Escherichia coli e o Surto de Colite na Europa Prof.Dr. Josias Rodrigues Laboratório de Bacteriologia Médica Departamento de Microbiologia e Imunologia IBB/UNESP Email: [email protected] Generalidades O ano de 2011 completa 126 anos da descrição de Escherichia coli, um dos organismos mais estudados pelo homem e fundamental na condução de experimentos que levaram a descobertas marcantes da história da Ciência, incluindo a estrutura do DNA e o código genético e que contribuíram de forma decisiva, a partir dos anos 70, para o surgimento da Biologia e Genética Moleculares. Igualmente relevantes tem sido aspectos da bactéria que diretamente tem a ver com a saúde humana e de animais, entre os quais sua presença comum no trato intestinal de humanos e de muitos animais de sangue quente – um fenômeno já observado pelo pediatra Theodorus Escherich em sua descrição original, ao encontrar a bactéria no intestino de vários humanos adultos, e que inicialmente lhe deu o nome: Bacterium coli commune. Além de estreita, esta associação nicho-específica tem sido bem sucedida, no sentido de que a E. coli é um dos competidores bacterianos mais bem sucedidos do intestino. Num ambiente de alta densidade microbiana (o total de espécies bacterianas intestinais, embora desconhecido, deve girar em torno de milhares), E. coli é a espécie predominante entre as bactérias aeróbias facultativas (que se reproduzem na presença ou ausência de O2) do cólon humano. Entre as hipóteses para este sucesso adaptativo, inclui-se a maior eficiência com que, comparativamente a outros microrganismos, a bactéria utiliza como fonte de energia o gluconato, um composto disponível localmente em grande quantidade. Para o organismo humano e animal, a presença de E. coli implica em ganhos importantes, como a produção de vitamina K e do complexo B, bem como a ocupação de espaços, evitando a instalação de microrganismos potencialmente patogênicos. Em razão destas funções, até meados da década de 50, a E. coli era vista como um organismo insuspeito de causar doenças intestinais humanas, sendo associada apenas a quadros de infecções extraintestinais, muitas das quais oportunistas. Em 1945, usando a abordagem sorológica delineada por Fritz Kauffman, o pediatra John Bray demonstrou pela primeira vez, de forma clara, a associação de E. coli com a causa de um surto de diarreia infantil em Londres. Atualmente é universalmente reconhecido o leque de patologias, intestinais ou extraintestinais, associadas à presença de E. coli em humanos e animais. O papel benéfico de E. coli para humanos tem estimulado estudos para o seu uso como probióticos na prevenção ou tratamento de patologias intestinais. Entre estes, inclui-se os ensaios visando o emprego da linhagem Nissle (isolada de um caso de disenteria numa cidade de mesmo nome no Egito), no tratamento de doença inflamatória intestinal idiopática. No extremo oposto, encontramos linhagens altamente virulentas, responsáveis por inúmeros surtos fatais, como o que surgiu na Alemanha, em Maio de 2011. Esta versatilidade de associação de E. coli com o homem, em termos de virulência e que reflete uma ampla diversidade genética intraespecífica, tem sido a base da classificação das linhagens patogênicas em categorias ou patotipos. Os patotipos de E. coli mais estudados tem sido aqueles envolvidos com infecções intestinais e conhecidos como diarreiogênicos. Por esta razão e pelo fato de um deles ser a causa do surto de infecção intestinal na Europa, despertando interesse geral, a exposição a seguir apresentada numa perspectiva histórica, será limitada a estas categorias. Patotipos Diarreiogênicos de Escherichia coli Conforme mencionado acima, o trabalho de John Bray na Inglaterra foi o primeiro a relacionar epidemiologicamente a E. coli com a causa da diarreia. Em anos seguintes, com ocorrências semelhantes em outras regiões, a bactéria foi definitivamente reconhecida como um patógeno entérico. Para diferenciar as linhagens envolvidas com infecções intestinais (diarreiogênicas) daquelas responsáveis por manifestações extraintestinais, John Neter introduziu em 1955 o termo “E. coli enteropatogênica”, estabelecendo assim a definição do primeiro patotipo diarreiogênico da espécie. Na época, a distinção da Enteropathogenic E. coli (EPEC) era baseada apenas em critérios sorológicos, isto é, na presença de variantes moleculares do antígeno O (polissacarídeo externo do lipopolissacarídeo – molécula universalmente encontrada na parede celular das bactérias Gram negativas). Estas variantes eram detectadas por anticorpos específicos presentes em soros produzidos em animais e usados para fins de diagnóstico. O conjunto de linhagens portadoras de mesmas variantes do antígeno forma um determinado sorogrupo O. O esquema de identificação amplia-se quando se dispõe de informações sobre variantes dos antígenos que formam a cápsula (K) e o flagelo (H) bacterianos, tornando o diagnóstico mais refinado e preciso. Neste caso, o conjunto de linhagens que, além de possuírem em comum uma mesma variante do antígeno O, também o possuírem dos antígenos H e K, formam um sorotipo O:H:K. Em geral, para a detecção de linhagens presentes no intestino e/ou causadoras de infecções intestinais, o teste é feito apenas para os antígenos O e H. Os sorogrupos e sorotipos são designados por números arábicos (ex. O1; O6; O111:H4). A maioria das linhagens isoladas de casos clínicos e caracterizadas até os anos 50 pertencia aos sorogrupos O55 e O111. Com o reconhecimento do potencial enteropatogênico de E. coli, vários trabalhos foram desenvolvidos com o objetivo de identificar seu mecanismo de virulência, levando à descoberta, nos anos 60, de linhagens ou variantes capazes de produzir duas classes de enterotoxinas, definidas com base em sua termosensibilidade. As enterotoxinas termolábeis, referidas como LT perdem sua atividade biológica com o aquecimento a 100°C por 30 minutos, enquanto que as termoestáveis, designadas ST, mantêm a atividade nestas condições. As LTs são macromoléculas multiméricas, imunologica e estruturalmente semelhantes à toxina colérica, enquanto que as ST são peptídeos com aproximadamente 20 aminoácidos e análogas ao hormônio-peptídeo intestinal guanilina. Ambas as toxinas interferem no metabolismo de nucleotídeos cíclicos, gerando um desequilíbrio hidrossalino e consequente diarreia secretória. Este achado levou alguns autores a sugerirem a pesquisa destas toxinas, em detrimento da sorotipagem, como ferramenta diagnóstica para a detecção de E. coli diarreiogênica. Todavia, a sorotipagem revelou que estas linhagens toxigênicas apresentavam antígenos O distintos daquelas até então classificadas como EPEC. Isto provocou uma incerteza quanto à virulência destas últimas e o reconhecimento das primeiras como uma nova categoria diarreiogênica, designada enterotoxigenic E. coli (ETEC). Juntamente com pelo menos um dos tipos de enterotoxinas, linhagens de ETEC são capazes de expressar uma ampla variedade de estruturas de superfície em sua parede celular, que lhes permite aderir a receptores de mucosa do intestino delgado humano e de animais, como suínos e bovinos. Ainda nos 60, houve relatos de casos associando a E. coli com a causa de disenteria, um sintoma relacionado a capacidade de algumas linhagens em invadir células de mucosa intestinal, provocando uma reação inflamatória. Estas linhagens, designadas de enteroinvasive E. coli (ETEC), também se mostraram sorologicamente distintas daquelas encontradas no grupo das EPEC e ETEC e apresentaram características bioquímicas e mecanismos de patogenicidade muito semelhantes ao observados em Shigella, organismo na época, reconhecido como único agente bacteriano da disenteria. As incertezas quanto à virulência de EPEC permaneceram até 1978, quando um grupo de pesquisadores ingleses e americanos induziu diarreia em voluntários, pela administração oral de linhagens envolvidas com um surto de diarreia infantil, mas que não apresentavam quaisquer propriedades de virulência conhecidas. Resultados deste trabalho despertaram o interesse por diferentes grupos de pesquisa no estudo destas bactérias, produzindo um volume de informações que foi além, do domínio da bacteriologia. Importante contribuição neste sentido foi a descoberta da possibilidade do uso de células eucarióticas cultivadas in vitro, para investigar propriedades de virulência bacteriana. Usando este modelo experimental, pesquisadores brasileiros observaram que linhagens de alguns sorogrupos de EPEC poderiam ser classificadas em dois grupos, com base no modo como interagem com estas células. Em um padrão de associação, as bactérias formam microcolônias em pontos definidos das células hospedeiras, num arranjo que veio a ser referido como adesão localizada (AL); em outro, a interação acontece de modo disperso na superfície celular, sendo designado de adesão difusa (AD). Análises da interação bactéria-célula, através de microscopia eletrônica, mostraram que linhagens AL+ induziam alterações profundas no citoesqueleto da célula hospedeira, favorecendo um contato muito íntimo. Em testes feitos com células de mucosa intestinal (enterócitos), esta associação estreita leva a perda de microvilosidades. Este fenômeno, observado em nível ultraestrutural e típico do parasitismo de EPEC, foi denominado de lesões Attaching and Effacing (A/E). As bases moleculares do padrão AL e lesão A/E foram investigadas em termos fenotípicos e genéticos, tendo sido descritos tipos fimbriais, genes estruturais e regulatórios. Testes de adesão realizados com várias linhagens de EPEC revelaram uma maior prevalência de amostras expressando AL entre aquelas epidemiologicamente associadas a casos de diarreia. Verificou-se que linhagens AL+ pertenciam a sorotipos definidos, como O55:H6 e O111:H2. O volume de informações disponíveis sobre as propriedades de virulência de EPEC demonstrou de forma clara que se tratava de uma categoria particular e com potencial de patogenicidade evidente. Para ser considerada EPEC, uma linhagem de E. coli deve expressar AL, uma característica dependente da presença de um determinado tipo fimbrial chamado bundle forming pilus (BFP) e que leva às lesões A/E, observáveis ao microscópio eletrônico. Uma série de genes e seus produtos, essenciais para a ocorrência destes eventos, foram caracterizados. Entre estes bfpA (que codifica o BFP) e eae, responsável pela expressão de intimina, (proteína determinante da indução da lesão A/E) são considerados marcadores de diferenciação de EPEC e usados para fins de diagnóstico. O início dos anos 80 foi marcado pela ocorrência, nos Estados Unidos, de um surto de infecção intestinal provocado por linhagens de E. coli O157:H7 – um sorotipo raro. Os sintomas, consistindo de dores abdominais, diarreia sanguinolenta e ausência de febre, foram associados à ingestão de carne bovina mal processada. Estas manifestações, descritas como Colite Hemorrágica, tinha como sequela a síndrome hemolítica urêmica (SHU), que acomete os pacientes na forma de uma disfunção renal aguda, acompanhada de anemia hemolítica e trombocitopenia. As bactérias envolvidas produzem uma toxina que, em experimentos in vitro, apresenta atividade contra células Vero (tipo celular obtido de culturas primárias de rim de macaco) e são por isto referidas como verotoxina ou verocitotoxina (VT). Atualmente, sabese que VT na verdade compreende uma família de proteínas relacionadas, que inclui toxinas produzidas por Shigella dysenteriae 1, de modo que sua designação foi alterada para citotoxinas de Shiga (Stx) e as linhagens onde são detectadas de Shiga toxin producing E. coli (STEC). Algumas bactérias produtoras de Stx induzem lesões A/E do mesmo modo que EPEC. Este subgrupo de STEC, que tem o potencial de causar colite hemorrágica e síndrome hemolítica urêmica, compreende as enterohemorragic E. coli (EHEC), consideradas pelos especialistas como a categoria mais virulenta da espécie. Embora O157:H7 seja o sorotipo padrão, uma diversidade de outros sorotipos tem sido até descritos dentro das EHECs e entre as STEC . Em 1987, a partir de análise minuciosa de linhagens expressando adesão difusa, foi identificada uma nova categoria diarreiogênica em E. coli, cujo padrão de adesão, em testes in vitro, consiste na formação de agregados sobre a superfície celular e também nos espaços intercelulares. As chamadas enteroaggregative E. coli (EAEC) compreendem um grupo bacteriano heterogêneo, incluindo linhagens produtoras de uma variedade de tipos de toxinas, tais como serina proteases autotransportadoras (SPATE) e toxinas da família das LT. As EAEC formam biofilmes e são também capazes de induzir a produção de muco intestinal. Além dos patotipos aqui relacionados, muitos autores consideram as linhagens que aderem difusamente – difuselly adhering E. coli (DAEC) – como um quinto patotipo de E. coli diarreiogênica. Todavia, não é universalmente aceito. Emergência do sorotipo O104:H4 na Europa Em Maio, as autoridades de saúde registraram 214 casos – confirmados ou suspeitos – de síndrome hemolítica urêmica (SHU) na Alemanha, um número considerado alto para os padrões locais. A maioria (119) foi da Região Norte, principalmente a cidade de Hannover. O grande número e a concentração de casos indicaram a ocorrência de um surto de infecção por E. coli produtora de citotoxinas de Shiga (STEC). Testes laboratoriais mostraram que a linhagem responsável pertencia ao sorogrupo O104:H4, anteriormente associada apenas a casos esporádicos da doença na Europa e na Coréia. Registros semelhantes foram feitos em outras regiões, sendo que no final de Junho 13 países europeus e os Estados Unidos tinham sido afetados. As Investigações sobre a origem da bactéria descartaram uma contaminação por alimento de origem animal – fonte primária e mais comum de STEC. Embora inicialmente tenha-se suspeitado de tomate, pepino e alface, análise criteriosa levou a conclusão de que a maioria dos pacientes tinha ingerido alimento contendo brotos de uma semente exótica, conhecida como feno grego e importada do Egito. Apesar de a maioria dos casos de fora da Alemanha ser de pacientes que tinham viajado para lá, uma exceção foi Bordeaux, na França, onde 16 pessoas que participaram de um certo evento apresentaram diarreia sanguinolenta e/ou SHU. Dentre estas, 6 declararam ter ingerido alimento contendo broto de feno grego. Investigação sobre a origem do alimento suspeito levou à mesma fonte envolvida no surto alemão: um lote do produto distribuído por um grande importador na Alemanha. Este trabalho de investigação foi conduzido por uma força tarefa composta por representantes do Centro Europeu para o Controle e Prevenção de Doenças (ECDC), Comissão Européia (EC), FAO, OMS e Agência Européia para Segurança Alimentar (EFSA), que continua monitorando e divulgando alertas sobre a situação. Apesar de o número de casos estar em queda (o pico foi em 23 de Junho), fatalidades continuam a ser registradas. Até o dia 07 de Julho de 2011, 44 pessoas haviam morrido e quase 4000 casos foram confirmados na Europa. A taxa de mortalidade (3,7%) entre portadores de SHU chega a ser 8 vezes superior à daqueles que não a apresentam. Ao contrário de surtos anteriores de infecções por STEC, que atingiram principalmente crianças de ambos os sexos, os casos europeus envolvem principalmente indivíduos de meia idade e do sexo feminino. Outra particularidade deste surto é a maior prevalência (25-30%) de infecções que evolui para o quadro de SHU. A linhagem envolvida apresenta características genéticas e fenotípicas de E. coli enteroagregativa (EAEC). A condição de patotipo híbrido parece explicar sua alta virulência. Especula-se que a aderência mais eficiente ao intestino, proporcionada pela adesão agregativa, favorece a absorção sistêmica da Stx, justificando a maior prevalência de síndrome hemolítica urêmica entre os infectados. Esta linhagem de O104:H4 difere das demais pertencentes ao mesmo sorotipo e envolvidas em surtos anteriores pela multiresistência a antibióticos, com produção de betalactamases de espectro estendido (ESBL). Agradecimento Ao Dr. A. C. Montelli, Professor Emérito da Faculdade de Medicina de Botucatu pela revisão crítica e valiosas sugestões incorporadas ao texto. Referências Bibliográficas: 1. European Centre for Disease Control and Prevention. http://ecdc.europa.eu/en/Pages/home.aspx 2. Bielaszewska, M. et al. Characterisation of the Escherichia coli strain associated with an outbreak of haemolytic uraemic syndrome in Germany, 2011: a microbiology study. Lancet online (www.thelancet.com/infection). June 2011. DOI:10.1016/S14733099(11)70165-7 3. Nataro, J. P., Kaper, J. B & Mobley, H. L. T. Pathogenic Escherichia coli. Nature Microbiology Reviews. 2004, Vol 2, N° 2. 4. Nataro, J. P. & Kaper, J. B. Diarrheagenic Escherichia coli. Clinical Microbiology Reviews. 1998, Vol. 11, N° 1 5. Robins-Browne, R. M. Traditional enteropathogenic Escherichia coli of infantile Diarrhea. Reviews of Infectious Diseases. 1987, Vol 9, N°1.