Os gregos inventaram tudo Entrevista com o historiador Jean-Pierre Vernant Foi na Grécia de Homero que surgiu uma maneira até então desconhecida de fazer política: o rei deixou de ser onipotente e seu poder foi paulatinamente partilhado e disputado entre os cidadãos. Era o início de um fenômeno que se consolidaria a partir do século 6º a.C., na Atenas de Sólon e Clístenes, e que se tornaria um dos fundamentos da civilização ocidental: a democracia. Com a democracia, a Grécia inventou também a tragédia e a filosofia, tornando-se, nas palavras do historiador Jean-Pierre Vernant, o “mundo de onde viemos”. “Claro, tudo mudou desde então, o espaço, o tempo, a autoconsciência, a memória, as formas de raciocínio... Mas é o homem grego que está na origem dessa espetacular evolução”, diz Vernant, uma das maiores autoridades em Antiguidade clássica, na entrevista a seguir. É possível falar de um milagre grego, dizer que na Atenas clássica do século 5º ou 4º a.C. todo o Ocidente foi inventado. O senhor concorda com essa idéia? Vernant - Acredito, de fato, que os gregos em grande parte nos inventaram. Sobretudo ao definir um tipo de vida coletiva, um tipo de atitude religiosa e também uma forma de pensamento, de inteligência, de técnicas intelectuais, de que lhes somos em grande parte devedores. A história do Ocidente começa com eles. E mais, eles transmitiram seus métodos e seu conteúdo de pensamento, na época helenística, ao Oriente Médio e à Índia. Foi, aliás, por intermédio da cultura árabe que a Grécia sobreviveu a si mesma na Idade Média, antes de ser redescoberta pela 2 Europa. Como se vê, o caudal do helenismo seguiu todo tipo de meandros, mas ressurgiu, periodicamente. Para começar, os gregos inventaram a política e a democracia? Vernant - Certamente que sim, eles inventaram uma e outra. A partir do século 7º a.C., vemos surgir na Grécia um comportamento social, práticas institucionais que constituem, na verdade, o que podemos chamar de o nascimento da política. Em todas as grandes civilizações que precederam a civilização grega, e de que ela foi tributária (assírio-babilônica, egípcia, fenícia, cretense), não se tinha visto nada comparável. Os chamados dóricos, isto é, indoeuropeus que, na aurora do 2º milênio a.C., instalaram-se na Grécia continental vindos talvez do Cáucaso, impregnaram-se da cultura de civilizações mais avançadas, em particular a dos cretenses. Eles nos deixaram toda uma série de inscrições: arquivos palacianos que nos permitem abarcar o que era a Grécia entre 1450 e 1200 a.C., uma Grécia de monarquias que, em certos aspectos, lembrava os reinos orientais; o rei, “anax”, controla o conjunto da vida social, econômica e mesmo religiosa, ao que parece. Nos registros contábeis da realeza, vê-se que as doações, a hierarquia e organização militares, tudo passa por ele: são necessárias tantas carroças, tantas rodas de carroça, tantos cavalos... Esse período micênico deu lugar ao que chamamos de os séculos obscuros: os reinos desaparecem, a escrita também, 3 os contatos com o Oriente, a densidade demográfica e a superfície cultivada diminuem. E depois o comércio retorna, lá pelo século 9º a.C. O que aparece então, e dessa vez o sabemos, afora os documentos arqueológicos, graças à época homérica, à “Ilíada” e à “Odisséia” (difícil datar, pois se trata de uma tradição oral que remonta talvez a 1250 a.C., mas cujo texto só foi fixado no século 6º a.C.), é um mundo marcado por uma nova maneira de considerar o poder. O que ocorre? Vernant - Pode-se dizer, para resumir as coisas, que nesse mundo mediterrâneo o rei cumpre um papel essencial. Ele tem em si algo de divino, ele é o intermediário entre os deuses e os homens. O grupo humano se encontra, em relação ao poder, à soberania, numa situação de inferioridade, de submissão e de obediência: a palavra do rei, sua decisão, os meios militares de que ele dispõe são incomensuráveis ao cotidiano de seus súditos. O que vemos surgir na Grécia, nesse contexto? Algo de totalmente novo: a idéia de que só existe sociedade humana digna desse nome se essa soberania de valor quase religioso se achar despersonalizada e, para falar como os gregos, situada no centro, ou seja, se ela se tornar uma coisa comum. Só pode haver vida social se todos os membros de uma comunidade tiverem direitos iguais para gerir os interesses comuns - o que é também um modo de instaurar uma diferença entre o público e o privado. 4 O que define o espaço público? Vernant - O fato, justamente, de não ser submetido à autoridade de nenhum mestre, de não abrir espaço a um poder despótico. Assim, em Homero, a palavra “anax”, que no mundo micênico designava um soberano organizador do universo, uma palavra de acepção absoluta, é banalizada: “anax”, em Homero, significa “senhor”, e não tem peso maior que o nosso “senhor” de hoje. Em contrapartida, aparece um termo técnico para designar o rei, “basileus”. Ora, esse “basileus” não é mais um absoluto, é dotado de um relativo e de um superlativo: “basileuteros”, mais rei, para dizer, por exemplo, “eu sou mais rei que você”, e “basileutatos”, rei dos reis, “o mais rei de todos” - Agamêmnon. Em outras palavras, nesse mundo de aristocracia guerreira, todos os príncipes ostentam o título de “basileus” e já desponta a idéia de que, para as grandes decisões, a serem tomadas no curso de uma guerra, é preciso reunir o conjunto do exército: o exército faz círculo, e todos avançam por etapas, empunhando o “skeptron” muito menos o signo pessoal de um poder que o signo social que lhe confere o direito de falar, os “aristoi”, os melhores, os chefes, aqueles que mostraram possuir as qualidades de coragem, de energia, de honra: esses podem dizer tudo o que pensam. Eles não demonstram nenhuma deferência ao rei? Vernant - Aquiles trata Agamêmnon como o último dos 5 últimos, na frente de todo o mundo: “Tu és um covarde, um ordinário, o que eu tenho a ver contigo?”. Seria impensável dirigir-se nesses termos ao rei dos reis assírio ou ao faraó egípcio. Você os imaginaria insultados em praça pública por tipos que os chamam de todos os nomes? Esse comportamento originará mais tarde o que se chamará “isegoria”, o direito igualitário à palavra. É na verdade uma revolução, uma atitude radicalmente diversa no trato com a realeza, com a “monarchia”, o poder de um só. Os “aristoi” consideram que não existe nenhuma instância exterior que possa exercer sobre eles algum poder. E de onde lhes vem essa mentalidade “revolucionária”? Vernant – Como vamos saber?! Na origem, nos povos indo-europeus, o poder real é pensado em moldes pastoris: o rei é o pastor de seu povo. Ele alimenta seu rebanho, mas também lhes impõe o açoite, a canga. Isso ainda é perceptível na “Teogonia” de Hesíodo, que pertence ao mesmo substrato cultural, em que se pode ler uma tentativa de justificar teologicamente, eticamente, os poderes excepcionais do rei: se o rei é bom, justo, a terra será fértil, as mulheres terão bons filhos, não haverá guerras... Em ruptura com essa ideologia, os “aristoi” sustentam, segundo a fórmula que se encontra em todos os textos, que é preciso “depositar o poder no centro”. Isso tem algum significado concreto? 6 Vernant - Os que estão na periferia se acham todos a igual distância do centro, e, estando o poder localizado no centro, ninguém lhe põe as mãos. Essa idéia abstrata ganha corpo na arquitetura: desde essa época, a praça pública situa-se nas cidades gregas ao lado da acrópole, onde se erguem os templos – o espaço dos deuses –, e de outros espaços comunitários, como o estádio, a escola, os banhos... Quando os gregos, a partir do século 8º a.C., começam a fundar colônias no estrangeiro, a primeira coisa que fazem é abrir espaço, no centro, para que se possa construir, não um palácio, não uma simples habitação privada, mas o espaço público. Esta é a invenção da política. O que ocorre nesse espaço público? É lá que se debatem os assuntos da cidade – tal como os melhores guerreiros, diante do exército – as decisões a tomar? Vernant - Sim. Pouco a pouco, todos os assuntos de interesse público e comum são regulados dessa maneira, sob a vista de todos. O que muda são os argumentos e contraargumentos. Há um jogo de demonstração, de persuasão, uma arte da palavra que lá se aprende. O poder retórico de convicção torna-se uma das engrenagens decisivas para o funcionamento da sociedade. Essa é também uma mudança fabulosa: o rei sempre tivera conselheiros com quem discutir, mas isso não tinha nada a ver com o debate público e contraditório. E o poder se acha, ao final desse debate, dessacralizado. Não digo que a religião esteja ausente da discussão; está presente, mas sob outras formas, não se 7 encontra mais no centro. Não se obedece ao rei porque seja rei; segue-se a “melhor opinião”, a mais convincente. No que tange ao futuro da cidade, a decisão de fazer a guerra ou declarar a paz, o modo de repartição das terras, a escolha de colonizar ou não esta ou aquela terra estrangeira, tudo o que representa o destino do grupo será arbitrado segundo uma lógica racional. Tudo isso antes do século 5º a.C.? Vernant - Sim, mesmo nas constituições arcaicas do século 7º a.C. há uma “boulé”, uma assembléia do povo, que delibera sobre o “cratos”, o poder, para fazer isso ou aquilo. Mas não se trata de uma democracia, senão de uma aristocracia guerreira. O que ocorre em seguida? A partir do século 6º a.C., em Atenas, esse grupo restrito de eleitos que tem o direito à palavra na assembléia amplia-se com as reformas de Sólon e sobretudo as de Clístenes: vemos surgir então a idéia de que todos os que nasceram atenienses, os cidadãos, têm direitos iguais de participar na coisa política. Daí ser preciso inventar – o que faz Clístenes – meios institucionais para conferir aos habitantes da Ática o sentimento de que constituem uma comunidade, e que em turnos sucessivos todos os membros dessa comunidade podem em princípio ocupar “o centro”, a praça e as magistraturas que representam o “cratos”. Dali em diante, esse poder soberano é qualificado de “nomos”, de regra, de lei. Isso não quer dizer que não haja desigualdades, que 8 certas famílias não tenham um papel privilegiado; o mesmo movimento que une os cidadãos os desune, porque, se é no centro que tudo se regula, ao termo de uma votação, haverá necessariamente uma maioria e uma minoria, e a minoria se achará submetida a um “cratos”: o da maioria. Na democracia existe ao mesmo tempo “demos”, o conjunto da população, inclusive sua parte mais pobre, e “cratos”, o poder arbitrário e soberano. A democracia, de uma certa maneira, é a utilização de um sistema por alguns, os mais numerosos e menos favorecidos, para obter vantagens daqueles que os gregos chamam os melhores, os mais ricos. Na prática, encontramos mesmo assim um equilíbrio: a reivindicação extrema, a da partilha das terras, não será jamais realizada em Atenas. Contudo, não se deve cair numa visão idealizada das coisas: a democracia é o perigo permanente da guerra civil. Some-se a isso o fato de que as mulheres se acham excluídas da vida comunitária, mais ainda do que antes: o status da mulher parece, na epopéia homérica ou na poesia arcaica, mais favorável que na Atenas democrática. A maior virtude de uma mulher, diz Péricles, é saber se calar. Numa civilização da palavra, obviamente, isso não é lá muito gratificante. Algumas palavras, enfim, sobre a escravidão: quando fazemos esse grande progresso que consiste em dizer que só é na verdade homem quem participa dos assuntos comuns, o cidadão livre (por conseguinte, os persas ou os egípcios, sejam quais forem suas imensas qualidades, não são na verdade homens no espírito grego; só é na verdade 9 homem o habitante da Grécia, ainda que do mais remoto dos rincões, onde prevalece o sistema das cidades, da polis), estabelece-se ao mesmo tempo que aqueles que são excluídos não são na verdade “homens”. Os escravos, com isso, são excluídos da humanidade: Platão ou Aristóteles se perguntam com toda candura sobre a sua natureza - em Esparta a coisa é diferente, os hilotas lembram antes o que chamaríamos de servos, eles estão presos à terra, excluídos do funcionamento político, certamente, mas não da humanidade: na hierarquia social, eles ocupam o estágio inferior, ao passo que, no sistema democrático, nem sequer os vemos, eles estão completamente de fora. O senhor mencionou Platão, Aristóteles... O que foi inventado no curso desse século 5º ateniense não foi somente a política, mas também uma reflexão sobre a política: a filosofia, não é verdade? Vernant - A política se torna, de fato, objeto de reflexão teórica. Qual é a melhor constituição? Por que tal tipo de geografia engendra tal tipo de governo? Por que a Grécia encarna o melhor regime? Essas são as perguntas que se fazem. Vemos surgir também uma crítica política bastante virulenta - os panfletos aristocráticos contra a democracia, atribuídos a Xenofonte. E de outro lado as utopias: filósofos como Platão imaginam um sistema diverso, o da cidade ideal, que Aristóteles também tentará definir. Em suma, a partir do instante em que, na vida comum, o debate e a argumentação se tornam elementos fundamentais, as técnicas de persuasão 10 Gracias por visitar este Libro Electrónico Puedes leer la versión completa de este libro electrónico en diferentes formatos: HTML(Gratis / Disponible a todos los usuarios) PDF / TXT(Disponible a miembros V.I.P. Los miembros con una membresía básica pueden acceder hasta 5 libros electrónicos en formato PDF/TXT durante el mes.) Epub y Mobipocket (Exclusivos para miembros V.I.P.) Para descargar este libro completo, tan solo seleccione el formato deseado, abajo: