1 Ah! Jacques, Jacques... liberte-se desse encantamento milenar Horacio Martins de Carvalho (Curitiba, setembro de 2006) 1. Um desafio para o campesinato contemporâneo Ser camponês no mundo contemporâneo globalizado e controlado pelos interesses financeiros e comerciais dos grandes capitais transnacionais é um desafio imenso, tanto do ponto de vista político-ideológico como econômico. Esse desafio para o campesinato se revela com uma natureza bastante complexa e ambígua, tendo em vista que amplas parcelas do próprio campesinato se encontram ideologicamente subalternas aos valores que alicerçam os interesses do agronegócio burguês sob o domínio do capital estrangeiro: lucro, competitividade, individualismo, mercado, especialização, homogeneização e escala crescente de produção, sementes híbridas e transgênicas, financeirização da produção e introdução das relações de assalariamento. Dessa maneira, os camponeses, na sua maioria, pensam e recorrem a soluções econômicas e políticas que a cada dia mais os subordinam à relação campesinatoburguesia, burguesia essa já não mais exclusivamente agrária, mas integrante do complexo financeiro-industrial que tem na agricultura um dos seus ramos de negócios. Como elemento coadjuvante da complexidade desse desafio está a credulidade camponesa nos governos, os camponeses sempre supondo que o “poder público” numa sociedade de classes estaria comprometido com a justiça social e a distribuição de renda para amenizar os sofrimentos dos mais pobres. Essa ingenuidade é conseqüência das práticas locais do clientelismo político, da sujeição política e ideológica dos “pobres” em relação aos ricos e poderosos, da pieguice religiosa, da subalternização histórica que os leva a considerar, devido às correlações de forças políticas que lhe são sempre desfavoráveis, as oligarquias e os patrões como “bons” porque ajudam casuisticamente os mais necessitados nas horas difíceis. Ajuda essa que é conseqüência da “sociedade do favor” onde a prestação de serviços públicos para os mais pobres é mediada pelos políticos que controlam o poder público local e que exigem do camponês, em troca do serviço ou favor prestado, a lealdade política eleitoral. Como a burguesia e os latifundiários no Brasil sempre caminharam de mãos dadas e dispuseram dos governos para realizarem seus interesses de classe, sem apresentarem entre si antagonismos, a ideologia dominante alardeia os valores ético-políticos da concepção de mundo que afirma ser inexorável a presença e liderança do agronegócio burguês sobre toda a vida produtiva no campo. Assim sendo, não é de se estranhar que as políticas públicas setoriais governamentais para o que denominam de agricultura familiar tendam a sujeitar o processo de trabalho do camponês às agroindústrias burguesas --- seja pela oferta de crédito rural subsidiado seja pela indução à artificialização da agricultura. Os contratos de produção entre empresas do agronegócio e os camponeses, procedimento esse denominado vulgarmente de “integração” e celebrados por amplos setores dos governos como o 2 caminho para a elevação da renda agrícola familiar camponesa, são emblemáticos dessa tendência dominante e crescente de submissão do campesinato ao agronegócio burguês. Os governos, em particular o federal, fascinados pelo crescimento da oferta de produtos agrícolas, pecuários, florestais e pesqueiros destinados para a exportação, reafirmam nos seus discursos --- e na formulação das suas políticas setoriais para o campo, os interesses de classe do agronegócio burguês, mesmo que a prática produtiva e comercial dessa fração do capital industrial --- o agronegócio, tenha evidenciado que ao lado do aumento da área plantada e por vezes da produtividade seguem crescentes a exclusão social, a degradação do meio ambiente e a queda da qualidade dos alimentos produzidos. A ideologia que fundamenta e justifica o agronegócio burguês é tão envolvente e cooptadora que parcelas importantes dos movimentos e organizações sociais e sindicais dos trabalhadores rurais e dos camponeses se tornam fascinadas pelas promessas e vantagens conjunturais ofertadas pelas agroindústrias, aceitando com docilidade e subserviência que as massas de camponeses se submetam passivamente à perda do controle sobre o seu processo de trabalho e se arrisquem a perderem a posse efetiva da terra em conseqüência dos endividamentos com o agronegócio burguês. Essa complexidade do desafio contemporâneo para o campesinato, no sentido de que seja possível a afirmação da sua autonomia perante o capital, é acrescida pela presença na concepção de mundo do senso comum da idéia de que os camponeses são a expressão mais pura de uma pobreza consentida e de um atraso cultural romantizados porque vivenciam uma relação lúdica com a natureza. Por vezes, no imaginário popular e mesmo no das classes médias urbanas, lamenta-se que os camponeses abandonem a terra num êxodo rural que se supõe afirmativo da sua própria impotência perante um mundo de fortes transformações tecnológicas e que esses camponeses são incapazes de perceber e de incorporar. Sob as ideologias da concepção de mundo das classes dominantes, ou de setores que percebem os camponeses apenas como “os pobres da terra”, restaria aos camponeses apenas a escolha entre permanecerem no campo num estado de pobreza crônica, aceitarem passivamente a sua própria negação pelo abandono da terra, ou então, no melhor dos mundos possíveis para o capital, se submeterem o seu processo de trabalho aos interesses de classe do agronegócio burguês. As classes dominantes no Brasil, nas suas mais diversas frações de classe, além de comungarem com os interesses de maximização do lucro das empresas transnacionais pela exploração econômica e subalternização político-ideológica das classes populares no país, são referência de indiferença perante a pobreza e de opressão social para as novas relações entre o capital e o trabalho exercitadas pelos capitalistas estrangeiros no país. Isso se deve, em especial, pelo exercício social de uma concepção de mundo patrimonialista e antipopular que herdaram de um passado colonial e escravagista que foi praticado formalmente no Brasil até o final do séc. XIX. Nesse contexto de exploração extremada das classes populares, os camponeses se sentem impotentes porque as práticas sociais e os significados que vivenciaram no passado 3 já não lhes permitem se reafirmarem como sujeitos do seu destino perante seus pares, nem muitas vezes perante os seus filhos, e incrédulos perante os novos significados que os meios de comunicação de massa lhes impõem como referência para o futuro, ficam perplexos, imobilizados, apáticos, tornando-se presas fáceis do encantamento exercido pelo agronegócio burguês. Isso se deve, onde se verifica, pelo fato objetivo de que a renda agrícola líquida monetária que os camponeses obtém com o esforço do trabalho familiar através das suas práticas tradicionais é insuficiência para garantir uma qualidade de vida mínima e básica, segundo os padrões regionais de renda média familiar (Carvalho, 2000: p. 3). Os esforços adicionais de trabalho familiar e ou de incremento da força produtiva pela incorporação de novas tecnologias se desfazem nos baixos preços recebidos com a venda de seus produtos nos mercados dominados por atravessadores, sejam eles os pequenos comerciantes locais sejam os grandes grupos econômicos oligopolistas do agronegócio. Desiludidos, mas não derrotados, a maioria dos camponeses resiste na terra sob as mais diversas condições objetivas e subjetivas. E quando a esperança se renova, porque compreende a sua inserção no mundo capitalista contemporâneo e desejam libertarem-se da opressão que os sufoca, os camponeses tendem a buscarem apoios nas políticas públicas dos governos, sem darem conta de que se enredam em novas teias de sufocamento econômico. Lutam pelo crédito rural subsidiado como afogados se agarrando às palhas que bóiam nas águas como se elas pudessem suportar o peso do seu afogamento. E se endividam... e sofrem os constrangimentos do devedor sem condições efetivas de honrar a palavra dada na contratação dos empréstimos. Desiludidos, mas não derrotados, aninham-se nos braços das empresas capitalistas do agronegócio firmando contratos de produção, na maioria das vezes sob um encantamento que lhes tolda a consciência crítica, onde a força de trabalho camponesa outrora autônoma na sua unidade de produção se vê constrangida a um sobretrabalho familiar para a obtenção de uma renda familiar líquida que lhe alivia as necessidades do cotidiano, mas a subalterniza ao capital no médio prazo, seja pela dívida contraída seja pela sujeição político-ideológica com a agroindústria. Desiludidos, mas não derrotados, afirmam aqui e acolá a sua autonomia camponesa pela adoção de modos de produzir conforme os princípios da agroecologia ou da agricultura orgânica, da agricultura natural, da biodinâmica, da ecoagricultura e da permacultura. Reduzam drasticamente a sujeição política-ideológica ao agronegócio, mergulham na venda direta e na comercialização nas feiras populares e supermercados, fazem-se sujeitos do seu processo de produção amplo senso. Por vezes, acanham-se na produção agrícola pela escassez de força de trabalho familiar, mas essa pequenez é compensada pelos espaços de libertação conquistados ante o capital. O desafio permanece: ser camponês num mundo onde as classes dominantes negam político-ideologicamente o campesinato, e quando com eles se relacionam é para explorarem a força de trabalho familiar e o trabalho em cooperação que praticam. 4 A credulidade camponesa, as desinformações e dúvidas que os assolam pelas falas desencontradas de amigos e autoridades, pelas novidades ofertadas nas vitrinas das lojas que lhes despertam o consumismo, pela pressão cotidiana dos comerciantes, técnicos e vizinhos para encontrarem caminhos de melhoria de condições de vida dentro das práticas capitalistas de produção, enfim, mas não finalmente, pela tentação do novo embutido nas tecnologias propagandeadas pelo agronegócio, todos essas seduções e persuasões se agregam para destroçarem, por vezes lentamente outras vezes de maneira abrupta, os valores básicos da vida camponesa que se expressam na unidade de produção familiar, na cooperação interfamiliares, nas relações de vizinhança, no compadrio, no território e na vida constituída na comunidade rural. Esses valores não excluem aqueles da urbanidade, mas são diferentes. E, essas diferenças são vistas como insuportáveis pelas classes dominantes que desejam para os outros --- em particular para os camponeses, os agroextrativistas, os pescadores artesanais, os artesãos, os povos indígenas e todos aqueles que podem garantir e ser exemplos de autonomia relativa perante o capital, a adoção de formas de produção onde o homogêneo, o artificial, a subordinação direta do trabalho ao capital, a subserviência político-ideológica ao poder político local e a afirmação do capital, do lucro, do mercado e da competição sejam consideradas como a verdade da vida social. Ah! Jacques, Jacques1... liberte-se desse encantamento milenar, desse torpor, dessa languidez que o faz acreditar nas classes dominantes e nos seus governos. De supor que ao se tornar um capitalista, um explorador, será melhor do que se afirmar como um camponês renovado. Liberte-se da sedução que o fascina deixando-se levar pelas promessas e pelos apadrinhamentos dos poderosos; da idolatria que o faz transferir para um além mundo a possibilidade da libertação aqui e agora; da ilusão burguesa de que chegará a ser um deles como a fala do agronegócio burguês insinua, encanta e mistifica. 2. A diversidade da exploração dos camponeses no Brasil São muitas as formas e as maneiras como o campesinato se constituiu e se apresenta no Brasil. Também são muito distintas as formas e as maneiras como os camponeses são explorados economicamente. Os camponeses sempre foram explorados pelos atravessadores, estes se apresentando nas mais variadas formas, desde um bodegueiro local até os compradores dos atacadistas dos grandes centros comerciais e, numa relação que se expande de forma continuada, a aquisição da produção camponesa pelo agronegócio burguês através dos contratos de produção onde são reduzidas as suas possibilidades de barganha. Isso se deveu e deve a vários fatores, muitos deles associados entre si de formas distintas no tempo e no espaço na gama variada de contextos sócio-econômicos dos territórios brasileiros. 1 Jacques: essa designação deriva de Jacques Bonhomme, o nome com conotação paternalista dado genericamente a um camponês da região norte da França desde meados do século XIV. A expressão Jacques tornou-se de uso depreciativo no jargão da nobreza e dos senhores feudais no séc. XIV para se referir aos camponeses servos da gleba. A expressão Jacquerie foi utilizada, então, como designação da revolta camponesa (fonte: Wikipédia). 5 Alguns dos fatores que determinam essa exploração são: a vulnerabilidade da produção agrícola devido à sua perecibilidade, a dispersão territorial da produção, a oferta dos produtos em safras (oferta simultânea pela maioria dos produtores de uma determinada região), o baixo volume da oferta de produtos por cada unidade de produção camponesa, o seu relativo distanciamento físico dos grandes centros comerciais e a precariedade da infraestrutura de transportes no meio rural. A esses fatores de ordem geral se agrega um outro: a precariedade dos negócios camponeses devido ao seu endividamento que tem como causas mais usuais, por um lado, a artificialização da agricultura (dependências dos insumos adquiridos pelos camponeses do agronegócio burguês) facilitada pelo crédito rural subsidiado ofertado pelo governo federal e, por outro lado, a relação desfavorável entre os preços pagos e os preços recebidos pelos camponeses. Sem dúvida alguma que esses fatores não devem mascarar as possíveis ineficiências de alguns produtores singulares. Mais recentemente, com o controle oligopolista pelo agronegócio burguês das sementes, das mudas e das matrizes animais, os camponeses se tornaram presa fácil dos contratos de produção, dos arrendamentos de suas terras e da produção à domicílio, uma variante dos contratos de produção, como na suinocultura, onde a matrizes não são mais propriedade dos camponeses. Na maior parte dos contextos sócio-econômicos locais e regionais do país, com a generalização da mercantilização dos produtos agropecuários, florestais e pesqueiros, a relação entre o camponês e o agronegócio burguês tornou-se um negócio capitalista puro, seja essa relação efetuada diretamente entre camponês e agroindústria seja ela mediada pelas empresas comerciais. Nessa relação a exploração econômica do camponês é mediada pela mercadoria e facilitada pelo crédito rural subsidiado. Essa exploração econômica do camponês é reforçada político-ideologicamente pela concepção dos programas setoriais governamentais que insistem na subordinação do camponês ao capital, e na ideologia da propaganda do progresso técnico gerado pelo agronegócio burguês, como as sementes, as mudas e o genoma animal transgênicos, que pelo simples fato de ser “moderno” pudesse negar intrinsecamente as mazelas sociais, ambientais e de saúde pública que promove, confundindo-se intencionalmente nos discursos ideológicos, mesmo por parte de considerável parcela dos pesquisadores, o domínio científico promovido pelo avanço dos conhecimentos humanos, hoje predominantemente privatizados, com os produtos, métodos e processos técnicos ofertados pelas grandes empresas capitalistas transnacionais nos mercados da produção agropecuária, florestal e pesqueira. Em diversas situações do passado recente, se a dependência econômica do camponês perante os atravessadores, por um lado, lhes obrigava a transferirem na troca comercial parte da renda agrícola gerada pela força de trabalho familiar, por outro lado, as relações extra-econômicas historicamente estabelecidas nessa relação mista de elementos comerciais e de lealdades devidas a compadrios, parentescos e amizades entre os camponeses e os “seus” atravessadores, lhes permitia estabelecer ritmos de vida que proporcionava aos camponeses, mesmo precariamente, condições menos árduas de reprodução social durante as suas adversidades. Havia, sem dúvida, relações de subalternidade e de exploração do camponês pelo atravessador que variavam de grau e intensidade no tempo e no espaço. Mas, também, relações confusas e precárias de ajudas 6 mútuas que geravam equilíbrios de sobrevivências nas condições de isolamentos físico e sócio-cultural em que muitos camponeses se encontravam e se encontram. Se em diversos contextos territoriais do país as trocas comerciais são mediadas (se fazem presentes e ainda vigoram) por relações extra-econômicas de solidariedade e compadrio, o que se constata na maior parte dos mercados de produtos agropecuários, florestais e pesqueiros do país é o predomínio da relação comercial burguesa onde a mercadoria impera e o negócio capitalista se consolida. Seria ingenuidade se supor que na relação impessoal mediada pela mercadoria as dimensões extra-econômicas tivessem sido abolidas. Elas continuam presentes, apenas travestidas de novas formas que não mais se apresentam tão somente pelas mediações do sagrado, do parentesco ou do compadrio, mas agora pelos meios de comunicação de massa onde imperam a propaganda ideológica do agronegócio burguês e a mitificação do progresso técnico. Tudo leva a crer que sejam o crédito rural subsidiado pelo governo federal e a assistência técnica as maneiras mais sutis de horizontalizada da submissão, com posterior exploração econômica, do camponês ao agronegócio burguês. O crédito rural subsidiado direcionado aos camponeses tem sido aceito e legitimado, ora inconsciente ora intencionalmente, como um mecanismo nada sutil de atrelamento comercial do camponês à agroindústria através da exigência de adoção de um modelo tecnológico capital-intensivo que obriga as famílias camponesas a artificializarem a sua produção pela compra de sementes, mudas e matrizes animais, e de fertilizantes, agrotóxicos, herbicidas, medicamentos, máquinas e equipamentos de origem industrial, assim como pela adoção, induzida pelas empresas públicas e privadas de assistência técnica, de práticas agropecuárias e florestais inconciliáveis com a condição camponesa dessas famílias produtoras rurais. Pode-se considerar que a exploração econômica contemporânea do campesinato pelo agronegócio burguês vem ocorrendo continuadamente, e de maneira diferenciada em relação às formas anteriores, desde meados da década de 60 do século passado com a “revolução verde burguesa” iniciada pelas sementes híbridas e pela agricultura de tecnologia capital-intensiva. E, numa fase mais recente, ao menos desde o início da década de 90 desse século, com a “neo-revolução verde burguesa” provocada pelas metodologias de transgenia (engenharia genética), pelo advento da nanotecnologia e pela privatização e oligopolização da ciência e da tecnologia pelas empresas capitalistas transnacionais. O crescente processo internacional de oligopolização (poucos produtores) da produção de sementes, mudas e matrizes animais --- assim como dos agrotóxicos, fertilizantes, herbicidas, hormônios e medicamentos alopáticos de origem industrial, e da oligopsonização (poucos compradores) dos produtos agropecuários, florestais e pesqueiros tem se tornado o fator de maior relevância para determinação das novas formas de exploração dos camponeses. Ao lado disso, e como correlatas desses tipos de mudanças, constata-se a crescente mercantilização e financeirização do campesinato. 7 O modelo econômico e tecnológico desenvolvido e implantado de cima para baixo pelo agronegócio burguês, com o apoio dos governos e justificado pela intelectualidade relacionada direta e indiretamente com a ciência e tecnologias privatizadas pelas grandes empresas capitalistas transnacionais, só favorece os grandes capitais. A história recente, ao menos desde a década de 80 do século passado, de operacionalização desse modelo econômico tem evidenciado no Brasil e em diversos outros paises dos diversos continentes que somente algumas frações do grande capital são favorecidas por essas inovações. Os camponeses com terra e os camponeses-proletários sofrem elevados níveis de exploração econômica , sem vislumbrarem possibilidades de superam das relações sociais de produção em que se encontram enredados. A disseminação dos contratos de produção entre os camponeses com terra e as empresas do agronegócio vai transformando a subsunção formal desses camponeses ao capital em subsunção real pelo fato concreto de que nesses contratos os camponeses perdem o controle sobre o seu processo de trabalho. E, no limite, pelo endividamento crônico e o arrendamento de parte de suas terras para o florestamento industrial, tendem à perda da posse efetiva da terra. O deslumbramento com que parcelas dos movimentos e organizações sindicais e sociais dos trabalhadores rurais vêem essa modernidade representada pelos contratos de produção entre os camponeses com o agronegócio evidencia que as lutas sociais e sindicais pela autonomia camponesa tendem a ser abandonadas, e com elas a possibilidade de substituição do modelo dominante de produção e de tecnologia por outro capaz de estabelecer uma relação mais harmônica com a natureza e de superar a exploração econômica a que está submetido o campesinato. Mesmo quando se argumenta que a renda líquida auferida pelos camponeses nesses contratos é relativamente maior do que aquela obtida com as formas de produção tradicionais que adotavam ou adotam, o que se tem em presença é uma postura política tática onde as ações no imediato, sempre importantes, desconsideram o acúmulo histórico que conduzirá no ato do contrato à perda do controle do processo de trabalho e, no médio prazo, da terra. Ah! Jacques, Jacques... liberte-se desse encantamento milenar, desse torpor, dessa languidez que o faz acreditar nas classes dominantes e nos seus governos. De supor que ao se tornar um capitalista, um explorador, será melhor do que se afirmar como um camponês renovado. Liberte-se da sedução que o fascina deixando-se levar pelas promessas e pelos apadrinhamentos dos poderosos; da idolatria que o faz transferir para um além mundo a possibilidade da libertação aqui e agora; da ilusão burguesa de que chegará a ser um deles como a fala do agronegócio burguês insinua, encanta e mistifica. 3. A mercantilização e as relações não mercantis A ideologia dominante e as pressões econômicas, numa sociedade capitalista como a brasileira, são direcionadas para que aconteça uma homogeneização de natureza capitalista em todo o universo da produção, com suas atualizações constantes na forma de se expressar esse capitalismo em decorrência das mudanças na dinâmica mundial de reprodução do capital. 8 O negócio capitalista, nele se contemplando a propriedade privada dos meios de produção, a mercadoria, o lucro, a financeirização da produção, a associação impessoal entre os donos de dinheiro, mediada pela compra e venda de ações e pela bolsa de valores, a concorrência e as relações sociais de produção de assalariamento, ainda que diversificadas pelas novas modalidades de prestação de serviços como a terceirização, entre diversas outras variáveis que o constituem, tem como tendência a sua expansão, consolidação e a eliminação gradual ou drástica de qualquer outra maneira ou forma de produção que não seja a ele subordinado. O campesinato sofre essa pressão de diversas maneiras devido aos diferentes contextos sócio-econômicos em que se encontra. No entanto, o sentido geral dessa pressão do negócio capitalista sobre o modo de produzir camponês é o de eliminar a autonomia camponesa na produção. A denominada integração do camponês à agroindústria burguesa ou às empresas comerciais que é efetivada pelos contratos de produção regidos pelas mais variadas cláusulas, pode ser considerada a expressão mais limpa e talvez emblemática da subordinação econômica, ainda que não assalariada, do camponês ao capital. E, nos casos em que não se estabeleçam esses contratos de produção entre os camponeses e as empresas capitalistas, a adoção pelos camponeses não diretamente integrados à agroindústria de uma matriz tecnológica capital-intensiva (matriz dominante) que promove a artificialização da agricultura, subordina indiretamente, agora via a mercantilização, o camponês ao agronegócio burguês. Por vezes, a romântica percepção do campesinato, traduzida na sua relação bucólica e meramente naturalista com a natureza, por parte de setores das confissões religiosas, das populações urbanas pouco esclarecidas sobre a produção no campo, de intelectuais conservadores que restringem os camponeses aos pobres da terra, dos meios de comunicação de massa na reprodução da ideologia dominante dos valores do agronegócio burguês, entre outros, faz com que se vislumbre ou se conceba ideologicamente no imaginário da maioria da população brasileira um “camponês trágico”, aquele que pela sua vida de abstinência e parcimônia em relação às modernidades excita a piedade e supostamente faz ressaltar, ao olhar estranho, as qualidades das suas relações idílicas com a natureza, relações essas que lhes permite uma reprodução simples dos meios de vida e de trabalho que se faz com o esforço familiar e a resignação perante as “dádivas da natureza”. Nessa perspectiva alienada e alienadora sobre o camponês, visto como os pobres da terra, estes são considerados como carentes de modernidades, portanto, tradicionais e anacrônicos. E essa carência de modernidade não apenas destaca o que é negativo, mas subentende que essas famílias camponesas não são capazes de se inserirem nas regras do negócio burguês. Para que isso acontece, segundo a concepção de mundo dominante, é imperativo que o camponês se articule pela completa mercantilização do seu processo de trabalho com o agronegócio burguês sob o controle das empresas capitalistas transnacionais. O agronegócio burguês torna-se, nesse contexto, o portador da lógica e das práticas do negócio capitalista contemporâneo, e se apresenta como o fator dinamizador das unidades de produção familiares empobrecidas pela falta de iniciativa para a incorporação do progresso técnico. 9 O desejo dos camponeses de melhorem as suas condições de vida e de trabalho é transferido sem mediações para a simples noção de ganhar dinheiro, a qual é então traduzida na ideologia dominante como “vender seus produtos com lucro”. E, para tanto, a hipótese e direcionamento dominante é a de se modernizar o processo de trabalho camponês com a adoção do modelo tecnológico das grandes empresas capitalistas no campo e de competirem no mercado de “commodities”, em particular se articulando diretamente com as agroindústrias. Dessa maneira, não apenas se introduz de forma abrangente a idéia da mercantilização generalizada como, no âmbito desta e de maneira subliminar, se desconsidera e se nega o papel importante e estruturador da vida camponesa que as relações não mercantis representam, quase sempre associadas às relações mercantis de baixa intensidade como as vendas no comércio local, nas feiras ou nas vizinhanças. O grau de mercantilização que se constata num determinado contexto camponês nem sempre é um resultado negociado entre os camponeses com os interesses dominantes, estes na maioria das vezes mediados pelas políticas setoriais governamentais. Muito ao contrário, quando mais sólida é a presença do campesinato, como nos Estados do sul do país, mais forte é a investida do capital, via os contratos de produção, o crédito rural e as tecnologias, para controlar o processo de trabalho na unidade de produção camponesa. Naqueles territórios onde são diversas e variáveis as formas como se apresentam os camponeses, também são diversas e variáveis as maneiras adotadas pelo capital industrial e o comercial para subordinar o campesinato aos seus interesses. Por vezes, é a pressão sobre a posse da terra que oprime e submete o camponês. O processo de mercantilização se encontra cada vez mais entrelaçado com o processo de cientifização ou de artificialização da agricultura. A artificialização da agricultura acelera o processo mercantil. Este, no âmbito dos interesses do capital, se encontra governado por uma nova matriz de relações de poder negando as formas tradicionais ou historicamente constituídas de poder local e regional onde prevalecia a comunidade camponesa e as relações não mercantis. Essa nova ou renovada relação de poder se expressa basicamente através de relações técnico-administrativas (modelo de produção e tecnológico e contratos de produção) do capital em relação ao camponês e que determina, pela mercantilização, a agricultura como processo de trabalho e como ramo da indústria. Nesse contexto as relações não mercantis são consideradas como processos residuais e o convívio comunitário como superado pela lógica dominante de urbanização. A perspectiva da mercantilização desconhece que na unidade de produção camponesa dois processos centrais estão interligados: a produção e a reprodução. A produção de produtos e insumos agropecuários, florestais e pesqueiros e a reprodução social da família e das condições de produção, a família considerada não apenas do ponto de vista biológico, mas, também, como centro de decisões sobre o seu vir-a-ser produtivo e reprodutivo. Nessa perspectiva, a unidade de produção (e reprodução) camponesa exercita diferentes tarefas, entre as quais a que se refere à necessidade que têm os camponeses de coordenarem as esferas produtivas e reprodutivas com outras relevantes, tais como as esferas familiares e comunitárias, a esfera da economia mais ampla e a esfera do sistema institucional. A coordenação entre essas tarefas é estratégica para a organização do trabalho camponês, tanto na interação do trabalho mental com o manual, como sobretudo para 10 garantir o controle efetivo por parte do produtor direto do seu processo de trabalho. E esse controle tem a ver com as vantagens das relações não mercantilizadas (cf. Ploeg, 1992). Uma das dimensões da vida camponesa diretamente afetada pela generalização da mercantilização é natureza dos produtos utilizados na alimentação familiar. De uma situação onde prevalecia a presença de alimentos produzidos pelos próprios camponeses na sua unidade de produção, tidos como símbolos da fartura, da diversidade, das habilidades do artesanato culinário, do trabalho familiar cooperativo e do alimento natural e saudável, passa a preponderar aquela situação onde dominam os alimentos beneficiados de origem industrial, negando assim um dos elementos importantes identidade social camponesa representada pela capacidade de produzir, beneficiar e consumir seus próprios alimentos. Essa dimensão da complexa vida social camponesa, que se expressa na sua particularidade de produzir e consumir os alimentos de que necessita, nunca foi contraditória com a sua capacidade de vender parte da produção. A mercantilização de parcela de seus produtos “in natura” e ou beneficiados sempre esteve presente na vida camponesa, variando os volumes ora consumidos pela família ora colocados no mercado em função das condições objetivas de necessidade de obtenção de maior ou menor quantidade de renda monetária. Na tese dominante de que ao se produzir somente para a venda se poderia obter o dinheiro capaz de adquirir os itens de que a família necessitaria, nele incluídos os alimentos, se ocultam diversas concepções de mundo que contrariam e negam a própria afirmação camponesa. Talvez a mais relevante dessas idéias que subliminarmente são introjetadas na mente e nas práticas sociais dos camponeses deriva da prática burguesa das empresas agropecuárias, florestais e pesqueiras nas quais o proprietário privado dos meios de produção não é mais o produtor direto, mas apenas o dono do capital. Como a empresa capitalista no campo separou o proprietário dos meios de produção da própria produção e da natureza, o produto do processo de trabalho, em particular aquele que se utilizará como alimento, torna-se apenas uma mercadoria que se produz para obter mais dinheiro do que aquele aplicado na produção. Como essa mercadoria é para o dono dos meios de produção capitalista tão impessoal como qualquer outra, portanto, apenas um meio conjuntural de ganhar dinheiro, ela não traz intrinsecamente as significações sócioculturais e étnicas que teria e tem para os camponeses. O produto camponês, enquanto valor de uso e mesmo quando se torna mercadoria, é parte dos esforços mentais e manuais da família camponesa e, para diversos povos, da comunidade. Nele residem desejos e esperanças, sofrimentos e alegrias, tempos de trabalho de entes queridos como os membros da família, os amigos e os compadres. Possui esse produto, por vezes, significações que trazem elementos do sagrado, da divisão sexual e etária do trabalho, das relações com a natureza que lhe dão sentido e significado simbólico, do prazer em cuidar diretamente deles --- plantas e animais, num convívio diário que se faz convivência. Ora, esse produto nada tem a ver com a impessoalidade da mercadoria produzida no processo de trabalho sob o domínio burguês. Argumentam os defensores dos valores éticos dominantes que o processo trabalho capitalista aliena a mercadoria do trabalhador direto e faz-se coisa portadora de valor de 11 troca independentemente de quem a produziu. Essa assertiva é equivocada quando se refere aos produtos da natureza, aos produtos biológicos como aqueles provenientes da agropecuária, das florestas e da pesca artesanal, quando resultantes do processo de trabalho camponês. A relação do humano com os demais seres da natureza é sempre mediada por outros valores que não o lucro. A acumulação camponesa necessária para que a família consiga obter continuadamente melhores condições de vida e de trabalho, maior e melhor qualidade de vida amplo senso, é incompatível com a noção dominante de que a vida é um negócio e a produção agropecuária, florestal e pesqueiro é apenas mercadoria. A manutenção ou preservação da produção agropecuária, florestal e pesqueira pelos camponeses como passível de ser apropriada como valor de uso (consumo familiar, trocas nas vizinhanças e uso comunitário) e valor de troca (mercadorias nos mercados), numa alternatividade que faz da vida camponesa um jeito de ser diferente e contrário do burguês, não apenas traz diversidade para as sociedades contemporâneas como é capaz, ao mesmo tempo, de dar conta da demanda mundial de alimentos e matérias primas de origem primária. A ideologia de que apenas a empresa capitalista no campo é capaz de alimentar a população mundial é falaciosa e não se confirma no cotidiano da vida no mundo. Do ponto de vista da reprodução social camponesa é relevante considerar que o camponês é ao mesmo tempo o centro de decisões da sua produção e reprodução e o trabalhador direto, com a sua família, no processo de trabalho da sua unidade de produção. Diferentes tarefas são necessárias para que os domínios da produção e da reprodução se articulem e se efetivem. E, parte considerável dessas tarefas não passa pelos mercados, tais como os sistemas econômicos institucionais mais amplos, a família e a comunidade. Ploeg (op. cit.) ressalta que a unidade de produção camponesa tem como traço básico a heterogeneidade e, nessa circunstância: Não se deve identificar o domínio das relações econômicas e institucionais com os mercados existentes e as agências do mercado; O comportamento do camponês não é regido apenas pelo mercado. É necessário considerar as relações não mercantis; A coordenação entre domínios diferentes (produção e reprodução) não é um ajuste funcional; A coordenação do processo de trabalho camponês implica uma transferência de significados de um domínio a outro; A interação de diferentes domínios implica o manejo de diferentes sistinas de valores. Em relação à externalização (centro de decisão sobre o processo de trabalho fora da unidade de produção camponesa) e mercantilização, Ploeg (op. cit.) adverte ainda que: No caminho da externalização um número crescente de tarefas é separado do processo de trabalho agrícola e elas são determinadas pelos organismos externos; 12 Na indústria, a especialização crescente e a divisão do trabalho se dão no interior da fábrica. Na agricultura, com a modernização capitalista, dá-se uma externalização que gera uma multiplicação das relações mercantis; A externalização crescente afeta a produção e a reprodução camponesas; É necessário afirmar a autonomia da reprodução. O processo de reprodução não passa de modo sistemático pelos mercados; A unidade camponesa produz, mobiliza e utiliza valores de uso, em parte, para realizar os valores de troca (venda de mercadorias) e, em parte, para iniciar ciclos subseqüentes de produção (estoque de sementes, mudas e matrizes animais, aquisição de material permanente, etc.); Há subestimação da significação dos graus elementares de mercantilização. Com relação à reprodução social camponesa Ploeg (op. cit.) é enfático: A agricultura camponesa pressupõe inúmeros estilos de produção e de reprodução, graus distintos de mercantilização e não-mercantilização; As relações sociais de produção camponesas não se encontram limitadas a fenômenos econômicos e ainda menos à esfera das mercadorias; A reprodução é muito variada e não se limita somente à reprodução da força de trabalho; A reprodução do processo de trabalho em si mesmo implica a execução e coordenação simultânea ou cronológica de diferentes tarefas. Esta coordenação implica o controle do produtor direto sobre o processo de trabalho; Quando se trata o camponês como generalidade se passa por alto a complexidade do eixo relações mercantis e não mercantis em que se insere a unidade de produção camponesa; A compreensão da interação entre relações não-mercantis e relações mercantis, associadas a outros domínios como as relações familiares e comunitárias e as com o Estado poderá permitir o estabelecimento de estratégias de resistência camponesa às tentativas de subalternização do trabalho agrícola camponês ao capital. O camponês ao se integrar com a agroindústria, através de contratos de produção, perde o poder político ou de controle sobre uma parte relevante do seu domínio: o processo de trabalho. Esse poder político passa para outro centro de decisão: a agroindústria burguesa. Ao mesmo tempo, como a pressão econômica e política desse novo centro de decisão externo à unidade de produção camponesa induz à especialização da produção, inclusive determinando o processo de trabalho e os tipos de insumos a serem utilizados, o camponês fica impedido, na maior parte da vezes, de criar animais para o uso familiar, como no caso da criação de aves e de suínos integrada à agroindústria, ou de diversificar os plantios, como no caso da integração com as industrias fumageiras. Quando o camponês perde o poder político sobre o seu processo de trabalho, os elementos centrais da vida camponesa são completamente anulados ou descaracterizados, como aqueles que se expressam na diversidade de cultivos e criações, na ajuda mútua, no consumo dos alimentos que produz, nas trocas simbólicas entre os vizinhos e os parentes, 13 na vida comunitária, na relação não mercantil com a natureza e nas interações mercantis onde o valor de uso produzido torna-se valor de troca, mas mediado por diversas significações. Uma aculturação se processa. Nela, os valores de vida camponeses são abandonados para a incorporação dos valores de vida burgueses. Isso se dá num processo sócio-cultural que se efetiva sem a criticidade necessária para que as escolhas políticas camponesas se dêem nos tempos e nas formas que melhor lhes beneficiem. Ao contrário, os valores burgueses de vida que lhe são impostos pelas mais distintas maneiras, entre as quais aqueles relacionados com as transformações nos processo de trabalho e no consumo familiar, são diretamente dirigidos para que os camponeses se submetam aos interesses de classe da burguesia, em particular daquela fração de classe que controle o agronegócio burguês. Com a perda do controle efetivo sobre o seu processo de trabalho, o camponês reduz ou anula o seu poder de barganha sobre os preços praticados pela agroindústria na relação de preços estabelecidas nos contratos de produção (preços pagos e preços recebidos pelo camponês). Nessas circunstâncias, a tendência é de endividamento crônico do camponês devido às imposições de preços e de progresso técnico impostos por esse novo centro de poder. Essa dependência financeira crônica que lhe é imposta desde o exterior à sua unidade de produção é sempre favorável à agroindústria. Ao perder o domínio sobre o processo decisório na produção e depender das tecnologias impostas pela agroindústria, o camponês tende a reduzir seus esforços de pesquisa e experimentação sobre novas técnicas de cultivo, seleção e melhoramento de sementes e mudas varietais, manejo animal, novas formas de apropriação da natureza, etc. Abdica, assim, de seus conhecimentos como sujeito da produção e se torna apenas força de trabalho num processo de trabalho determinado externamente ao seu domínio. Não se torna um assalariado, pois, o camponês ainda possui o meio de produção terra que lhe permite, caso amplie o seu nível de consciência crítica e opte por se fazer sujeito da sua produção, romper com os contratos de produção e retomar o controle sobre seus processos de trabalho. O camponês, ao se submeter inteiramente ao processo de mercantilização numa sociedade onde os mercados são controlados pelas grandes empresas capitalistas, perde todas as significações historicamente construídas e vivenciadas pelas relações interpessoais e intergrupais na família, na vizinhança e na comunidade. Estas são transformadas em relações mercantis de concorrência e de estranhamento. O vizinho, o compadre, o membro da comunidade ou dos grupos de trabalho ou de lazer vão se estranhando, pois, antes de tudo o que prevalece é a fidelidade do camponês para com a empresa capitalista com a qual possui contrato de produção. E, mais, como o controle político-ideológico das agroindústrias sobre seus parceiros (sic) ou integrados é de natureza vertical, de cima para baixo, não apenas a família é submetida a esse comando do capital como lhe é impedido qualquer tipo de participação em organizações corporativas como os sindicatos e os movimentos sociais de classe. Alienado das suas representações de classe, das lutas sociais pela sua emancipação política perante o capital, o camponês se tornar um trabalhador para 14 o capital, ainda que proprietário privado do meio de produção terra e, portanto, com amplas possibilidades de superação da subalternidade política e econômica. O domínio camponês sobre a sua produção e a reprodução não implica que ele se afaste dos mercados, nem que deixe de incorporar aquelas tecnologias que considere mais apropriadas ao aumento da eficiência econômica da sua unidade de produção. Menos ainda que deixe de ser eficiente e que não intensifique a produção. A autonomia camponesa corresponde na produção e na reprodução a processos com alto nível de artesanalidade. A artesanalidade que não é o sinônimo, como a concebe a ideologia dominante, de atraso ou baixa incorporação de novas tecnologias. Ela pressupõe, isto sim, a posse efetiva dos meios de produção, o controle efetivo sobre a produção e a reprodução e uma participação como sujeito de sua prática social das famílias camponesas no rendimento da produção. A artesanalidade é, sobretudo, uma associação estreita entre trabalho mental e manual exercidos pelo mesmo sujeito da produção no seu processo de trabalho. O que está em jogo na relação entre o camponês e o capital, na disputa representada pela massificação do negócio burguês na sociedade --- e pela mercantilização generalizada, é a posse efetiva dos meios de produção e o controle sobre o processo de trabalho do campesinato. Como anteriormente comentado, os contratos de produção entre o campesinato e agroindústria transferem para a agroindústria o controle sobre o processo de trabalho e, em última instância, sobre o que e como produzir e vender (consumir). Nos contratos de arrendamento, como no caso do plantio de árvores para a produção de celulose, papel e madeiras, ou nos cultivos massivos na fruticultura, o capital tende a ter, pela subalternidade camponesa, a posse dos meios de produção e o controle efetivo da produção. E se a essas disputas desiguais entre o grande capital e o campesinato acrescentarmos o mecanismo de sujeição dos camponeses à matriz tecnológica dominante, o qual é determinado indiretamente pelo crédito rural subsidiado pelos governos, crédito esse indutor de crescente e efetivo endividamento crônico dos camponeses, tudo leva a crer que a renda líquida auferida pelos camponeses nesses contratos é o passaporte para que o capital amplie, com o apoio do Estado, a posse efetiva sobre os meios de produção camponesa e exerça o controle efetivo sobre a produção, tendo como conseqüência última o êxodo rural. Ah! Jacques, Jacques... liberte-se desse encantamento milenar, desse torpor, dessa languidez que o faz acreditar nas classes dominantes e nos seus governos. De supor que ao se tornar um capitalista, um explorador, será melhor do que se afirmar como um camponês renovado. Liberte-se da sedução que o fascina ao deixar-se levar pelas promessas e pelos apadrinhamentos dos poderosos; da idolatria que o faz transferir para um além mundo a possibilidade da libertação aqui e agora; da ilusão burguesa de que chegará a ser um deles como a fala do agronegócio burguês insinua, encanta e mistifica. 15 4. Rompendo com a subalternidade: o camponês renovado Romper com a subalternidade perante o capital é um processo complexo e nem sempre possível sem sofrimentos. No entanto, se essa ruptura com o capital pressupõe, por vezes, dissabores e padecimentos, mais além daqueles já vivenciados pelo próprio campesinato, ela desperta no camponês o renascer da esperança e o vislumbrar de novas possibilidades de viver e de se ser feliz. A subalternidade humilha e desespera. A superação da subalternidade camponesa perante o capital só é possível ao se negar o opressor, ao se tirar de dentro de cada um, das entranhas de cada camponês, aquele conjunto de valores burgueses que a dominação política e ideológica contemporânea capitalista o fez engolir em pequenas e letais doses, sempre rebuçadas pela quimera de progresso e modernidade. Os esforços e iniciativas para se superar a subalternidade do campesinato perante o capital pode se dar em duas dimensões: aquela diretamente relacionada com a posse efetiva dos meios de produção e com o controle do processo de trabalho no âmbito da unidade de produção camponesa, e uma outra dimensão, agora relacionada com as alianças políticas com o camponês-proletário, os camponeses sem terra, nas lutas sociais de classe contra o avanço das empresas capitalistas no campo e a apropriação pela burguesia dos territórios rurais. A articulação entre essas duas dimensões, a da unidade de produção camponesa e a das relações desse camponês com a sociedade global, ainda que complexa e eivada de contradições, tem como premissa geral que no Brasil, mesmo neste contexto contemporâneo de início de século XXI onde as grandes empresas capitalistas ditam a norma do viver, o campesinato tem a possibilidade, enquanto família com o acesso à terra e aos recursos naturais que ela suporta, de tornar-se autônomo perante o capital no que se refere ao processo de trabalho e à posse efetiva do meio de produção terra e dos recursos naturais nela contemplados. A autonomia perante o capital não significa não se relacionar com ele numa interação entre dois sujeitos em presença um do outro, mas, sim, não ser dominado por ele. O camponês sabe como produzir sem que dependa das sementes, das mudas e das matrizes animais, assim como dos insumos de origem industrial, todos eles sob o domínio das grandes empresas capitalistas transnacionais. Sem dúvida que essa premissa geral de autonomia camponesa não exclui aquelas alternativas da sua presença constante, seja pela compra seja pela venda, nos diversos tipos de mercados, mesmo o do crédito rural. Ao se afirmar como unidade de produção e consumo camponesa, ao manter a sua autonomia relativa enquanto produtor de valor de uso e de valor de troca, sem dependência do capital, mas em relação com ele como sujeito e não como subordinado, o camponês pode realizar, graças à renda da terra que usufrui e à sua capacidade e conhecimentos de faze-la produzir agroecologicamente, uma acumulação camponesa que lhe proporcione a realização de uma qualidade de vida e de produção média em relação à sociedade em que se insere, segundo os pressupostos de uma qualidade de vida passível de incorporar as 16 conquistas contemporâneas relacionadas com o melhor-estar tanto no desfrutar a sua existência pessoal e social, como no contribuir para uma sociedade mais justa e harmoniosa. Na construção social da sua autonomia, enquanto unidade de produção camponesa, as duas dimensões básicas que necessitam ser consideradas ---- e as iniciativas correspondentes que urgem ser desencadeadas pelos camponeses, devem ser ajustadas às condições efetivas dos modos de ser e de viver que os camponeses concretos apresentam em decorrência de fatores históricos e territoriais em que se localizam. A primeira iniciativa seria a de retomar a capacidade e a vontade política de produzir alimentos para o seu autoconsumo, sem que essa produção se restrinja a esse objetivo. É relevante salientar de que tudo aquilo que for produzido para o autoconsumo deverá também estar disponível, em qualidade, volume e apresentação para a venda nos mercados locais, regionais ou outros. Isso significa assumir que é o camponês o responsável social pela produção de alimentos. Ora, nesse sentido, o próprio camponês não deveria depender da agroindústria e dos supermercados para o abastecimento dos principais itens do consumo alimentar familiar. Redefinir que parte da produção de alimentos é para o autoconsumo familiar significa, também, além de uma decisão no campo da produção e do beneficiamento na unidade camponesa, uma decisão de autonomia relativa perante a indústria de beneficiamento e de artificialização dos alimentos (cf. Carvalho, 2002 e 2003). Do ponto de vista político-ideológico a aceitação pela família camponesa da perda de controle sobre o seu processo de trabalho, este agora sob o domínio das agroindústrias burguesas, portanto, aceitando a matriz tecnológica dominante que conduz à especialização da produção e tornando-se importadora de sementes, mudas e ou matrizes animais e dos insumos de origem industrial para o processo de trabalho que é instaurado em sua unidade de produção, essa família camponesa tende a se inserir nos mercados de maneira integral, ou seja, na relação direta com a agroindústria para o processo de trabalho e para a aquisição de alimentos nos supermercados e afins para o autoconsumo. Essa mercantilização e monetarização das suas relações com o ambiente da unidade de produção camponesa a faz abdicar político-ideologicamente da sua autonomia perante o capital. O abandono da produção para o autoconsumo e com ele das práticas de diversificação de cultivos e criações já é em parte resultado da especialização da produção induzida pelas agroindústrias e em parte pelas comodidades da compra de alimentos nos supermercados e afins. A combinação desses dois fatores contribui não apenas para que o camponês restrinja a venda do seu produto exclusivamente para as agroindústrias, mas, antes de tudo, para a perda da sua capacidade de beneficiamento de produtos ‘in natura’ na unidade de produção. Com a especialização da produção e a dependência de um único comprador (situação monopsônica) o camponês nega os princípios básicos da sua resistência econômica à dominação pelo capital sobre o seu processo de trabalho. Perde, assim, uma das variáveis centrais da garantia da autonomia da vida camponesa que é diversificação de plantios e de criações, a diversificação da oferta de produtos não somente pela diversidade da produção como pela sua capacidade de beneficiar os produtos ‘in natura’ para garantir 17 formas diferenciadas de estocagem, evitar a baixa de preços nas safras e ampliar o número de produtos ofertados pela unidade de produção. Ao se restringir a uma única fonte de rendimentos determinada pela venda do produto do processo de trabalho contratado com a agroindústria capitalista, o camponês perde a sua autonomia política ao se tornar dependente das iniciativas do capital. A segunda iniciativa camponesa, ainda na dimensão de autonomia da unidade camponesa de produção, para a superação da subalternidade perante o capital --- em interação com a primeira, é constituída pelas mudanças indispensáveis na matriz de produção e na tecnológica. Na matriz de produção haveria que se resgatar as práticas históricas camponesas tornando-as contemporâneas pela incorporação de novos conhecimentos e práticas de produção, de diversificação de cultivos e criações e de escolha de linhas de produção que apresentem alternatividades (possibilidades variadas de venda ‘in natura’ e de beneficiamentos) e capacidade de estocagem pelas práticas de processamentos (agroindústrias camponesas) simplificados. Na matriz tecnológica pela substituição de importações ou aquisição de insumos de origem agroindustrial pela produção interna. A reintrodução das sementes, mudas e matrizes animais crioulas melhoradas passam a constituir, juntamente com as práticas agroecológicas de produção de fertilizantes naturais e de manejo da fauna e flora silvestres, a base da mudança na matriz tecnológica. A autonomia camponesa perante a agroindústria é ponto central da superação da subalternidade perante o capital. Como coadjuvante a essas duas iniciativas de mudanças, tanto aquelas relacionadas com a matriz de consumo familiar, como às matrizes de produção e a tecnológica, o camponês estará se libertando da dependência crônica do crédito rural e das políticas setoriais governamentais. O processo de subalternização do camponês ao capital, em particular ao agronegócio burguês sob o domínio das grandes empresas capitalistas transnacionais, não se restringe ao camponês com terra. Essa subalternidade se estende, também, ao camponêsproletário, essa massa de trabalhadores rurais assalariados ou com posse precária de pouca terra que a usa apenas para local de moradia. A aliança política entre os camponeses com terra e os camponeses-proletários constitui a segunda dimensão a ser considerada para que uns e outros rompam com a subalternização perante o capital. Em decorrência da histórica desigualdade social no Brasil, acentuada pela concentração e centralização da renda e da riqueza rurais, pelo desemprego, pelo subemprego e ou pelo emprego em condições precárias, e pela conivência consentida dos governos com os processos de ampliação da exploração da força de trabalho dos assalariados rurais em razão das regras da suposta livre concorrência no mercado burguês da mercadoria força de trabalho, o que de fato se presencia é uma ampliação desmesurada da exploração econômica dos assalariados rurais. Essa exploração econômica é potencializada pela redução crescente das políticas públicas setoriais de educação, saúde e habilitação que ao se precarizarem reduzem uma das formas de obtenção indireta de renda dos assalariados que é representada pelos serviços proporcionados pelas políticas públicas sociais. 18 Por outro lado, a empresa capitalista no campo se afirma e se expande seja porque encontra facilidades de apropriação das terras devolutas, de crédito rural subsidiado, de incentivos tributários e de exploração dos trabalhadores rurais assalariados. Ademais, a impunidade que vivencia em relação à degradação da natureza e à poluição ambiental que pratica, faz com que a grande empresa capitalista usufrua vantagens comparativas em relação às outras empresas capitalistas em outros paises onde é menor a impunidade, pois estão sujeitas a várias restrições devido ao respeito que lhes é imposto pelas leis trabalhistas e ambientais e pela vigência efetiva dos direitos civis. A aliança entre o campesinato com terra e os sem terra é necessária para ambos: para uns estes aliança significa a solidariedade e participação na luta pela terra e pela reforma agrária, ambas indispensáveis para que os camponeses-proletários, portanto, os camponeses sem terra, possam ter acesso à posse da terra e aos recursos naturais que ela suportam, de maneira a garantir para suas famílias a posse efetiva da terra e o controle sobre o processo de trabalho. Para os camponeses com terra a luta pela reforma agrária é historicamente necessária para deter e superar, pela democratização do uso e posse da terra, a crescente concentração da terra pelas empresas capitalistas nacionais e estrangeiras, com a conseqüente perda da terra por parte de milhares de camponeses, assim como para evitar a apropriação privada das terras devolutas por essas empresas e a afirmação do modelo de produção e o tecnológico dominante. A afirmação e garantia da autonomia camponesa perante o capital representa um bloqueio às pretensões expansionistas das grandes empresas capitalistas sobre todas as formas de produção, à tendência contemporânea de controle dos territórios por parte dessas empresas, à degradação do meio ambiente que o modelo econômico dominante provoca e estimula, de exploração crescente da força de trabalho e, sobretudo, pela possibilidade histórica do campesinato com terra e dos sem terra de estabelecerem formas mais democráticas de relações sociais, de exercitarem outros valores éticos distintos daqueles supostos e praticados pela burguesia, de evidenciarem que outra relação com a natureza é possível e desejada, de construírem outros caminhos para o progresso tecnológico, enfim, de mostrarem que outro mundo é possível. Ah! Jacques, Jacques... liberte-se desse encantamento milenar, desse torpor, dessa languidez que o faz acreditar nas classes dominantes e nos seus governos. De supor que ao se tornar um capitalista, um explorador, será melhor do que se afirmar como um camponês renovado. Liberte-se da sedução que o fascina ao deixar-se levar pelas promessas e pelos apadrinhamentos dos poderosos; da idolatria que o faz transferir para um além mundo a possibilidade da libertação aqui e agora; da ilusão burguesa de que chegará a ser um deles como a fala do agronegócio burguês insinua, encanta e mistifica. 19 Literatura citada Carvalho, Horacio Martins (2000). A crise de identidade dos pequenos produtores rurais. Curitiba, setembro, mimeo 5 p. ----------- (2002). Comunidade de resistência e superação. Curitiba, fevereiro, mimeo, 48 p. ----------- (2003). O oligopólio na produção de sementes e a tendência à padronização da dieta alimentar mundial, in Carvalho, Horacio Martins (org.) (2003). Sementes, patrimônio do povo a serviços da humanidade. São Paulo, Expressão Popular, pp. 95-112. Ploeg, Jan Douve van der. El proceso de trabajo agrícola y la mercantilización, in Guzmán, Eduardo Sevilla e Molina, Manuel Gonzalez (1992). Ecología, campesinato e historia. Madrid, La Piqueta, pp.153 - 195, Parte I, cap. 4.