A Filosofia diante do tecnicismo da sociedade de informação

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A Filosofia diante do tecnicismo da sociedade de informação
Renato Nunes Bittencourt*
Resumo: Neste artigo se problematiza de que maneira a Filosofia (enquanto
saber e disciplina escolar) se encontra em uma situação de contestação perante
a ordem tecnocrática imperante em nossa sociedade da informação,
caracterizada pela legitimação de um “utilitarismo” vulgar em que se considera
que somente é pertinente para a vida humana a realização de estudos ou
funções que pretensamente tragam resultados materiais imediatos. Tanto pior,
esse modelo “informativo” rompe com o paradigma intelectual de “formação”
individual, que é intrinsecamente singular e regulada por disposições
existenciais alheias aos parâmetros “morais” da normatização do sistema de
ensino. Favorecendo a reflexão e a análise paciente e rigorosa da realidade
circundante, a Filosofia pode ser um recurso de transformação do mecanismo
alienante vigente, presente mesmo no local onde a mediocridade deveria ser
progressivamente eliminada, as instituições de ensino.
Palavras-Chave: Ensino de Filosofia; Padronização; Ideologia; Reflexão;
Informação.
Abstract: In this article we analyse how the Philosophy (while to know and
disciplines pertaining to school) if it finds in a plea situation before the reigning
technocratic order in our society of the information, characterized for the
legitimation of a vulgar “utilitarianism” where if it considers that only the
accomplishment of studies or functions is pertinent for the life human being
that supposedly bring resulted material immediate. As much worse, this
“informative” model breaches with the intellectual paradigm of “individual
formation”, that intrinsically singular and it is regulated by other people's
existentials disposals to “the moral” parameters of the normatization of the
education system. Favoring the reflection and the patient and rigorous analysis
of the surrounding reality, the Philosophy can exactly be a resource of
transformation of the effective, present alienator mechanism in the place where
the mediocrity would have gradually to be eliminated, the education
institutions.
Key words: Philosophy’s Teaching; Padronization; Ideology; Reflexion;
Information.
*
RENATO NUNES BITTENCOURT é Doutorando em Filosofia do PPGF-UFRJ/Bolsista do
CNPq.
61
Introdução
Este escrito reflete algumas das minhas
experiências como professor do
Departamento de Filosofia do Colégio
Pedro II – Unidade São Cristóvão, entre
2006-2007, a partir da qual pude
desenvolver uma compreensão apurada
da recepção da atividade filosófica no
ensino médio brasileiro. Dessa maneira,
a delimitação espaço-temporal de minha
atividade docente não impede que os
problemas filosóficos e pedagógicos
aqui apresentados sejam ampliados para
a realidade educacional de nosso
sistema de ensino, contribuindo
possivelmente para uma compreensão
global da peculiaridade do ensino de
Filosofia em uma realidade social
marcada pelo projeto tecnicista e pelo
sistema cultural que privilegia o
acúmulo de informações ao invés de
uma genuína formação intelectual e
existencial do indivíduo. Importantes
obras de Filosofia e Teoria da Educação
são utilizadas neste escrito.
Ensinar Filosofia em uma ordem
social tecnicista
Antes de adentrarmos no cerne dessa
polêmica sobre a situação do ensino e
da pesquisa de Filosofia no âmbito de
uma estrutura social marcada pela
apologia da alienação cultural e da
exaltação de determinadas profissões
que
são
consideradas
garantias
imediatas de progresso material, é de
grande
importância
que
problematizemos o termo “tecnicismo”:
por tal conceito entendo a disposição
econômica, ideológica e existencial que
preconiza
como
axiologicamente
superiores apenas os instrumentos e
atividades profissionais caracterizados
por um suposto desenvolvimento
tecnológico mais apurado, circunstância
que, no imaginário simbólico de nossa
atual ordem civilizatória, alça os
“especialistas” desses ramos de atuação
a um patamar de predominância no
grande jogo de espelhos sociais. Dessa
maneira, de modo algum se pretende
depreciar os avanços tecnológicos,
inclusive
os
direcionados
imediatamente ao âmbito das práticas
educacionais, pois os benefícios
científicos,
utilizados
de
forma
consciente pela estrutura pedagógica,
potencializam
os
resultados
educacionais almejados e favorecem a
aplicação das funções profissionais do
docente. Entre tecnologia e reflexão não
há oposição necessária; em verdade,
ambas trabalham em comunhão pelo
aprimoramento da vida intelectual e do
bem-estar existencial. Para Jayme
Paviani
A reflexão é a atitude mental que se
dispõe a examinar o uso e a
elaboração dos conceitos e dos
enunciados, suas relações entre si e
suas relações com os fatos. A
reflexão crítica, portanto, procura
examinar a origem, a natureza, o
modo de ser e a finalidade do
conhecimento em geral e do
conhecimento
cientifico
especialmente,
enquanto
representação
da
realidade
(PAVIANI, 1987: 24).
A atividade filosófica, mesmo ao refletir
sobre conceitos e problemas analisados
pelos pensadores tradicionais do
passado, favorece uma espécie de
retomada dessas questões no presente,
demonstrando assim a vitalidade
62
extemporânea que perpassa o discurso
filosófico. Pensado na circunscrição do
Ensino Médio, o estudo da Filosofia
direciona o seu enfoque axiológico para
os problemas intelectuais outrora
analisados por outros pensadores;
contudo, tal exercício não significa
repetição
de
um
conceito
já
devidamente cristalizado e superado,
mas acima de tudo a oportunidade de se
recriar intelectualmente, sob novos
olhares, antigos problemas, inclusive
contextualizando-os
com
questões
cruciais
da
nossa
realidade
contemporânea. Nessas condições, o
ensino de Filosofia para jovens auxilia
no esclarecimento de problemas
intelectuais que até então não foram
resolvidos adequadamente pela história
do pensamento filosófico e jamais o
serão.
Direcionando-se
o
olhar
hermenêutico para o legado filosófico
do passado com o enfoque axiológico
do presente, a obra filosófica jamais
perde a sua força expressiva,
apresentando-se como uma instância
imorredoura. Por conseguinte, autores
clássicos são adequadamente estudados
através de recursos técnicos que,
utilizados em prol do esclarecimento
conceitual junto aos estudantes,
enriquecem a carga intelectual dos
debates realizados entre o professor de
Filosofia e seu corpo discente,
incluindo-se em tais recursos filmes,
programas de multimídia, sites de
relevância cultural, dentre outras
possibilidades afins.
Todavia, no âmbito de nosso contínuo
esvaziamento educacional, por mais que
uma instituição de ensino venha a
fornecer uma série de recursos técnicos
que viabilizem o desenvolvimento de
uma atividade discente satisfatória e
propiciadora de um nível razoável de
refletividade em relação aos propósitos
intelectuais do professor, é evidente que
os estudantes, em decorrência do
espírito tecnicista de nossa época,
acabam por sofrer pressões sociais, seja
dos familiares ou do mercado de
trabalho, para que oriente as suas
vocações pessoais para o ingresso em
cursos universitários de forte apelo
mercadológico, em vista de uma
posterior prática profissional que
supostamente garantirá em curto prazo
de tempo o sucesso individual e o tão
sonhado
enriquecimento
material.
“Vivemos em uma época que desejaria
que a Filosofia passasse a ser
considerada como uma relíquia
teológica de um passado superado”
(GADAMER, 1983: 78). Com efeito, se
manifesta
predominantemente
na
mentalidade da sociedade da era
tecnicista uma fabulosa relação de
“pseudo-causalidade” entre carreira
profissional e sucesso econômico, que,
em nível, prático, necessariamente não
ocorre. Acerca dessa questão, Alejandro
Cerletti e Walter Kohan apresentam um
diagnóstico
cultural
de
grande
pertinência:
A intervenção esforçada do
pensamento carece da frescura do
discurso
publicitário
ou
da
vertiginosa imagem do video-clipe.
A filosofia não é sedutora em
nossos tempos. Pelo contrário,
parece um estorvo pouco prático.
Não nos garante a felicidade ou a
solução
rápida
de
nossos
problemas, e sim, muitas vezes,
costuma colocar novas questões,
talvez mais complexas e profundas.
Que sentido tem hoje complicar a
vida quando tudo nos é oferecido
de forma direta e espetacular? O
impacto imediato da imagem torna
obsoleta e aborrecida a intervenção
imediata da reflexão. E, o que é
pior, tudo que não tenha um lucro
imediato termina sendo uma
irremediável perda de tempo
(CERLETTI & KOHAN, 1999: 4647)
63
A dinâmica tecnicista faz com que o
estudante se oriente para esse modelo
mercadológico. Todavia, nesse contexto
ideológico, a seguinte indagação se
torna inevitável, como forma de
compreendermos o niilismo existencial
que gerencia a busca sôfrega pelo
enriquecimento pessoal mediante a
realização de atividades profissionais
“rentáveis”: “De que adianta se escolher
uma determinada carreira profissional
se porventura ela não proporcionar uma
autêntica garantia de felicidade e autorealização pessoal?” Todavia, na atual
conjectura de nossa ordem mundial, isso
de uma forma geral pouco importa para
o estudante, preocupado especialmente
em obter um conhecimento prático que
lhe dê aptidão em exercer as profissões
consideradas
economicamente
lucrativas. Tanto pior, essa indagação
migra para a sala de aula, quando o
estudante, ávido de emoções fortes e
com sua mente doutrinada para a
absorção de fórmulas e conceitos
preestabelecidos,
questiona
a
pertinência do ensino de disciplinas que
favorecem
naturalmente
o
desenvolvimento da consciência crítica
e das técnicas argumentativas. Por
conseguinte, o papel cultural da
Filosofia, nesse contexto, é colocado em
questão:
O pensar sistemático, a reflexão
analítica ou a mera justificativa do
que se afirma têm, atualmente, e
sobretudo na escola, algo de
desvalorizado e arcaico. O espaço
do pensamento foi substituído por
um espaço comum da mídia,
produtora de usuários dóceis e
espectadores passivos (CERLETTI
& KOHAN: 45-46).
A disposição tecnicista e imagética do
sistema pragmatista em que vivemos
deprecia a atividade filosófica por
pretensamente
considerá-la
“desinteressada”, isto é, desvinculada
dos problemas concretos da realidade.
Essa assertiva é uma grande estultícia,
pois a atividade filosófica jamais é
“desinteressada”, e todo pensamento,
toda
tentativa
de
explicar
e
compreender algo, mesmo que em um
âmbito abstrato, demonstra o seu
vínculo com a realidade dinâmica na
qual
estamos
situados.
Todo
pensamento é um valor sobre o mundo,
e para que valoremos sobre algo,
precisamos ser afetados por ele,
circunstância que insere o filósofo no
contexto imanente de sua situação
cotidiana. Aproveitemos os comentários
de Cerletti e Kohan: “A filosofia, como
crítica radical, é a superação da
imobilidade que leva à aceitação
passiva do estado de coisas (CERLETTI
& KOHAN, 1999: 66).
Uma vez que a sociedade tecnicista em
sua
configuração
espetacular
desprivilegia a autêntica autonomia do
indivíduo pensante, substituído pelo
pasteurizado ídolo midiático, pensar se
torna algo enfadonho, um masoquismo
parcelado cotidianamente na dedicação
servil do estudante ao sistema de
ensino. Para Ingrid Müller Xavier, “a
imediatez da imagem suscita e requer
reflexos e reações também imediatos, e
assim ao preterir a reflexão, provoca
uma
transformação
inaudita
de
despotencialização do pensamento”
(XAVIER, 2004: 137). O mundo da
mídia televisiva e informática oferecem
uma miríade de prazeres estéticos que
estimulam o gozo do indivíduo, como
forma dele se destacar do resto da
coletividade, quando em verdade, ele
nada mais é do que uma peça
descartável desse mecanismo ideológico
que impera mediante a supressão do
pensamento reflexivo. Para Adriana
Santos,
Na era eletrônica, não há
possibilidade
de
que
essa
singularidade seja estimulada. A
64
chamada mídia é um processo de
fabricação de ícones e de totens
modernos. Por mais que o comércio
via internet fale diretamente com o
consumidor através do e-mail, ou
seja, da correspondência eletrônica,
é preciso vender para um mercado
global, de gostos e atitudes
padronizadas, e não para indivíduos
com pensamentos e gostos próprios
(SANTOS, 2002: 80).
Conforme
argumentam
Alejandro
Cerletti e Walter Kohan: “Em todos os
tempos, os “para quê” são vistos quase
que exclusivamente sob o prisma da
utilidade imediata, ou da produtividade
mercantil e do benefício econômico”
(CERLETTI & KOHAN, 1999: 99).
Todavia, esse mal-estar cultural pode
ser sanado na medida em que a prática
filosófica na sala de aula se esforce em
compreender
intrinsecamente
os
interesses e as inquietações que
emergem da própria experiência de
vida, para transformar-se em reflexão e
questionamento
dessa
mesma
experiência. Nessas condições, uma
abordagem filosófica do problema do
ensino de Filosofia obriga também,
paralelamente, a tematizar o lugar e a
função do professor de Filosofia como
pensador ativo e promotor da reflexão
partilhada por seus jovens interlocutores
(CERLETTI & KOHAN, 1999: 13-14).
Com efeito, o professor de Filosofia,
comprometido intelectualmente com a
transformação
da
estrutura
da
massificação cultural imperante no
sistema informativo imperante, é uma
espécie de catalisador do exercício de
florescimento do pensamento crítico dos
jovens. Conforme argumenta Paulo
Freire,
Os homens enquanto “seres-emsituação” encontram-se submetidos
em condições espaço-temporais que
influem neles e nas quais eles
igualmente influem. Refletirão
sobre seu caráter de seres situados,
na medida em que sejam desafiados
a atuar (FREIRE, 1979: 33)
Por conseguinte, a problematização
filosófica faz ver ao estudante a sua
situação de integração inexorável nessa
realidade baseada na idolatria de um
modo de vida regido pela ótica da
celebridade, circunstância que, por seu
efeito sedutor sobre a subjetividade
insegura do jovem, exerce sobre ele um
efeito confortante:
A publicidade oferece um indivíduo
seguro,
de
sucesso,
ágil,
rapidamente adaptável às mudanças
e, acima de tudo, contra a
desesperança
e
o
fracasso.
Entretanto, esta imagem quase
caricaturesca do homem triunfante
de nossos dis instalou-se como uma
espécie de ideia reguladora dos
desejos e ambições pessoais da
maioria (CERLETTI & KOHAN,
1999: 58-59)
A nossa sociedade tecnicista, em
decorrência dessa orientação utilitarista
das suas disposições valorativas, abre
mão da busca por uma felicidade
realmente satisfatória, em prol da
concretização de um bem-estar material
imediato, que se revela posteriormente
como um engodo. Isso ocorre, segundo
Jayme Paviani, pelo fato de que
“vivemos momentos de sacralização na
busca de novos mitos, e momentos de
dessacralização, de derrubada de mitos.
Vivemos num constante processo de
inversão de valores” (PAVIANI, 1987:
32). O ensino de Filosofia, nesse
contexto social, se encontra numa
situação polêmica, pois há o preconceito
social de que é uma disciplina que não
serve para “nada”, em decorrência da
suposta utilidade profissional de grande
parte das demais disciplinas oferecidas
na grade curricular de um dado colégio;
mais ainda, por mais que se utilize de
forma
criativa
dos
recursos
tecnológicos, o estudo de Filosofia
65
exige
paciência
e
concentração
psíquica, qualidades cada vez mais raras
em nossa ordem social de agitação
mental. Conforme apontam Eugênio
Bucci e Maria Rita Kehl: “Vivemos
numa sociedade que nos demanda uma
atividade contínua, ainda que vazia. Em
vez de reflexão, contemplação e dúvida,
o sujeito é compelido a agir,
respondendo a uma demanda do Outro”
(BUCCI & KEHL, 2009: 100)
É inadequado pensar que a filosofia se
diferencia das demais disciplinas por
propor uma espécie de compreensão
ontológica e valorativa sobre o mundo,
valorizando em especial as capacidades
cognitivas do estudante de uma forma
distinta do método universalista
aplicado para avaliar disciplinas
“objetivas”; todavia, é fato que o seu
eixo axiológico é distinto dos
concernentes
aos
parâmetros
pedagógicos da Matemática ou da
Física, por exemplo. Curiosamente,
existem mais convergências conceituais
entre Filosofia, Matemática e Física do
que poderia supor a vã mentalidade
obtusa do espírito tecnocrático, que
retira das disciplinas apenas as suas
fórmulas gerais, sem se preocupar em
compreender
as
motivações
genuinamente filosóficas que moveram
os criadores dessas teorias em seus
respectivos processos de elaboração
intelectual. O tecnicismo educacional
privilegia as disciplinas ditas “exatas”
como as instâncias diretrizes do sucesso
estudantil do jovem, colocando as
disciplinas “humanas” em uma esfera
pedagógica inferior. Todavia, o fato de
haver essa exaltação burocrática da
Matemática, Física, Química ou
Biologia não significa necessariamente
que elas exerçam grande poder de
encantamento sobre as disposições
intelectuais dos estudantes, que não
raramente expressam a opinião de que
tais conteúdos pedagógicos não são
intelectualmente aprazíveis, justamente
pela metodologia de ensino na qual
essas disciplinas são transmitidas; no
entanto, por uma necessidade de
adequação ao jogo insano dos cursos de
vestibular, a grande massa de estudantes
se encontra diante da obrigação de
direcionar
as
suas
capacidades
intelectuais para o estudo exaustivo e
acrítico
essas
disciplinas
que,
estatisticamente, são as determinantes
na aprovação dos candidatos dos
principais exames de vestibular do
sistema de ensino brasileiro. Nesse
contexto, somente é efetivamente “útil”
o
conhecimento
cujo
conteúdo
programático cai no vestibular. A
“verdade” só existe se ela fizer parte do
vestibular, caso contrário pode ser
sumariamente descartada da vida do
estudante. Para Cerletti e Kohan
Somente aquele que pode refletir
ativamente sobre sua prática estará
em condições de transcender os
padrões
de
execução
e
implementação
burocratizados,
utilizando formas pedagógicas que
tratem os estudantes como agentes
críticos capazes de questionar a
legitimidade de um fato ou de
uma argumentação, propondo e
trabalhando seus problemas e
interesses a partir do diálogo e do
intercâmbio reflexivo (CERLETTI
& KOHAN, 1999: 31).
Em decorrência das transformações dos
paradigmas da educação nacional nas
ultimas décadas, percebe-se cada vez
mais o ensino dos jovens como uma
atividade “informativa”, e não de fato
“formativa” e educativa. Por “sistema
informativo” entendemos o método
pedagógico que não desenvolve as
capacidades críticas e reflexivas do
estudante, mas faz deste apenas um
receptáculo de conteúdos pedagógicos
intelectualmente fragmentados. Essa
produção pseudo-cultural “degenerada”,
66
portanto,
não
propunha
o
desenvolvimento
do
pensamento
consistente, afirmativo, pautando-se tão
somente na enunciação de vagas
opiniões, inconsistentes “pontos de
vista” (NIETZSCHE, 2003: 54).
Transportando tal distorção pedagógica
para a massificação do sistema de
ensino na era tecnocrática, poderíamos
afirmar que tal mecanismo se trata do
modelo “educacional” denominado por
Paulo Freire como concepção bancária
da educação: “Na visão ‘bancária’ da
educação, o “saber” é uma doação dos
que se julgam sábios aos que julgam
nada saber” (FREIRE, 1980: 67).
Por sua vez, compreendemos a
“formação cultural” como o processo de
aprendizado que engloba a disposição
cognitiva do estudante não em sua
matriz pedagógica de adequação a um
sistema heterônomo de ensino, mas
como uma dinâmica existencial na qual
ele é capaz de significar singularmente
os conteúdos pedagógicos adquiridos,
utilizando-os não para uma realização
imediatista em sua vida estudantil, seja
a aprovação no ano letivo ou no exame
de vestibular, mas na sua própria
existência. A reflexão sobre os
conteúdos pedagógicos transmitidos em
sala de aula permite que tanto o
professor como o estudante repensem
criticamente os seus papéis sociais,
enriquecendo-se mutuamente as suas
respectivas visões de mundo mediante a
comunhão existencial, relação de
confiança entre as duas partes de um
grande todo que é a relação professorestudante, ambos “educandos”. Nesse
contexto, cabe ao professor a
capacidade “de problematizar aos
educandos o conteúdo que os mediatiza,
e não a de discutir sobre ele, de dá-lo,
de entendê-lo, de entregá-lo, como se
tratasse de algo já feito, elaborado,
acabado, terminado” (FREIRE, 1977:
81)
No entanto, no ideário tecnocrático de
nossa sociedade, o cultivo de uma
genuína formação pessoal e intelectual,
processo que exige disciplina, respeito
pela singularidade individual do
estudante e paciência, cedeu lugar a
uma necessidade urgente de transmissão
de conteúdos, sem que o estudante
tenha a capacidade psíquica de assimilar
adequadamente
a
quantidade
vertiginosa
tais
informações.
Ressaltemos que de modo algum é
surpreendente pensarmos no fato de que
a escola, o espaço cultural no qual
deveria se proporcionar o aprendizado
intelectual e também a reflexão sobre o
papel social do estudante enquanto ser
pensante capaz de pensar criticamente a
infra-estrutura constituinte do seu meio
cotidiano se torna um aparato
ideológico de controle da subjetividade
humana; tal circunstância suprime a
autonomia
da
singularidade
do
estudante em prol da formatação de um
grupo de indivíduos disponíveis para a
realização
de
funções
práticas
verticalmente estabelecidas pelo sistema
burocrático da sociedade. “Toda
formação social, para existir, ao mesmo
tempo que produz, e para poder
produzir, deve reproduzir as condições
de sua produção” (ALTHUSSER, 1985:
54) Por esse motivo, Althusser
67
considera a estrutura simbólica da
Escola como exemplo de “Aparelho
Ideológico de Estado” (ALTHUSSER,
1985: 68). Com efeito, a estrutura do
estabelecimento de ensino não é
ideologicamente neutra, um sacrário no
qual o “saber puro” é transmitido para a
classe de estudantes, mas antes
representa um jogo de poder que
satisfaz a manutenção da ordem
vigente:
A escola (mas também outras
instituições do Estado, como a
Igreja e outros aparelhos como o
Exército) ensina o know-how mas
sob forma que assegurem a
submissão à ideologia dominante,
ou o domínio de sua “prática”
(ALTHUSSER, 1985: 58).
Esse processo de submissão aos
parâmetros normativos da estrutura
educacional que exige de cada pessoa a
contínua retenção de novas informações
cotidianamente recebidas gera uma
curiosa “especialização máxima do
mínimo”, pois o indivíduo, no decorrer
do processo de instrumentalização
estudantil e profissional, encontra-se na
necessidade de, acima de tudo, conhecer
os detalhes de seu ofício ou ocupação,
tornando-se o melhor nesse ramo, ainda
que perca, todavia, a visão global de seu
legado intelectual. Segundo Paulo
Freire, “A especialização necessária
transforma-se
em
especialismo
alienante” (FREIRE, 1979: 93). Nesse
contexto, o excesso de informações
disponibilizadas
pelos
aparatos
tecnológicos
não
favoreceu
o
esclarecimento da sociedade, mas a
manutenção de sua alienação existencial
e cultural. Aponta criticamente Adriana
Santos: “A enorme quantidade de
informações disponíveis àqueles que
têm acesso aos meios eletrônicos irá, ao
invés de mobilizar-nos para uma
atuação mais freqüente e segura como
cidadãos, anestesiam-nos para
realidade” (SANTOS, 2002: 92).
a
A saturação de conteúdos pedagógicos
promovida pela sociedade tecnicista
revela o uso inadequado de seus
instrumentos técnicos, pois se evidencia
claramente que não é o acúmulo de
informações que tornam um indivíduo
mais cultivado ou apto para a realização
competente de funções técnicas, mas a
capacidade de refletir sobre a influência
desses saberes em sua subjetividade. A
grande questão é que os parâmetros
normativos da sociedade tecnicista se
esforçam por manter infinitamente esse
projeto de alienação cultural pelo
excesso de informações, o que soa
como um surpreendente paradoxo.
Nunca talvez a humanidade tenha
obtido acesso a tantos conteúdos
informativos, mas a ausência de um
princípio de seletividade imergiu o
indivíduo da sociedade tecnicista na
anarquia informacional. Para Paulo
Freire,
Quanto mais se exercitem os
educandos no arquivamento dos
depósitos que lhes são feitos, tanto
menos desenvolverão em si a
consciência crítica de que resultaria
a sua inserção no mundo, como
transformadores
dele.
Como
sujeitos [...]. Na medida em que
essa ‘ visão bancária’ anula o poder
criador dos educandos ou o
minimiza,
estimulando
sua
ingenuidade e não sua criticidade
satisfaz
aos
interesses
dos
opressores (FREIRE, 1980: 68-69).
Tanto pior, o sistema educacional
desenvolve o seu processo informativo
de maneira homogênea e universal, na
qual todos os estudantes devem se
adequar aos critérios e mecanismos
pedagógicos previamente estabelecidos,
pois a violação desse sistema acarreta o
fracasso estudantil do jovem, seja a sua
reprovação escolar ou a sua não68
admissão no ensino universitário de
fomento público. Nessas condições, a
educação dos jovens se torna meio para
a realização de um fim pragmático, e
não um instrumento de cultivo da
cidadania e do desvelar do seu
verdadeiro potencial humano. “A
redução do saber e da experiência do
mundo ao simples conhecimento
controlado e estratificado tende a
eliminar a realidade cultural do
estudante em favor de uma cultura
imposta” (PAVIANI, 1987: 49). Uma
educação que, ao invés de auxiliar no
processo de formação do ser humano, se
torna mera informação. Criticando esse
modelo tecnicista da educação, Paulo
Freire dirá que
Quanto mais vá “enchendo” os
recipientes com seus “depósitos”,
tanto melhor educador será. Quanto
mais se deixem docilmente
“encher”, tanto melhores educandos
serão. Dessa maneira, a educação se
torna um ato de depósito, em que os
educandos são os depositários e o
educador o depositante (FREIRE,
1980: 66)
A Filosofia, inserida no ambiente
educacional de nossa sociedade
burocratizada que se utiliza de um
aparato socioeconômico que requer a
reificação do indivíduo, serve como
instrumento de reflexão sobre os rumos
existenciais pelos quais a nossa
sociedade optou seguir em sua
configuração tecnicista, dissecando as
nuances ideológicas que determinaram
cada vez mais o empobrecimento
pessoal da capacidade crítica do
estudante diante da lógica de mercado e
da esperança de sucesso imediato em
sua carreira profissional. Pelo fato de
proporcionar uma genuína reflexão
sobre o aprendizado e seu sentido
intelectual e existencial, sem dúvida a
atividade
filosófica
causa
estranhamento nos dispositivos sociais
que justamente prosperam mediante a
perpetuação da mediocridade humana,
decorrendo daí uma série de medidas
institucionais
para
prejudicar
a
adequada transmissão dos conteúdos
didáticos de Filosofia. Para Nietzsche,
Em todo lugar onde houve
poderosas sociedades, governos,
religiões, opiniões públicas, em
suma, em todo lugar onde houve
tirania, execrou-se o filósofo
solitário, pois a filosofia oferece ao
homem um asilo onde nenhum
tirano pode penetrar. A caverna da
interioridade, o labirinto do
coração: e isto deixa enfurecido os
tiranos (NIETZSCHE, 2003: 154).
A atividade filosófica, apesar de
tripudiada pela ideologia mercadológica
que preconiza a aceleração máxima do
tempo, associada, todavia, ao máximo
de informações técnicas úteis para a
melhor dominação prática da realidade,
é um exercício de superação existencial
e cultural do projeto material que a
sociedade tecnocrática optou viver,
alienada de si mesma e diluída no seu
próprio vazio simbólico e em sua
ausência de perspectivas existenciais
movidas pela criatividade e pelo projeto
de transformação social. Mesmo os
problemas que estão em voga no
cenário filosófico contemporâneo, como
a legalidade do aborto, da eutanásia, da
clonagem de seres vivos, da natureza
política do Estado, das funções
cognitivas da mente humana, do
relativismo de valores, dentre muitos
outros temas, encontram uma valiosa
ressonância nas obras dos autores
tradicionais,
estabelecendo-se
um
dialogo contínuo entre as nossas
urgências existenciais atuais e os
problemas intelectuais já registrados no
passado. Essa é a principal motivação
que leva a sociedade tecnocrática a
depreciar o exercício reflexivo como
recurso transformador e criador da
69
estrutura cultural na qual estamos
situados, pois a Filosofia enquanto
processo intelectual e debate de ideias,
apesar das suas múltiplas orientações
axiológicas, prima acima de tudo pela
conscientização
dos
indivíduos,
tornando-os pessoas autônomas na vida
prática. Cabe a tal ordem de mundo a
sentença sábia de Sócrates diante dos
seus acusadores: “Uma vida sem exame
não vale a pena ser vivida (PLATÃO.
Apologia de Sócrates, 38a)
Referências
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos
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