que
professam a fé no Sutra de Lótus; apesar disso, na realidade, conduzem outros aos ensinos pré-Sutra de Lótus. Eles também são os guardiães do inferno que fazem as pessoas
caírem nos maus caminhos.
No entanto, vocês, irmãos, são como o ermitão e o homem de integridade. Se um dos
dois desistir no meio do caminho, ambos falharão em atingir o estado de Buda. Vocês
são como as duas asas de um pássaro ou os dois olhos de uma pessoa. E suas esposas são
seus apoios. As mulheres apoiam os outros e, como resultado, recebem o apoio dessas
pessoas. Quando um marido é feliz, sua esposa também o será. Se o marido é um ladrão,
sua esposa também se tornará uma criminosa. Isso não se aplica somente a esta existência. O marido e a mulher são tão próximos quanto a forma e sua sombra, quanto as
flores e os frutos ou as raízes e as folhas, em todas as existências da vida. Os insetos se
alimentam das próprias árvores que habitam e os peixes bebem da água onde nadam.
Se a grama murcha, as orquídeas padecem; se os pinheiros florescem, os ciprestes se
alegram.29 Até as plantas e árvores são tão intimamente ligadas. O hiyoku é um pássaro
que possui um corpo e duas cabeças. Suas duas bocas nutrem o mesmo corpo. Himoku
é um peixe de um olho só, por isso, o macho e a fêmea permanecem juntos a vida inteira.
O marido e a mulher assim devem ser.
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Carta aos Irmãos
Vocês, esposas, não devem guardar ressentimentos mesmo que seus maridos lhes
causem algum mal por acreditarem neste ensino. Se as duas se unirem para encorajar a
fé de seus maridos, vocês estarão no mesmo caminho da filha do rei dragão e se tornarão
um modelo de mulheres que atingiram a iluminação na era maléfica dos Últimos Dias.
Contanto que ajam dessa maneira, não importando o que aconteça, Nitiren pedirá aos
dois sábios, aos dois reis celestiais,30 às dez filhas-demônios, a Sakyamuni e Muitos
Tesouros para torná-las budas em cada uma das existências futuras. Uma passagem
do Sutra Seis Paramitas afirma que devemos nos tornar mestre de nossa mente, e não
deixar que ela nos domine.
Independentemente do problema que enfrentar, considere-o simplesmente como
um sonho, e pense apenas no Sutra de Lótus. O ensino de Nitiren foi particularmente
difícil de acreditar na primeira vez, mas agora que minhas profecias foram concretizadas, aqueles que cometeram calúnias infundadas acabaram se arrependendo. Mesmo
se, no futuro, outros homens e mulheres tornarem-se meus seguidores, eles não lhe
substituirão em meu coração. Entre os vários que acreditaram no começo, muitos abandonaram a fé, temendo a rejeição da sociedade. Entre essas pessoas, há aquelas que se
opõem a mim mais furiosamente que aqueles que caluniaram desde a primeira vez.
Na época de Sakyamuni, o monge Sunakshatra acreditou no Buda no começo; mais
tarde, porém, ele não somente recuou, mas também caluniou tão furiosamente que até
o Buda não pôde mais salvá-lo de cair no inferno de incessantes sofrimentos. Esta carta
foi escrita particularmente para Hyoe no Sakan. Ela também deve ser lida por sua esposa
e pela de Tayu no Sakan. Nam-myoho-rengue-kyo, Nam-myoho-rengue-kyo.
Nitiren
No décimo sexto dia do quarto mês do décimo segundo ano de Bun’ei (1275)
29. Essa passagem faz alusão ao
escrito “Lamentação pelo Falecimento”, por Lu Chi (261–303), contido na
obra Antologia Literária.
30. Os dois sábios são os bodhisattvas
Rei dos Remédios e Doador Corajoso,
e os dois reis celestiais são Vaishravana e Protetor da Nação.
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