ENTENDENDO O QUE É NORMA CULTA BRASILEIRA Eligiane Luiz de Mattes Ternovoe – (PG-UEMS) RESUMO O presente artigo tem por objetivo apresentar o conceito real do que significa norma culta, já que está é confundida e nomeada também com a norma-padrão e norma gramatical, sendo que todas estas são distintas entre si, além de demonstrar o que este engano está causando no ensino escolar atual. Para tanto, fora utilizado como base principal a obra de Carlos Alberto Faraco (2008), Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós, ao qual o autor apresenta as distinções destas normas, a história da gramática e causa dessa para o plano pedagógico brasileiro. Dessa forma, o presente trabalho destaca e analisa os conceitos de cada uma dessas normas, revelando o enredo, as incoerências e os preconceitos a respeito do uso que fazemos delas, principalmente sobre o que é realmente norma culta na língua portuguesa. PALAVRAS-CHAVES: Normas, gramática, ensino, língua portuguesa. Introdução Atualmente está em foco o assunto do ensino de língua portuguesa no Brasil. Na grande maioria das discussões ouvimos questionamentos a respeito desse ensino, isto porque, a grande maioria da população acredita que se enfoca demais a norma culta. Mas será mesmo que a disciplina de língua portuguesa realmente enfoca a norma culta em seu sentido real? Carlos Alberto Faraco (2008), responde com toda certeza que não. Por consequência de toda essa discussão sobre norma culta e pela confusão de alguns em considerá-la como sinônimo da norma padrão, norma gramatical e até mesmo da gramática normativa é que me disponho a trabalhar com tal tema, usando como base o livro de Carlos Alberto Faraco (2008), Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. Faraco (2008) nesta obra fala sobre os conceitos de norma, norma culta, norma padrão e norma gramatical, bem como da história da gramática, e da questão da língua portuguesa dentro do Brasil desde o surgimento do país, além de abordar a pedagogia de ensino dessa língua, tanto do fator linguístico quanto nos desafios de ensiná-la. Sendo assim, o presente tema para este artigo fora escolhido no intuito de mostrar não só aos estudantes (universitários ou não), mas aos professores e principalmente a população comum que a norma culta é a saída para um ensino escolar exemplar, desde que visto e trabalhado em seu significado real. Por fim, como o próprio autor afirma, tal obra trabalha com “uma dimensão técnica e uma dimensão política”, sendo que a técnica é o esclarecimento desses conceitos e política é demonstrar que o equívoco destes conceitos afetam nosso ensino de qualidade. Dessa maneira, ao se trabalhar com a questão de normas fica difícil não se abordar o ensino do português em nosso país, que é o que Faraco (2008) faz questão de destacar em sua obra, e eu de enfocá-lo neste trabalho. Veremos, então, a seguir o desenvolvimento do tema escolhido, pois o considero de importante relevância para nossa sociedade educacional, e principalmente ao senso comum. Fundamentação Teórica Antes de iniciarmos nossa discussão sobre os conceitos da norma culta e das demais normas e suas consequências para o ensino da língua portuguesa, torna-se necessário, primeiramente, destacar em uma visão empírica o conceito de língua, dessa forma, Faraco (2008) coloca que “uma língua é constituída por um conjunto de variedades”, sendo assim, não se pode definir uma língua como sendo apenas uma unidade da linguagem, pois ela é mais do que isso, ela é também “uma entidade cultural e política” (grifo do autor). Dessa maneira, essa concepção de língua vai de encontro com a definição de norma dada pelo linguista Coseriu (1973, apud CARVALHO, 2003, p. 65), que define este termo como aquele de “como se diz” e não o de “como se deve dizer”, então, desse encontro tiramos à concepção de que “norma designa um conjunto de fatores linguísticos que caracterizam o modo como normalmente falam as pessoas de uma certa comunidade” (FARACO, 2008, p.40), e não regras que determinem como se deve falar. Essas regras que conhecemos e que são ensinadas na disciplina de língua portuguesa nas escolas – regras que determinam como os alunos devem falar e escrever – são nomeadas por Faraco (2008) de “norma curta”, pois segundo ele essa norma é a miséria da gramática, sendo devidamente classifica por esse autor como: Um conjunto de preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem nos fatos, nem nos bons instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm impedido um estudo adequado da nossa norma culta/comum/Standard (FARACO, 2008, p. 92). Dessa concepção de norma curta dada por Faraco (2008), acredito que já tenha dado para desfazer uma confusão, ou talvez, criado outra, pois a maioria das pessoas tem esse conceito dado pelo autor como sendo o de norma culta. Mas se esse não é o conceito de norma culta, qual é então? Faraco (2008) simplesmente designa norma culta como “o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita”, ou seja, a maneira como um falante de determinada língua costuma falar ou escrever certa expressão a qual utiliza em determinada situação, sendo assim, para cada grupo social de que fazemos parte, temos uma variação de nossa linguagem e para todas as quais têm uma norma. Mas, você deve estar se questionando, que se simplesmente norma culta é isso, por que a confundimos então com outras normas? Acredito que antes de responder a esta questão, é estritamente necessário, primeiramente, vermos os conceitos das demais normas. Por conseguinte, Faraco (2008) faz toda uma abordagem histórica do nome dado à norma padrão, esta nomeada por causa da necessidade de unificar a língua na sociedade feudal dos novos Estados Centrais Modernos (Europa), para minimizar os dialetos regionais e se falar uma única língua, no intuito de criar um instrumento político linguístico. Dessa forma, chega-se a concepção de que norma padrão: “É uma codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de uniformização lingüística” (FARACO, 2008, p. 73). Diante desse contexto histórico formou-se mais um equívoco, o de que as gramáticas e dicionários surgiram no intuito de padronizar a língua e de torná-la fixa. Em consequência disso, novamente nos deparamos com o mesmo questionamento feito acima, o de porque confundimos a norma culta com outras normas? E esta resposta e bem simples, e acredito que muitos já a tenham conseguido responder. Simplesmente, por que diante de tal contexto histórico houve a confusão do significado da palavra norma, sendo que esta possuí dois sentidos em nosso uso contemporâneo, como cita Faraco (2008), sendo um o de normalidade (norma = normal) e outro de normatividade, e está obvio que fora escolhido a segunda opção, daí se criando o termo gramática normativa, e voltamos ao equívoco do início desse parágrafo. Na realidade brasileira este termo chamado de norma padrão se deu pelo fato de a elite letrada desejar viver em um país branco e europeizado, e também por desdenhar a nossa variedade racial e dialetal, dessa forma, preferiram adotar a língua portuguesa, e para diferenciar o nosso português do português de Portugal resolveu-se, então, padronizar a fala e a escrita no Brasil, ou como chamava José de Alencar, abrasileirar o português. Diante dessa questão Faraco (2008) aborda alguns literários em sua obra para melhor tratar dessa questão, mais isto, veremos mais a seguir. Em continuidade aos conceitos dos tipos de normas, ainda nos falta ver a norma gramatical, a qual esta Faraco (2008) conceitua como “o conjunto de fenômenos apresentados como cultos por alguns gramáticos”, ou seja, em consequência da criação da norma padrão, criou-se gramáticas, mas como vimos acima, pensava-se que a criação destas, era para fixar a língua e também de padronizá-la de maneira que todos falassem e escrevessem da mesma forma (algo impossível pelo fato da língua ser heterogenia e mutante), no entanto, quando Dionísio Trácio criou a primeira gramática, ele tinha como conceito desta “o conhecimento empírico do comumente dito nas obras dos poetas e prosadores” (Faraco, 2008, p.86), ou seja, ele não queria fixar a língua, apenas divulgá-la de modo que todos tivessem o mesmo conhecimento dos poetas. Diante de todos esses conceitos você deve estar se perguntando: é, então, realmente necessária uma norma padrão para a língua. Alguns com mais conhecimento, talvez, também perguntem, e a Academia Brasileira de Letras não faz essa criação da norma gramatical? Respondendo ao primeiro questionamento, Faraco (2008) já o faz afirmando que se necessita sim de uma norma padrão, mas apenas para a escrita e não para a pronúncia, pois imagine vocês como seria se cada um escrevesse da maneira que lhe aprouvesse, sendo que temos um território geográfico imenso, e, isso, pode modificar de estado para estado. Quanto à resposta do segundo questionamento, temos como resposta um não, pois segundo Faraco (2008) a Academia Brasileira de Letras tem por tarefa apenas criar um Vocabulário Ortográfico, ou seja, fixar a grafia das palavras, e não criar uma gramática para fixar a língua como muitos acreditam que ela o faça. Findando esta questão do conceito das normas, você pode estar se questionando: e o conceito de certo e errado, como fica? Este é outro equívoco, pois a questão do que é certo e do que é errado é um fator que vem de séculos atrás. Mas podemos dizer que este equívoco se dá por consequência de outro equívoco, o da gramática, como vimos acima. Sendo assim, pensa-se que ao saber a gramática de ponta a ponta sabe-se também falar e escrever perfeitamente, e isto não é correto afirmar, pois se criou esta concepção de certo e errado por causa da diferenciação de classes. Dessa forma Câmara Jr. (1979) explica que: Numa sociedade estruturada de maneira complexa a linguagem de um dado grupo social reflete-o tão bem quanto suas outras formas de comportamento. Desse modo, essa linguagem vem a ser uma marca desse status social. As classes superiores dão-se conta desse fato e tentam preservar os traços lingüísticos pelos quais se opõem às classes inferiores. Tais traços são considerados corretos e passa a haver um esforço persistente para transmiti-los de geração em geração. Esta atitude cresce em intensidade à medida que o impacto das classes inferiores se torna cada vez maior. Outro fator que nos leva a este sentido de certo e errado é a norma curta, por consequência de suas afirmações categóricas, inflexíveis, absolutas e inquestionáveis (Faraco, 2008, p. 93-94), sendo assim, ela não acompanha e nem admite as inovações da língua, tentando obrigar-nos a utilizar as formas clássicas. Por fim, podemos dizer que uma das consequências desses equívocos todos é o ensino de má qualidade na questão da linguagem verbal, pois se acredita que ao terminar o nível médio o aluno esteja totalmente letrado, e para Faraco (2008, p.70) isso implica dizer que o aluno é totalmente capaz de ler, escrever e interpretar um texto medianamente complexo, o que infelizmente leva-nos a detectar apenas 25% da população ser totalmente letrada. Outra consequência é o fato de não desenvolvermos “uma cultura positiva diante de nossas questões de língua”, esta podendo ser resolvido pelo “conflito entre a norma curta e os bons instrumentos normativos” atuais (grifo do autor). Voltando a questão da norma padrão, vista mais acima, voltamos também à discussão da questão da língua portuguesa no Brasil, agora, abordando o porquê do distanciamento entre a norma culta (o que se usava) e a norma padrão (modelo para a escrita). Como vimos, a norma padrão fora escolhida pelo fato da população brasileira do século XIX desejar um país de raça pura (branca e europeizada), contudo, no início dessa escolha não se adotou a ideia de abrasileiramento de Alencar, pelo contrário, em estudos feitos por Pagotto (1998, apud. FARACO, 2008, p.107-108) há a demonstração de que se buscou identificar a língua portuguesa brasileira com a língua portuguesa padrão de Portugal, isto porque essa identificação era perfeita para o projeto político da elite brasileira pós-independência em construir a sua tal sonhada sociedade branca e europeizada, sendo assim, formar uma elite com status, como vimos na explicação de Câmara Jr. feita acima. Mas tarde, alguns literários defenderam a questão do abrasileiramento da língua escrita, como José de Alencar e Gonçalves Dias. No entanto, Faraco (2008) comenta que eles o fizeram no intuito de satisfazer suas necessidades literárias, ou seja, enriquecer o nosso português no que diz respeito às expressões artísticas e dar ao povo uma literatura de modelo, o que não significava dar uma linguagem ao povo em geral, e sim a elite brasileira da época, já que quem os lia eram a elite letrada. Sendo assim, é como Faraco (2008) coloca que eles queriam mudança e riqueza sim, mas com limites. Contudo, Faraco (2008) ainda afirma que o povo mais conservador buscou fixar arbitrariamente uma norma para a escrita, enquanto que Alencar defendia a necessidade do estudo empírico para a questão da escrita, com isso, os conservadores passaram a acusar os literários de criarem referências não seguras e até errôneas à população. Com a ideologia fixa da época de criar uma raça pura é chegamos, então, à criação da norma curta, que recebemos de herança até os presentes dias. Então, na década de 1870 surge a disciplina de Língua Portuguesa no Colégio Pedro II e na década seguinte, surge a gramatização brasileira do português. Fato este que vem nos assolando até os dias atuais. Atualmente, é raro encontrarmos alguém que nos diga que gosta de estudar português, nossos alunos, então, saem do ensino médio traumatizados com a sua própria língua, tudo isto pelo simples fato da abordagem gramatical trabalhada em todos os anos de escola que tiveram. A gramática é tida como um monstro de sete cabeças, no entanto, professores não encontram outra maneira de ensinar a língua, mas será mesmo necessário ensiná-la com tanta gramática, afinal, nossos alunos já chegam à escola sabendo falar, sendo assim, eles já sabem a língua. Para esse questionamento, Faraco (2008) nos responde fazendo um breve histórico da gramática, sendo assim, nos prendamos um pouco a este histórico também, para melhor entendermos a esta questão. O estudo da linguagem tem início em 2000 a.C. com os babilônios, no entanto, os hindus o fizeram de uma forma mais avançada no século IV a.C. Mais tarde os gregos o fizeram com mais ênfase, já que possuíam um grande acervo bibliotecário (Biblioteca de Alexandria), e deles sai à criação da primeira gramática, como vimos acima de Dionísio Trácio. No entanto, Trácio conceituava a gramática como “o conhecimento empírico do comumente dito nas obras dos poetas e prosadores” (apud. Faraco, 2008, p.133) e tinha por objetivo, descrever a língua e também, estabelecer um modelo a ser seguido por todos os que escreviam. Como afirma o mesmo autor, estes objetivos serviram de solução intelectual aos conflitos gerados pela percepção da diversidade lingüística, criando então nossa tradição normativa. Por conseguinte, os latinos criaram mais tarde uma nova gramática, mérito este do latino Varrão, que conceituou a gramática como “a arte de escrever e falar corretamente; e compreender os poetas” (Faraco, 2008, p.137), sendo assim, note que o conceito de culto para estes povos (gregos e latinos) era o de imitar os poetas e prosadores, pois eram considerados os letrados da época. Já na Era Medieval encontramos a gramática de Prisciano, além de textos de Dante Alighieri, este último defendia a ideia de se escrever uma língua pura. Depois deles surgiram alguns outros estudos, mas em relação à língua portuguesa, a primeira gramática foi a de João de Barros em 1540, mas a ortografia só foi tema de preocupação no decorrer do século XX. Contudo, na Europa a norma padrão fora escolhida seguindo a ideia de Dante, ou seja, uma norma conservadora. No caso dos países germânicos ocorreu pela tradução da Bíblia nas línguas vernáculas (puras), buscando como explica Faraco (2008) uma variedade contemporânea, sendo assim, se teve um objetivo mais pragmático nestes países e mais conservador nos países europeus. Dessa escolha da norma padrão surge o modelo pedagógico, sendo que, pela escolha conservadora dos países de lá, adotou-se uma pedagogia normativa, centrada no estudo gramatical, a qual essa, por sua vez não tardou muito a chegar ao Brasil pelos jesuítas, e consequentemente, continuamos a ensinar por esse mesmo modelo pedagógico de séculos atrás. Por fim, chagamos assim a tão esperada resposta do questionamento feito anteriormente: será mesmo necessário ensinar gramática na escola? Ao ler todas essas colocações de Faraco (2008), chego à conclusão que sim, assim como esta também é a resposta do autor, no entanto, a gramática que Faraco (2008) acredita que deva se ensinar na escola – e concordo com tal colocação – é a reflexão sobre a estrutura da língua e sobre seu funcionamento social que dê domínio ao estudante sobre a fala e a escrita, ou seja, trabalhar a gramática de uma visão semântica e até mesmo pragmática dentro de textos onde o aluno consiga perceber o uso de sua língua (grifo meu). Ainda podemos acrescentar a fala de Faraco (2008, p. 158) que afirma que, “[..]só existe sentido em estudar gramática, se esses conteúdos estão claramente subordinados ao domínio das atividades de fala e escrita, isto é, se eles têm efetivamente relevância funcional. [...] estudar um conjunto de temas gramaticais pelo simples fato de estudá-los não tem a menor razão de ser”. Então, para findar, vale lembrar e citar outra fala desse autor, quando ele diz que “o estudo da norma culta tem por objetivo o domínio das formas de linguagem recobertas por valores positivos e vistas como adequadas em situações monitoradas de fala e de escrita” (p.160). Considerações Finais Ao final desse trabalho, fica claro que há a necessidade do senso comum de desfazer os equívocos abordados ao longe deste, pois como vimos às consequências destes equívocos são catastróficas ao nosso ensino de qualidade e também, por conseguinte, à nossa cultura, pois defender a norma culta, não significa defender que se deva escrever como falamos, mas escrever de forma que aprouverem as formas variadas, mas pertinentes ao uso da língua. Da mesma forma que, perceber esses equívocos é buscar uma nova pedagogia de ensino, de maneira que formemos cidadãos realmente letrados em nossas escolas. Referências Bibliográficas CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure: fundamentos e visão crítica. 12ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. CAMARA Jr. Joaquim M. História da Lingüística. Tradução de Maria do Amparo Barbosa de Azevedo. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1979. CAMARA Jr. Joaquim M. Dicionário de Lingüística e Gramática: referente à língua portuguesa. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981. FARACO, Carlos Alberto. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo, SP: Parábola Editorial, 2008.