A Filosofia diante do tecnicismo da sociedade de informação Renato Nunes Bittencourt* Resumo: Neste artigo se problematiza de que maneira a Filosofia (enquanto saber e disciplina escolar) se encontra em uma situação de contestação perante a ordem tecnocrática imperante em nossa sociedade da informação, caracterizada pela legitimação de um “utilitarismo” vulgar em que se considera que somente é pertinente para a vida humana a realização de estudos ou funções que pretensamente tragam resultados materiais imediatos. Tanto pior, esse modelo “informativo” rompe com o paradigma intelectual de “formação” individual, que é intrinsecamente singular e regulada por disposições existenciais alheias aos parâmetros “morais” da normatização do sistema de ensino. Favorecendo a reflexão e a análise paciente e rigorosa da realidade circundante, a Filosofia pode ser um recurso de transformação do mecanismo alienante vigente, presente mesmo no local onde a mediocridade deveria ser progressivamente eliminada, as instituições de ensino. Palavras-Chave: Ensino de Filosofia; Padronização; Ideologia; Reflexão; Informação. Abstract: In this article we analyse how the Philosophy (while to know and disciplines pertaining to school) if it finds in a plea situation before the reigning technocratic order in our society of the information, characterized for the legitimation of a vulgar “utilitarianism” where if it considers that only the accomplishment of studies or functions is pertinent for the life human being that supposedly bring resulted material immediate. As much worse, this “informative” model breaches with the intellectual paradigm of “individual formation”, that intrinsically singular and it is regulated by other people's existentials disposals to “the moral” parameters of the normatization of the education system. Favoring the reflection and the patient and rigorous analysis of the surrounding reality, the Philosophy can exactly be a resource of transformation of the effective, present alienator mechanism in the place where the mediocrity would have gradually to be eliminated, the education institutions. Key words: Philosophy’s Teaching; Padronization; Ideology; Reflexion; Information. * RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutorando em Filosofia do PPGF-UFRJ/Bolsista do CNPq. 61 Introdução Este escrito reflete algumas das minhas experiências como professor do Departamento de Filosofia do Colégio Pedro II – Unidade São Cristóvão, entre 2006-2007, a partir da qual pude desenvolver uma compreensão apurada da recepção da atividade filosófica no ensino médio brasileiro. Dessa maneira, a delimitação espaço-temporal de minha atividade docente não impede que os problemas filosóficos e pedagógicos aqui apresentados sejam ampliados para a realidade educacional de nosso sistema de ensino, contribuindo possivelmente para uma compreensão global da peculiaridade do ensino de Filosofia em uma realidade social marcada pelo projeto tecnicista e pelo sistema cultural que privilegia o acúmulo de informações ao invés de uma genuína formação intelectual e existencial do indivíduo. Importantes obras de Filosofia e Teoria da Educação são utilizadas neste escrito. Ensinar Filosofia em uma ordem social tecnicista Antes de adentrarmos no cerne dessa polêmica sobre a situação do ensino e da pesquisa de Filosofia no âmbito de uma estrutura social marcada pela apologia da alienação cultural e da exaltação de determinadas profissões que são consideradas garantias imediatas de progresso material, é de grande importância que problematizemos o termo “tecnicismo”: por tal conceito entendo a disposição econômica, ideológica e existencial que preconiza como axiologicamente superiores apenas os instrumentos e atividades profissionais caracterizados por um suposto desenvolvimento tecnológico mais apurado, circunstância que, no imaginário simbólico de nossa atual ordem civilizatória, alça os “especialistas” desses ramos de atuação a um patamar de predominância no grande jogo de espelhos sociais. Dessa maneira, de modo algum se pretende depreciar os avanços tecnológicos, inclusive os direcionados imediatamente ao âmbito das práticas educacionais, pois os benefícios científicos, utilizados de forma consciente pela estrutura pedagógica, potencializam os resultados educacionais almejados e favorecem a aplicação das funções profissionais do docente. Entre tecnologia e reflexão não há oposição necessária; em verdade, ambas trabalham em comunhão pelo aprimoramento da vida intelectual e do bem-estar existencial. Para Jayme Paviani A reflexão é a atitude mental que se dispõe a examinar o uso e a elaboração dos conceitos e dos enunciados, suas relações entre si e suas relações com os fatos. A reflexão crítica, portanto, procura examinar a origem, a natureza, o modo de ser e a finalidade do conhecimento em geral e do conhecimento cientifico especialmente, enquanto representação da realidade (PAVIANI, 1987: 24). A atividade filosófica, mesmo ao refletir sobre conceitos e problemas analisados pelos pensadores tradicionais do passado, favorece uma espécie de retomada dessas questões no presente, demonstrando assim a vitalidade 62 extemporânea que perpassa o discurso filosófico. Pensado na circunscrição do Ensino Médio, o estudo da Filosofia direciona o seu enfoque axiológico para os problemas intelectuais outrora analisados por outros pensadores; contudo, tal exercício não significa repetição de um conceito já devidamente cristalizado e superado, mas acima de tudo a oportunidade de se recriar intelectualmente, sob novos olhares, antigos problemas, inclusive contextualizando-os com questões cruciais da nossa realidade contemporânea. Nessas condições, o ensino de Filosofia para jovens auxilia no esclarecimento de problemas intelectuais que até então não foram resolvidos adequadamente pela história do pensamento filosófico e jamais o serão. Direcionando-se o olhar hermenêutico para o legado filosófico do passado com o enfoque axiológico do presente, a obra filosófica jamais perde a sua força expressiva, apresentando-se como uma instância imorredoura. Por conseguinte, autores clássicos são adequadamente estudados através de recursos técnicos que, utilizados em prol do esclarecimento conceitual junto aos estudantes, enriquecem a carga intelectual dos debates realizados entre o professor de Filosofia e seu corpo discente, incluindo-se em tais recursos filmes, programas de multimídia, sites de relevância cultural, dentre outras possibilidades afins. Todavia, no âmbito de nosso contínuo esvaziamento educacional, por mais que uma instituição de ensino venha a fornecer uma série de recursos técnicos que viabilizem o desenvolvimento de uma atividade discente satisfatória e propiciadora de um nível razoável de refletividade em relação aos propósitos intelectuais do professor, é evidente que os estudantes, em decorrência do espírito tecnicista de nossa época, acabam por sofrer pressões sociais, seja dos familiares ou do mercado de trabalho, para que oriente as suas vocações pessoais para o ingresso em cursos universitários de forte apelo mercadológico, em vista de uma posterior prática profissional que supostamente garantirá em curto prazo de tempo o sucesso individual e o tão sonhado enriquecimento material. “Vivemos em uma época que desejaria que a Filosofia passasse a ser considerada como uma relíquia teológica de um passado superado” (GADAMER, 1983: 78). Com efeito, se manifesta predominantemente na mentalidade da sociedade da era tecnicista uma fabulosa relação de “pseudo-causalidade” entre carreira profissional e sucesso econômico, que, em nível, prático, necessariamente não ocorre. Acerca dessa questão, Alejandro Cerletti e Walter Kohan apresentam um diagnóstico cultural de grande pertinência: A intervenção esforçada do pensamento carece da frescura do discurso publicitário ou da vertiginosa imagem do video-clipe. A filosofia não é sedutora em nossos tempos. Pelo contrário, parece um estorvo pouco prático. Não nos garante a felicidade ou a solução rápida de nossos problemas, e sim, muitas vezes, costuma colocar novas questões, talvez mais complexas e profundas. Que sentido tem hoje complicar a vida quando tudo nos é oferecido de forma direta e espetacular? O impacto imediato da imagem torna obsoleta e aborrecida a intervenção imediata da reflexão. E, o que é pior, tudo que não tenha um lucro imediato termina sendo uma irremediável perda de tempo (CERLETTI & KOHAN, 1999: 4647) 63 A dinâmica tecnicista faz com que o estudante se oriente para esse modelo mercadológico. Todavia, nesse contexto ideológico, a seguinte indagação se torna inevitável, como forma de compreendermos o niilismo existencial que gerencia a busca sôfrega pelo enriquecimento pessoal mediante a realização de atividades profissionais “rentáveis”: “De que adianta se escolher uma determinada carreira profissional se porventura ela não proporcionar uma autêntica garantia de felicidade e autorealização pessoal?” Todavia, na atual conjectura de nossa ordem mundial, isso de uma forma geral pouco importa para o estudante, preocupado especialmente em obter um conhecimento prático que lhe dê aptidão em exercer as profissões consideradas economicamente lucrativas. Tanto pior, essa indagação migra para a sala de aula, quando o estudante, ávido de emoções fortes e com sua mente doutrinada para a absorção de fórmulas e conceitos preestabelecidos, questiona a pertinência do ensino de disciplinas que favorecem naturalmente o desenvolvimento da consciência crítica e das técnicas argumentativas. Por conseguinte, o papel cultural da Filosofia, nesse contexto, é colocado em questão: O pensar sistemático, a reflexão analítica ou a mera justificativa do que se afirma têm, atualmente, e sobretudo na escola, algo de desvalorizado e arcaico. O espaço do pensamento foi substituído por um espaço comum da mídia, produtora de usuários dóceis e espectadores passivos (CERLETTI & KOHAN: 45-46). A disposição tecnicista e imagética do sistema pragmatista em que vivemos deprecia a atividade filosófica por pretensamente considerá-la “desinteressada”, isto é, desvinculada dos problemas concretos da realidade. Essa assertiva é uma grande estultícia, pois a atividade filosófica jamais é “desinteressada”, e todo pensamento, toda tentativa de explicar e compreender algo, mesmo que em um âmbito abstrato, demonstra o seu vínculo com a realidade dinâmica na qual estamos situados. Todo pensamento é um valor sobre o mundo, e para que valoremos sobre algo, precisamos ser afetados por ele, circunstância que insere o filósofo no contexto imanente de sua situação cotidiana. Aproveitemos os comentários de Cerletti e Kohan: “A filosofia, como crítica radical, é a superação da imobilidade que leva à aceitação passiva do estado de coisas (CERLETTI & KOHAN, 1999: 66). Uma vez que a sociedade tecnicista em sua configuração espetacular desprivilegia a autêntica autonomia do indivíduo pensante, substituído pelo pasteurizado ídolo midiático, pensar se torna algo enfadonho, um masoquismo parcelado cotidianamente na dedicação servil do estudante ao sistema de ensino. Para Ingrid Müller Xavier, “a imediatez da imagem suscita e requer reflexos e reações também imediatos, e assim ao preterir a reflexão, provoca uma transformação inaudita de despotencialização do pensamento” (XAVIER, 2004: 137). O mundo da mídia televisiva e informática oferecem uma miríade de prazeres estéticos que estimulam o gozo do indivíduo, como forma dele se destacar do resto da coletividade, quando em verdade, ele nada mais é do que uma peça descartável desse mecanismo ideológico que impera mediante a supressão do pensamento reflexivo. Para Adriana Santos, Na era eletrônica, não há possibilidade de que essa singularidade seja estimulada. A 64 chamada mídia é um processo de fabricação de ícones e de totens modernos. Por mais que o comércio via internet fale diretamente com o consumidor através do e-mail, ou seja, da correspondência eletrônica, é preciso vender para um mercado global, de gostos e atitudes padronizadas, e não para indivíduos com pensamentos e gostos próprios (SANTOS, 2002: 80). Conforme argumentam Alejandro Cerletti e Walter Kohan: “Em todos os tempos, os “para quê” são vistos quase que exclusivamente sob o prisma da utilidade imediata, ou da produtividade mercantil e do benefício econômico” (CERLETTI & KOHAN, 1999: 99). Todavia, esse mal-estar cultural pode ser sanado na medida em que a prática filosófica na sala de aula se esforce em compreender intrinsecamente os interesses e as inquietações que emergem da própria experiência de vida, para transformar-se em reflexão e questionamento dessa mesma experiência. Nessas condições, uma abordagem filosófica do problema do ensino de Filosofia obriga também, paralelamente, a tematizar o lugar e a função do professor de Filosofia como pensador ativo e promotor da reflexão partilhada por seus jovens interlocutores (CERLETTI & KOHAN, 1999: 13-14). Com efeito, o professor de Filosofia, comprometido intelectualmente com a transformação da estrutura da massificação cultural imperante no sistema informativo imperante, é uma espécie de catalisador do exercício de florescimento do pensamento crítico dos jovens. Conforme argumenta Paulo Freire, Os homens enquanto “seres-emsituação” encontram-se submetidos em condições espaço-temporais que influem neles e nas quais eles igualmente influem. Refletirão sobre seu caráter de seres situados, na medida em que sejam desafiados a atuar (FREIRE, 1979: 33) Por conseguinte, a problematização filosófica faz ver ao estudante a sua situação de integração inexorável nessa realidade baseada na idolatria de um modo de vida regido pela ótica da celebridade, circunstância que, por seu efeito sedutor sobre a subjetividade insegura do jovem, exerce sobre ele um efeito confortante: A publicidade oferece um indivíduo seguro, de sucesso, ágil, rapidamente adaptável às mudanças e, acima de tudo, contra a desesperança e o fracasso. Entretanto, esta imagem quase caricaturesca do homem triunfante de nossos dis instalou-se como uma espécie de ideia reguladora dos desejos e ambições pessoais da maioria (CERLETTI & KOHAN, 1999: 58-59) A nossa sociedade tecnicista, em decorrência dessa orientação utilitarista das suas disposições valorativas, abre mão da busca por uma felicidade realmente satisfatória, em prol da concretização de um bem-estar material imediato, que se revela posteriormente como um engodo. Isso ocorre, segundo Jayme Paviani, pelo fato de que “vivemos momentos de sacralização na busca de novos mitos, e momentos de dessacralização, de derrubada de mitos. Vivemos num constante processo de inversão de valores” (PAVIANI, 1987: 32). O ensino de Filosofia, nesse contexto social, se encontra numa situação polêmica, pois há o preconceito social de que é uma disciplina que não serve para “nada”, em decorrência da suposta utilidade profissional de grande parte das demais disciplinas oferecidas na grade curricular de um dado colégio; mais ainda, por mais que se utilize de forma criativa dos recursos tecnológicos, o estudo de Filosofia 65 exige paciência e concentração psíquica, qualidades cada vez mais raras em nossa ordem social de agitação mental. Conforme apontam Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl: “Vivemos numa sociedade que nos demanda uma atividade contínua, ainda que vazia. Em vez de reflexão, contemplação e dúvida, o sujeito é compelido a agir, respondendo a uma demanda do Outro” (BUCCI & KEHL, 2009: 100) É inadequado pensar que a filosofia se diferencia das demais disciplinas por propor uma espécie de compreensão ontológica e valorativa sobre o mundo, valorizando em especial as capacidades cognitivas do estudante de uma forma distinta do método universalista aplicado para avaliar disciplinas “objetivas”; todavia, é fato que o seu eixo axiológico é distinto dos concernentes aos parâmetros pedagógicos da Matemática ou da Física, por exemplo. Curiosamente, existem mais convergências conceituais entre Filosofia, Matemática e Física do que poderia supor a vã mentalidade obtusa do espírito tecnocrático, que retira das disciplinas apenas as suas fórmulas gerais, sem se preocupar em compreender as motivações genuinamente filosóficas que moveram os criadores dessas teorias em seus respectivos processos de elaboração intelectual. O tecnicismo educacional privilegia as disciplinas ditas “exatas” como as instâncias diretrizes do sucesso estudantil do jovem, colocando as disciplinas “humanas” em uma esfera pedagógica inferior. Todavia, o fato de haver essa exaltação burocrática da Matemática, Física, Química ou Biologia não significa necessariamente que elas exerçam grande poder de encantamento sobre as disposições intelectuais dos estudantes, que não raramente expressam a opinião de que tais conteúdos pedagógicos não são intelectualmente aprazíveis, justamente pela metodologia de ensino na qual essas disciplinas são transmitidas; no entanto, por uma necessidade de adequação ao jogo insano dos cursos de vestibular, a grande massa de estudantes se encontra diante da obrigação de direcionar as suas capacidades intelectuais para o estudo exaustivo e acrítico essas disciplinas que, estatisticamente, são as determinantes na aprovação dos candidatos dos principais exames de vestibular do sistema de ensino brasileiro. Nesse contexto, somente é efetivamente “útil” o conhecimento cujo conteúdo programático cai no vestibular. A “verdade” só existe se ela fizer parte do vestibular, caso contrário pode ser sumariamente descartada da vida do estudante. Para Cerletti e Kohan Somente aquele que pode refletir ativamente sobre sua prática estará em condições de transcender os padrões de execução e implementação burocratizados, utilizando formas pedagógicas que tratem os estudantes como agentes críticos capazes de questionar a legitimidade de um fato ou de uma argumentação, propondo e trabalhando seus problemas e interesses a partir do diálogo e do intercâmbio reflexivo (CERLETTI & KOHAN, 1999: 31). Em decorrência das transformações dos paradigmas da educação nacional nas ultimas décadas, percebe-se cada vez mais o ensino dos jovens como uma atividade “informativa”, e não de fato “formativa” e educativa. Por “sistema informativo” entendemos o método pedagógico que não desenvolve as capacidades críticas e reflexivas do estudante, mas faz deste apenas um receptáculo de conteúdos pedagógicos intelectualmente fragmentados. Essa produção pseudo-cultural “degenerada”, 66 portanto, não propunha o desenvolvimento do pensamento consistente, afirmativo, pautando-se tão somente na enunciação de vagas opiniões, inconsistentes “pontos de vista” (NIETZSCHE, 2003: 54). Transportando tal distorção pedagógica para a massificação do sistema de ensino na era tecnocrática, poderíamos afirmar que tal mecanismo se trata do modelo “educacional” denominado por Paulo Freire como concepção bancária da educação: “Na visão ‘bancária’ da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (FREIRE, 1980: 67). Por sua vez, compreendemos a “formação cultural” como o processo de aprendizado que engloba a disposição cognitiva do estudante não em sua matriz pedagógica de adequação a um sistema heterônomo de ensino, mas como uma dinâmica existencial na qual ele é capaz de significar singularmente os conteúdos pedagógicos adquiridos, utilizando-os não para uma realização imediatista em sua vida estudantil, seja a aprovação no ano letivo ou no exame de vestibular, mas na sua própria existência. A reflexão sobre os conteúdos pedagógicos transmitidos em sala de aula permite que tanto o professor como o estudante repensem criticamente os seus papéis sociais, enriquecendo-se mutuamente as suas respectivas visões de mundo mediante a comunhão existencial, relação de confiança entre as duas partes de um grande todo que é a relação professorestudante, ambos “educandos”. Nesse contexto, cabe ao professor a capacidade “de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza, e não a de discutir sobre ele, de dá-lo, de entendê-lo, de entregá-lo, como se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado” (FREIRE, 1977: 81) No entanto, no ideário tecnocrático de nossa sociedade, o cultivo de uma genuína formação pessoal e intelectual, processo que exige disciplina, respeito pela singularidade individual do estudante e paciência, cedeu lugar a uma necessidade urgente de transmissão de conteúdos, sem que o estudante tenha a capacidade psíquica de assimilar adequadamente a quantidade vertiginosa tais informações. Ressaltemos que de modo algum é surpreendente pensarmos no fato de que a escola, o espaço cultural no qual deveria se proporcionar o aprendizado intelectual e também a reflexão sobre o papel social do estudante enquanto ser pensante capaz de pensar criticamente a infra-estrutura constituinte do seu meio cotidiano se torna um aparato ideológico de controle da subjetividade humana; tal circunstância suprime a autonomia da singularidade do estudante em prol da formatação de um grupo de indivíduos disponíveis para a realização de funções práticas verticalmente estabelecidas pelo sistema burocrático da sociedade. “Toda formação social, para existir, ao mesmo tempo que produz, e para poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção” (ALTHUSSER, 1985: 54) Por esse motivo, Althusser 67 considera a estrutura simbólica da Escola como exemplo de “Aparelho Ideológico de Estado” (ALTHUSSER, 1985: 68). Com efeito, a estrutura do estabelecimento de ensino não é ideologicamente neutra, um sacrário no qual o “saber puro” é transmitido para a classe de estudantes, mas antes representa um jogo de poder que satisfaz a manutenção da ordem vigente: A escola (mas também outras instituições do Estado, como a Igreja e outros aparelhos como o Exército) ensina o know-how mas sob forma que assegurem a submissão à ideologia dominante, ou o domínio de sua “prática” (ALTHUSSER, 1985: 58). Esse processo de submissão aos parâmetros normativos da estrutura educacional que exige de cada pessoa a contínua retenção de novas informações cotidianamente recebidas gera uma curiosa “especialização máxima do mínimo”, pois o indivíduo, no decorrer do processo de instrumentalização estudantil e profissional, encontra-se na necessidade de, acima de tudo, conhecer os detalhes de seu ofício ou ocupação, tornando-se o melhor nesse ramo, ainda que perca, todavia, a visão global de seu legado intelectual. Segundo Paulo Freire, “A especialização necessária transforma-se em especialismo alienante” (FREIRE, 1979: 93). Nesse contexto, o excesso de informações disponibilizadas pelos aparatos tecnológicos não favoreceu o esclarecimento da sociedade, mas a manutenção de sua alienação existencial e cultural. Aponta criticamente Adriana Santos: “A enorme quantidade de informações disponíveis àqueles que têm acesso aos meios eletrônicos irá, ao invés de mobilizar-nos para uma atuação mais freqüente e segura como cidadãos, anestesiam-nos para realidade” (SANTOS, 2002: 92). a A saturação de conteúdos pedagógicos promovida pela sociedade tecnicista revela o uso inadequado de seus instrumentos técnicos, pois se evidencia claramente que não é o acúmulo de informações que tornam um indivíduo mais cultivado ou apto para a realização competente de funções técnicas, mas a capacidade de refletir sobre a influência desses saberes em sua subjetividade. A grande questão é que os parâmetros normativos da sociedade tecnicista se esforçam por manter infinitamente esse projeto de alienação cultural pelo excesso de informações, o que soa como um surpreendente paradoxo. Nunca talvez a humanidade tenha obtido acesso a tantos conteúdos informativos, mas a ausência de um princípio de seletividade imergiu o indivíduo da sociedade tecnicista na anarquia informacional. Para Paulo Freire, Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele. Como sujeitos [...]. Na medida em que essa ‘ visão bancária’ anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade satisfaz aos interesses dos opressores (FREIRE, 1980: 68-69). Tanto pior, o sistema educacional desenvolve o seu processo informativo de maneira homogênea e universal, na qual todos os estudantes devem se adequar aos critérios e mecanismos pedagógicos previamente estabelecidos, pois a violação desse sistema acarreta o fracasso estudantil do jovem, seja a sua reprovação escolar ou a sua não68 admissão no ensino universitário de fomento público. Nessas condições, a educação dos jovens se torna meio para a realização de um fim pragmático, e não um instrumento de cultivo da cidadania e do desvelar do seu verdadeiro potencial humano. “A redução do saber e da experiência do mundo ao simples conhecimento controlado e estratificado tende a eliminar a realidade cultural do estudante em favor de uma cultura imposta” (PAVIANI, 1987: 49). Uma educação que, ao invés de auxiliar no processo de formação do ser humano, se torna mera informação. Criticando esse modelo tecnicista da educação, Paulo Freire dirá que Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. Dessa maneira, a educação se torna um ato de depósito, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante (FREIRE, 1980: 66) A Filosofia, inserida no ambiente educacional de nossa sociedade burocratizada que se utiliza de um aparato socioeconômico que requer a reificação do indivíduo, serve como instrumento de reflexão sobre os rumos existenciais pelos quais a nossa sociedade optou seguir em sua configuração tecnicista, dissecando as nuances ideológicas que determinaram cada vez mais o empobrecimento pessoal da capacidade crítica do estudante diante da lógica de mercado e da esperança de sucesso imediato em sua carreira profissional. Pelo fato de proporcionar uma genuína reflexão sobre o aprendizado e seu sentido intelectual e existencial, sem dúvida a atividade filosófica causa estranhamento nos dispositivos sociais que justamente prosperam mediante a perpetuação da mediocridade humana, decorrendo daí uma série de medidas institucionais para prejudicar a adequada transmissão dos conteúdos didáticos de Filosofia. Para Nietzsche, Em todo lugar onde houve poderosas sociedades, governos, religiões, opiniões públicas, em suma, em todo lugar onde houve tirania, execrou-se o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao homem um asilo onde nenhum tirano pode penetrar. A caverna da interioridade, o labirinto do coração: e isto deixa enfurecido os tiranos (NIETZSCHE, 2003: 154). A atividade filosófica, apesar de tripudiada pela ideologia mercadológica que preconiza a aceleração máxima do tempo, associada, todavia, ao máximo de informações técnicas úteis para a melhor dominação prática da realidade, é um exercício de superação existencial e cultural do projeto material que a sociedade tecnocrática optou viver, alienada de si mesma e diluída no seu próprio vazio simbólico e em sua ausência de perspectivas existenciais movidas pela criatividade e pelo projeto de transformação social. Mesmo os problemas que estão em voga no cenário filosófico contemporâneo, como a legalidade do aborto, da eutanásia, da clonagem de seres vivos, da natureza política do Estado, das funções cognitivas da mente humana, do relativismo de valores, dentre muitos outros temas, encontram uma valiosa ressonância nas obras dos autores tradicionais, estabelecendo-se um dialogo contínuo entre as nossas urgências existenciais atuais e os problemas intelectuais já registrados no passado. Essa é a principal motivação que leva a sociedade tecnocrática a depreciar o exercício reflexivo como recurso transformador e criador da 69 estrutura cultural na qual estamos situados, pois a Filosofia enquanto processo intelectual e debate de ideias, apesar das suas múltiplas orientações axiológicas, prima acima de tudo pela conscientização dos indivíduos, tornando-os pessoas autônomas na vida prática. Cabe a tal ordem de mundo a sentença sábia de Sócrates diante dos seus acusadores: “Uma vida sem exame não vale a pena ser vivida (PLATÃO. Apologia de Sócrates, 38a) Referências ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad. de Walter José Evangelista e Maria Laum Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985. BUCCI, Eugênio & KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2009. CERLETTI, Alejandro & KOHAN, Walter. A Filosofia no Ensino Médio. Trad. de Norma Guimarães Azeredo. Brasília: Editora da UnB, 1999. FREIRE, Paulo. Conscientização. 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