Resumos do 56º Congresso Nacional de Botânica. Invasões biológicas marinhas: o problema, conceitos, e mecanismos de invasão de algas. LUCIANO FELÍCIO FERNANDES – UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LUIS A. O. PROENÇA - UNIVALI, ITAJAÍ, SC. [email protected] A invasão de organismos aquáticos tem provocado danos ambientais e sócioeconômicos em vários sistemas marinhos, lacustres e fluviais em todo o planeta (Carlton & Geller, 1993). Após sua instalação, as espécies invasoras podem causar impactos complexos em diferentes compartimentos do ecossistema, alterando a integridade das comunidades naturais e causando conseqüências evolutivas para as espécies residentes, como exclusão da área geográfica natural, extinção e ou hibridização (Grosholz, 2002). Elas interferem nas relações tróficas da teia alimentar, competem com espécies nativas por espaço e alimentação e podem introduzir substâncias tóxicas ou doenças que afetam os organismos residentes e as populações humanas. A ausência de predadores, a capacidade de adaptação tanto ecológica, como fisiológica das espécies exóticas às variações ambientais e o grau de perturbação do ecossistema estão entre os fatores que contribuem para seu sucesso no novo habitat (Ruiz et al. 1997). O transporte de plantas e animais através da água de lastro de navios representa um vetor significativo de invasão de espécies exóticas. Este fenômeno, que teve seu início a partir da utilização da água como lastro, tem atingido proporções alarmantes à medida que os navios tornaram-se mais numerosos, velozes e com maior volume de casco e carga, necessitando de maior lastramento. Alguns destes organismos sobrevivem por dias ou meses, em muitos casos podendo formar células de resistência. Microalgas nocivas tem sido encontradas nos tanques de lastro de navios, algumas invadindo com sucesso áreas de cultivos de invertebrados, causando graves prejuízos econômicos e ao turismo. Animais planctônicos introduzidos pela água de lastro têm causado a eliminação de elementos nativos da fauna, com a conseqüente desestruturação das cadeias produtivas da pesca regional. Já foram encontrados em águas de tanques de lastro mais de 30 milhões de organismos zooplanctônicos. Além disto, invertebrados bênticos e peixes invadem outros ecossistemas principalmente através da veiculação de suas larvas planctônicas pela água de lastro. O bivalve mexilhão dourado (Limnoperna fortunei), Indo-Pacífico, invadiu o sul e centro-oeste do Brasil a partir da Argentina e Porto Alegre, causando graves problemas nas usinas hidroelétricas, estações de captação de água, à navegação pluvial e aos ecossistemas. Na Baía de Paranaguá, os efeitos deste fenômeno já são percebidos na forma de florações de algas exóticas nocivas e alterações na teia trófica pelágica, com prejuízos à pesca e cultivos comerciais. Nesta conferência serão discutidos os principais mecanismos de invasão de algas no ambiente marinho, especialmente através da água de lastro de navios. Os outros métodos de introdução serão abordados na conferência do Dr. Gilberto Amado Filho. Alguns termos importantes e freqüentemente aplicados de modo inapropriado também serão comentados, como espécie exótica, nativa, invasora, criptogênica, etc. Poucos organismos resistem à viagem de navio de um porto a outro, incluindo as algas (Carlton, 1985). Entretanto, algumas algas estão aptas a sobreviver nos Resumos do 56º Congresso Nacional de Botânica. tanques de lastro ou porões de carga de navios por vários dias e/ou a formar células de resistência. Em um trabalho recente, McCarthy & Crowder (2000) encontraram um total de 342 espécies nos nove navios amostrados e, em um único navio, 145 morfoespécies. Estes resultados apontam que o número de espécies viáveis de microalgas em águas de lastro tem sido subestimado em virtude, por exemplo, da metodologia amostral, conforme estudos anteriores. No entanto, ressalta-se que o conceito de viável tem sido revisto, uma vez que este depende muito das condições do ambiente e do organismo. Da mesma forma que as microalgas do plâncton, as algas macroscópicas bênticas também são invasoras potenciais eficientes. Algumas podem produzir diásporos planctônicos que resistem às condições específicas dos tanques de lastro, ou serem transportadas em casco de navios, ou ainda, introduzidas a partir de atividades humanas. Embora sua introdução tenha ocorrido por outro meio, diferente de água de lastro, a clorófita Caulerpa taxifolia (Bryopsidophyceae) é um exemplo marcante dos efeitos drásticos sobre o ecossistema que uma espécie invasora pode causar. Na década de 90 ela invadiu o Mar Mediterrâneo a partir da lavagem de aquários, crescendo rapidamente através de estolões, formando denso tapete no fundo marinho. Sua elevada biomassa sufoca os pólipos de recifes de coral e, ao ser decomposta, causa depleção de oxigênio e aumento da turbidez, excluindo as espécies de algas e corais hermatípicos, que preferem águas claras (Occipinti-Ambrogi & Savini, 2003). Os efeitos mais importantes associados à invasão de uma alga potencialmente nociva são: a. diminuição do valor hedônico de um recurso turístico (prais, ilhas, etc) devido ao crescimento intensivo de microalgas (florações) que causam alterações nas propriedades organolépticas da água, e podem causar alergias e outras irritações b. contaminação de invertebrados e peixes de valor comercial com ficotoxinas produzidas por microalgas, utilizadas como alimento por aqueles organismos, os quais serão consumidos por populações humanas c. depleção de oxigênio e conseqüente mortandade de organismos marinhos, afetando o ecossistema marinho e áreas de cultivo e de pesca d. substituição de espécies nativas abundantes no ambiente de destino, causando desequilíbrios na teia trófica e. mortandade de peixes causadas pela produção de setas e espinhos que irritam as brânquias e mucosas de peixes. Algumas características biológicas da espécie que a tornam um invasor potencial estão sumarizadas na Tabela I (Proença & Fernandes, 2004). Além disso, a introdução de uma microalga é mediada (1) por características ambientais (temperatura, salinidade, nutrientes, biodiversidade) específicas da região doadora (ou de origem) e da região receptora (ou destino) das espécies invasoras, (2) pelos mecanismos de transporte das espécies de uma região para outra e (3) pelos eventos meramente aleatórios que regulam a inoculação de uma espécie, desde sua captura na região de origem até sua liberação no ambiente de destino (Carlton, 1996). Os cenários que facilitam ou impedem o transporte e posterior estabelecimento de organismos invasores, aplicáveis também à algas, foram discutidos por Carlton (1996) e Hallegraeff (1998). Um cenário envolve alterações ambientais na região de origem, conduzindo ao aumento populacional de espécies residentes, sejam nativas ou exóticas e expansão da distribuição geográfica da espécie. Estas alterações, distribuídas aleatoriamente em um estuário ou baía, disponibilizam maior número de células para transporte, ou seja, aumentam as Resumos do 56º Congresso Nacional de Botânica. chances de que um número razoável de células (inóculo crítico) seja bombeado para os tanques de lastro de navios, criando condições para a reprodução e dispersão no ambiente receptor após sua introdução (v. Tabela I). Além da quantidade, outras condições relacionadas aos propágulos também regulam o processo de invasão, tais como a freqüência e duração da inoculação no ambiente receptor, origem dos propágulos (implicando em genótipos diferentes), viabilidade fisiológica, permitindo ou não a germinação/crescimento das células, taxa de sobrevivência após o choque mecânico promovido pelo processo de lastramento do navio (Hallegraeff, 1998) e características ambientais da região receptora (Ruiz et al., 2000). Novas regiões doadoras também podem surgir, fornecendo novas espécies e genomas passíveis de transporte. Do mesmo modo, alterações nas condições ambientais da região receptora irão torná-la mais ou menos susceptível à invasão biológica. De especial importância para os estudos sobre introdução de microalgas nocivas são os ambientes submetidos ao processo de eutrofização (Hallegraeff, 1995). Espécies que não se adaptariam ao ambiente pré-eutrofização, podem encontrar condições favoráveis no ambiente impactado. Outras atividades antrópicas também podem causar instabilidade populacional de espécies nativas abundantes no ecossistema receptor, facilitando a instalação de espécies invasoras. Por exemplo, o aumento na distribuição geográfica da macroalga Caulerpa spp. no Mar Mediterrâneo tem sido facilitado pela retração dos bancos da angiosperma marinha nativa Posidonia oceanica, causada tanto por distúrbios naturais como antropogênicos, e terminando por deixar “nichos vazios” disponíveis à ocupação por Caulerpa (Occipinti-Ambrogi & Savini, 2003). Um último cenário poderia desenvolver-se na região receptora, quando as condições ambientais necessárias à invasão inicial e ao posterior estabelecimento de uma espécie ocorrem simultaneamente, ou seja, no mesmo local e ao mesmo tempo, então se abre uma "janela de invasão", determinando maior possibilidade de sucesso para a alga introduzida. Finalmente, as características dos vetores de transporte (tanques de lastro e cascos de navios, água de cultivos marinhos e de aquários ornamentais) de microalgas de uma região doadora para a receptora também podem determinar o êxito de uma espécie invasora (Carlton, 1985; 1996). Tomando-se como exemplo os tanques de lastro de navios, é fundamental que sejam registrados dados como a capacidade total, o volume de água lastrada e deslastrada em diferentes portos, a duração de viagem do navio influenciando na sobrevivência das células e na formação de estruturas de resistência (Hallegraeff, 1998), e a ocorrência de lastramento/deslastro em regiões sensíveis à invasão ou regiões críticas, portadoras de espécies nocivas com potencial de formar florações. Estes dados permitirão estimar a diversidade específica na água de lastro, a densidade celular de inóculos (células vegetativas e/ou de resistência) aptos a sobreviver na região receptora e identificar as espécies nocivas, parâmetros importantes em todas as fases de invasão de uma espécie. Por sua vez, os parâmetros mencionados constituem ferramenta relevante para a elaboração de planos de gestão portuária e ambiental. Da mesma forma, permitem análises de risco mais realistas, especialmente se considerarmos que cada porto situa-se em um ambiente específico e recebe para carga e descarga navios de diferentes países e latitudes, realizando planos distintos de manejo do lastro a bordo. Algumas dificuldades para o sucesso destas análises de risco são a carência de dados ambientais básicos, como levantamentos de biotas marinhas discriminando espécies nocivas, exóticas ou criptogênicas, características físicas e químicas da água e a deficiência dos registros sobre movimentação dos navios e cargas nos Resumos do 56º Congresso Nacional de Botânica. portos. A falta de caracterização ambiental (parâmetros bióticos e abióticos), tanto das zonas doadoras como receptoras, também prejudica estudos comparativos entre diferentes ecossistemas costeiros para avaliação de risco ambiental e susceptibilidade à invasão por espécies exóticas. Além disso, a simples operação de bombeamento de água pelos navios nos portos envolve riscos que trazem conseqüências para o processo de invasão de microalgas, sendo que a adoção de algumas medidas práticas pelos responsáveis do navio poderia minimizar o problema. Financiado pelo FNMA/MMA, Convênio 008/2002 Referências: Carlton, J. T. 1985. Transoceanic and intraoceanic dispersal of coastal marine organisms: the biology of ballast water. Oceanogr. Mar. Biol. Ann. Rev. 23: 313-371. Carlton, J. T. 1996. Pattern, process and prediction in marine invasion ecology. Biological Conserv., 78: 97-106. Carlton, J.T. & Geller, J.B. 1993. Ecological roulette: the global transport of nonindigenous marine organisms. Science 261:78-82. Grosholz, E. 2002. Ecological and evolutionary consequences of coastal invasions. TRENDS Ecol. Evol. 17:22-27. Hallegraeff, G. M. 1995. Harmful algal blooms. A global overview. In: Hallegraeff, G. M.; Anderson, D. M. & Cembella, D. M. 1995. Manual on harmful marine microalgae. Intergovernmental Oceanographic Commission/UNESCO, Paris. pp.1-22. Hallegraeff, G. M. 1998. Transport of toxic dinoflagellates via ship’s ballast water: bioeconomic risk assessment and efficacy of possible ballast water management strategies. Mar. Ecol. Prog. Ser. 168:297-309. Paerl, H.W.1988. Coastal eutrophication and harmful algal blooms: Importance of atmospheric deposition and ground water as “new” nitrogen and other nutrient sources. Limnol. Oceanogr. 42:1154-1165. Ruiz, G. M.; Carlton, J. T; Grosholz, E. D. & Hines, A. H. 1997. Global invasions of marine and estuarine habitats by non-indigenous species: mechanisms, extent and consequences. Amer. Zool. 37:621-632. McCarthy, H.P. & L.B. Crowder. 2000. An overlooked scale of global transport: Phytoplankton species richness in ballast water. Biological Invasions 2:321-322. Occhipinti-Ambrogi, A. & Savini, D. 2003. Biological invasions as a component of global change in stressed marine ecosystems. Marine Pollution Bulletin. Resumos do 56º Congresso Nacional de Botânica. Tabela I: Características biológicas de microalgas potencialmente invasoras, importantes também para a seleção de espécies de alto risco (baseado em vários autores). Diferentes combinações destas características são importantes para desencadear florações de algas nocivas (de Proença & Fernandes, 2004). CARACTERÍSTICAS BIOLÓGICAS IMPORTÂNCIA E IMPACTOS NEGATIVOS 1. Abundante e/ou amplamente distribuída na região doadora • Aumenta a chance de ser captada durante o lastramento, ou fixar-se ao casco do navio • Garante tamanho de inóculo populacional, crítico para a colonização da região receptora 2. Tolerante às variações de temperatura (euritérmica), salinidade (eurihalina) e intensidade luminosa • Importante durante o transporte (variações nos tanques de lastro), inoculação e estabelecimento em regiões e receptoras 3. Variabilidade genotípica alta (heterozigose), favorecendo plasticidade fenotípica • Potencializa suas chances de adaptação às novas condições ambientais existentes na região receptora 4. Fisiologia de crescimento tipo "espécie pioneira": taxa de crescimento intrínseco (µ) elevada, tempo de geração curto • Favorece a produção de maior número de inóculos (propágulos) • Facilita a dispersão da espécie na região receptora • Permite ocupar nichos abertos em ambientes degradados por atividade humana ou submetidos à distúrbios* 5. Produção de células de resistência (cistos, esporos, zigotos de parede espessada) • Sobrevivência nas condições adversas dos tanques de lastro, e logo após a chegada no ambiente receptor 6. Produção de grande número de células filhas e reprodutivas, originadas através de reprodução assexual (divisão simples e/ou produção de esporos) • Facilita dispersão e representatividade geográfica tanto na região doadora quanto na receptora • Disponibilização de propágulos e suas variações (quantidade, freqüência, viabilidade) regularão o processo de invasão 7. Mecanismos que reduzam a predação (manipulação e ingestão da presa) como a morfologia celular, setas, espinhos e tamanho • Garantia de maior número de indivíduos para colonização e estabelecimento na região receptora, devido à maior chance de sobrevivência e menor taxa de mortalidade 8. Ciclo vital com um estágio planctônico (holoplâncton, meroplâncton) • Facilita o processo de dispersão nas regiões doadora e receptora • Aumenta a distribuição geográfica (transporte via marés e correntes) 9. Nocividade*** (através de produção de toxinas, depleção de oxigênio, mucilagem, etc.; capacidade de exclusão/extinção de espécies nativas, causando perda de biodiversidade) • Impactos negativos ao ecossistema • Exclusão temporária a permanente de competidores e/ou predadores • Prejuízos financeiros em áreas de pesca comercial e maricultura, turismo, ou injúrias à saúde humana • Histórico de invasão permitirá predizer futuras invasões, antecipando ações preventivas e medidas mitigadoras *: v. Cohen & Carlton (1998) para controvérsia. **: v. Smayda (1997) para considerações detalhadas. A taxa de saturação elevada é adaptação importante em áreas enriquecidas por nutrientes. ***: pré-requisito para seleção de espécies de alto risco.