OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal Gestão 2007/2010 255 p. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL CONSELHO FEDERAL COMISSÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Brasília 2009 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI SUMÁRIO Prefácio Cezar Britto.........................................................................................................07 Apresentação Agesandro da Costa Pereira..................................................................................09 Declaração Universal dos Direitos Humanos......................................................15 Da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Gênese, Conteúdo Normativo e Alcance Antonio Augusto Cançado Trindade....................................................................23 De La Declaracion Universal de Derechos Humanos Beinusz Szmukler.................................................................................................31 Igualdade de Direitos: Conquista da Humanidade Dalmo de Abreu Dallari.......................................................................................41 A Declaração Universal dos Direitos Humanos Edmundo Oliveira…………………………………………………………………………...........………49 Ninguém será Submetido à Tortura Fábio Konder Comparato......................................................................................55 Direito a Privacidade e à Liberdade de Viver sem Medo Flávia Piovesan.....................................................................................................59 Direito de Asilo João Baptista Herkenhoff.....................................................................................63 Igualdade, Liberdade e a Declaração Universal dos Direitos Humanos João Luiz Duboc Pinaud.......................................................................................71 Direitos Humanos dos Povos Indígenas Joênia Wapichana...............................................................................................79 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 José Luciano de Castilho Pereira………………………………………………………................85 O Emergir Doloroso da Consciência Universal dos Direitos Humanos Luis Henrique Beust…………………………………………………………………………………….….97 5 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Da Lei, do Delito e dos Direitos Humanos Marcos Antonio Paiva Colares……………………………………..………………………………111 Igualdade na Diferença: eis a questão Maria José de Figueiredo Cavalcanti.................................................................115 O Direito a Mobilidade Humana Marina Silva......................................................................................................125 Paz e Guerra Moacyr Scliar.....................................................................................................129 Direito à Vida Paulo Vannuch...................................................................................................135 Enquadramento Jurídico da Tortura em Documentos Normativos Internacionais e Brasileiros Pedro Borromoletz de Abreu Dallari……………………………………….............………...141 Todas as Pessoas Nascem Livres e Iguais em Dignidade e Direitos Plínio Arruda Sampaio.......................................................................................155 Novos Tempos, Novos Rumos Renato Zerbini Ribeiro Leão.............................................................................161 Direito a Julgamento Público, Imparcial e Justo: o fortalecimento de um diálogo humano Ricardo Balestreri..............................................................................................187 Direito do Indivíduo em Relação ao seu Grupo e aos Bens Romany Roland Cansanção Mota.....................................................................193 O Tribunal Penal Internacional e o Direito Interno Silvia Helena Steiner..........................................................................................199 A Educação como Passaporte para a Cidadania Vicente de Paula Faleiros..................................................................................213 Liberdade de Ser, Pensar e Crer – Desafios à Intolerância Washington Araújo...........................................................................................235 A Exaustiva Jornada da Humanidade Xavier J. M. Plassat............................................................................................245 6 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI PREFÁCIO A cena internacional enfrenta atualmente momento de perplexidade ante a constatação da interdependência entre países e povos e a necessidade premente de lançar os alicerces para a construção de uma paz sólida e duradoura. Se por um lado encontramos ilhas de prosperidade no mundo atual, ao mesmo tempo nos damos conta de muitos países onde seus povos vivem em descompasso com a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. Organismos multilaterais são criados em todos os continentes do planeta, sinal positivo emitido por aqueles que defendem o diálogo como instrumento de resolução de conflitos. Organizações Não-Governamentais divulgam regularmente relatórios em que muitos países são omissos quando não partícipes de ações sistemáticas para a violação dos direitos humanos. É neste contexto que a Ordem dos Advogados do Brasil chamou parta si a responsabilidade d eco0nvocar a IV Conferência Internacional dos Direitos Humanos, ensejando um ambiente adequado à reflexão mais urgente e que, por sua relevância, veio a ser o tema maior do evento: Os direitos humanos desafiando o século XXI. Com o ocaso das ideologias, o inaudito progresso dos meios de comunicação e o encurtamento das distâncias entre povos e nações, culturas e tradições é evidente o elevado grau de questionamento quanto à proteção do rico patrimônio da humanidade – um patrimônio assentado sobre a extensa diversidade humana. Promover os direitos humanos, trabalhar para que sejam respeitados pelos governos e sociedades é acreditar na construção de uma nova Ordem Mundial fundada na justiça e na solidariedade. Temos a convicção que esta luta pela dignidade humana deve ser a preocupação dos povos e Estados ante a constatação da necessidade de instruir a consciência de novos valores civilizatórios. O enfrentamento de desafios dessa monta requer esforços contínuos visando ao desenvolvimento de valores culturais, morais, espirituais, bem como o exercício da tolerância e concomitante valorização da diversidade. Estes são os propósitos que guiam as reflexões aqui enfeixadas e sobre os quais se debruçaram pensadores, filósofos, juristas, educadores sempre tendo como pano de fundo os postulados integrantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Cezar Britto Presidente Nacional da OAB 7 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI APRESENTAÇÃO A grande e inadiável tarefa que se apresenta, hoje, para os filósofos, juristas e políticos é aquela de recolocar o homem no lugar que lhe compete ocupar no seio da sociedade, aquele lugar de figura central que lhe reservavam sábios sofistas da antiga Grécia, em conhecida máxima: o homem é a medida de todas as coisas. Na verdade, hoje, como ontem, o homem, em todos os lugares do mundo, aspira emergir da condição de súdito ao status den cidadão, quer ser mais como pessoa e como membro da sociedade política, ambiciona ter direitos civis, políticos e sociais, reclama o respeito a sua pessoa e a sua dignidade. É a história que este status de cidadão, o homem não o ganhou por encanto, mas o conquistou nas lutas difíceis e ininterruptas que empreendeu, ora disfarçadas e ora abertas, na postura de oprimidos, escravos, servos, plebeus, e súditos, contra os déspotas de todos os naipes, em busca das mudanças revolucionarias na sociedade que lhes pudessem assegurar os direitos e liberdades fundamentais indispensáveis a dignidade de sua pessoa. Palmilhando esta rota de ascensão política, lenta, gradual e difícil, em que amargou reveses dolorosos, o homem contabilizou avanços, alguns bastante significativos, no rol dos quais, a inserção de capítulos relativos ao reconhecimentos e proteção dos seus direitos e liberdades fundamentais nas constituições democráticas modernas, com marco inicial na Constituição Francesa de 1.791. A partir destas balizas, são mais duzentos anos de historia, em um primeiro momento, no curso do século XVIII, os homens obtém o reconhecimento de direitos civis, depois, no século seguinte, ao lado destes, alcançam direitos políticos, para, em seguida, conseguir direitos sociais e econômicos, bem como aqueles outros, os chamados de terceira e quarta geração, que foram brotando paulatinamente na medida que surgiram novas ameaças a sua dignidade e liberdade. Nesta quadra, nos diferentes Estados, os direitos humanos, nascidos ao sabor das circunstancias vigentes em cada um deles, ainda que elevados à dignidade constitucional, são, na verdade, direitos nacionais, reconhecidos 9 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI como direitos dos cidadãos de cada Estado e protegidos apenas dentro de suas respectivas fronteiras. Entretanto, esta tutela se revelou insuficiente para a proteção efetiva dos direitos humanos vez que estes são direito universais, no sentido de que os seus destinatários não são mais apenas os cidadãos de um Estado, mas todos os homens da terra, e, nesta dimensão, o seu reconhecimento e proteção circunscritos a fronteiras nacionais, não pôde evitar, sobretudo na primeira metade do século passado, ante a agonia de crenças, valores e sistemas, os holocaustos que a humanidade assistiu e sofreu indefesa. É de salientar-se que, terminada Segunda Guerra Mundial, quando extensas regiões do planeta estavam mergulhadas sob os escombros morais e materiais do conflito, os homens do mundo inteiro, profundamente alarmados com tudo que acontecera, se dedicaram a difícil tarefa de construir o seu futuro sob a inspiração de novos modelos e instrumentos políticos, não aviltados pelas aludidas deficiências. Estas novas ferramentas políticas, segundo os sociólogos, juristas e políticos de boa vontade, comprometidos com construção do novo mundo, deveriam ser plasmados, sob a inspiração dos ideais do respeito a dignidade humana e da proteção de seus direitos fundamentais, da democracia e da paz, pois, sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia e sem democracia não pode haver paz. Com tais objetivos, sob tais auspícios e apelos, é que a Organização das Nações Unidas, editou a sua Declaração Universal dos Direitos Humanos, o primeiro instrumento legal a reunir um conjunto de princípios que incorporaram os direitos e liberdades da pessoa humana, plasmando a fonte de um direito cosmopolita, sob o enfoque rigorosamente ético, o consenso universal, e, como tal, imposto aobservância dos seus destinatários. Entretanto, não se pode esquecer que, apesar dos esforços de todos os seus defensores, o caminho a percorrer para que aquele documento cumpra integralmente seu destino, ainda é longo e difícil, restam desafios a serem vencidos. Penso, que, este, que era o grande desafio de ontem, continua a 10 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI ser o mesmo desafio de hoje, passados sessenta anos da proclamação solene da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a necessidade imperiosa de proteger os direitos que ela proclama, por meio de providencias adequadas e eficientes, de moldes a impedir que eles continuem a ser violados, como vem sendo, a cada dia com maior freqüência e intensidade. Milhões de pessoas no mundo inteiro são violentadas, humilhadas, ofendidas e discriminadas, por suas crenças, por suas raças, por seus valores, por suas convicções políticas, enfim, por sua resistência às forças poderosas que dominam o mundo de hoje. Subsistem as ditaduras, as truculências, os conflitos, os genocídios, e os holocaustos como métodos de ação política, externa e interna, para construir impérios, plasmar dominações, institucionalizar a rapinagem, sustentar interesses escusos, amparar privilégios caducos e custodiar preconceitos absurdos, semeando a destruição e a morte. O pior de tudo isto, é que estes desatinos são perpetrados por conhecidos malfeitores, sob a cínica invocação da defesa dos direitos do homem, ladainhas tantas vezes repetidas nos órgãos de comunicação, que chegam a ser aceitas por muitos, como expressões de verdade. Estes fatos lamentáveis, que ocorrem nos diferentes cenários do mundo, vazios de compromissos éticos, tem servido aos corifeus das estruturas caducas, para questionar a eficácia da declaração, atribuindo-lhe uma dimensão utópica, incompatível com as exigências do desenvolvimentos político, social e econômico das nações. Estas colocações, falhas em valoração ética, e, improcedentes em apreciação política, representam, tão somente, cínicas aleivosias, de que se valem os reacionários para a interpretação nadequada de realidade, com o propósito indisfarçável de sufocar ações, postas em sintonia com os justos anseios da sociedade. Penso que, ao lado das atividades implantadas pelos organismos internacionais para assegurarem a tutela dos direitos humanos, nestes últimos anos, a mais ampla divulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de moldes a torná-la conhecida e entendida por milhões de pessoas que vivem a sua 11 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI margem no mundo inteiro, mesmo no nosso País, representa uma contribuição do maior relevo para a construção de uma civilização de paz e fraternidade. Com tais propósitos e esperanças, Ordem dos Advogados do Brasil, por sua Comissão Nacional dos Direitos Humanos, fez inserir no rol de suas celebrações do sexagésimo aniversario da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como a mais relevante de todas elas, o lançamento deste livro “Sessenta Anos da Declaração dos Direitos Humanos - Conquistas e Desafios”, com o propósito de contribuir para que aquele documento se torne mais conhecido, mais amado, mais observado e mais eficiente, de moldes a alcançar plenamente aos fins a que se destinou, na linha das esperanças daqueles que, em todos os cantos do mundo, trabalham em prol da dignificação da pessoa humana. Este livro não é uma singela reedição dos “Cinqüenta Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos - Conquistas e Desafios”, lançada há dez anos, com os mesmos propósitos, mas um livro novo, escrito por autores novos da melhor estirpe, que se debruçaram sobre as realidades, as crises e os problemas do mundo de hoje, em cujas claves, os princípios éticos cederam lugar as expectativas de um progresso neutro, alheio aos valores humanos, com resultados desalentadores e muitas vezes trágicos. Nesta dimensão, o livro além dos seus denunciados propósitos, consigna uma convocação, uma denûncia e uma profissão de fé. Uma convocação a todos os homens e mulheres de boa vontade a uma grande jornada, a de tornar efetivos, atuantes e protegidos todos os direitos humanos, solenemente declarados, em todos os cantos da terra, de moldes a assegurar seus benefícios a milhões de pessoas que, dele, são privadas deles ao impacto de políticas cínicas e maquiavélicas, habilidosamente plasmadas, ou descarados atos de violência. Uma denûncia expressa na veemente condenação às políticas amorais que se definem como a arte de conquistar e conservar o poder, no âmbito interno ou externo, por meio da fraude ou da violência, com a única condição de que esse meio lhe assegure o sucesso, e, nesta trajetória, afronta a dignidade da pessoa humana e lhe nega seus direitos fundamentais. 12 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Nesta dimensão, este livro é também uma profissão de fé nos homens e mulheres de todo o mundo que lutam para construir uma civilização de paz. Neste ensejo, agradeço ao Eminente Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Raimundo César Brito Aragão, que, na linha dos seus compromissos com a face institucional da entidade, acolheu este projeto, o apoiou e disponibilizou todos os recursos materiais e imateriais para sua concretização. Por igual, agradeço a todos os membros da Comissão Nacional dos Direitos Humanos, pelo trabalho zeloso e eficiente, no exercício de suas responsabilidades, e seus servidores Evandro Vitoriano Elias, e Mary Cristina Ramalho pelo zelo e dedicação com que participaram do planejamento e execução do projeto. Agradeço, finalmente, aos autores dos preciosos trabalhos reunidos neste livro, todos eles escritores do mais alto conceito, amadurecidos intelectualmente, posicionados na vanguarda do pensamento ético, social e político do nosso tempo, pela inestimável e prestigiosa colaboração que prestaram a esta empresa e a esta obra magistral. Agesandro da Costa Pereira Conselheiro Federal Presidente da Comissão Nacional de Direito Humanos 13 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Preâmbulo Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, 15 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A Assembléia Geral proclama A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios EstadosMembros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. Artigo I Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. Artigo II Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Artigo III Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo IV Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. Artigo V Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. 16 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Artigo VI Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei. Artigo VII Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo VIII Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. Artigo IX Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo X Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo XI 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido assegurada todas as garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco 17 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso. Artigo XII Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. Artigo XIII 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar. Artigo XIV 1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas. Artigo XV 1.Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade. Artigo XVI 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma 18 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. Artigo XVII 1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. Artigo XVIII Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. Artigo XIX Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Artigo XX 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas. 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação. Artigo XXI 1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 19 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto. Artigo XXII Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Artigo XXIII 1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentará, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses. Artigo XXIV Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas. Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de 20 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social. Artigo XXVI 1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero de instrução que será ministrada aos seus filhos. Artigo XXVII 1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor. Artigo XVIII Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos 21 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI e liberdades estabelecidas na presente Declaração possam ser plenamente realizadas. Artigo XXIV 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas. Artigo XXX Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos. 22 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS: GÊNESE, CONTEÚDO NORMATIVO E ALCANCE Antônio Augusto Cançado Trindade* O artigo 8 da Declaração Universal de Direitos Humanos conta com um histórico legislativo dos mais significativos, reveste-se de transcendental importância ao consagrar o direito de acesso à justiça, e tem gerado nos últimos anos uma notável jurisprudência dos tribunais internacionais de direitos humanos. As atuais comemorações dos sessenta anos da Declaração Universal de Direitos Humanos (adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas aos 10 de dezembro de 1948) representam uma ocasião das mais oportunas para resgatar a gênese e identificar o conteúdo normativo e o alcance do artigo 8 da Declaração Universal, a qual deu o ímpeto inicial à gradual generalização da proteção internacional dos direitos humanos. A Declaração como um todo, - cabe recordar, - abriu caminho para a adoção dos mais de setenta tratados sobre a matéria que em nossos dias operam regular e permanentemente nos planos global e regional; inspirou a incorporação de diversas normas de direitos humanos a sucessivas Constituições e legislações nacionais de numerosos países; e serviu de fundamento a numerosas decisões de tribunais internacionais e nacionais. A Declaração Universal, como interpretação autêntica das disposições de direitos humanos da Carta das Nações Unidas, encontra-se hoje incorporada ao domínio do direito internacional consuetudinário, sendo expressão de alguns princípios gerais do Direito. A referida Declaração contribuiu decisivamente ao processo histórico da humanização do Direito Internacional contemporâneo1. Os travaux préparatoires da Declaração Universal de 1948 Ph.D. (Cambridge); Ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio-Branco; Doutor Honoris Causa por distintas Universidades latino-americanas; Membro Titular do Curatorium da Academia de Direito Internacional da Haia, do Institut de Droit International, e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. * 1 . Cf., a respeito, A.A. Cançado Trindade, “International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium - General Course on Public International Law - Part I”, 316 Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye (2005) pp. 31-439; A.A. Cançado Trindade, “International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium -General Course on Public International Law - Part II”, 317 Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye (2005) pp. 19-312. 23 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI comportaram fases distintas. A antiga Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas decidiu pela elaboração de um projeto em abril/maio de 1946, quando designou uma “comissão nuclear” para os estudos iniciais. Paralelamente, conduziu a UNESCO consultas (no decorrer de 1947) a reconhecidos pensadores da época sobre as bases de uma futura Declaração Universal. O projeto da Declaração propriamente dito foi preparado no âmbito da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, por um Grupo de Trabalho que o elaborou entre maio de 1947 e junho de 1948. A partir de setembro de 1948, o projeto da Declaração passou ao exame da III Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas, para enfim ser aprovado em 10 de dezembro daquele ano pela própria Assembléia2. Uma das disposições mais importantes da Declaração Universal de Direitos Humanos encontra-se precisamente em seu artigo 8, segundo o qual toda pessoa tem direito a um recurso efetivo ante os tribunais nacionais competentes contra os atos violatórios dos direitos fundamentais que lhe são outorgados pela Constituição ou pela lei. O artigo 8 consagra, em última instância, o direito de acesso à justiça (no plano do direito interno), elemento essencial em toda sociedade democrática. O projeto de artigo que se transformou no artigo 8 da Declaração Universal, a despeito de sua relevância, só foi inserido no projeto na etapa final dos travaux préparatoires da Declaração Universal, quando já se encontrava a matéria em exame na III Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Apesar disso, significativamente não encontrou qualquer objeção, tendo sido aprovado na III Comissão por 46 votos a zero e três abstenções, e no plenário da Assembléia Geral por unanimidade. A iniciativa, tardia mas revestida de tanto êxito, proveio de Delegações dos Estados latino-americanos (tendo tido o México como portavoz). Pode-se mesmo considerar que o artigo 8 representa a contribuição latinoamericana por excelência3 à Declaração Universal. Tanto foi assim que, na Conferência de Bogotá que adotou a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem de abril de 1948, uma disposição correspondente, no mesmo sentido, havia sido adotada por unanimidade das .Cf. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, 2a. ed., vol. I, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 2003, capítulo I, pp. 51-87; UNESCO, Los Derechos del Hombre - Estudios y Comentarios en torno a la Nueva Declaración Universal, México/ Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1949, pp. 233-246. 3 . A iniciativa latino-americana se influenciou fortemente nos princípios que regem o recurso de amparo, já então consagrado em muitas das legislações nacionais dos países da região. 2 24 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 21 Delegações presentes. A disposição do artigo 8 da Declaração Universal se inspirou, desse modo, na disposição equivalente do artigo XVIII da Declaração Americana que a antecedeu em oito meses. O argumento básico que levou à inserção desta disposição nas Declarações Americana e Universal de 1948 residiu no reconhecimento da necessidade de suprir uma lacuna em ambas: proteger os direitos do indivíduo contra os abusos do poder público, submeter todo e qualquer abuso de todos os direitos individuais ao julgamento do Poder Judiciário no plano do direito interno4. Em suma, a consagração original do direito a um recurso efetivo ante os juízes ou tribunais nacionais competentes na Declaração Americana (artigo XVIII) foi transplantada para a Declaração Universal (artigo 8), e desta última para as Convenções Européia e Americana sobre Direitos Humanos (artigos 13 e 25, respectivamente), assim como para o Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (artigo 2(3)). A projeção do artigo 8 da Declaração Universal nos tratados de direitos humanos hoje vigentes contribui ao reconhecimento em nossos dias de que esta garantia judicial fundamental constitui um dos pilares básicos do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática. O artigo 8 da Declaração Universal, e as disposições correspondentes nos tratados de direitos humanos vigentes, estabelecem o dever do Estado de prover recursos internos eficazes. É em razão deste dever que se exige dos indivíduos demandantes, que interpõem denúncias de violações de seus direitos ante instâncias internacionais, o prévio esgotamento dos recursos de direito interno (como condição de admissibilidade das referidas denúncias). O dever do indivíduo de esgotar tais recursos encontra-se inelutavelmente vinculado ao dever do Estado de prover recursos internos eficazes. O critério que aqui prevalece é o da eficácia dos recursos internos: não basta que estejam formalmente disponíveis, tem o Estado que demonstrar que são na prática adequados e eficazes. Caso contrário, não há recursos internos que esgotar, e as supostas vítimas de violações têm o campo aberto para acudir de imediato às instâncias internacionais de proteção. Assim, é o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos que atribui funções 4 .Cf. A. Verdoodt, Naissance et signification de la Déclaration Universelle des Droits de l’Homme, Louvain, Nauwelaerts, [1963], pp. 116-119; A. Eide et alii, The Universal Declaration of Human Rights - A Commentary, Oslo, Scandinavian University Press, 1992, pp. 124-126 e 143-144; R. Cassin, “Quelques souvenirs sur la Déclaration Universelle de 1948”, 15 Revue de droit contemporain (1968) n. 1, p. 10; R. Cassin, “La Déclaration Universelle et la mise en oeuvre des droits de l’homme”, 79 Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye (1951) pp. 328-329. 25 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de proteção ao direito interno dos Estados. Os recursos de direito interno passam, desse modo, a integrar os procedimentos da própria proteção internacional dos direitos humanos5. O direito internacional e o direito interno encontram-se em constante interação no presente domínio de proteção, em benefício dos seres humanos protegidos. O dever dos Estados de prover recursos internos adequados e eficazes, consagrado nos tratados de direitos humanos a partir da proclamação inicial nas Declarações Americana (artigo XVIII) e Universal (artigo 8) de Direitos Humanos, constitui efetivamente um pilar básico não só de tais tratados como do próprio Estado de Direito em uma sociedade democrática, e sua aplicação correta tem o sentido de aprimorar a administração da justiça em nível nacional. Além disso, esta disposição-chave encontra-se intimamente vinculada à obrigação geral dos Estados, consagrada igualmente nos tratados de direitos humanos, de respeitar os direitos nestes consagrados e garantir o livre e pleno exercício dos mesmos a todas as pessoas sob suas respectivas jurisdições (e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 1(1); Convenção Européia de Direitos Humanos, artigo 1; Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, artigo 2(1)). Assim, por meio da consagração do direito a um recurso efetivo ante os juízes ou tribunais nacionais competentes, e da obrigação geral - a este direito indissociavelmente ligada - da garantia dos direitos protegidos, os tratados de direitos humanos atribuem funções de proteção ao direito interno dos Estados Partes. A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem precisado a natureza jurídica e o alcance do direito consagrado no artigo 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a partir de sua decisão quanto ao mérito no caso de Castillo Páez versus Peru (1997), e dos julgamentos quanto ao mérito nos casos, e.g., de Suárez Rosero versus Equador (1997), Paniagua Morales e Outros versus Guatemala (1998), Blake versus Guatemala (1998), “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e Outros) versus Guatemala (1999), Cantoral Benavides versus Peru (2000), Bámaca Velásquez versus Guatemala (2000), Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni versus Nicarágua (2001), Hilaire, Benjamin e Constantine . A.A. Cançado Trindade, The Application of the Rule of Exhaustion of Local Remedies in International Law, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, pp. 1-445; A.A. Cançado Trindade, O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito Internacional, 2a. ed., Brasília, Edit. Universidade de Brasília, 1997, pp. 1-327. 5 26 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI versus Trinidad e Tobago (2002), Cantos versus Argentina (2002), J.H. Sánchez versus Honduras (2003), M. Urrutia versus Guatemala (2003), Tibi versus Equador (2004), Yatama versus Paraguai (2005), Palamara Iribarne versus Chile (2005). A Corte Européia de Direitos Humanos, a seu turno, tem igualmente se debruçado sobre a matéria, que forma hoje objeto de uma vasta jurisprudência sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, a par de um denso debate doutrinário6. Tal jurisprudência, em seus primórdios, sustentava o caráter “acessório” do direito consagrado no artigo 13 da Convenção Européia, encarado - a partir dos anos oitenta - como garantindo um direito substantivo individual subjetivo. Gradualmente, em seus julgamentos quanto ao mérito nos casos de Klass versus Alemanha (1978), Silver e Outros versus Reino Unido (1983), e Abdulaziz, Cabales e Balkandali versus Reino Unido (1985), a Corte Européia passou a reconhecer o caráter autônomo do artigo 13. Após anos de hesitações, a Corte Européia, em seu julgamento quanto ao mérito no caso de Aksoy versus Turquia (1996), determinou a ocorrência de uma violação “autônoma” do direito a um recurso efetivo ante as instâncias nacionais competentes (artigo 13 da Convenção Européia). Posteriormente, vem destacando a alta relevância do artigo 13, em decisões sucessivas a partir de seu julgamento quanto ao mérito no caso Kudla versus Polônia (2000). O direito a um recurso eficaz ante as instâncias nacionais competentes tem sua efetividade em muito fortalecida nos Estados que incorporaram as disposições dos tratados de direitos humanos em seus ordenamentos jurídicos internos respectivos. Tal incorporação é uma medida das mais desejáveis e necessárias7; no entanto, os Estados Partes que a ela não tiverem procedido, nem por isso estão eximidos de assegurar sempre a proteção e garantias judiciais dos artigos 25 e 13, respectivamente, das Convenções Americana e Européia de Direitos Humanos, emanadas do artigo 8 da Declaração Universal de Direitos Humanos. A Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, por sua vez, estabeleceu 6 . Cf., e.g., P. Mertens, Le droit de recours effectif devant les instances nationales en cas de violation d’un droit de l’homme, Bruxelles, Éd. de l’Univ. de Bruxelles, 1973, pp. 1-151; D.J. Harris, M. O’Boyle e C. Warbrick, Law of the European Convention on Human Rights, London, Butterworths, 1995, pp. 443461; L.-E. Pettiti, E. Decaux e P.-H. Imbert, La Convention Européenne des droits de l’homme, Paris, Economica, 1995, pp. 455-474. 7 . Cf., no tocante ao Brasil, A.A. Cançado Trindade (Editor), A Incorporação das Normas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro, 2a. edição, Brasília/San José da Costa Rica, IIDH/ACNUR/CICV/CUE/ASDI, 1996, pp. 1-845. 27 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI violações das garantias judiciais (artigo 7(1) da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos) em suas decisões nos casos, e.g., de “Rencontre Africaine pour la Defense des Droits de l’Homme” versus Zâmbia (1996), “Constitutional Rights Project” (em relação a Akamu, Adega et alii) versus Nigéria (1995), Alhassan Abubakar versus Gana (1996). Cumpre ter sempre presente que, ao ratificar os tratados de direitos humanos, os Estados Partes contraem, a par das obrigações específicas relativas a cada um dos direitos protegidos, a obrigação geral de adequar seu ordenamento jurídico interno às normas internacionais de proteção. As duas Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986, respectivamente) proíbem que uma Parte invoque disposições de seu direito interno para tentar justificar o descumprimento de um tratado (artigo 27). É este um preceito, mais do que do direito dos tratados, do direito da responsabilidade internacional do Estado, firmemente cristalizado na jurisprudência internacional. Segundo esta última, as supostas ou alegadas dificuldades de ordem interna são um simples fato, e não eximem os Estados Partes em tratados de direitos humanos da responsabilidade internacional pelo não-cumprimento das obrigações internacionais contraídas8. Desse modo, não é dado àqueles Estados invocar supostas dificuldades ou lacunas de direito interno, porquanto estão obrigados a harmonizar este último com a normativa dos tratados de direitos humanos em que são Partes (e.g., Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 2; Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, artigo 2(2)9. Não há que passar despercebido que a Declaração Universal de 1948 atribui importância capital ao princípio básico da igualdade e não-discriminação, dado que - em seus próprios termos - todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Tendo presente a concepção da Declaração Universal, . A jurisprudência tanto da antiga Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI) como da Corte Internacional de Justiça (CIJ) assinala que as obrigações internacionais devem ser cumpridas de boa fé, não podendo os Estados invocar, como justificativa para seu descumprimento, disposições de direito constitucional ou interno. CPJI, caso das Comunidades Greco-Búlgaras (1930), Série B, n. 17, p. 32; CPJI, caso dos Nacionais Polacos de Danzig (1931), Série A/B, n. 44, p. 24; CPJI, caso das Zonas Livres (1932), Série A/B, n. 46, p. 167; CIJ, caso da Aplicabilidade da Obrigação de Arbitrar sob o Convênio de Sede das Nações Unidas (caso da Missão da OLP), ICJ Reports (1988) pp. 31-32, par. 47. 9 . Assim sendo, se invocam a não-incorporação, ou supostas dificuldades ou lacunas de direito interno, para deixar de prover recursos internos simples e rápidos e eficazes para dar aplicação efetiva às normas internacionais de proteção dos direitos humanos, estão incorrendo em uma violação adicional dos tratados de direitos humanos em que são Partes. 8 28 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu histórico e aclamado Parecer n. 18, de 17.09.2003, sobre a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados, situou com lucidez o princípio fundamental da igualdade e nãodiscriminação no domínio do jus cogens10, após invocar devidamente a Declaração de 194811. Enfim, as normas nacionais e internacionais de proteção formam efetivamente um todo harmônico, não mais se justificando abordá-las, como no passado, de forma estanque ou compartimentalizada. Convergem em seu propósito comum e último de proteção do ser humano. A relevância do dever do Estado de prover recursos internos adequados e eficazes não há jamais que ser minimizada. Como assinalei em meu extenso Voto Separado (parágrafos 35-43) no caso do Massacre de Pueblo Bello versus Colômbia (julgamento quanto ao mérito e reparações de 31.01.2006)12, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sempre e corretamente associado, até o presente, a proteção judicial (artigo 25) às garantias do devido processo legal. O direito a um recurso efetivo ante os juízes ou tribunais nacionais competentes no âmbito da proteção judicial - ao qual a Declaração Universal 1948 deu projeção mundial, mediante seu artigo 8, - é muito mais relevante do que até recentemente se supôs. Tal direito de acesso à justiça - nos planos nacional e internacional13 - deve ser entendido lato sensu, como abarcando não só o acesso formal a um tribunal ou juiz, mas também o respeito às garantias do devido processo, o direito à prestação jurisdicional, e as devidas reparações, mediante a execução plena da sentença. Trata-se, em última análise, de um verdadeiro direito ao Direito. . Parágrafos 97-101 do referido Parecer n. 18. E cf. o extenso Voto Concordante do Juiz Presidente A.A. Cançado Trindade, parágrafos 1-89, texto reproduzido in: A.A. Cançado Trindade, Derecho Internacional de los Derechos Humanos - Esencia y Trascendencia (Votos en la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 1991-2006), México, Edit. Porrúa/Universidad Iberoamericana, 2007, pp. 52-87. 11 . Parágrafo 71 do mencionado Parecer n. 18. - Cf., a respeito, recentemente, A.A. Cançado Trindade, “Le déracinement et la protection des migrants dans le Droit international des droits de l’homme”, 19 Revue trimestrielle des droits de l’homme - Bruxelles (2008) n. 74, pp. 289-328. 12 . Texto do referido Voto reproduzido in: A.A. Cançado Trindade, Derecho Internacional de los Derechos Humanos - Esencia y Trascendencia (Votos en la Corte Interamericana de Derechos Humanos, 1991-2006), México, Edit. Porrúa/Universidad Iberoamericana, 2007, pp. 629-654. 13 . A.A. Cançado Trindade, El Acceso Directo del Individuo a los Tribunales Internacionales de Derechos Humanos, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, pp. 9-104; A.A. Cançado Trindade, Évolution du Droit international au droit des gens - L’accès des particuliers à la justice internationale: le regard d’un juge, Paris, Pédone, 2008, pp. 1-187. 10 29 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DE LA DECLARACION UNIVERSAL DE DERECHOS HUMANOS Beinusz Szmukler* Kant sostuvo que “no hay más que un derecho natural e innato: la libertad (independencia del albedrío de otros) en la medida que puede coexistir con la libertad de todos, según una ley universal; este derecho es único, primitivo, propio de cada hombre, por el solo hecho de ser hombre” La prisión aunque sea provisional, acarrea graves daños morales y materiales al procesado, que, en el ulterior juzgamiento puede ser reconocido inocente. La privación de libertad personal por el Estado es una facultad atribuida por el ordenamiento jurídico, como una reacción contra quienes incurren en una conducta violatoria de derechos de otras personas o del orden social, definidas legalmente por su gravedad como delitos. El principio liberal de presunción de inocencia, y su correlato que exige que la desmoralizante y lesiva medida de privación de libertad sólo se aplique cuando hay certidumbre de culpabilidad del procesado, es una conquista lentamente obtenida frente al poder omnímodo del monarca absoluto, que definía por si mismo la pérdida de libertad, el castigo físico, y hasta la muerte de sus súbditos. En el Digesto Romano de “Homine libero exhibendo”, cuya ley 1ª ordena: ”Exhibe al hombre libre que retienes con “dolo malo”, antecedente remoto de la Carta Magna de 1265 en Inglaterra, que los nobles obtienen como consecuencia de la derrota del rey Juan Sin Tierra, que entre otras cosas les otorga que ninguno de ellos, bajo la misma fórmula “hombre libre”, pueda ser detenido ni perjudicado en su posición ni declarado fuera de la ley ni exiliado, de no ser por juicio legal por sus iguales o por la ley del país. En 1628, el Parlamento le arranca al monarca Carlos I “La petición de derechos”, uno de cuyos puntos * Beinusz Szmukler – Presidente de la Asociación de Abogados de Buenos Aires, Presidente Consultivo de la Asociación Americana de Juristas, Consejero del Advisory Board del Centro por la Indepedencia de Jueces y Abogados de la Comisión Internacional de Juristas, Consejero del Instituto “Espacio para la Memoria”, ex Consejero de la Magistratura Nacional, ex Profesor Titular de Derecho Constitucional por concurso. 31 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI centrales es la prohibición de detenciones sin motivo. En 1679, el rey Carlos II dicta su correlato garantista: el Acta de habeas corpus, que dirigido a un sheriff, un carcelero o cualquier otro funcionario, a favor de un individuo bajo su custodia, para que en el plazo de tres días, de recibida la orden, informe los motivos de la detención del beneficiario y su puesta a disposición del juez o tribunal que la había ordenado. La persona liberada no podía ser detenida nuevamente por el mismo delito, y se prohibía el extrañamiento. Para aventar dudas sobre el privilegio clasista de esta conquista, al que ningún pobre podría acceder, quien interponía el habeas debía pagar, un monto que establecía el juez, para cubrir los gastos necesarios para traer al prisionero, y garantizar que éste no escaparía en el camino. No obstante sus llimitaciones, y de acuerdo con Héctor Fix Zamudio esta institución constituye la excepción al modelo angloamericano de tutela jurisdiccional de las garantías y valores constitucionales, que se consideran como un principio y no como instituciones procesales concretas, ya que se conformó desde su origen como procedimiento especifico. También se prohibía el juzgamiento de civiles por tribunales militares. Principios similares establece el bill of rigths de 1689. La Constitución de Estados Unidos de Norteamérica de 1787, mantiene la esclavitud y carece de una declaración de derechos, que se concreta recién en 1791, con el agregado de las primeras 10 enmiendas. Entre ellas se encuentra la no privación de la libertad, sin procedimiento legalmente establecido, y a ser juzgado en causa criminal, pronto y públicamente por un tribunal imparcial y competente. Es la “declaración de los derechos del hombre y del ciudadano” francesa de 1789, la que reconoció, ahora sí para todos, que “los hombres nacen libres e iguales en derechos” y su artículo 9º preceptúa que “todo hombre se presume inocente hasta que sea declarada culpable, y si se juzgara indispensable su arresto, todo rigor que no resulte indispensable para asegurar el mismo debe ser severamente reprimido por la ley”. Además establecía que sólo la autoridad judicial puede disponer la detención o prisión, a no ser en caso de flagrancia, en el cual se sujeta a su ratificación o censura, dentro de un plazo extremadamente breve. Durante los 170 años siguientes la lucha por hacer realidad el derecho enunciado logra su incorporación a la mayoría de las constituciones y leyes nacionales. La garantía jurídica del derecho a la libertad es la acción del hábeas 32 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI corpus, que se dirige contra una detención reputada ilegal o preventivamente frente a la amenaza de que se produzca. Su larga casuística define diversas hipótesis de detención arbitraria: 1. falta de justa causa, sea por carencia de imputación, inexistencia de delito, o extinción de la punibilidad; 2. exceso de duración; 3. rechazo de fianza autorizada por la ley; 4. cese del motivo de la coacción; 5. incompetencia de la autoridad que dispuso o mantiene la detención; 6. nulidad del auto de prisión in fraganti, del decreto de prisión preventiva, del proceso o de sentencia condenatoria; 7. violación de las formalidades legales del acto de detención; 8. detención fuera de los ámbitos penitenciarios establecidos por la ley, como es el caso de alojamiento indiscriminado de procesados y condenados, o en condiciones irrespetuosas de la dignidad de la persona; 9. denegatoria injustificada de libertad condicional admitida legalmente. Soler sostuvo que la privación de libertad ilegal se produce también cuando se impide a un sujeto ir a determinado lugar sin que exista norma legal que autorice tal exclusión. Peco (1942) entendía que el funcionario competente que teniendo noticia de una detención ilegal, omitiere, retardare o rehusare hacerla cesar o dar cuenta la autoridad judicial competente, comete un delito contra la Administración pública. Un principio mayoritariamente admitido es la competencia de cualquier juez para entender en un habeas corpus, ya que el valor en juego no debe frustrarse por dilaciones relativas a la organización judicial, salvo que ésta asegure la presencia permanente de magistrados para atender tales casos. No hay que confundir la detención arbitraria frente a la cual es admisible el habeas corpus, con la derivada de sentencia condenatoria injusta, contraria a los hechos que surgen de la prueba producida, o al derecho aplicable, que debe corregirse por vía recursiva. La función del poder judicial es la de garante del cumplimiento de las obligaciones de derechos humanos, sea que provengan de la constitución o la legislación nacional o bien de los tratados internacionales, las que crean derechos inmediatos para los individuos a partir que el Estado al que pertenecen ratifica esos tratados, con independencia de su desarrollo local, salvo que su puesta en ejecución sólo fuera posible por esa vía. En la cuestión que nos ocupa, su aplicabilidad inmediata no reviste la menor duda, puesto que se trata de una obligación de no hacer, de no actuar indebidamente, de no excederse en sus 33 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI facultades, no ejercer violencia ilegitima. Aquel que sufre una punición, debe tener las condiciones mínimas que se garantizan a toda persona, incluyendo libertad de expresión derecho de petición, derecho a la educación, y en la medida de lo posible, derecho al trabajo. Solo pueden limitarse los derechos estrictamente necesarios para el la investigación judicial o el cumplimiento de la condena. El Registro de la Delincuencia que suelen existir en casi todas partes deben estar limitadas a los fines del propio sistema penal, y no ser utilizados para otros propósitos. Son principios aceptados desde hace más de dos siglos, durante los cuales se han ido desarrollando: el de legalidad que impone la utilización de fórmulas precisas a la hora de definir las figuras delictivas, la presunción de inocencia, el del juez natural, del derecho de defensa o del debido proceso (incluye la necesidad de proveer un traductor capacitado para el imputado que no domina el idioma en el que actúa el tribunal), de publicidad, y el non bis in idem, que Las penas deben ser necesarias y apropiadas, y la reforma y la readaptación social de los condenados debe ser la finalidad del sistema penitenciario. Estos preceptos que protegen teóricamente la libertad no son, desde el punto de vista técnico, garantías, pues para su realización necesitan protección. Este derecho, como todos los demás, se convierten, al decir de Von Ihering, en una farsa declamatoria, si carecen de garantía constitucional y de jueces dignos para hacerla efectiva, cumplidores de su obligación de poner una valla a la arbitrariedad. De allí que la Declaración Universal de 1948 no hace más que ratificar en un instrumento de enorme valor, precisamente porque universaliza, un principio ya consolidado en la conciencia jurídica de la humanidad, aunque, lamentablemente, violado a lo largo y ancho del planeta. A partir de ese momento se inicia un proceso de desarrollo y consolidación normativa, que se concreta en el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (PIDCyP), bajo el mismo número de artículo, el 9, establece: 1. Todo individuo tiene derecho a la libertad y a la seguidad personales. Nadie podrá ser sometido a detención o prisión arbitrarias. Nadie podrá ser privado de su libertad, salvo por las causas fijadas por ley y con arreglo al procedimiento establecido en ésta. 2.Toda persona detenida será informada, en el momento de su detención, de las razones de la misma, y notificada, sin 34 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI demora, de la acusación formulada contra ella. Toda persona detenida o presa a causa de una infracción penal será llevada sin demora ante un juez u otro funcionario autorizado por la ley para ejercer funciones judiciales, y tendrá derecho a ser juzgada dentro de un plazo razonable o a ser puesta en libertad. La prisión preventiva de las personas que hayan de ser juzgadas no debe ser la regla general, pero su libertad podrá estar subordinada a garantías que aseguren la comparecencia del acusado en el acto del juicio, o en cualquier otro momento de las diligencias procesales, y, en su caso, para la ejecución del fallo. 4. Toda persona que sea privada de libertad en virtud de detención o prisión tendrá derecho a recurrir ante un tribunal, a fin de que éste decida a la brevedad posible sobre la legalidad de su prisión y ordene su libertad si la prisión fuera ilegal. 5. Toda persona que haya sido ilegalmente detenida o presa, tendrá el derecho efectivo a obtener reparación. En el artículo 10 se fija que: 1. Toda persona privada de libertad será tratada humanamente y con el respeto debido a la dignidad inherente al ser humano. 2. a) Los procesados estarán separados de los condenados, salvo en circunstancias excepcionales, y serán sometidos a un tratamiento distinto, adecuado a su condición de personas no condenadas; b) los menores procesados estarán separados de los adultos y deberán ser llevados ante los tribunales de justicia con la mayor celeridad posible para su enjuiciamiento. 3. El régimen penitenciario consistirá en un tratamiento cuya finalidad esencial será la reforma y la readaptación social de los penados. Los menores delincuentes estarán separados de los adultos y serán sometidos a un tratamiento adecuado a su edad y condición jurídica. En términos similares se expresan los documentos regionales: el art. XXV de la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre, y el art. 7° de la Convención Americana sobre Derechos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica). La jurisprudencia de mi país, supongo que al igual que la del Brasil, ha realizado amplísimos aportes para garantizar el derecho establecido por el art. 9 y los Pactos referidos. El espacio fijado para esta nota no nos permite su análisis. Nos limitaremos entonces a la presentación de las pautas fijadas por el órgano de las Naciones Unidas, creado por la Comisión de Derechos Humanos (resolución 1991/42, ampliado por resolución 1997/50), para recibir y tramitar las denuncias de detenciones arbitrarias por parte de los Estados que han 35 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI adherido al Protocolo Facultativo del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, el Grupo de Trabajo sobre la Detención Arbitraria. Para que se tenga idea del nivel de incumplimiento de sus obligaciones por los Estados, señalemos que en un solo año, el 2001, el Grupo transmitió un total de 79 llamamientos urgentes en relación con 897 personas a 39 gobiernos y a la Autoridad Nacional Palestina. Trece gobiernos informaron al Grupo que habían adoptado medidas para reparar la situación de las víctimas. Conviene notar que por desconocimiento de la existencia de la vía y los requisitos a cumplir, como por desconfianza en su utilidad, sólo se denuncia una ínfima cantidad del universo de violaciones. El Grupo de Trabajo considera arbitraria la privación de libertad en los casos siguientes: legal alguna que la I. Cuando es evidentemente imposible invocar base justifique (como el mantenimiento en detención de una persona tras haber cumplido la pena o a pesar de una ley de amnistía que le sea aplicable); II. Cuando la privación de libertad resulta del enjuiciamiento o condena por el ejercicio de derechos o libertades proclamados en los artículos 7, 13, 14, 18, 19, 20 y 21 de la Declaración Universal de Derechos Humanos y además, respecto de los Estados Partes, en los artículos 12, 18, 19, 21, 22, 25, 26 y 27 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos; III. Cuando la inobservancia, total o parcial, de las normas internacionales relativas al derecho a un juicio imparcial, establecidas en la Declaración Universal de Derechos Humanos y en los instrumentos internacionales pertinentes aceptados por los Estados afectados, es de una gravedad tal que confiere a la privación de libertad, en cualquier forma que fuere, un carácter arbitrario; IV. detenidos sin orden de detención y sin haber sido sorprendidos en flagrante delito, o mantenidos en régimen de detención policial sin haber comparecido ante un juez de instrucción, en violación de la ley y/o la Constitución del país; V. Incumplimiento de la orden judicial de puesta en libertad inmediata. VI. Incumplimiento por el juez de dictar una decisión razonada, para confirmar una detención policial o disponerla. VII. la dictada por un tribunal sin rostro (Las graves incompatibilidades de la justicia anónima impuesta en el Perú, que rigió desde 1992 hasta 1998, y la violación de las debidas garantías procesales que constituye esta justicia excepcional es muy grave). VIII. Si la detención contraviene los artículos 9 o 10 de la Declaración Universal de Derechos Humanos, el artículo 9 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y los principios del “Conjunto de Principios para la protección 36 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de todas las personas sometidas a cualquier forma de detención o prisión”, como se da cuando las personas están detenidas sin cargo ni juicio y sin poder comunicarse con sus abogados y familiares, o parece fundada en sus actividades políticas, lo que constituye una violación de su derecho a la libertad de opinión y de expresión garantizada en los artículos 19 de la Declaración Universal de Derechos Humanos y del Pacto Internacional de los Derechos Civiles y Políticos. IX. si no hubo más pruebas que las confesiones obtenidas mediante coacción; X. si no se toman todas las medidas necesarias para garantizar el derecho a un juicio imparcial, como en el caso actual de los cinco cubanos detenidos en Miami por haberse infiltrado en organizaciones terroristas cubano-americanas, a fin de evitar agresiones contra su país. El Grupo observa que “fueron mantenidos en confinamiento solitario durante 17 meses, durante los cuales la comunicación con sus abogados y el acceso a la evidencia, y con ello, las posibilidades de una defensa adecuada se vieron debilitadas”, los abogados de la defensa tuvieron acceso muy limitado a la evidencia clasificada como de seguridad nacional, ”lo que afectó negativamente su capacidad para presentar evidencia contraria…ha socavado el equilibrio equitativo entre la acusación y la defensa”, el Gobierno no ha impugnado “el hecho de que un año más tarde el mismo admitió que Miami no era el lugar adecuado para celebrar un juicio donde estaba probado que era casi imposible un jurado imparcial en un caso vinculado con Cuba”, y “a partir de los hechos y circunstancias en que se celebró el juicio y de la naturaleza de los cargos y de las severas sentencias dadas a los acusados se infiere que el juicio no tuvo lugar en el clima de objetividad e imparcialidad que se necesita para colcuir que cumple con las normas de un juicio justo”. El Grupo ha pedido a los gobiernos: a) que reduzcan al máximo los casos de detención provocada por situaciones de pobreza extrema; b) la derogación de textos que prevean el encarcelamiento por incumplimiento de obligaciones contractuales prohibido por el artículo 11 del PIDCyP; c) la adopción de las medidas necesarias, incluso en la esfera de la formación, para que los jueces presten la mayor atención al nivel de ingresos de las personas puestas en libertad bajo fianza a fin de dar pleno cumplimiento al principio de que la puesta en libertad debe ser la regla y la prisión preventiva la excepción (párrafo 3 del artículo 9 del Pacto); d) Evitar que las sanciones penales en forma de multa, que están destinadas en principio a limitar las penas de prisión, no 37 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI guarden proporción con los ingresos de la persona condenada, a fin de evitar que ésta sea encarcelada por falta de ingresos suficientes para pagar la multa; e) reconsiderar el recurso a la privación de libertad para proteger a las víctimas y, en todo caso, la autoridad judicial se debe encargar de su supervisión. Este medio sólo se utilizará en última instancia si las víctimas así lo desean. El Grupo de Trabajo ha calificado reiteradamente como detención arbitraria la situación muy frecuente en Estados Unidos, de inmigrantes condenados por diversos delitos, a quienes luego de cumplir la pena, las autoridades migratorias imponen la expulsión del país, que muchas veces no se materializa porque su país de origen no los acepta, y son mantenidos en prisión durante años. Uno de ellos, p.e., culpable de hurto menor y condenado a cuatro meses de prisión, seguía allí al momento de intervenir el Grupo, habiendo transcurrido más de 30 meses de que cumpliera íntegramente su condena. Otro caso aún más grave en idéntica situación llevaba preso siete años de cumplida la condena. Un tercero no es puesto en libertad por resultarle imposible depositar una fianza de 20.000 dólares. El Grupo considera esta condición irrazonable, cuando la fianza exigida es severa y desproporcionada, dados los medios y la condición del acusado, y afirma que la alegación del gobierno de Estados Unidos que las personas declaradas culpables de delitos que han cumplido íntegramente sus condenas puedan seguir siendo una amenaza para la comunidad cuando se las ponga en libertad se aplica lo mismo a los ciudadanos que a los extranjeros sujetos a deportación y no puede constituir la base legal de una detención prolongada. La Corte Interamericana de Derechos Humanos ha interpretado la garantía contra detenciones ilegales del art. 7°, inc. 2°, de la Convención Americana sobre Derechos Humanos estableciendo “que nadie puede verse privado de la libertad personal sino por las causas, casos o circunstancias expresamente tipificadas en la ley (aspecto material)”. El Código Procesal Penal de la Provincia de Buenos Aires determina que “los funcionarios y auxiliares de la Policía tienen el deber de aprehender: 1. Al que intentare un delito, en el momento de disponerse a cometerlo”, y: “A quien sea sorprendido en flagrancia en la comisión de un delito de acción pública sancionado con pena privativa de libertad”. El art. 154 define flagrancia en los siguientes términos: “... cuando el autor del hecho es sorprendido en el momento de cometerlo o inmediatamente 38 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI después, o mientras es perseguido por la fuerza pública, el ofendido o el público, o mientras tiene objetos o presenta rastros que hagan presumir que acaba de participar en un delito”. Llegado el caso, el policía que cumplió la detención debe identificar cuáles fueron las ‘circunstancias debidamente fundadas’ que lo llevaron a presumir que se estaba ante la inminencia de la comisión de un hecho ilícito”. Se hace evidente que deben reputarse como casos de detención arbitraria, las motivadas por el denominado “olfato policial”, cuando, sin orden judicial previa, la policía detiene a una persona “con el fin de determinar su identidad”, por su aspecto sospechoso, transitar sólo o junto a otras personas, por una zona donde se registra un alto índice de criminalidad, o estar parado frente a la puerta de un local en el que presuntamente hay valores y no dar razones del motivo, frecuentar lugares de “mala fama’”, etcétera, aún cuando el resultado de una requisa personal confirmara la existencia de armas u otros elementos con probable destino para la comisión de delitos. Parecen oportunas las preguntas –en el marco de la normativa argentina, pero aplicables universalmente- que se hace Alejandro Carrió: ¿A qué quedaría reducida la operatividad de la garantía que consagra la Constitución si los jueces de la Nación afirmaran que en definitiva todo habitante de este país puede ser legítimamente detenido y obligado a exhibir su documento de identidad en cualquier tipo de circunstancias? ¿Qué norma establece la facultad legítima de las autoridades policiales para detener a una persona, exigirle la exhibición de documentos de identidad, palparla en sus ropas, introducirlo a un patrullero, etc., si esa persona no ha realizado con carácter previo conducta alguna que indique que ha cometido o está por cometer un hecho ilícito? ¿Cuál es la ley que nos prohibe a los habitantes de la Nación el decidir salir de nuestros domicilios sin documentos de identidad, bajo el riesgo de tener que soportar ser detenidos y conducidos, por esa sola circunstancia a una comisaría? El juez Douglas, de la Corte Suprema de Estados Unidos, en su esclarecedor voto emitido en el caso “Terry v. Ohio” afirma: “... Dar a la policía mayores poderes que a un magistrado es dar un largo paso en la senda hacia el totalitarismo….. Ha habido poderosas presiones a lo largo de nuestra historia para que la Corte diluya las garantías constitucionales y otorgue a la policía 39 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI la mano ganadora. Probablemente, esa presión no ha sido jamás mayor de lo que es hoy. Pero si el individuo no ha de ser soberano en lo sucesivo, si la policía puede aprehenderlo cuando no le agrade su facha, si puede detenerlo y registrarlo a discreción, estaremos entrando en un nuevo régimen”. Esa premonición del magistrado se está cumpliendo. A 6 décadas de la Declaración Universal de Derechos Humanos, la principal amenaza a las conquistas libertarias de la humanidad proviene de su país. El derecho internacional, el derecho humanitario, los derechos humanos proclamados y normatizados en los pactos de la ONU, nunca tuvieron una contradicción tan flagrante con la realidad. Los Estados Unidos recurren al terrorismo de estado contra su propio pueblo ( la “Patriotic Act” autoriza la detención secreta de sospechosos de terrorismo, sin información siquiera a sus familias, y carentes de toda defensa legal) y los demás que no se someten a su mandato, cada vez que lo requiere su política imperial, cualquiera sea la fracción (republicana o demócrata) del partido único que ejerce el gobierno. Ejemplos paradigmáticos de violación del artículo 9 de la Declaración Universal son las condiciones de los prisioneros, sin identificación, detenidosdesaparecidos, sin juicio ni derecho de defensa, y sometidos a vejámenes y torturas durante años en las cárceles de Afganistán, Irak y la base naval de Guantánamo, el secuestro por la CIA de supuestos terroristas en terceros países y su traslado, - utilizando potentes aviones, y aeropuertos de países cómplices-, a otros donde la tortura es legal para ser ‘eficazmente’ interrogados sin las molestas restricciones legales imperantes en los Estados Unidos; y la prisión en cárceles secretas. Alentemos la esperanza que si, como lo demuestra la historia, todo poder para sostenerse necesita, además de la fuerza, una dosis significativa de consenso, finalmente, la lucha de los pueblos impondrá el triunfo del derecho y la efectiva vigencia de la libertad, sobre el terrorismo de estado internacional. 40 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI IGUALDADE DE DIREITOS: CONQUISTA DA HUMANIDADE Dalmo de Abreu Dallari15* I. Direito à igualdade e discriminações “liberais” A igualdade essencial de todos os seres humanos, quanto aos direitos fundamentais, ganhou grande ênfase e obteve proteção jurídica de cunho universal a partir da publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948. A afirmação da igualdade, aí contida, teve por objetivo repelir várias formas de discriminação, estabelecidas e mantidas por muitas décadas, mesmo depois das revoluções burguesas que, no final do século dezoito e início do século dezenove, extinguiram os privilégios da nobreza e implantaram um novo tipo de organização social, rotulado de liberalismo, no qual, teoricamente, ninguém deveria sofrer restrições que não fossem as mesmas para todos. O exame dos documentos fundamentais produzidos pelas revoluções burguesas revela que a igualdade, embora num certo momento tenha sido posta no mesmo plano da liberdade, ambas como direitos naturais da pessoa humana, acabou sendo deixada de lado e, mais do que isso, foi ostensivamente afrontada, pelo estabelecimento formal de discriminações e marginalizações que configuravam flagrantes desigualdades de direitos, tendo por base apenas a identificação com determinados grupos humanos ou segmentos sociais. Com efeito, dois importantes movimentos revolucionários que romperam com a ordem antiga, eliminando os títulos de nobreza e os privilégios que os acompanhavam, a independência das colônias inglesas da América e a Revolução Francesa, proclamaram a liberdade como direito natural da pessoa humana. Além disso, os franceses adotaram como lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, dando a impressão de que atribuíam à igualdade a mesma importância dada à liberdade. * Dalmo de Abreu Dallari é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro da Comissão Internacional de Juristas, organização sediada em Genebra e acreditada junto à Comissão de Direitos Humanos da ONU, e membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil. 41 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Os desdobramentos desses movimentos revolucionários, a nova ordem social instaurada e os documentos produzidos, deixaram evidente que a preocupação com a igualdade, se um dia realmente existiu e foi um dos objetivos revolucionários, logo foi posta de lado e lançada ao esquecimento. A atribuição de direitos fundamentais consagrou discriminações muito evidentes, a tal ponto que nem mesmo o direito à liberdade, afirmado e reafirmado antes como direito natural da pessoa humana, foi assegurado a todas as pessoas. É oportuno e útil verificar como se colocou a questão da proclamação e garantia dos direitos fundamentais nos Estados Unidos e na França, pois com esses dados comparativos ficará mais evidente a grande importância da proclamação da igualdade como direito natural de todos os seres humanos, feita pela ONU em 1948, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. As colônias inglesas da América, buscando a liberdade, proclamada como direito natural, declararam-se independentes em 1776, convertendo-se em Estados, e celebraram logo em seguida um tratado, os Artigos de Confederação, estabelecendo regras de convivência entre os novos Estados e fixando obrigações que todos deveriam cumprir para que fosse preservada a liberdade. Visando aperfeiçoar aquele tratado, os Estados reuniram-se em convenção, na cidade de Filadélfia, no ano de 1787, daí resultando a criação da primeira Constituição escrita da história. Durante os debates travados pelos convencionais, foi suscitada a idéia de publicação de uma Declaração de Direitos, o que já havia sido feito pelo Estado de Virginia, em 1776, numa Declaração que se inicia com a proclamação de que “todos os homens são, por natureza, livres e independentes”. Houve várias manifestações contrárias e algumas favoráveis, estas no sentido de que se declarasse a liberdade como direito natural de todos os homens. Entretanto, alguns objetaram que seria incoerente fazer essa proclamação quando muitos dos convencionais eram senhores de escravos e não admitiam abrir mão dessa condição. Assim, a Constituição foi aprovada sem a Declaração de Direitos. Entretanto, por insistência de alguns líderes, especialmente de Thomas Jefferson, poucos anos depois, em 1789, foram apresentadas dez emendas à Constituição, que foram aprovadas após dois anos de discussão, sendo, desde então, referidas como Declaração de Direitos (Bill of Rights). 42 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Na realidade, essa Declaração de Direitos é um conjunto de proclamações muito limitado, que afirma alguns direitos, como a liberdade religiosa, a liberdade de portar armas, a liberdade de reunião e de associação, estabelecendo ainda algumas regras limitadoras dos poderes públicos, especialmente em matéria de acusação e defesa em matéria criminal, ficando também evidente a preocupação com a garantia de independência dos Estados quanto a interferências do governo central. Um ponto importante foi o cuidado de não limitar os poderes dos Estados, para que se mantivesse a plena liberdade recentemente conquistada. Um dado essencial para a presente análise é que não se faz, naquela Declaração de Direitos incorporada à Constituição, qualquer referência à igualdade de direitos, além do que não se afirma a liberdade como um direito de todos, embora concebida como um direito natural. Basta lembrar que a escravidão dos negros foi mantida, sendo abolida nos Estados Unidos apenas em 1865, pela 13ª. Emenda à Constituição. Quanto a esse ponto, é ainda interessante assinalar que os Estados de Geórgia e Connecticut só ratificaram a emenda abolindo a escravatura em 1939. Assim, pois, a situação legal dos negros configurava desigualdade óbvia, o que só seria corrigido gradualmente. Com efeito, mesmo após a abolição da escravatura os negros continuaram excluídos dos direitos eleitorais em muitos Estados e somente em 1964, por força da 24ª. Emenda à Constituição, já sob influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, obtiveram a plenitude do direito de voto. Outra discriminação persistente foi a imposta às mulheres. Numa obra preciosa pela riqueza de informações e pela agudeza das análises (How Democratic is the American Constitution ?, Yale University Press, 2002), Robert A. Dahl, Professor Emérito de Ciência Política da Universidade de Yale, observa que na Declaração de Independência, de 4 de Julho de 1776, foi proclamado que “todos os homens nascem iguais” e não “todas as pessoas”, o que, em sua opinião, já era clara manifestação de resistência à igualdade de direitos de homens e mulheres. Com efeito, as mulheres só conquistaram o direito de votar em eleições federais no ano de 1919, por meio da 19ª. Emenda Constitucional. E muito depois disso, na segunda metade do século vinte, depois de aprovada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é que conseguiram o reconhecimento, por decisões da Suprema Corte, de que eram contrárias 43 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI à Constituição e ao direito à igualdade de direitos muitas das restrições e discriminações que eram impostas às mulheres e a vários outros segmentos étnicos e sociais. No liberalismo francês as restrições e discriminações foram, de certo modo, mais chocantes, justamente porque o lema adotado pelos revolucionários franceses, que se opunham às exclusões e limitações impostas pelo Antigo Regime, foi “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Logo após a conquista do Poder pelos revolucionários, em 1789, instalou-se uma Assembléia Nacional, que aprovou um documento intitulado “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Também aí houve a exclusão intencional das mulheres, o que se confirmou com a aprovação da primeira Constituição francesa, em 1791. Um dado muito expressivo é que as mulheres francesas só puderam ingressar na magistratura em 1946, quando, terminada a segunda guerra mundial, já se havia estabelecido o ambiente que levaria à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU. E também quanto aos negros houve a negação da liberdade e da igualdade, pois a França tinha e continuou a ter escravos mesmo depois de eliminados os privilégios da nobreza e adotado o constitucionalismo denominado “liberal”. A essas espécies de discriminações e de desigualdade de direitos devem ser acrescentadas outras, como a que vem atingindo os índios e as comunidades indígenas em várias partes do mundo desde o século dezesseis. São, também, muito evidentes as discriminações contra migrantes, o que, em muitos casos, tem um componente racista, como também religioso, o que era expresso na afirmação de superioridade dos colonialistas e ainda está muito presente no relacionamento de antigas potencias coloniais com os naturais das ex-colônias. O componente racista já foi evidenciado em inúmeras situações e persiste ainda agora em várias partes do mundo ocidental, especialmente em relação aos migrantes asiáticos e africanos. Há casos em que o tratamento desigual decorrente do racismo, do preconceito ou de interesses econômicos ou políticos é patente e formal, havendo outros em que a desigualdade é imposta com mais sutileza ou por via indireta, mas sempre com o resultado da ofensa ao princípio da igualdade essencial de todos os seres humanos. 44 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 2. Igualdade essencial das pessoas e dos povos O artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma seqüência lógica do artigo 1º, segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, não deixando margem a qualquer espécie de discriminação. Tendo em conta as formas tradicionais de discriminação, muitas delas em plena vigência e até mesmo consagradas nas Constituições e nas leis de inúmeros Estados, a Declaração Universal faz, no artigo 2º, a reiteração da afirmação de igualdade essencial, mas, além disso, faz uma enumeração das discriminações mais óbvias e freqüentes, que não deverão mais ser admitidas. Essa afirmação de igualdade, com a exigência de garantia de direitos iguais, foi sintetizada nesse artigo da Declaração, em dois incisos, o primeiro deles referindo-se a discriminações impostas com base em características pessoais dos discriminados e o segundo tomando por base circunstâncias políticas e jurídicas de povos e entidades político-jurídicas para a imposição de desigualdade de direitos aos seus naturais ou habitantes. Diz o inciso 1 do artigo 2º: “Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.” O enunciado desse dispositivo é muito claro, fazendo referência expressa aos fundamentos mais freqüentes das discriminações, mas deixando fora de qualquer dúvida que essa enumeração não é exaustiva, sendo igualmente inaceitáveis outras espécies de discriminação que, desprezando a igualdade essencial de todos os seres humanos, imponha tratamento diferenciado e discriminatório a grupos de pessoas que tenham alguma característica que podem não ser do agrado dos discriminadores, mas que não afetam de qualquer modo a condição essencial de pessoa. Além disso, é importante assinalar que o dispositivo da Declaração afirma, textualmente, o direito de gozar dos direitos e liberdades, o que exige dos Estados e dos governos a fixação de regras e a adoção de providências visando não só a afirmação formal de direitos iguais, 45 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI mas também a busca efetiva da igual possibilidade de gozo dos direitos. O inciso 2 teve especial importância no momento de aprovação da Declaração Universal, porque ainda persistia, em muitas partes do mundo, o estatuto colonial, colocando povos inteiros em situação de inferioridade e submissão, sem a garantia dos direitos fundamentais. Quanto a esse ponto é oportuno lembrar que a partir da Declaração teve início um vigoroso movimento no sentido da descolonização, que levou à transformação de muitas colônias em Estados ou à mudança do tratamento jurídico dos povos de territórios não soberanos e de algum modo sujeitos à soberania de uma potência estrangeira. Foi, portanto, tendo em conta a situação do mundo no ano de 1948 que se deu ao inciso 2 do artigo 2º da Declaração Universal o seguinte enunciado: “Não será tampouco feita qualquer distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania”. A afirmação da igualdade essencial dos povos do mundo, independentemente das características físicas e das peculiaridades culturais, foi um passo extremamente importante no sentido da garantia do reconhecimento da igualdade em direitos e dignidade de todos os seres humanos. Num valioso estudo sobre “Preconceito Racial e Igualdade Jurídica no Brasil” (São Paulo, Ed. Julex, 1989\0, Eunice Aparecida de Jesus Prudente, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, observa, com grande precisão, que “o europeu, ao expandir-se pelo planeta, deparou com diversas civilizações compostas por povos não brancos, cujas culturas apresentavam-se em muitos pontos mais avançadas e ricas do que as européias”. Apesar disso, os europeus brancos e seus descendentes diretos sempre trataram como pessoas de qualidade inferior os negros e os índios, registrando-se, também, grande resistência aos imigrantes asiáticos. Em todos esses casos encontra-se uma conjugação de racismo e de intolerância cultural ou religiosa, como base para o tratamento desigual e a restrição a direitos fundamentais. A consideração da situação do mundo no momento da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, e sua comparação com 46 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI o que ocorreu posteriormente, sobretudo com a extinção do colonialismo, deixa evidente a relevante contribuição da Declaração para os avanços da humanidade no sentido da universalização do reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos em dignidade e direitos. Persistem ainda muitas discriminações, em parte como conseqüências remanescentes do antigo colonialismo, mas também motivadas por ambições econômicas e políticas, de cunho internacional ou, então, decorrentes de fatores internos que impedem muitas pessoas de serem reconhecidas e tratadas como seres humanos iguais e merecedoras de proteção e respeito. Apesar da persistência de muitos focos e fatores de desigualdade, a conclusão é que houve consideráveis avanços nas últimas décadas e que a humanidade caminha no sentido da universalização dos direitos humanos, apesar das resistências opostas por um relativismo cultural que pretende sustentar a existência de pessoas e povos superiores e inferiores, bem como por interesses econômicos e políticos de pessoas e grupos poderosos e desprovidos de consciência ética. Um dado positivo e de grande importância é o fato de que vem prevalecendo no mundo um novo constitucionalismo, inspirado nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dando eficácia jurídica e social ao artigo 2º da Declaração. O reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos é um imperativo ético e jurídico e será a base de uma sociedade justa, condição essencial para que a humanidade possa viver em paz. 47 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Edmundo Oliveira** Durante os trabalhos preparatórios do Comitê incumbido de elaborar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 7º foi o que mereceu a mais longa discussão até que fosse encontrado o escopo da consistência que deveria fazer do enunciado a peça central de impacto duradouro, representando o modelo da força moral dos direitos humanos em toda a dimensão do planeta. O artigo 7º foi aprovado, unanimemente, na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1948. A igualdade perante a lei e sem qualquer discriminação Igual proteção da lei não sinaliza que todas as leis possam ser aplicadas igualmente a todos. Significa que todos têm direito a uma formal proteção da lei, no mundo real do ordenamento jurídico e da consciência ética compartilhada no Estado. Efetivamente, o artigo 7º é o símbolo da original vertente dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos fundamentais, escudo para a elevação dos sentimentos contra prejuízos, constrangimentos e inquietações que podem culminar com a descrença nas instituições. Na dinâmica da universalização dos direitos humanos, o artigo 7º abriu portas para o peculiar resguardo de determinados conjuntos de pessoas, grupos e minorias vez por outra vulneráveis, por isso merecedores de apropriado regime de proteção para fins de sólida tutela dos direitos e garantias fundamentais. Assim sendo, em decorrência da âncora histórica do direito à igualdade formal - traduzida na expressão “todos são iguais perante a lei” – emergiu o reconhecimento do direito à diferença, face à necessidade de se conferir legítimas respostas às violações que colocam em perigo ou atingem a titularidade de específicos direitos no cenário * Edmundo Oliveira - Advogado, Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Pará. Ph.D. em Direito Penal, com Pós-Doutorado pela Universidade da Sorbonne, Paris, França. Professor Titular de Direito Penal, por concurso público, da Universidade Federal do Pará. Membro da Fundação Internacional Penal e Penitenciária, com sede em Berna, Suiça, criada pela Assembléia Geral da ONU. Professor Pesquisador de Direito Penal Comparado da Universidade da Flórida e Consultor Científico do Instituto de Segurança Pública da Flórida, com sede no Condado de Lake, Estados Unidos. 49 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI do cotidiano com suas diversidades humanas, na convivência em comunidade. Como exemplos, cite-se a importância da orientação sexual para a criança, o amparo assistencial ao idoso, o combate à violência doméstica e o abrando do constrangimento do morador de rua. O lastro axiológico da igualdade perante a lei e sem qualquer discriminação vem sendo favorecido pelo grau de consenso sob a ótica de que o cidadão pode desfrutar dos benefícios de suas diferenças, sem que tais diferenças propiciem choques de desigualdades. Nesse sentido, os Países Membros das Nações Unidas adotaram diversificadas recomendações inseridas nos seguintes instrumentos: Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), Convenção sobre os Direitos dos Trabalhadores Imigrantes e de suas Famílias (1990), Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007). A título de registro, comporta o exemplo de que o artigo 7º da Declaração apresenta harmônica correspondência com a expressiva linguagem do artigo 26 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que estatui: “ Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deve proibir todas as discriminações e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra toda a espécie de discriminação, nomeadamente por motivo de raça, de cor, de sexo, e língua, de religião, de opinião política ou de qualquer outra opinião, de origem nacional ou social, de propriedade, de nascimento ou de qualquer outra situação”. A palavra discriminação adquiriu acentuada singularidade no 50 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI artigo 7º da Declaração. Discriminação implica na violência que materializa a segregação, a exclusão, a estigmatização, a restrição, a separação ou a distinção. Dessa violência resulta sérios prejuízos ao exercício saudável da cidadania operacionalizada com a interação da nacionalidade, etnia, raça e religião. Assim sendo, discriminação, no texto do artigo 7º, é sinônimo de desigualdade, na medida em que se refere à potencial modalidade de um tratamento igual dirigido a circunstâncias diferentes ou, então, de um tratamento diferente dirigido a circunstâncias iguais. Convém chamar a atenção para outra característica que, sob o ângulo metodológico, faz distinção entre discriminação e igualdade. Eliminar qualquer forma de discriminação implica, substancialmente, na hipótese de implementação da igualdade perante a lei, combinando-se a arte de construir estratégias promocionais de prevenção com a legitimação do castigo ao transgressor, no nível de sua culpabilidade. O Estado pode dispor da sujeição à punição, em consonância com os critérios da individualização da pena, para reforçar o que está na lei como proibido ou permitido, visto que a observância aos pressupostos normativos, nacionais e internacionais, é absolutamente fundamental para evitar ações ou omissões que ataquem as bases das políticas públicas. É a dosagem correta do vigor da pena para despertar, na consciência de cada pessoa, o efeito inibidor da lei que não deve ser desmoralizada como promessa lírica expositora de ilusões. A propósito, o artigo 5º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial traz um exemplo da orientação para o Estado conduzir a combinação de estratégias promocionais de prevenção com a legitimação do castigo ao transgressor, implementando, ao mesmo tempo, o imperativo valor da igualdade perante a lei. Prescreve o artigo 5º: “De acordo com as obrigações enunciada no artigo 2º desta Convenção, os Estados Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial sob todas as suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei, sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica”. Desafios Contemporâneos da Globalização 51 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI O atual processo de globalização tem imposto desafios ao progressivo diálogo rumo à integração dos Princípios de Proteção das Nações Unidas com a leitura dos direitos humanos na esfera do Sistema Constitucional e legal dos Estados, em condições de promover a realização da justiça social e distributiva em âmbito nacional, viabilizando meios e medidas concretas para a transparente e contínua promoção do direito à igualdade formal perante a lei, respeitando-se o direito à diferença e sempre com repulsa à qualquer manifestação de descriminação prejudicial à identidade de qualquer pessoa, em meio à diversidade da conjuntura cultural. Ressalte-se, nesse contexto, a complementação das regras e orientações das instituições regionais que atuam nos respectivos Continentes: Organização dos Estados Americanos, União Européia, União Africana e Comissão para Ásia e Pacífico. Em benefício da promoção dos direitos e garantias individuais - seja no plano doméstico, seja no plano das convenções e tratados internacionais que são ratificados pelo Estado - as obrigações dos governantes e dos operadores da lei carregam a permanente missão de estabelecer parâmetros de proteção que façam avançar o peso normativo do artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com ações pedagógicas preventivas e com os efeitos ressocializadores da punição que definiu a reprovabilidade da conduta típica e ilícita. Por outro lado, não é coerente, sob o pretexto de maior energia de luta contra a criminalidade, alargar os limites do poder, criando comprometimentos aos princípios éticos, políticos e sociais que norteiam as linhas de obrigação do Estado à autolimitação, para que não mergulhe nos subterrâneos da opressão com ofensas vexatórias à cidadania. Exatamente por isso, o artigo 1º da Convenção contra a Tortura consolida o raciocínio de que a tortura praticada pelos agentes do Estado, com base em discriminação de qualquer natureza, deve ser reprimida com o alcance mais amplo dos instrumentos da legislação nacional e princípios internacionais que foram ratificados pelo próprio Estado. Aí está a clareza para o êxito do crescente prestígio da segurança jurídica modelada pela sintonia do imortal pensamento jurídico que nos ensina a lidar com as controvérsias sob a égide de que é imprescindível a igualdade de proteção perante a lei, bem como a igualdade de proteção contra qualquer discriminação. 52 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A permanente modernidade dessa formulação das Nações Unidas tem propiciado a lógica lição do quanto é possível revestir fundamentos teóricos com o manto da significação prática, quando se trata de aspirações rumo ao pleno exercício de direitos e liberdades fundamentais. Anima-nos o otimismo da prosperidade no relacionamento Estado-Sociedade, com bons frutos para o prestígio pragmático da universalidade dos direitos humanos no Terceiro Milênio. É a renovada esperança de um mundo mais pacífico e com fraternidade entre as Nações. Bibliografia ALSTON, Philip. The Future of Human Rights Protection in a Changing World. Essay in Honor of Torkel Opsahl. Oslo, Norwegian University, 1991. BUERGENTHAL, Thomas. Centerpiece of the Human Rights Revolution. BostonLondon, Martinus Nijhoff Publishers, 1998. CASSIN, René. La Déclaration Universelle et la Mise en Oevre des Droits de l’Homme. Recueil de Cours. Haye, Academie de Droit International de la Haye, 1961. DELMAS-MARTY, Mireille. Le Droit Pénal comme Éthique de la Mondialisation. Revue de Science Criminelle et de droit Pénal Comparé, Paris, n.1, 2004. DONNELLY, Jack. Human Rights and Human Dignity: an Analytic Critique of NonWestern Conceptions of Human Rights. 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A Convenção Européia de Direitos Humanos, que lhe é posterior, não contém disposição alguma a respeito. O mandamento do Artigo V foi desenvolvido pelas Nações Unidas em três tratados da maior importância: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998. No Pacto de 1966, a grande novidade, a esse respeito, consistiu em assimilar à tortura, ou aos tratamentos penais cruéis, desumanos ou degradantes, a submissão de alguém, sem o seu consentimento, a experimentações médicocientíficas. É claro que essa disposição refere-se, antes de mais nada, às práticas atrozes perpetradas pelos Estados totalitários, notadamente o Estado nazista, em seus campos de concentração. Mas ela abrange também pesquisas médicas e científicas de alto poder ofensivo, levadas a efeito em alguns Estados democráticos, sem que os pacientes ou a população soubessem do que se tratava. Nos Estados Unidos, no quadro de uma pesquisa médica iniciada em 1932 pela Seção de Doenças Venéreas, do Centro de Doenças Comunicáveis do Serviço de Saúde Pública, 600 indivíduos negros do sexo masculino foram envolvidos, mediante oferta enganosa de tratamento médico gratuito, num estudo sobre os efeitos da sífilis. Mais de 400 indivíduos, portadores da * Fábio Konder Comparato - advogado, escritor e jusrista brasileiro. É professor titular aposentado (em 2006) da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honis Causa da Universidade de Coimbra. Em 2009, recebeu o título de Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especializou-se inicialmente em Direito Comercial, tendo publicado O Poder de Controle na Sociedade Anônima. Atualmente dedica-se a dar cursos em outras áreas jurídicas, como Fundamentos de Direitos Humanos e Direito do Desenvolvimento.É fundador da Escola de Governo, que tem por objetivo a formação de governantes e já está presente em vários estados da federação. 55 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI moléstia, deixaram de ser tratados, provocando com isso a contaminação de suas mulheres e crianças. Muitos morreram da doença. Da mesma forma, nos anos 40 e 50, o governo norte-americano efetuou experimentos com radiações atômicas em seres humanos. Algumas pessoas sofreram injeções de plutônio e crianças mentalmente retardadas foram alimentadas com comida radioativa. Ao mesmo tempo, o governo permitia a emissão de radiações nas proximidades de zonas urbanas para observar os efeitos daí decorrentes. O Presidente Clinton apresentou desculpas oficiais às vítimas de ambas as experiências, em 1995 e 1997. No que tange às penas degradantes ou cruéis, é geralmente admitido que entram nessa categoria todas as mutilações, tais como o decepamento da mão do ladrão, prescrito na Charia muçulmana, e a castração de condenados por crimes de violência sexual, constante de algumas legislações ocidentais. O Pacto de 1966 não explicita, porém, que certas penas, pelo seu caráter drástico, não devem ser aplicadas a menores. A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 proíbe a aplicação, a menores de 18 anos, da pena de morte e da prisão perpétua sem direito ao livramento condicional (art. 37). No tocante à pena de prisão, generaliza-se, em todas as partes do mundo, a convicção de que ela só se legitima em casos excepcionais, e que ela deve, por conseguinte, ser substituída, na medida do possível, por outras formas penais, mais adaptadas à natureza do crime e à personalidade do criminoso. Pela Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, somente aprovada pelo Brasil após o regime militar, “o termo tortura designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.” Para a convenção, “não se considerarão como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram”. Cada Estado-Parte da convenção 56 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI poderá considerar-se competente para julgar casos de tortura: a) quando ela foi praticada em seu território; b) quando o suposto autor for nacional do Estado em questão; c) quando a vítima for nacional do Estado em questão. A convenção criou um “Comitê contra a Tortura”, com funções de investigação análogas às do Comitê de Direitos Humanos, criado pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998 incluiu a tortura na categoria dos crimes contra a humanidade, que são aqueles “cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque” (art. 7º). De acordo com o Estatuto, o crime de tortura pode existir, ainda que o ato não seja praticado por instigação ou com a aquiescência de um agente público ou outra pessoa no exercício de funções públicas. A tortura no Brasil Somos herdeiros de uma longuíssima tradição de torturar presos e mesmo simples detentos, não só para arrancar-lhes a confissão, mas também, simplesmente, como castigo pelos delitos de que são acusados. Nas Ordenações Filipinas, o capítulo 133 do Livro V regulava “os tormentos”, determinando em que casos deviam ser infligidos, excetuando da prática “os fidalgos, cavaleiros, doutores em cânones ou em leis, ou medicina, feitos em universidade por exame, juízes e vereadores de alguma cidade”. A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 dispôs, em seu art. 179 – XIX, que “desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis”. Não obstante, o Código Criminal do Império de 1830 previu as penas de morte, de banimento e a de galés, que consistia em trabalhos forçados à disposição do governo, com calceta no pé e corrente de ferro. Além disso, estabeleceu o Código punições exclusivas para escravos, como a de açoites e ferros, além das galés e da pena de morte. A Constituição Republicana de 1891 aboliu expressamente a pena de morte (salvo as disposições da legislação militar em tempo de guerra), bem como as penas de galés e de banimento judicial. Mas nada dispôs em relação à tortura. Na Constituição de 1934, declararam-se proibidas as penas de 57 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI “banimento, morte, confisco ou de caráter perpétuo, ressalvadas, quanto à pena de morte, as disposições da legislação militar, em tempo de guerra com país estrangeiro” (art.113, alínea 29). Também aqui, nada se dispôs sobre a tortura. A Carta de 1937, que vigorou apenas no papel, declarou proibidas as “penas corpóreas perpétuas” (art.122, alínea 13); o que poderia ser interpretado, a contrario sensu, como permissão para as penas corpóreas temporais. Além disso, admitiu a Carta a pena de morte em seis tipos de crimes. Já a Constituição de 1946 proibiu a pena de morte, bem como as de banimento, de confisco e as de caráter perpétuo (art. 141, § 31). Mas, da mesma forma que as precedentes, nada dispôs sobre a tortura, como se se tratasse de prática desconhecida no País. A Constituição do regime militar, promulgada em 1967, reiterou a proibição da pena de morte, de prisão perpétua, de banimento e de confisco (art. 150, § 11). Numa disposição de descarado cinismo, declarou, no § 14 do art. 150: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à dignidade do detento e do presidiário”. O que foi absolutamente ignorado, como todos sabem, pelos agentes da repressão política. Chegamos, assim, à vigente Constituição, que inaugurou, incontestavelmente, uma nova etapa nessa história perversa. Logo no inciso III do art. 5º, ela declara que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Além disso, proibiu no inciso XLVII do mesmo artigo as penas de morte (salvo em caso de guerra declarada), de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento, bem como as penas cruéis. Mas, sobretudo, a Constituição de 1988 dispôs que a lei considerará inafiançável e insuscetível de graça ou anistia “a prática de tortura” (art. 5º, inciso XLIII). Em 7 de abril de 1997, foi promulgada a Lei nº 9.455, que definiu os crimes de tortura. Infelizmente, porém, a consolidação dessa prática nefanda durante tantos séculos, sobretudo em razão do tratamento crudelíssimo dos escravos africanos e afrodescendentes, custa a ser abolida no Brasil. É bem verdade que, tal como nas Ordenações Filipinas, alguns privilegiados jamais são postos a tormentos nas delegacias de polícia ou nos presídios. Mas o povo humilde e pobre não só é a vítima preferencial de torturas de toda sorte, como, o que é bem pior, em grande parte aceita essa prática como uma fatalidade. 58 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DIREITO À PRIVACIDADE E À LIBERDADE DE VIVER SEM MEDO Flávia Piovesan* Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquin Herrera Flores, compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. No final do século XVIII, as modernas Declarações de Direitos inauguravam um discurso liberal da cidadania. Tanto a Declaração francesa de 1789, como a Declaração americana de 1776, acolheram a ótica contratualista liberal, pela qual os direitos humanos correspondiam aos direitos à liberdade, segu­rança e propriedade, complementados pela resistência à opres­são. O território dos direitos e das liberdades, desde então, se instaurava como um escudo a combater o arbítrio do Estado. O repúdio ao abuso estatal em prol do respeito à liberdade inspirou a Declaração Universal de 1948, que surgiu como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. A barbárie do totalitarismo invocou o rechaço ao paradigma dos direitos humanos, por meio da descartabilidade humana e da absoluta negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a esperança de sua reconstrução. Neste cenário, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática Flávia Piovesan - possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1990) , mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993) , doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) , ensino-fundamentalprimeiro-grau pelo Colégio Mater Dei (1982) e ensino-medio-segundo-grau pelo Colégio Santa Cruz (1985). Atualmente é Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de Direito , com ênfase em Direito Público. * 59 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e interrelacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. É neste contexto que a Declaração Universal consagra o direito à vida privada e à intimidade, como expressão concreta da liberdade de viver sem medo, pois uma das características do totalitarismo foi justamente estender a ubiqüidade do poder à vida privada para alcançar uma dominação total, como lembra Celso Lafer. O artigo 11 da Declaração Universal dispõe: “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. No mesmo sentido, destacam-se o artigo 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o artigo 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos e o artigo 8º da Convenção Européia de Direitos Humanos. Para a Corte Interamericana: “há um âmbito pessoal que deve estar a salvo de intromissões por parte de estranhos, de forma que a honra pessoal e familiar, assim como o domicílio, devem estar protegidos ante tais interferências”. Esta Corte considera que “o âmbito da privacidade se caracteriza por estar imune às invasões ou agressões abusivas ou arbitrárias por parte de terceiros ou de autoridade pública. Neste sentido, o domicílio e a vida privada encontram-se intrinsecamente ligados, já que o domicílio se converte em um espaço no qual se pode desenvolver livremente a vida privada e a vida familiar.” Os direitos humanos compreendem, em seu âmago, o exercício das 60 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. Requisito, condição e pressuposto deste exercício é o absoluto respeito à privacidade, à intimidade e à autodeterminação individual. O direito à vida privada situa-se, assim, como uma das vertentes da liberdade: a da liberdade como não interferência, usufruída em um espaço próprio, que permite uma esfera de ação não controlada pelo poder, nas lições de Celso Lafer. Estudos demonstram, contudo, o perverso impacto do Pós 11 de setembro na composição de uma agenda global tendencialmente restritiva de direitos e liberdades. A título de exemplo, cite-se pesquisas acerca da legislação aprovada, nos mais diversos países, ampliando a aplicação da pena de morte e demais penas; tecendo discriminações insustentáveis; afrontando o devido processo legal e o direito a um julgamento público e justo; admitindo a extradição sem a garantia de direitos; retringindo direitos, como a liberdade de reunião e de expressão, o direito à privacidade; dentre outras medidas. Na visão de Giorgio Agamben, os tempos atuais não são de normalidade, mas de consolidação de um estado de exceção. Há a criação de um estado de emergência permanente como prática do Estado contemporâneo, a converter o estado de exceção em uma estrutura jurídico-política estabelecida. No contexto do pós 11 de setembro, emerge o desafio de prosseguir no esforço de construção de um Estado de Direito Internacional, em uma arena que está por privilegiar o Estado Polícia no campo internacional, fundamentalmente guiado pelo lema da força e segurança internacional. Só haverá um efetivo Estado de Direito Internacional sob o primado da legalidade, com o império do Direito, com o poder da palavra e a legitimidade do consenso. Como conclui o UN Working Group on Terrorism: “a proteção e a promoção dos direitos humanos sob o primado do Estado de Direito é essencial para a prevenção do terrorismo”. O risco é que na ânsia de combater o terrorismo adote-se uma política de terrorismo de Estado, a violar princípios essenciais ao regime democrático, como os princípios da publicidade e da transparência, nas malhas ocultas e secretas de um poder submerso, oculto, invisível, na terminologia de Bobbio, de um “criptogoverno”. Retomam-se, aqui, as clássicas lições de Kant: “todas as ações relativas aos direitos de outros homens, cuja máxima não seja 61 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI suscetível de publicidade, são injustas”. A opacidade do poder é a negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle da opinião pública. É neste cenário que a Declaração Universal e os direitos nela enunciados, com destaque ao direito à privacidade, constituem uma plataforma emancipatória e uma racionalidade de resistência, no imperativo ético e civilizatório de assegurar a liberdade de viver sem medo, preservando a Era dos Direitos em tempos de terror. 62 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DIREITO DE ASILO João Baptista Herkenhoff * 1. O que é o “direito de asilo” O “direito de asilo” protege todo aquele que é vítima de perseguição em seu país e que busca por este motivo um chão que o acolha. Cria uma prerrogativa para o indivíduo, perante o Estado em que busca asilar-se. Gera um dever para o Estado que é procurado como refúgio. Nenhum Estado civilizado pode negar asilo quando requerido com base em razões fundadas. E a própria fundamentaçao é relativa. Num Estado, que caia num regime dictatorial, é fundado que peça asilo todo aquele que, em princípio, possa ser vítima de perseguição. Se o Estado, que se vê diante de um pedido de asilo, quiser prova da perseguição, em muitos casos exigir essa prova seria o mesmo que pedir o cadáver do perseguido. O artigo refere-se a dois casos que excluem o direito de asilo: 1) perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum; 2) atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas. Não elide o direito de asilo: a) a alegação falsa ou simulada de crime comum ou ato contrário aos princípios das Nações Unidas; b) a alegação de crime comum, ou ato contrário aos objetivos das Nações Unidas, quando o Estado que persegue não oferece qualquer garantia de julgamento justo e público do acusado. Nas duas situações referidas pelo artigo, é indispensável que a perseguição seja legitimamente motivada para impossibilitar o asilo. Assim é que, mesmo no caso de atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas, só a perseguição legítima obstacula o direito de asilo. * João Baptista Herkenhoff - possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (1958) , mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975) , pós-doutorado pela University of Wisconsin - Madison (1984) e pós-doutorado pela Universidade de Rouen (1992) . Atualmente é PROFESSOR ADJUNTO IV APOSENTADO da Universidade Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Direito. 63 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 2. Os credores de proteção: o apátrida, o refugiado, o que vive em terra estranha. A atenção da ONU para aqueles que são sujeitos e destinatários do asilo A situação dos apátridas e dos refugiados mereceu a atenção das Nações Unidas A “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” foi adotada em 28 de setembro de 1954, por uma Conferência de Plenipotenciários convocada pelo Conselho Econômico e Social da ONU. Entrou em vigor em 6 de junho de 1960.14 Essa convenção definiu como “apátrida” toda pessoa que não seja considerada como nacional seu por qualquer Estado. A “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” estabelece que as disposições da mesma convenção sejam aplicadas, no interior dos Estados, a todos os apátridas, sem distinção de raça, religião ou país de origem. O estatuto pessoal de todo apátrida reger-se-á pela lei do país de domicílio ou, na falta de domicílio, pela lei do país de residência. Assegura-se ao apátrida o acesso aos tribunais de Justiça, o direito a trabalho em condições não menos favoráveis que aos estrangeiros, o ingresso no ensino público fundamental e o direito a assistência e socorro públicos. Em 30 de agosto de 1961, a Assembléia Geral da ONU, por recomendação da Conferência de Plenipotenciários, adotou uma “Convenção para reduzir os casos em que as pessoas ficam na condição de apátridas”. Essa convenção entrou em vigor em 13 de dezembro de 1975.15 Quanto aos refugiados, a ONU, em vista da gravidade do problema deles, nas mais diversas partes do mundo, criou um “Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados” (ACNUR), cujos Estatutos foram aprovados pela Assembléia Geral em 14 de dezembro de 1950.16 Esse Comissariado, uma agência que, por si só, justificaria a existência da ONU, tem como missão acolher e ajudar os refugiados, onde quer que se encontrem, sem distinção de qualquer espécie ou natureza. Mais de vinte milhões de seres humanos estão hoje sob o braço protetor do ACNUR. Posteriormente, em 28 de julho de 1951, uma Conferência de Centro de Derechos Humanos, Ginebra. Derechos Humanos – Recopilación de instrumentos internacionales. Naciones Unidas, Nueva York, 1998, p. 283 e segs. 15 Id., ib., p. 274 e segs. 16 Id., ib., p. 316 e segs. 14 64 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Plenipotenciários que se reuniu em Genebra, por provocação da ONU, adotou a “Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Essa convenção entrou em vigor em 22 de abril de 1954. A convenção definiu como “refugiado” todo aquele ser humano que, perseguido por motivo de raça, religião, nacionalidade, opinião política, ou por pertencer a um determinado grupo social, busca proteção em outro país que não o seu.17 Os refugiados são de todas as raças e religiões. Espalham-se pelo orbe terráqueo. Obrigados a fugir para salvar a vida ou preservar a liberdade, abandonam tudo – casa, família, pátria, referências existenciais – em busca de um futuro incerto em terra estranha. Em muitos casos, o refugiado não conhece o idioma, nem os costumes, do país de o abriga, o que aumenta seu sofrimento, sua angústia. A situação dos refugiados é uma das maiores tragédias de nosso tempo. Esse Comissariado, uma agência que, por si só, justificaria a existência da ONU, tem como missão acolher e ajudar os refugiados, onde quer que se encontrem, sem distinção de qualquer espécie ou natureza. Mais de vinte milhões de seres humanos estão hoje sob o braço protetor do ACNUR. Duas outras importantes posições tomou a Assembléia Geral da ONU, no sentido da proteção dos refugiados e asilados: a) a “Declaração sobre o Asilo Territorial”, adotada em 14 de dezembro de 1967;18 b) a “Declaração dos direitos humanos dos indivíduos que não são nacionais do país em que vivem”.19 3. A ampliacão do direito de asilo, na América Latina Os países da América Latina, inclusive o Brasil, deram significativa ampliação à prática do asilo, instituindo o asilo diplomático. Em decorrência disso, distinguiram-se os conceitos asilo e refúgio, asilado e refugiado. O asilo diplomático consiste em abrigar o refugiado na embaixada do país que concede o asilo. Id., ib., p. 295 e segs. Id., ib., p. 321 e segs. 19 Id., ib., p. 323 e segs. 17 18 65 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A propósito, escreveu Márcio Pereira Pinto Garcia: O asilo, entendido como lugar em que pessoas perseguidas por motivos politicos encontram imunidade contra a prisão e recebem abrigo contra perigo iminente, é consagrado no direito internacional público. Uma variante latino-americana é o chamado asilo diplomatico. Prelúdio do asilo territorial, o asilo concedido em missões diplomaticas é prática na América Latina. 20 O art. XIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição brasileira. A recepção do Estatuto dos Refugiados, pelo Brasil. O art. 4° da Constituição de 1988 diz que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais por dez princípios. Ao relacionar esses princípios, dentre os quais figuram a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a defesa da paz, conclui o artigo estatuindo expressamente no seu último inciso: X - concessão de asilo político. A concessão do asilo político não é, assim, um acidente, um pormenor no conjunto das estipulações do ordenamento jurídico brasileiro. O asilo político é princípio que fundamenta as relações internacionais do Brasil. Não obstante essa regra constitucional, o Brasil tardou em criar mecanismos legais para a implementação do Estatuto do Refugiado, em nosso país. O Estatuto é de 1951, mas somente em 22 de julho de 1997, a Lei n. 9.474 cuidou de fornecer os instrumentos legais para que aquele documento tivesse vigência efetiva na ordem juridical nacional. Nossa Constituição deu plena guarida ao artigo XIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não poderia adotar outro caminho. A Constituição, que agora completa vinte anos, atendendo o clamor da sociedade buscou fixar para o país rumos em direção à Justiça, à Solidariedade, ao Humanismo e à Paz. 4. As grandes religiões e o direito de asilo O asilo não é uma questão apenas jurídica. É uma questão ética também. Por este motivo, as grandes religiões praticadas no mundo sustentam, explícita ou implicitamente, a “idéia de asilo”. Cf. Márcio Pereira Pinto Garcia. Comentário ao Artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. In: Direitos Humanos: conquistas e desafios. Brasília, Letraviva Editora, 1999. Publicação sob os auspícios do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. 20 66 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Chegamos a essa conclusão quando nos debruçamos diante dos grandes textos do Cristianismo, do Judaísmo, do Islamismo, do Budismo, do Taoísmo, do Confucionismo. 5. O Cristianismo e o direito de asilo Jean–François Collange observa que, à luz do Cristianismo, o valor do homem não está nem na cor de sua pele, nem no seu sexo, nem no seu estatuto social, nem muito menos na sua riqueza , mas no fato de que em Cristo ele é aceito como filho de um mesmo Deus. Isto de cada um reconhecer-se como filho de um mesmo Pai conduz a uma fraternidade autêntica. 21 O Apóstolo Paulo coloca o homem como templo do Espírito Santo: “Vocês não sabem que são templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês?” 22 Essa afirmação é rica de conseqüências. Um ser que é templo do Espírito Santo, ou seja, que é morada de Deus, pode ser torturado, discriminado, condenado sem julgamento honesto ou até mesmo sem ser ouvido, pode ficar ao desabrigo da lei e da Justiça, a ponto de só encontrar amparo fugindo do território do Estado que o esmaga? Se o Cristianismo inspira igualdade, dignidade, fraternidade, será possível, a partir da concepção cristã de homem e de mundo, negar acolhimento a quem, vitima de perseguição num pais, procura asilo em outro país? Certamente que não. 6. O “direito de asilo” à luz do Judaísmo O Judaísmo funda-se na Bíblia Hebraica que é o mesmo Velho Testamento dos cristãos, com exceção de um livro, o “Eclesiástico”, que é considerado livro sagrado pelos cristãos, mas que não é aceito pela Sinagoga judaica. Têm explícito acolhimento na Bíblia Hebraica estes valores: o Jean-François Collange. Théologie des droits de I’ homme. Paris, Les Editions du Cerf, 1989, p. 254 e seguintes. 22 Cf. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 3, vers. 16. Apud Bíblia Sagrada – Edição Pastoral. Tradução, introduções e notas de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo, Edições Paulinas, 1990, p. 1463. 21 67 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI grito de Justiça, principalmente dos fracos (Amós, Miquéias); a igualdade entre as pessoas, o repouso dominical, o direito de todo homem ao alimento superpondo-se ao direito de propriedade privada, a proteção dos instrumentos de trabalho em face do penhor, a sacralidade do salário, a volta da propriedade ao antigo dono (Deuteronômio); a solidariedade para com o órfão e a viúva (Deuteronômio, Provérbios); a condenação da usura (Êxodo, Neemias); a identidade de origem de todos os homens, o homem como imagem de Deus (Gênesis, Salmos); a maldição contra os que açambarcam bens e que se tornam proprietários de uma região inteira, o anúncio da libertação para os prisioneiros (Isaías); a fraternidade (Levítico, Provérbios); a paz (Miquéias); a solidariedade universal (Salmos). 23 No Deuteronômio ordena-se, expressamente, o acolhimento ao estrangeiro e afirma-se o direito de asilo. Voz de um povo que viveu em país que não era seu, escravizado, oprimido, a herança espiritual do Judaísmo enlaça-se plenamente com a idéia de asilo. 7. O Islamismo e o direito de asilo O Islamismo ensina que o homem é “vigário (representante) de Deus”, conforme se lê no Corão. Prescreve a fraternidade, adota a idéia da universalidade do gênero humano24 e de sua origem comum; ensina a solidariedade para com os órfãos, os pobres, os viajantes, os mendigos, os homens fracos, as mulheres e as crianças, estabelece a supremacia da Justiça acima de quaisquer considerações; prega a libertação dos escravos; proclama a liberdade religiosa e o direito à educação; condena a opressão e estatui o direito de rebelar-se contra ela; estabelece a inviolabilidade da casa. 25 A idéia de asilo, como um direito, integra a Ética islâmica, não apenas como decorrência dos preceitos gerais de Fraternidade, Solidariedade para com o fraco, Justiça, como também pela prescrição de acolhimento ao viajante, devendo interpretar-se o sentido de viajante como justamente aquele que não está no seu chão. Há uma semelhança estreita entre a visão islâmica do ser humano (homem, vigário de Deus), a idéia cristã ensinada pelo Apóstolo Paulo (homem, Cf. E. Hirsch. Judaïsme et Droits de I’hmme. Paris. Librairie des libertés, 1984, passim. Cf. Le Coran. Traduit par René Khawam. Paris, Maisonneuve/Larose, 1990. 25 Id., ibid. 23 24 68 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI templo de Deus) e a idéia de homem como imagem de Deus (Gênesis, livro sagrado de judeus e cristãos). 8. A idéia de asilo dentro da ética do Budismo Segundo o Budismo, os atos de virtude deveriam ser o critério de valorização das pessoas. O Budismo visa à realização plena da natureza humana 26 e à formulação de uma sociedade pacifica e perfeita.27 Prega a igualdade essencial de todos os homens, pela identidade da maneira como nascem e pelas condições inerentes à espécie. Ensina o valor dos atos de virtude prevalecendo sobre a condição social. Estatui a supremacia do Direito acima da consideração das castas, o dever de Justiça para com o próximo, o respeito às pessoas, qualquer que fosse sua condição social. Exalta, como virtudes, o amor da verdade, a benevolência de espírito, o sentimento de justiça, a generosidade, a cortesia, o cumprimento da palavra empenhada.28 A consagração do asilo é uma decorrência natural dos horizontes de vida apontados pelo Budismo. Fratenidade; generosidade; capacidade de escutar e, portanto, de compreender, acolher – virtudes exaltadas pela Ética Budista, desaguam, com amplitude de visão filosófica, na idéia de conceder asilo, de abrir os braços, proteger o que é perseguido. 9. Taoísmo e asilo A concepção básica do Taoísmo é a existência de um Ser que é o princípio de todas as coisas, um Ser inominado, que Lao Tseu designou por “Tao”. Este “Princípio” é traduzido de várias maneiras pelos estudiosos. René Grousset nota que Tseu declarou que empregava o termo “Tao” para designar o princípio das coisas, apenas a título de aproximação, à falta de um termo mais satisfatório.29 A esse “Princípio”, Lao Tseu chama de mãe de todas as coisas, Cf. Lama Denis Teundroup. Bouddhisme, voie d’ ouverture et de libération. In: Lumière e Vie. Lyon Août 1989, tome XXXVIII, nº 193. 27 Cf. Père Pierre Python. L’éthique bouddhique. In : Lumiére e Vie. Lyon. Août 1989, tome XXXVIII, nº 193. 28 Cf. Môhan Wijayaratna. Le Bouddha et ses disciples, Paris. Les Editions du Cerf. 1990, passim. 29 No mesmo autor e obra citada, p. 305. 26 69 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI diferentemente de outras religiões e filosofias que designam o Princípio ou Deus no gênero masculino. O Princípio está em tudo e tudo está no Princípio. Tudo vem do Princípio e tudo volta ao Princípio. Cada ser que existe é um prolongamento do Princípio. O mundo é instável e se encontra em permanente evolução. O homem sábio abandona-se ao turbilhão do “Yin” e do “Yang”, adere ao ritmo universal, busca simplificar-se, anular-se. Nisto alcança o “êxtase místico”. Tudo é um no Tao. Os seres são prolongamento do Princípio Imortal Único.30 Será possível admitir que à luz dessa doutrina o coração humano se feche diante daquele que pede asilo? O Princípio Imortal, que é Mãe, não conduz ao acolhimento, que é uma virtude mais que tudo materna? 10. O Confucionismo e a idéia ética de asilo O Confucionismo ensina a fraternidade, o respeito entre as pessoas, o humanismo, a solidariedade, a busca da virtude e da paz. Prega o amor, o respeito ao próximo, o tratamento fidalgo entre as pessoas. Toda pessoa deve procurar alcançar a virtude da humanidade que consiste em ir ao encontro da auto-compreensão e ajudar o próximo a também compreender-se, fortalecerse e ajudar os outros a que também se fortaleçam. Só é possível o caminho da perfeição quando o ser humano se respeita a si mesmo e trava um firme combate contra as próprias paixões. A perfeição de cada um deve objetivar a paz, em benefício de todos. Que os governantes nutrissem, como virtude primeira, a grandeza de coração e colocassem o povo acima do Estado.31 Também, a nosso ver, está implícito no código ético do Confucionismo a prescrição do asilo. Fraternidade, respeito entre as pessoas, humanismo, solidariedade, essas virtudes, que estão na medula do Confucionismo, não exigem, para concretizar-se, a adoção do asilo como prática social? René Grousset, op. cit., p. 296 e ss. Cf. René Grousset. Histoire de Ia Philosophie Orientale. Inde – Chine – Japon. Paris, Nouvelle Libraire Nationale, 1923, p. 316 e seguintes. Cf. também: Eric Santoni, Les Religions. Alleur (Belgique), Marabout. 1989. Anne-Marie Delcambre. L’ Islam. Paris. Éditions La Découverte, 1991. Jean Filliozat. Les Philosophies de I’Inde, Paris, Presses Universitaires de France, 1987. 30 31 70 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI IGUALDADE, LIBERDADE E A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS João Luiz Duboc Pinaud* Enquanto práticas organizativas da vida humana e lutas sociais, as idéias políticas referem sempre dois elementos que se completam, em unidade impartível e até certo ponto cada um deles nutrindo o outro: Igualdade e Liberdade. Nas vivências democráticas , a partir da antiguidade Greco-romana, nas lutas demarcadoras de 1848 e do tempo posterior, os temas Igualdade e Liberdade, expressaram tensões entre pólos políticos antagônicos. Pautas integradas ou diametralmente opostas foram marcantes presenças políticas nas sociedades, em termos de idéias ou partidos. Compartições ou oposições políticas em vários tipos de lutas (notadamente no século XIX) traduziram vivências e percepções sociais antagônicas ou assemelháveis, demarcando pontos (correferentes ou opostos) de Igualitarismo e Liberalismo. Historicamente incontornável que os nexos entre os multiformes experimentos de Igualdade e Liberdade, representassem oposições e encontros, por sua vez determinantes de construções de partidos ou grupos organizados. E sempre expressando constantes, porque incansáveis, lutas políticas. De modo intensificado neste século XX, quando surgiram avassaladoras forças diametralmente opostas, não somente no plano das idéias e sim em gradações das oposições e ajustes políticos. Tais disputas existiram mesmo no interior das tentativas de composições e nas várias modalidades de lutas partidárias, mesmo sangrentas. Em nosso século a desigualdade social, embora expressiva da maior parte da humanidade, ainda * João Luiz Duboc Pinaud - Advogado militante-OAB-RJ , Professor Titular de Direito Constitucional da UFF, Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros-IAB-1998/2000 , Juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro , Escritor premiado pelo Instituto Nacional do Livro,ano de1985, com o Romance Tempo de Família, Secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos-RJ (2000/2002), Secretário de Estado de Direitos Humanos-RJ-Junho/Novembro-2003, Membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFOAB, Membro da Comissão Especial do Conselho De Defesa dos Direitos da Pessoa Humana(CDDPH)-2004, Presidente da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos políticos da Secretaria Especial De Direitos Humanos-2004, Participante da Missão de Solidariedade ao Povo do Haiti organizada pelo Jubileu Sul, Membro da Associação Americana de Juristas e Presidente da Rama do Rio de janeiro da AAJ, Coordenador da PraxisDireitos Humanos Em Ação. 71 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI não permitiu a definição de conceitos jurídico-legais e respectivas práticas, coordenando possível normalidade político-social envolvente do maior numero de pessoas. Portanto, valores conexos e inseparáveis de IGUALDADE/ LIBERDADE, aparecem enquanto anúncio, meramente teórico, de direitos ao nível de propostas político-sociais. Dentro das imposições desigualizadoras socialmente construídas e apoiadas pelo Poder de um Estado sem, no entanto, expressar a naturalidade de relações sociais entre pessoas. Vale lembrar a oposição entre Igualdade e Liberdade diante das distinções e privilégios que, na França, integraram o Ancien Regime. E considerar que, neste período, os indivíduos (mesmo sem a distinção do nascimento na “nobreza” ou posse de superior fortuna diante das pessoas comuns do povo) não lograram afirmação como pessoas iguais, na vida social. Em nenhuma sociedade historicamente existente, construiu-se enquanto prática natural, outro tipo de realidade: a vida social de todos, como exigência de justiça, deve ser igualitária. A desigualdade humana se manteve em vários e diferentes contextos históricos, e nem chegou a ser superada, qual saída exigível pelos sistemas democráticos. Afinal, em que consistiria (teria sido a pergunta cabível ante tal injustiça) a Democracia, cujo principio retor só poderia ser a igualdade de todos diante da lei e do poder? A dificuldade do responder o quesito , no plano teórico ou prático, abre problemas históricos ultrapassantes da pequenez deste estudo em sua limitada reflexão. Mas vale apenas assinalar elemento diferencial quanto às possibilidades econômicas igualizadas no viver social e político. E sublinhar: a equalização teórica e prática, nas lutas “democráticas” nutre propostas político-partidárias marcando a Igualdade de todos enquanto nota estrutural da democracia. E, na mesma linha, grifar os valores Igualdade e Liberdade enquanto praticidade de organização e lutas sociais. Este tema amplíssimo possibilita, no entanto, referir à igualdade das pessoas diante da lei e do poder enquanto conquista, temas básicos para estudo de sua trajetória histórica. As percepções humanas de Igualdade e Liberdade teriam se constituído, ao longo de sua transmutação em conceitos jurídicolegais. Surgiu, enquanto direitos das pessoas, qual fosse ditado enquanto propostas político-sociais e diante das imposições desigualizadoras apoiadas por qualquer Poder, grupo social de força ou imposição estatal. E, em conseqüência, 72 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI poderíamos apontar tal elemento como diferencial? Nos sistemas democráticos esse desfrutar, com iguais possibilidades de todas as pessoas, em virtude de alternativa econômica equalizadas no viver social e político, poderia significar uso acessível a todos? E, em conseqüência, tal espécie de equalização, com alcances práticos, apareceria como nota estruturadora de qualquer modalidade democrática, que pudesse ser historicamente vivenciada? Tais quesitos, e muitos outros que nem podemos pensar, dificultariam qualquer resposta nitidamente indubitável. Na enumeração dos problemas imediatos, poderíamos mencionar o inevitável questionamento dos valores de Igualdade e Liberdade, enquanto essenciais para sobrevivência compatível com a condição humana. E daí a exigência de perceber e vivenciar Direitos Humanos. E sua concreção se torna, inevitavelmente, exigência preliminar em quadro figurando como invioláveis seus Direitos e bloqueadas suas correspondentes lesões. Tal listagem deve cobrir todos os atos e omissões ferindo a integralidade tranqüila das pessoas e sem distinção entre elas. Em qualquer debate, o mero admitir tal alternativa como algo socialmente concreto apontaria suas inúmeras complicações. Logo, com a necessidade de superar dificuldades aplicativas surgiria o empenho de conhecer e estruturar meios jurídico-politicos capazes de garantir tais valores, capazes de inibir ações nocivas e marcando também os lamentáveis efeitos sociais. Nos calendários das reuniões DH, persiste a sombria ameaça de genérico não poder agir. E, de seguida, o desencorajador resultado social previsto. E com também a antevisão de seus vários danos que a reiteração social inconseqüente tornara maiores e mais terríveis quando a inércia responde a violação excutada, com a “certeza” social da inconseqüência. E, com ela, outra negatividade: em países, como o Brasil, sem a sistemática aplicação de Direitos Humanos, em pautas governamentais ou práticas sociais. Subsiste em contrapartida, maior e assustadora, a imediatidade da negação violenta. Dentro da passividade alienada, os Direitos não são vividos e reconhecidos como fundamentais, qual o alheamento representasse ausência de escolhas valorativas feitas na própria vida social, quando se ajusta, pela ausência de direitos, em apatia ética ante respostas sociais violentas, ou se responde, não retribui com igual peso. 73 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Quem, no Brasil, atua comprometido com a prioridade da luta por Direitos Humanos, desvenda de pronto, a constante possibilidade de nenhuma conseqüência pública restritiva das atitudes supressoras de Liberdade e Igualdade. Qual fosse aceitável atacar valores prioritários. Na sociedade brasileira (nem se torna necessário exemplificar com o período escuro da repressão militar por 1964, que violações de Direitos Humanos marcaram), já tão ferida pelo ab usus de Governos e de grupos ou pessoas que se colocam socialmente como “poderosas”, ou seja, jamais alcançadas por nenhuma resposta institucional correspondente e eficaz. Assim, o “descompromisso” das Instituições ante o grave da impunidade em Direitos Humanos e o alheamento popular, devem ser a preocupação maior. E nessa desconsideração ou não inclusão dos problemas nas pautas relevantes da Nação, adquire nitidez a “apática ausência” governamental. Sendo possível ler, além da apatia, o alheamento geral diante das sombras nocivas que sempre envolvem sociedades onde dominam pessoas que enfrentam governos alheios a tais valores. O sombrio obstáculo que envolve a prática de Direitos Humanos na sociedade brasileira, motiva o indispensável aparecimento de grupos populares comprometidos. Daí o impulso social do empenhar-se em proteger se coloca como Dever preliminar e maior. Tal luta, aparentando timidez, representa alternativa concreta e constante da sociedade, que anulam práticas oficiais. Cabe, neste ponto, lembrar a titulo de exemplaridade o que a Mídia mostrou recentemente no Rio de Janeiro (setembro de 2009): o servidor-policial apontando arma de fogo para multidão desarmada e estupefata! São os exemplos perfeitos do abuso da força pública e aceitos socialmente como normais. E uma vez reiterados e divulgados pela mídia funcionam como reforço, apóiam aquela e outras ameaças ou práticas de violência contra o povo, desarmado e ainda não aguerrido. Alimenta-se pois contínuo concordar com atos violadores de Direitos Humanos quando não há repúdio ante qualquer violação denunciada, um “vazio do alheamento” substituindo a resposta exigida pelo o ato violador. O que significa a ausência de conseqüências e transmuda em apoio ou aplauso a omissão social. O registro da violência policial como inadequadas respostas do Poder Público, pela ineficácia e ineficiência das próprias propostas públicas, não 74 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI significam nada além do que se poderá chamar de aplicação da cosmetologia oficial para tratamento assintomático das violações de Direitos Humanos. O abstrato e, portanto distanciado conhecer violações substitui o conhecimento direto dos fatos, suas omissões geradoras passam, lamentavelmente, a traduzir inerente “de acordo”. Tal estranho “de acordo”, vindo das autoridades titulares das respostas funciona como outro estímulo, qual afirmasse: “Direitos Humanos tutelados não existem. Pratiquem, pois, contra qualquer um do povo, sem nenhuma conseqüência restritiva, todos os atos que a violência da animalidade exigir.” A reflexão coletiva sobre tais violações e responsabilidades pessoais ou institucionais, enfim, estará previamente demarcada, pela própria condutaexemplo governamental superior, trazendo segurança para o violador com a impunidade oficializada e não resposta social traduzindo conivência e aprovação. Caberia indagar se as torturas impunemente feitas pelo Estado Militar/Policial, durante e após o governo militar no Brasil de 1964, não teceu vínculos fortes com estímulos e impunidades aos torturadores brasileiros e ao próprio êxito da criminalidade ocultada de 1964 até os dias atuais? O trágico desprezar a alternativa da aplicação de Direitos Humanos - enquanto efetivação de valores político-sociais maiores – não acarreta condenável “aceitar,” ostensivo e sistemático qual um “dos nossos”, os violadores de Direitos Humanos? A Comissão Nacional de Direito Humanos da OAB, não vive dentro de toca forrada com asbesto (como dito em uma das inúmeras cartas recebidas) , pois oferece respostas cabíveis ao necessitados, buscando remover o sofrer. E receber tais relatos como denúncias gravíssimas de crimes, tal como apontadas por Durkheim: graves rupturas afetando estágios mais ou menos definidos da consciência social. Como dizer: rupturas afetando estágios mais ou menos definidos da consciência brasileira diante de sua própria realidade, a Comissão trabalha no Máximo de suas possibilidades de atuação. Ela participa do urgentíssimo e indeclinável apoio a pessoas oprimidas, feridas e humilhadas. E ante esta enorme incumbência, se empenha em imediatamente responder. E tal esquema de respostas responsáveis não se revela como gesto de compreensão fácil. Vale repetir que Instituições como a OAB, lastreada pelo seu passado 75 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI recente (ou seja, durante Tirania Militar truculenta e assassina) construiu sua Ética Política em coragem, luta e riscos diante aquele despotismo. Ela escolheu, demarcou e assumiu seu itinerário histórico e justamente por isso colocouse entre instituições vanguardeiras dos movimentos populares (estrutura oxigenada de Igualdade, Liberdade, e Insurgência) , potencializando – como nunca se viu em nossa história – sua anfíbia condição de entidade representativa e parcela do poder estatal – pois assumiu os riscos dessa vanguarda – recebeu em troca ( esvaziando a intolerância dos governantes militares), a confiança do povo mediante suas entidades representativas e também o que era havido como tecnicamente eficaz e confiável . Eram vozes das pessoas falando nas casas, nas ruas, soando em surdina e medo, em suma, o que se chamaria voz do povo. A //Essa Ordem dos Advogados do Brasil não foi credenciada por dispositivo da Constituição Federal (Certa vez, em debate com Roberto Campos, voz autoritária da “consciência” conservadora do capital financeiro, ouvi-o usar repetidamente a palavra “pleonexia”) como defensora da ordem jurídica, foi mais que isso, tornou-se efetivamente, repositório da uma sadia e verdadeira consciência ética. Advogados introjetaram e colocaram-se no saio de lutas diretas, nos espaços das prerrogativas ou do frontal enfrentamento ante a Ditadura. Não são outros os dilemas trazidos pelas pautas da OAB. Eles sim devem ser preliminarmente, discutidos e vistos como desafios em direção a valores acima dos que foram pensados e vivenciados pela nossa colonial tecnoburocracia. E na correção de nossas falhas, na retificação de caminhos, na pauta inclusive, das exigências e esperanças que as pessoas brasileiras tributaram aos integrantes da OAB, notadamente nos mais ainda deploráveis tempos de tirania militar que, por seu turno, descoloriu-se, como poder estagnante, em face do atual tempo de esperanças insepultadas, devem inexistir tocas para o esconder e refúgio dos que, em dias de opressão foram os aplaudidores voluntários de todos os absurdos praticados , na atmosfera de violência sempre covarde exercidas em suas casernas cavernas e quartéis. As respostas, de modo exclusivo, não nos pertencem. Mas, enquanto tarefeiros de Direitos Humanos, em miúda contribuição e ao nosso aperfeiçoamento cabe, invertendo os termos, perguntar: será apenas tecnoburocrática a toca onde se esconde? O que, dentro de contextos contrários as 76 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI apurações de violência contra direitos, o que nos é dado fazer? Na pauta do debate solicitado, pede-se análise da circunstância, intensidade e freqüência crescente de violações sem troco. O que chega tardiamente ao nosso conhecimento (p.ex. cartas de detentos doentes, desassistidos e torturados, enviadas para a Comissão de Direitos Humanos da OAB. E as cartas dos detentos, denunciando violências suportadas ou implorando apoio, raro encontram seus destinatários ou seguem os eficazes caminhos. Essa “posta-restante”, enquanto tal, não possui anima. Qual animação se espera do inanimado? Os fatos são expansivos, não param ou esperam. A fundamentação da revolta esta na indignação ante o que se repete, é assimilado e revigorado na inação ou ação tardia. A longa experiência da OAB vem mostrando os tantos obstáculos ao recebimento e providências cabíveis que inúmeras e constantes denúncias, vindas de todos os Estados brasileiros. As novas dimensões – com ampliação e novo instrumentar a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - que a Direção da Entidade planeja, deverá abrir outros campos de eficácia no relevante atendimento, intrinsecamente questionador posto que sempre enfrenta violações de Direitos Humanos, de várias origens (estatais ou particulares) e as resoluções adequadas implicam na constante melhoria dos serviços públicos, enquanto exigem questionamentos, de contundência inafastável e sempre molestos, quando incisivamente encaminhados, nos espaços públicos e particulares. Sempre deve ser assim, posto que o desprezar ou ignorar a urgência social de impedir lesões a Direitos Humanos, deve gerar respostas fortes, desmoralizantes que, apesar da agressividade que precisa encerrar ao exigir restaurações, raramente conseguem ser tão duras, dolorosas e socialmente desconcertantes quanto o ferimento de qualquer (e sempre nuclear) Direito Humano. Karl Marx afirmou , em termos não superados, ser a Liberdade a consciência da necessidade.Tal valor somente se realiza através da Igualdade. Esses dois valores,em sua inerência,devem ser o principal objeto das lutas universais em favor de um mundo justo. 77 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS Joênia Wapichana* Introdução A Declaração Universal dos Direitos Humanos abriu novas visões sobre o Direito. No século XX, a Declaração estabeleceu princípios universais, e concebeu conceitos de direitos interdependentes e indivisíveis. O mundo preparava-se para enfrentar dilemas e lacunas jurídicas que eram obstáculos à garantia e ao gozo dos direitos humanos fundamentais. O artigo 6º da Declaração Universal traz à luz uma reflexão sobre o direito de ser pessoa, sobre o direito de ter respeitados diferentes valores e maneiras de viver. Estabeleceu a importância do tratamento a ser dado ao ser humano – portanto merecedor de dignidade – a todas as pessoas e em todos os lugares, e com a garantia da lei, caso isto não se cumpra. Viver dignamente, um direito reconhecido e base de todos os direitos humanos é ainda hoje um desafio incorporado às necessidades do homem e da mulher. Os tempos modernos mostraram que a pretensão de universalidade pensada há 60 anos atrás enfrentaria desafios e preconceitos ainda não conhecidos ou admitidos. E assim, ao longo do século XX e XXI foram desenvolvidos novos instrumentos de direitos humanos, que mais adequadamente interpretaram e exigiram a aplicação da Declaração Universal. Entre esses documentos, citamos os que se referem aos povos indígenas como sujeitos especiais de direito como a convenção 169 da OIT e a Declaração Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas. Mudanças do tratamento do “ser pessoa” No caso dos povos e indivíduos indígenas, só recentemente entendeu-se que a proteção de seus direitos fundamentais não poderia deixar de considerar os diferentes valores, as diferentes culturas, tradições e maneiras * JOENIA BATISTA DE CARVALHO é do Povo Indígena WAPICHANA/RR.Primeira mulher indígena a se formar em Direito no Brasil. Graduou-se na Universidade Federal de Roraima. Advogada e liderança indígena no Conselho Indígena de Roraima. Pela defesa dos direitos dos povos indígenas da TI Raposa Serra do Sol, já recebeu prêmios nacionais e internacionais de direitos humanos. 79 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de viver indígenas. Inclusive para o exercício do direito de ser reconhecido e respeitado como pessoa. Em razão da cultura e valores diferenciados, muitas vezes na nossa história as pessoas indígenas foram, e em muitos casos ainda são, tratadas como seres inferiores, tendo desrespeitada sua dignidade humana, em razão de peculiaridades culturais como suas línguas, hábitos crenças, modos etc... Por muitos anos a nossa sociedade foi instruída na idéia de que existia um único modelo certo de ser humano, civilizado e cidadão (consequentemente detentor de direitos e parte fundamental da sociedade). A Declaração Universal dos Direitos Humanos rompe com esse entendimento e contribui com uma nova mentalidade, aberta à diversidade. É verdade que tais inovadoras considerações foram efetivamente aceitas apenas muitos anos depois de proclamada a Declaração (como por exemplo o direito de igualdade da mulher, não-discriminação dos portadores de deficiência, inclusão dos pobres e analfabetos no exercício e gozo dos direitos de cidadania). E até hoje, há quem ainda resista à idéia de diversidade. Não muito longe de nossa realidade atual, havia as caçadas aos índios para colonização das terras. Ainda se ouve muito falar que as avós de um ou de outro eram tão “selvagens” que foram pegas a laço. Imagino o que passaram essas avós indígenas, na sua negação como ser humano. Por não serem consideradas como pessoas, foram retiradas à força de suas comunidades, de seu habitat e obrigadas a mudar em todos os sentidos. A justificativa partia da equivocada idéia de que, o indígena se tornaria cristão e trabalhador livre, deixando de ser índio para ser cidadão, reconhecido como pessoa. Tais idéias foram ainda legisladas. A própria legislação civil brasileira de 1916 (Código Civil vigente até 2002) estabelecia a incapacidade civil dos indígenas conforme o seu grau “de aculturação”. Condicionava-se assim o reconhecimento legal dos mesmos, como pessoas cidadãs, e limitava-se a possibilidade de serem respeitados plenamente como “sujeitos de direito”. Da mesma forma, o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73) traz em seu texto o tratamento dispensado aos índios, como “silvícolas”. O termo referia-se àquele que vivia na selva e que não teria condições de exercer sua vida civil, fadado a um processo de que deveria ser de assimilação a uma única cultura, religião e lei. A idéia de que uma única cultura definiria o que é “ser pessoa”, havendo um padrão a ser seguido pela sociedade em geral, trouxe à tona o desprezo por valores diferentes. Com isso o 80 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI preconceito cresceu e “ser pessoa” passou a exigir um status de “ser superior”. Consequentemente, o “ser inferior” deveria mudar para “ser pessoa” de fato. E por mais absurda a idéia, ainda ouve-se muito falar aos índios que eles devem fazer isso ou aquilo para um dia “serem pessoas”. E o que mudou? No Brasil, não restam dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 trouxe significativos avanços em termos de conquista de garantias e direitos fundamentais, e dos direitos indígenas. Ficou evidente na Carta Magna a pluralidade étnica existente em nosso país, cabendo ao Estado brasileiro adotar medidas que assegurem o respeito à diversidade cultural aqui presente. A Constituição Federal de 1988 veio reconhecer aos povos indígenas o direito à diferença, consubstanciada no reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens1 (CF, art. 231). O artigo 231 e seus parágrafos contemplaram maior proteção jurídica às terras indígenas, com preceitos inovadores que partiram do reconhecimento dos direitos originários sobre as terras tradicionais indígenas e da proteção da dignidade das pessoas e povos indígenas. Elevaram à categoria de tema constitucional o conceito de terra indígena, pois entendeu-se serem elas imprescindíveis ao bem-estar e à reprodução física e cultural dos povos indígenas, segundo seus usos, costumes e tradições (CF, art. 231, § 1º). Apesar do ganho na legislação magna, ainda pesa sobre os povos indígenas a dependência da vontade política para o reconhecimento de fato de seus direitos territoriais para a garantia de seus direitos fundamentais. Enfrenta-se desde falta de recursos a conflitos judiciais, interesses político-econômicos, ausência de políticas públicas, e discriminações de todos os tipos, como por exemplo a falta do reconhecimento dos índios como pessoas. Conforme reconhecido na Constituição, para os povos indígenas terem sua dignidade e culturas protegidas, precisa-se de segurança de suas terras. A compreensão da terra, para os povos indígenas, vai além do aspecto meramente patrimonial. Ela se apresenta como condição de existência, de vida, 81 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI fazendo parte, inclusive, de nossa identidade indígena – é a vida não apenas física, biológica, mas em suas múltiplas referências. Além da sobrevivência física de cada um dos membros da comunidade, busca-se garantir a sobrevivência e o desenvolvimento das comunidades, que têm suas histórias relacionadas com um determinado local, um modo de ser e viver particular, e uma maneira de se expressar característica. Assim são reconhecidos e protegidos como indivíduos e coletividades. Reconhecimento do tratamento digno – os direitos coletivos dos povos indígenas A diferença entre direito individual e direitos coletivos tem respaldado instrumentos internacionais, que surgem para a proteção do direito dos povos indígenas e de outras coletividades do mundo atual. Em 1989, por exemplo, diversos paises, entre eles o Brasil, assinaram e adotaram a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho - OIT. Em 2002, após anos de tramitação, o Congresso Nacional ratificou a Convenção Internacional, passando a partir de 2004 a ser lei no Brasil, com a sua promulgação em Decreto presidencial. A Convenção nº 169 da OIT, reconhece os direitos coletivos de “povos” indígenas, e não somente os direitos de indivíduos indígenas. Estabelecendo entre outros, a necessidade de adoção do conceito de povos indígenas no âmbito do direito interno, com garantias ao direito coletivo essenciais para sua condição como pessoa. “A Convenção foi o primeiro instrumento internacional a tratar dignamente dos direitos coletivos dos povos indígenas, estabelecendo padrões mínimos a serem seguidos pelos Estados e afastando o princípio da assimilação e da aculturação no que diz respeito a esses povos.” (Ana Valeria Araújo, in Povos Indígenas e as leis dos brancos: o direito a diferença). E destaca: O princípio da auto-identificação como critério de determinação da condição de pessoa indígena, de “ser índio.” O direito de consulta sobre medidas legislativas e administrativas que possam afetar os direitos dos povos indígenas. O direito de participação dos povos indígenas, pelo menos na mesma medida assegurada aos demais cidadãos, nas instituições eletivas e nos 82 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI órgãos administrativos responsáveis por políticas e programas que os afetem. O direito dos povos indígenas de decidirem suas próprias prioridades de desenvolvimento, bem como o direito de participarem da formulação, da implementação e da avaliação dos planos e dos programas de desenvolvimento nacional e regional que os afetem diretamente. O direito dos povos indígenas de serem beneficiados pela distribuição de terras adicionais, quando as terras de que disponham sejam insuficientes para garantir-lhes o indispensável a uma existência digna ou para fazer frente a seu possível crescimento numérico. O direito a terem facilitadas a comunicação e a cooperação entre os povos indígenas através das fronteiras, inclusive por meio de acordos internacionais. Ao defender direitos coletivos, a Convenção 169 da OIT traz invocações substanciais para a legislação internacional de direitos humanos, explicitada em instrumentos internacionais escritos quase exclusivamente em termos dos direitos individuais. Garantir aos membros de povos indígenas os mesmos direitos universais de qualquer pessoa humana foi um passo importante. Entender que esta pessoa humana tem características culturais que lhes são próprias e que são vividas em coletividade expande a noção jurídica de pessoa perante a lei. O advento das novas concepções sobre os direitos humanos e a situação dos povos indígenas trouxe novos mecanismos de defesa dos direitos indígenas. Para respeitar o individuo como pessoa é preciso entender e respeitar o coletivo indígena por meio de suas culturas, tradições e anseios para o futuro. O que faz ser pessoa não é sua cor, sua língua, ou seus costumes como bem reconhece a nossa Constituição, dando vida ao dispositivo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A humanidade está precisamente na diversidade do nosso ser que, ao fim, despido de todos os pré-conceitos, nos une pela essência. Uma essência que exige dignidade, que respeita o indivíduo e o coletivo. Além da Convenção 169 da OIT, outros instrumentos internacionais avançam na afirmação do respeito aos direitos coletivos dos povos indígenas. A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (adotada em setembro de 2007), exatamente interpreta a Declaração Universal (que trata de direitos 83 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI individuais) no contexto dos povos indígenas. O artigo 43 da Declaração dos Povos Indígenas chama atenção para o que significa dignidade e bem-estar para os povos indígenas. O conceito de coletividade que perpassa todo o conteúdo da Declaração dos Povos Indígenas adiciona mais um elemento para a proteção da pessoa e de sua dignidade, tal como consta na Declaração Universal. Trata-se do respeito à diversidade, direito fundamental das pessoas indígenas individuais e coletivas. O Preâmbulo e artigos 1º, 2º e 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como o artigo 6º da Declaração Universal, devem ser lidos em conjunto com o artigo 9º da Declaração dos Povos Indígenas. Trata-se de direitos interdependentes. E assim, o reconhecimento da dignidade da pessoa e dos povos indígenas não pode ser compreendido sem o reconhecimento do caráter fundamental das terras tradicionais para a existência e continuação dos povos indígenas e como tais (artigos 10 e 26 da Declaração dos Povos Indígenas). “Os indígenas têm direito, como povos ou como pessoas, a usufruir plenamente de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das nações Unidas, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Normativa Internacional dos Direitos Humanos.” [artigo 1º da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos Povos Indígenas] Se a bem conhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos comemora seus 60 anos, com ela não podem ser esquecidos os desafios ainda a serem superados e os esforços mundiais para a sua implementação. A exemplo, a recém aprovada, e ainda pouco conhecida, Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas. 84 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, DE 1948 José Luciano de Castilho Pereira* 1 – Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. 1.1. Doutrina Fábio Konder Comparato, examinando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que: “reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina jurídica contemporânea, de resto, (...) distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais, na medida em que estes últimos são justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado mediante normas escritas. (…) Já se reconhece, aliás, de há muito, que a par dos tratados ou convenções, o direito internacional é também constituído pelos costumes e os princípios gerais de direito. (…) Ora, os direitos definidos na Declaração de 1948 correspondem, integralmente, ao que o costume e os princípios jurídicos internacionais reconhecem, hoje, como normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens). (1) É sob essa ótica doutrinária que serão examinados os direitos decorrentes do trabalho humano subordinado, incluídos na mencionada Declaração de 1948. 1.2. Os artigos XXIII e XXIV da Declaração cuidam dos fundamentos do Direito do Trabalho, afirmando que todo homem tem direito ao trabalho, em condições justas, com proteção contra o desemprego, tendo sempre assegurada remuneração igual por trabalho igual, sem qualquer distinção. Afirmam ainda que a remuneração pelo trabalho prestado deve ser justa e satisfatória, para garantir ao trabalhador e à sua família existência compatível com a dignidade humana, tendo ainda direito a limitação razoável da jornada de trabalho, a periódicas férias remuneradas, a repouso e lazer. 85 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI E, para garantia destes direitos humanos, ficou estabelecido que todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para proteção de seus direitos. 1.3. A Declaração deu seqüência à linha já traçada pela Constituição da Organização Internacional do Trabalho, em 1919 e, de modo muito especial, seguiu a contundente Declaração de Filadélfia, de 10 de maio de 1944, que fixou de modo preciso os Direitos dos Trabalhadores, colocando o princípio básico de que o trabalho não é uma mercadoria, incluindo esta grave advertência: a penúria, seja onde for, constitui um perigo para a prosperidade geral. 1.4. De ser destacado, ainda, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado na XXI Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, no dia 19 de dezembro de 1966, devidamente ratificado pelo Brasil. Este Pacto, no seu art.7º, afirma: “Art. 7º - Os Estados-Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente: a) uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores: b) um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles por trabalho igual; c) uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as disposições do presente pacto; d) a segurança e a higiene no trabalho; e) igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo de trabalho e capacidade; 86 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI f) o descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feriados. E, no artigo 8º do mesmo Pacto, foi tratado o direito de toda pessoa à organização e à filiação sindical, “sujeitando-se unicamente aos estatutos da organização interessada, com o objetivo de promover e de proteger seus interesses econômicos.” Restou, também, assegurado o Direito de Greve. 1.5. Fica claro, portanto, que estes textos do Direito Internacional expressamente reconhecem a dignidade do trabalho humano, que não é uma mercadoria. O homem não trabalha apenas para satisfazer suas necessidades materiais de vestuário, casa e comida. O trabalho, em verdade, se vincula ao homem enquanto pessoa, reclamando também a satisfação de necessidades ligadas ao seu universo espiritual. Mas o ser humano é uma unidade, na qual o físico e o espiritual estão em permanente interação. Assim, por mais material que seja o trabalho, dependente apenas de esforço físico, o trabalhador, em sua execução, não deixa de ser uma pessoa humana. Como o trabalhador não é uma máquina, como tal ele não pode ser tratado. Decorre daí a integração do Direito ao Trabalho, bem como do Direito do Trabalho, como partes integrantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto de 1966. 1.6. Considerando a realidade brasileira, a partir de outubro de 1988, esses Direitos Humanos passaram a integrar a Constituição Federal do Brasil. Mas sua integração não se deu no título que cuida da Ordem Econômica e Social, como nas Constituições de 1934 e de 1946; ou simplesmente na Ordem Econômica, como na Constituição de 1937. 87 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Eles estão, desde o Título I, que trata dos Princípios Fundamentais, afirmando que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. E, no art. 3º, está dito que constituem objetivos fundamentais da República, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem discriminação de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. E, no Titulo II, especifica os Direitos e Garantias Fundamentais, estando os Direitos Sociais, no Capítulo II, compreendendo os artigos 6º a 11º. No artigo 6º, está declarado que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. No art.7º, estão enumerados direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. Da leitura do art. 7º, decorre a conclusão de que, substancialmente, foram transformados em Direitos Fundamentais os Direitos Humanos dos trabalhadores, constantes da Declaração Universal de 1948, bem assim do Pacto de 1966. Lastima-se, apenas, que não se tenha acolhido a norma da Convenção 158 da OIT quanto à despedida imotivada dos trabalhadores, embora o inciso I, do art. 7, não vede sua vigência no Brasil, ela continua trilhando caminhos tortuosos, marcados por intermináveis filigranas jurídicas. No art. 8º, estão registrados os direitos básicos dos sindicatos, destacando-se, v.g., o inciso VI, que torna obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas e o inciso III, que atribui ao sindicato a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas. O art. 9º, garante o Direito de Greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. Ainda aqui, foram seguidas garantias dos Direitos Humanos dos 88 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Trabalhadores estabelecidos na Convenção de 1948 e no Pacto de 1966, além do prescrito em normas de Convenções da Organização do Trabalho. Lamenta-se, entretanto, o conflito do inciso II, do art. 8º, com a Convenção nº 87/OIT, asseguradora da mais ampla liberdade sindical. Mas, de qualquer forma, não há como se negar que o direito ao trabalho e o direito do trabalho estão inseridos no universo do homemtrabalhador. Como lembra o professor OSCAR ERMIDA URIARTE, “o trabalhador tem duas classes de direitos humanos: os direitos trabalhistas específicos, os que todos conhecemos e com os quais trabalhamos, e os demais direitos do cidadão,(...) não específicos do trabalhador, mas que ele conserva, como cidadão, na relação de trabalho.” (2) 1.7. Fica demonstrado, como está no ensinamento de FLÁVIA PIOVESAN, que “a Constituição assume expressamente o conteúdo dos direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Ainda que estes direitos não sejam enunciados sob forma de normas constitucionais, mas sob forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto no texto constitucional.”(3) 2 - Os Direitos Fundamentais e a Realidade Brasileira. 2.1. Apresentada a realidade de nossa ordem jurídica, segundo a estruturação fixada pela Constituição – na garantia dos Direitos Humanos dos Trabalhadores - deve ser apurado a maneira segundo a qual ela atua na vida dos brasileiros, para assegurar que Paz seja, efetivamente, obra da Justiça. Como pontua o Min. CARLOS AYRES BRITO, o justo à distância, que é o justo abstrato, não é difícil de ser alcançado. O problema, continua o Ministro, reside é no ponto de chegada, isto sim, e esse ponto jurídico de chegada é o justo em concreto. O justo em carne-e-osso, pois a vida é muito mais novidadeira do que vida pensada pelos legisladores. (4) 89 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 2.2. Aqui dois fatores importantes devem ser destacados; o primeiro diz respeito á nossa história sócio-econômica, marcada pelos muitos séculos de trabalho escravo, quando o trabalho não era fator de afirmação da dignidade humana. Daí poder dizer MARCIO POCHMANN, que o trabalho valorizado não é algo difundido no Brasil. De passado colonial e sustentado pela escravidão, serve de obrigação para a sobrevivência da maior parte da população. Poucas famílias desfrutam do trabalho como consequência de posição de poder e riqueza. Somente com a industrialização nacional, a partir da Revolução de 30, que o Brasil começou- sem terminar ainda- o caminho da valorização do trabalho. (5) Nesta mesma linha se coloca EVALDO CABRAL DE MELLO, ao afirmar que, segundo JOAQUIM NABUCO, a escravidão é a instituição que ilumina nosso passado mais do que qualquer outra, acrescentando: “à partir dela, é que se definiram entre nós a economia, a organização social e estrutura de classes, o Estado e o poder político, a própria cultura”. (6) O segundo fator a ser destacado é que, logo após a promulgação da Constituição Social de 1988, foi derrubado o emblemático Muro de Berlim e implodido o império Soviético. E, segundo FUKUYAMA, em livro publicado em 1992, chegou-se ao fim da história, porque “a vitória liberal contra o fascismo e o fim do mundo comunista seriam a prova histórica de que não há nenhuma outra forma de organização superior à economia de mercado e nenhum sistema político mais perfeito do que a democracia liberal.” (7) Diante disso, passou a ser sustentado entre nós que a Constituição de 1988, com os Direitos Humanos por ela incorporados como Direitos Fundamentais, cuidavam de um mundo que não mais existia. Agora, o Estado deveria se afastar de interferência na vida econômica, pois esta se regeria por leis inflexíveis; por consequência, o campo do contrato seria dominado pelo “pacta sunt servanda”, tudo segundo ideologia do Laissez Faire. A partir de então, os direitos humanos dos trabalhadores passaram a ser tratados como a parte pobre da Economia. Pobre e descartável, como uma simples mercadoria. Assim, no final do Século XXI, corremos para o final do Século XIX!!! 90 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI As duas circunstâncias acima referidas fizeram com que os Direitos Humanos assegurados pela Declaração de 1948 – e inseridas na Carta de 88- não se efetivassem na realidade brasileira. Aqui se acreditou que havíamos chegado ao Fim da História e passamos a cumprir a linhas ditadas pelo neoliberalismo, com o afastamento do Estado do dever de promover os Direitos Humanos dos Trabalhadores. Como está afirmado por NORBERTO BOBBIO, enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o objetivo de limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua realização prática, ou seja para a passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.” (8). Essas colocações devem ser feitas, pois, como assinalado por BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, “o debate sobre a concretização da Constituição não pode desprezar as circunstâncias históricas nas quais ela se insere.” (9). E, como descrito acima, tem ficado difícil vislumbrar a aplicação do comando do art.193 da Constituição Federal a preceituar que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Também tem se tornado quase impossível vislumbrar o cumprimento do contido no art. 170/CF, ao garantir que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados alguns princípios, como o da função social da propriedade. A Constituição estrutura a Ordem Social e a Ordem Econômica segundo os princípios dos Direitos Fundamentais, que ela recebeu da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Contudo entre a conceituação abstrata dos Direitos Fundamentais e sua efetivação tem medeado distância abissal. 2.3. Mas é de ser remarcado que um fato novo está acontecendo no mundo: o abalo do Império Norte-Americano. 91 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A ausência do Estado está liquidando o neoliberalismo, provocando uma evocação de KEYNES, a justificar, como aconteceu no início dos anos 30 do século passado, uma forte interferência do Estado para tentar salvar a economia e para minorar a tragédia social provocada pelo desemprego. Assim, ruíram os pilares do novo-pensar, pois não era verdade que a economia segue regras inflexíveis, não sujeitas a ação estatal. Também não era verdade que a lei trabalhista é que provocava o desemprego, pois nos Estados Unidos não existem rígidas leis trabalhistas e lá passou a ser fantástico o desemprego e a precarização de mínimas garantias sociais, especialmente com relação à saúde e ao trabalho humano, como fruto do absenteísmo do Estado. É tempo, portanto, de redescobrir a Constituição de 1988, que não nasceu velha, como foi tão apregoado pelos “donos da verdade”, pois , na lição de PAULO BONAVIDES, : “a constituição de 1988 é basicamente, em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social. Portanto, os problemas constitucionais referentes a relações de poderes e exercícios de direitos subjetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do Estado liberal, outra a Constituição do Estado social. A primeira é uma Constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder.” (10) Na estrutura da Constituição de 1988, segundo doutrina do ministro EROS GRAU- a valorização do trabalho humano e o reconhecimento do valor social do trabalho portam em si evidentes potencialidades transformadoras. Por tal razão, ao analisar o art. 170/CF, concluiu com JOSÉ AFONSO DA SILVA, que a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre os demais valores da economia de mercado. (11) 3 - CONCLUSÃO 3.1. Em uma Conferência sobre Direitos Humanos, sob o patrocínio da Ordem dos Advogados do Brasil, é necessária uma reflexão profunda sobre o que pode ser feito para transformar em realidade concreta os Direitos Humanos dos Trabalhadores, formalmente assegurados pela Declaração Universal de 1948 92 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI e incluídos como Direitos Fundamentais na Constituição do Brasil de 1988. Os tempos de crise, como os de hoje, facilitam a reflexão sobre os rumos do mundo em que vivemos, quando as tragédias sociais instigam a procura de um Estado que crie condições assecuratórias da dignidade humana de todos. Como apontou ERIC HOBSBAWM : “Hoy, cuando el número de los que no trabajan y de los que no recibem un salario crece sin Cesar, debemos encontrar nuevas formas de distribucion de la riqueza nacional e internacional. Es decir, debemos proveer tambien para uma parte de aquellos que, em nel pasado, se habriam ganado su estipendio em el mercado de trabajo. Este es el mayor problema que debemos afrontar. No es cuestión de incrementar la produccion, que ya hemos resuelto satisfactoriamente. El verdadero problema lo constituye el modo de repartir esa riqueza. (12) E, como é sabido por todos, no final do século passado, a globalização e o neoliberalismo reforçaram a concentração da riqueza e expandiram a miséria, aumentando o desemprego, a informalidade e as muitas formas de trabalho degradante, muito próximas do tempo da escravidão. É preciso, repito, repensar o papel do Estado como efetivo instrumento de promoção do bem comum. Assim, como apontado pelo Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, OPHIR CAVALCANTE JÚNIOR, “a dimensão dos Direitos Humanos não está ligada a uma visão meramente ideológica. Ela é muito mais. É uma visão de sociedade, de Estado e de Governo e cabe a nós, sociedade civil, dar a exata dimensão do que entendemos por Direitos Humanos, cobrando dos Governantes o respeito à dignidade do ser humano na extensão mais ampla possível.” (13) 3.2. Para tanto, é necessário tomar consciência do problema bem assim conscientizarmo-nos de que nossa inação inviabiliza a efetivação dos Direitos Humanos. E para conhecer a questão dos Direitos Humanos é necessário apreender, no caso do Trabalho Humano, que. no Brasil, a escravidão terminou, formalmente, há pouco mais de cem anos e que a preocupação com Direitos Sociais começou com a Revolução de 1930, portanto, há menos de oitenta anos. 93 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Mas, em verdade, ainda convivemos com forte herança do passado, no qual o trabalho humano não passava de descartável mercadoria, como se pode observar nos poderes senhoriais do empregador numa relação de emprego. 3.3. Ensina o Min. ARNALDO SUSSEKIND, com toda sua autoridade, que “relevante é que nossos magistrados não interpretem as normas constitucionais em função da lei ordinária, porquanto a Lei Suprema é que deve servir de guia para a interpretação e aplicação dos demais preceitos do ordenamento jurídico.” (14) E, para esta mudança de rumo, fundamental é o papel do advogado que, no exercício de seu ofício, deve levar o magistrado a aplicar a lei sob a luz da Constituição, para que esta tenha vida efetiva, na sua letra e no seu espírito. Bibliografia 1. COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmacão Histórica dos Direitos Humanos. 5. Edição. São Paulo: Saraiva,2007. p.227 2. URIARTE, Oscar Ermida. A Aplicação Judicial das Normas Constitucionais e Internacionais Sobre Direitos Humanos Trabalhistas. Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. Obra coletiva, quanto a evento realizado no TST. São Paulo: Ltr, 2004. p. 283. 3. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 85 4. BRITO, Carlos Ayres. O Elo que falta. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n.6, Julho/Dezembro 2005, p. 221-224. 5. POCHMANN, Marcio. Direito ao Trabalho: Da obrigação à conseqüência. Práticas de Cidadania. Organizado por JAIME PINKY. São Paulo: Contexto, 2004. p. 107. 94 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 6. MELLO, Evaldo Cabral de. O Abolicionismo. São Paulo: Nova Fronteira, 2000. Publifolha. p. XIII 7. Confira-se José Luís Fiori, in 60 lições dos anos 90: Uma década de neoliberalismo – especialmente a 4ª. Lição. Ed. Record, 2001. p. 21/24. 8. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Jameiro: Campus, 1992. p. 72 9. SANTOS, Boaventura de Souza. A Justiça Social e Justiça Histórica. Folha de São Paulo, 26 de agosto de 2009. 10. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21.ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 371 11. GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 12.ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 199 12. HOBSBAWN, Eric. Entrevista sobre el siglo XXI. Barcelona: Editorial Crítica, 2000. p.112 13. CAVALCANTE JÚNIOR, Ophir. Informativo On-line OAB, 4 a 7 de setembro 2009. 14. SUSSEKIND, Arnaldo. Os Direitos Constitucionais Trabalhistas. In Direitos Sociais na Constituição de 1988. São Paulo: Anamatra, Ltr, 2008. p.47 95 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI O EMERGIR DOLOROSO DA CONSCIÊNCIA UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Luis Henrique Beust* Como soe acontecer na vida humana, individual ou coletiva, foi através da calamidade que a consciência do mundo em relação aos direitos humanos se elevou a novas alturas de compreensão, responsabilidade e amadurecimento. A calamidade foi a Segunda Guerra Mundial, especialmente a ação genocida promovida pelo nazismo no seio da Europa. A nova consciência expressou-se na constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e na sua proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Até o Holocausto, prevalecia a idéia de que a proteção dos direitos humanos era uma questão doméstica aos estados soberanos. O sacrifício de seis milhões de judeus – dos quais mais de um milhão eram crianças menores de 15 anos -, assim como de poloneses, ciganos, prisioneiros de guerra, homossexuais, oponentes políticos e portadores de deficiências mentais e físicas, alertaram os líderes e cidadãos do mundo para a responsabilidade coletiva de todos por todos. Em seu famoso discurso ao Congresso americano em 1941 o presidente dos EUA, Franklin Luis Henrique Beust - estudou Arquitetura e Urbanismo (UNISINOS) e História (UFRGS) no seu estado natal, o Rio Grande do Sul. É pós-graduado em Planejamento do Desenvolvimento (Universidade de Londres); Gestão de Assentamentos Humanos (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, FLACSO-UNESCO) e Desenvolvimento Social pelo Mestrado Latino-Americano de Desenvolvimento Social (Universidade NUR, Bolívia; Universidade Bolivariana, Chile; FUNDAEC, Colômbia). É membro da Sociedade para a Pesquisa do Desenvolvimento Adulto (EUA). Membro do think-tank sobre Coexistência Pacífica e Construção de Comunidade do Fórum da Condição Global (EUA). Coordenador do Conselho da Educação Global (EUA) na América Latina e membro do Comitê Consultivo da Conferência Internacional sobre o Sofrimento e a Dor na Sociedade Contemporânea (Israel). Consultor em Educação Moral para oito repúblicas da Ásia Central, através do Novaya Era Institute, República do Casaquistão. Auditor internacional em Direitos Humanos no Trabalho junto à Verité (EUA). Consultor em valores humanos e desenvolvimento humano junto ao Ministério de Educação do Brasil (MEC) e à ONU-PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). É Diretor do Instituto Anima Mundi, em São Paulo, e também atua como docente em cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Há mais de 15 anos vem atuando como consultor em Educação para a Paz e Desenvolvimento Humano e Social, oferecendo cursos e palestras em empresas, universidades e centros educacionais públicos e privados em mais de 30 países nas três Américas, Europa e Ásia. Atuou em centros como a Universidade de Harvard (EUA) e o University College (Inglaterra), e em locais com a Grécia e o Casaquistão, além de ter publicado vários títulos, inclusive poesias, tanto como autor como tradutor. Tem desenvolvido programas educacionais dirigidos para pais e professores, no Brasil e no exterior, dos quais já se beneficiaram dezenas de milhares de participantes. Também desenvolve atividades nas artes plásticas, com premiações em alguns salões oficiais. * 97 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Delano Roosevelt vinculou a paz mundial à observância dos direitos humanos “em todas as partes do mundo”. O mundo voltou sua atenção para a essencial universalidade das liberdades pessoais. A destruição inaudita provocada pela Segunda Grande Guerra e a total eliminação dos direitos humanos por uma das nações mais cultas e tecnologicamente avançadas do planeta serviram de pano de fundo para a constituição da ONU em 1945. A pressão advinda da vários lados, especialmente da América Latina e de organizações não-governamentais (ONGs), conseguiu garantir que a proteção aos direitos humanos fosse uma das quatro metas prioritárias da Carta das Nações Unidas. A Carta da ONU elevou os direitos humanos a um novo status legal internacional, estabelecendo os primeiros passos para uma proteção genuína dos direitos humanos no mundo todo, inclusive com a criação de instrumentos para tanto, como a Comissão de Direitos Humanos, o único órgão subsidiário da ONU a ser mencionado na Carta. A nova dimensão dos direitos humanos patente na Carta implicava uma responsabilidade internacional compartilhada por todos de garantir a observância e de promover os direitos humanos em todas as partes. Hoje a ONU é a única entidade supra governamental universalmente reconhecida como legítima fonte de legislação relativa aos direitos humanos. Dentro da estrutura da ONU, são o Conselho de Segurança e o Conselho de Direitos Humanos (que veio a substituir a Comissão de Direitos Humanos em 2006) os dois órgãos principais a cuidar do tema, embora uma miríade de comitês exista para zelar pela observância das diferentes convenções e tratados relativos aos direitos humanos. Além disso, o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, parte da estrutura da Secretaria Geral da ONU, assume um papel de liderança e agilidade na promoção e proteção dos direitos humanos como delineados na Carta das Nações Unidas e nas leis e tratados internacionais de direitos humanos. Apesar destes avanços, era claro que a Carta das Nações Unidas, sozinha, não oferecia as garantias nem a abrangência adequadas para a proteção dos direitos humanos. Pro essa razão, desde sua formação, a Comissão de Direitos Humanos da ONU teve como atribuição fundamental a elaboração de um instrumento que melhor definisse e defendesse os direitos humanos numa escala internacional. Uma comissão 98 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de notáveis, com a colaboração de representantes de vários países e ONGs, redigiu então o que viria a ser conhecida como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada pela Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948. Leis internacionais pelos direitos humanos: um caminho tortuoso A DUDH, como todas as “declarações” da ONU, não tem força juridicamente vinculativa sobre os países signatários, embora houvesse uma proposta neste sentido quando de sua elaboração. Depois de inúmeras negociações e ajustes, ela foi proclamada como “o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. Apesar disso, sua influência tem sido imensa na elaboração de legislação internacional e nacional, e é considerada atualmente um componente central de direito internacional consuetudinário, podendo ser invocada, em determinadas circunstâncias, por judiciários nacionais, ou outros. Segundo o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, a DUDH, “pela primeira vez na história, assentou direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais básicos que deveriam ser desfrutados por todos os seres humanos”. A partir da DUDH, e de sua enumeração ampla das normas substantivas relacionadas aos direitos humanos, uma série de convenções, pactos e tratados internacionais e regionais – estes sim impositivos quando firmadas e ratificadas pelos Estados – foram elaborados e postos em ação pelo sistema da ONU e outros. Como o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos e a União Africana. Sob a égide da ONU nasceram os dois documentos fundamentais para implementar a DUDH: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos. Sociais e Culturais (PIDESC), ambos aprovados em 1966 e em vigor desde 1976. Esses dois Pactos, juntamente com a DUDH formam aquilo que é conhecido como a Carta Universal dos Direitos Humanos. Eles definem e desenvolvem mais detidamente os direitos elencados na DUDH, Tornando-os efetivamente vinculativos para os Estados que os ratificam, como nas demais convenções e pactos internacionais da ONU. Essa obrigatoriedade demandada pelos tratados multilaterais 99 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI internacional significa que: “[...] após a aprovação do tratado pelo Congresso Nacional e a sua ratificação pelo Presidente da República, devem os três Poderes cumprir a parte que lhes cabe no processo, nomeadamente: ao Legislativo cabe aprovar as leis necessárias à concretização do tratado, abstendo-se de voltar as que lhe sejam contrárias; ao Executivo fica a tarefa de bem e fielmente regulamentar os tratados e cumpri-los no que lhe competir: ao Judiciário, por sua vez, incumbe o papel de aplicar os tratados internamente, bem como as leis e os regulamentos que lhe dão concretude, afastando-se da aplicação de leis nacionais que lhes sejam contrários.” Porém, as coisas não são tão simples. Um grande problema ao longo do tempo foi que, muitas vezes, os Estados, depois de se fazerem signatários das leis internacionais, não as ratificam. Os EUA, por exemplo, somente ratificaram o PIDCP em 1992 (assim como o Brasil, mais de duas décadas depois de sua aprovação pela ONU, em 1966. Por ocasião desta ratificação, o ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter, escreveu, em tom de celebração, que: “Por causa deste ato histórico, os EUA removem seu nome da lista de países párias [...]”. Apesar de a maioria dos países do mundo ter hoje em dia assinado e ratificado o PIDCP, ainda restam 29 países que ou não fizeram nem uma coisa nem outra. Em relação ao PIDESC, até hoje nem os EUA nem a África do Sul ratificaram o tratado. Outro problema complexo é o direito reservado aos Estados de aporem ressalvas, entendimentos e declarações interpretativas que criam condições particulares para sua implementação dos tratados, por ocasião da assinatura ou ratificação dos instrumentos jurídicos internacionais. Em muitos casos, tais condicionantes constituem verdadeiras fraudes contra a comunidade internacional. Em 1994, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Humanos expressou: “Particularmente preocupantes são as muitas disseminadas ressalvas formuladas, que essencialmente tornam ineficientes todos os direitos do Pacto que exigiriam qualquer mudança na lei nacional a fim de se garantir a observância das obrigações do Pacto. Desta forma, nenhum direito ou obrigação internacional foram realmente aceitos.” Em 1992 por ocasião da ratificação do PIDCP pelos EUA, Jimmy Carter advertia que “Agora que os EUA tomaram este passo tão importante, entretanto, não devem criar dúvidas quanto à sua 100 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI dedicação e adesão ao Pacto selecionando hipocritamente a quais das provisões manter-se-ão fieis”. Dito e feito. Os condicionantes levantados pelos EUA chegaram a ser tão marotos que em 2006 o Comitê de Direitos Humanos da ONU exortou-os a “interpretar o Pacto com boa fé, de acordo como o significado usual a ser dado aos seus termos dentro de seu contexto” . No contexto destas interpretações voluntariosas está à separação ou privilégio dado aos diferentes direitos humanos arrolados na Carta Internacional de Direitos Humanos conforme a melhor conveniência do Estado. De uma forma geral, pode-se dizer que os países ocidentais têm privilegiado os direitos civis e políticos, enquanto negligenciam os econômicos, sociais e culturais, enquanto os países orientais, especialmente do bloco comunista (inclusive da ex-União Soviética). Fazem o contrário. Isso, certamente, trai o espírito da DUDH, que entende os direitos humanos dentro de um referencial de universalidade, interdependência, indivisibilidade, igualdade e não discriminação. O PIDCP e o PIDESC tinham, inicialmente, sido pensados como um só instrumento, porém ele não se viabilizaria politicamente devido á objeção dos estados desenvolvidos do Ocidente, o que forçou a promulgação de dois documentos, sob a alegação de que direitos econômicos e sociais eram essencialmente objetos de aspiração e planos de desenvolvimento, não “direitos”. Ainda assim, ambos os pactos, em seus preâmbulos – enfatizando a doutrina da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos patente na DUDH – afirmam que: [...] “o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais.” Na declaração e Programa de Ação de Viena (1993), resultado da Conferencia Mundial sobre os Direitos Humanos, este princípio foi novamente reafirmado: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promoverem e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais.” Hoje em dia são dez os tratados 101 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI internacionais mais importantes a defender os direitos humanos: 1. Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. De 1948, vigora desde 1951 e foi ratificada pelo Brasil em 1952. 2. Convenção Internacional para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada em 1966, entrou em vigora em 1969. O Brasil ratificou o documento em 1968. 3. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado em 1966, entrou em vigor em 1976, sendo ratificado pelo Brasil em 1992. O Protocolo Opcional, de 1966 (em vigor desde 1976), e o Segundo Protocolo Opcional visando Abolir a Pena de Morte, de 1989 (em vigor desde 1991) não foram ainda ratificados pelo Brasil. 4. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado em 1966, em vigor desde 1976 e ratificado pelo Brasil em 1992. 5. Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, aprovada em 1979, entrou em vigor em 1981 e foi ratificada pelo Brasil em 1984. Seu Protocolo Opcional de 1999 passou a vigorar em 2000 e foi ratificado pelo Brasil em 2002. 6. Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes. Aprovada em 1984, em vigor desde 1987 e ratificada pelo Brasil em 1989. Seu Protocolo Opcional de 2002vigora desde 2006 e foi ratificado pelo Brasil em 2007. 7. Convenção sobre os Direitos da Criança. Aprovada em 1989, em vigor desde 1990 e ratificada pelo Brasil no mesmo ano. Seu Protocolo Opcional (de 2000, em vigor desde 2002) sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados foi ratificado pelo Brasil em 2004. O Protocolo Opcional sobre a Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil, de 2002, entrou em vigor em 2002 e foi ratificado pelo Brasil em 2004. 8. Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias. Aprovada em 102 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 1990, em vigor desde 2003. Ainda não ratificada pelo Brasil. Atualmente, praticamente apenas os países de origem das migrações são seus signatários. Os países têm-se mantido alheias as suas determinações. 9. Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Aprovada em 2006, passou a vigorar em 2008. Ratificada pelo Brasil, promulgada no Senado Federal em 2008 com status de Emenda Constitucional. Aguarda sanção presidencial e depósito da ratificação na ONU. Seu Protocolo Opcional de 2006 está na mesma situação. 10. Convenção Internacional para Proteger todas as Pessoas de Desaparecimentos Forçados. DE 2006, ainda não entrou em vigor. Dentro do sistema da ONU existem comitês responsáveis pelo monitoramento de implementação e defesa dos direitos humanos conforme expressos nos tratados internacionais. Atualmente são sete comitês que avaliam a situação através dos relatórios dos Estados-Parte que ratificaram cada um dos tratados, ou por meio de informações recebidas de ONGs, de agências da ONU, de instituições acadêmicas ou da mídia. Alguns deles também podem se valer de procedimentos investigativos, da análise de denúncias entre Estados, da análise de denúncias individuais ou de petições individuais para casos pessoais de desrespeito aos direitos humanos. Diante de tudo isso, o fato é que a DUDH introduziu uma nova era de tratados internacionais juridicamente vinculativos em defesa dos direitos humanos. Este corpus abundante de leis internacionais, como tudo que é novo no desenvolvimento da civilização, avança com altos e baixos, sujeito a marés de ousadia e temor, de idealismo e obtusidade, de universalismo e etnocentrismo, de fraternidade mundial e de nacionalismo desenfreado. Apesar de tudo isso, a direção e o sentido do movimento não podem ser negados, a não ser por uma absoluta miopia histórica: cada vez mais os povos e nações do planeta se encontram sob uma mesma perspectiva de unidade na diversidade, onde os direitos humanos fundamentais representam uma unidade almejada para a diversidade essencial da vida humana. Mas os desafios ainda são grandes. Imensos. 103 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Direitos Humanos universais numa ordem mundial paroquialista Em seu artigo III, a DUDH afirma que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e, em seu artigo VI, que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”. Apesar de estas afirmações parecerem auto-explicativas, elas ainda são detalhadas em vários artigos e parágrafos do PIDCP. Ainda assim, o mundo tem testemunhado inúmeras e apavorantes violações destes direitos. Apenas no que diz respeito ao genocídio, o mais evidente e arrogante ataque contra “a vida, a liberdade e a segurança pessoal”, desde a proclamação da DUDH (1948) e da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1951), o mundo assistiu horrorizado, mas, na maioria das vezes, convenientemente reativo, ao extermínio de minorias nos “campos de extermínio” do Camboja, com uma estimativa de dois milhões de mortes (25% da população na época), entre 1975 e 1979; a mais de quatro décadas de genocídio (não declarado) chinês no Tibete, com a morte de mais de um milhão de pessoas; ao assassinato em massa de mais de 200.000 civis muçulmanos no Kosovo, entre 1992 e 1995 (“o maior fracasso do Ocidente desde 1930”); ao tenebroso outono de 1994, quando pelo menos 800.000 tutsis e hutus moderados foram dizimados a machadadas no genocídio em Ruanda; à matança, em julho de 1995, de mais de 8.000 bósnios em Srebrenica, pelas forças do exército sérvio na Bósnia-Hezergovina; à “catástrofe humana” que atinge atualmente grupos não-árabes. Na região de Darfur, no Sudão, que já matou cerca de 400.000 pessoas, a maioria pela fome e pelas doenças. Impossível imaginar a dor e o sofrimento ocultos nestas estatísticas, especialmente quando se leva em consideração que a morte é, nestes casos, o fim dado a uma seqüência de violências que incluem o escárnio e a agressão física e moral, estupro, a tortura e a amputação de membros aplicados também a mulheres e crianças. A esses verdadeiros tsunamis contra o direito à vida, somam-se outros tantos indizíveis sofrimentos impostos pela violação do direito à liberdade, à segurança e ao reconhecimento perante a lei. No final de 2008, o número de pessoas forçadas a abandonar seus lares por conflitos ou perseguições, segundo 104 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI relatório anual do Alto Comissariado das Nações para Refugiados (ACNUR), montava em 42 milhões. Isto incluía o número de refugiados e solicitantes de asilo (16 milhões) e de pessoas internamente deslocadas (26 milhões), que não saíram das fronteiras de seus próprios países. Segundo a ONU, em finas de 2008, 80% dos refugiados do mundo encontram-se nas nações em desenvolvimento, um terço dos quais vive em acampamentos (na África subsaariana, este índice sobe para 70%), OACNUR identificou cerca de 6,6 milhões de apátridas em 58 nações. As mulheres e meninas representam a metade dos refugiados e 44% dos refugiados e solicitantes de asilo são crianças com menos de 18 anos. Basta de olhar para uma fotografia dos campos de refugiados e das fazes de seus moradores para se ter uma idéia do sofrimento por eles suportado dia após dia, por dias incontáveis. A esta barbárie contabilizadas, somam-se os números aterradores e ocultos das crianças abusadas e vendidas, dos trabalhadores escravos, dos que perdem o direito à vida por falta de comida, de saneamento, de tratamento médico ou de amparo legal. O fato é que apesar de todo o aparato internacional de defesa dos direitos humanos, as barbáries continuam sendo praticadas, pois a atual ordem mundial não contempla um eficaz monitoramento e ações preventivas supranacionais. Afinal, são os próprios Estados os responsáveis por zelar pelos direitos humanos em seus territórios. Essa carência de uma estrutura de governança mundial que incorpore os princípios de universalidade, interdependência, indivisibilidade, igualdade e não discriminação que caracterizam a DUDH e os pactos e tratados nela inspirados é talvez a mais poderosa barreira estrutural para efetiva implementação e observância dos direitos humanos em todas as terras. Há também outra barreira, talvez ainda mais poderosa, relacionada a ela, mas cujas raízes estão na consciência humana, não nas estruturas organizacionais: trata-se de um obsoleto etnocentrismo, de um chauvinismo arraigado, totalmente alheio à realidade contemporânea da “aldeia global”, Neste paradigma ultrapassado, o paroquialismo impera e impede os mais nobres avanços que podem emergir de um esforço combinado e unido de todos os povos e nações. 105 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Unidade da humanidade: um princípio espiritual sustentando o direito à vida, à liberdade, à segurança e ao reconhecimento legal Charles Darwin, em 1882, escrevia: “À medida que o homem avança na civilização, e pequenas tribos se unem para formar comunidades maiores, a mais simples razão dirá a cada indivíduo que ele deve estender seus instintos e simpatias sociais a todos os membros da mesma nação, embora não os conheça pessoalmente. Uma vez alcançado este ponto, existe apenas uma barreira artificial que impede suas simpatias de abraçarem os homens de todas as raças e nações”. Se Darwin contemplasse hoje estruturas como a União Européia, perceberia que sua visão estava certa. Inimigos seculares foram capazes de construir uma unidade jamais antes alcançada entre nações soberanas. Darwin via isso como uma evidência do avanço da civilização. E entendia que a limitação à fraternidade universal era uma mera “barreira artificial”. Essa barreira artificial, segundo vários entendimentos, nada mais é do que o chauvinismo e o etnocentrismo ensinados e promovidos em cada Estado grupo social, e que induz as massas humanas a não estenderem seus afetos aos “Outros”. Uma pessoa ou grupo social movido pelo etnocentrismo enxerga a realidade conforme o seguinte modelo: Percepção Imatura da Realidade É fácil perceber que o etnocentrismo coloca o Nós no centro do universo. Ao redor estão os vários Eles (o Outro). Alguns (os mais parecidos com Nós) ainda podem ser tolerados ou respeitados. Porém, outros são definitivamente indignos (vejam aqueles quadrados!), e outros ainda, claramente perigosos (imagine-se ameaçado pela ponta daqueles triângulos). Esta separação tem profundo efeito sobre sentimentos e comportamentos. Mantemos laços de respeito (e, idealmente, de fraternidade 106 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI e amor) com quem incluímos no círculo do Nós, por piores que sejam tais pessoas. Por outro lado, desprezamos e desrespeitamos (e, mesmo, odiamos) que colocamos nos Eles, por melhores que sejam! Por exemplo, se o alcoólatra é meu filho, é o pobre do meu filho, que tem problema com bebida. Se for filho do vizinho, é o bêbado do filho do vizinho, e ele é o problema! Esta divisão de sentimentos e afetos provocada pelo etnocentrismo assume seu paroxismo na guerra. É certo que, no outro lado da trincheira, há soldados muito mais parecidos comigo – em função de seus valores, gostos, jeito de ser – do que muitos dos que lutam no meu exército. Porém, devo matá-los, pois estão fora do círculo do Nós. Entretanto, por mais poderosa que seja essa noção de Nós e de Eles, ela não é fixa. Pode ser modificada pela inteligência e pela sabedoria. E, ao ser modificada, altera também a forma como sentimos e como nos comportamos. Por exemplo, podemos pensar em Nós, a nossa família, e Eles, os vizinhos. Ou podemos pensar em Nós, os moradores da nossa rua. O que aconteceu com Eles? Passaram a fazer parte de Nós, um Nós mais amplo, mas com laços e interesses comuns. Voltando ao nosso modelo de Nós e Eles, o que estas considerações nos levam a compreender é que uma pessoa verdadeiramente sábia constrói a realidade da seguinte forma: Percepção Madura da Realidade Ao redor de Nós não há Eles, apenas dimensões cada vez mais amplas de Nós. Essa é a única percepção que pode servir de base ao respeito universal aos direitos humanos, uma vez que se fundamenta num legítimo e amplo sentimento de fraternidade universal. Em 1986, o órgão máximo da Comunidade Bahá’í distribuiu uma mensagem aos líderes e povos da terra intitulada “A Promessa da Paz Mundial”. Nela dizia: “A ordem mundial só pode ser fundada sobre uma consciência inabalável da unidade da humanidade, uma verdade espiritual que todas as ciências humanas confirmam. [...] 107 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI O reconhecimento desta verdade requer o abandono dos preconceitos – de todos os tipos d preconceito – [...] Em suma, de tudo aquilo que faz com que as pessoas considerem superiores umas às outras.” Em 1996, Gregory Stanton, presidente do Genocide Watch, apresentou um documento para o Departamento de Estado dos EUA no qual sugeria que o genocídio se desenvolve em oito estágios. Os três primeiros são: 1) Classificação: as pessoas são divididas entre “nós e eles”; 2) Simbolização: os “outros” são marcados com símbolos que instigam o ódio; 3) Desumanização: um grupo nega a humanidade do outro, que é igualado a animais, vermes, insetos e enfermidades. Assim, o maior dos abusos contra os direitos humanos começa com atitudes bastante corriqueiras, especialmente o primeiro estágio, de classificar com rigidez e antagonismo de lealdade e afeto o “nós” e o “eles”. Uma nova consciência, evidentemente, precisa nascer para dar conta da necessidade universalizada dos direitos humanos no mundo contemporâneo. Se analisarmos detidamente o andar da história, veremos que dois paradigmas antagônicos dominaram as relações entre as gentes do planeta até nossos dias: por um lado, tínhamos a unidade na igualdade, ou seja, os que se consideravam iguais evitavam a violência (e, no limite, a guerra) entre si, e, por outros, o conflito na diversidade – os diferentes se combatiam e se odiavam. Esses dois modos de pensar e agir são evidentemente ultrapassados. Um mundo unificado pela tecnologia e pelos interesses comuns precisa avançar urgentemente em direção ao paradigma da unidade na diversidade. Sem esta nova consciência a idéia da segurança coletiva é apenas uma ilusão. Ervin Laszlo, direitos do Instituto das Nações Unidas para o Treinamento e a Pesquisa, e um dos mais destacados humanistas e pensadores contemporâneos, argumenta que o que impede a humanidade de atingir novas alturas de bem estar e segurança são “limites internos”, entre os quais ele destaca “a lealdade exclusiva e cega ao ‘meu país’”. No mesmo documento já citado, a Promessa da Paz Mundial, lê-se: “A aceitação da unidade da humanidade é o pré-requisito fundamental para a reorganização e a administração do 108 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI mundo como um só país – como lar da humanidade. A aceitação universal deste princípio espiritual é essencial [...] Deveria, portanto, ser universalmente proclamado, ensinado nas escolas e constantemente reafirmado com todas as nações como preparação para a transformação orgânica da estrutura da sociedade que isso implica.” Essa necessidade de a educação se ocupar da construção de uma responsabilidade e uma fraternidade mais amplas e mais segura foi destacada por Theodor Adorno em seu extraordinário texto “A Educação após Auschwitz”. Ele afirma que “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. [...] Ela foi à barbárie contra a qual se dirige toda a educação”. Poderá mesmo a educação, assim direcionada, criar o ambiente moral e social que conduzam à fraternidade mundial e ao conseqüente respeito e defesa dos direitos humanos? Na opinião categórica expressada por Sigmund Freud em sua correspondência a Albert Einstein sobre a paz mundial, a resposta é sim. Einstein acreditava que a ordem mundial dependia do “estabelecimento, pelos Estados Nacionais, de uma autoridade legislativa e judiciária que resolvesse todos os conflitos entre eles. Todas as nações comprometer-se-iam a aquiescer às decisões emitidas por este corpo legislativo, a solicitar sua decisão em todas as disputas, a aceitar seu juízo sem reservas e a pôr em prática quaisquer medidas julgadas necessárias para implementar seu veredicto”. Porém, ele tinha dúvida se seria possível erradicar a “psicose do ódio e da destruição” que percebia nos seres humanos. Para evitar que os apelos para o ódio e a destruição tivessem a capacidade de mobilizar as massas humanas para a guerra, Freud explica que há apenas um caminho: criar laços de afeto entre as pessoas, especialmente entre pessoas de grupos sociais ou nações diferentes, pois o ser humano não mata quem aprendeu a gostar. Freud diz que a esperança e a certeza de que isso é possível está dentro da própria natureza humana, pois se há ódio, há também o amor. Ele escreveu a Einstein: “Se a propensão para a guerra emana da pulsão de destruição, temos bem perto seu oponente, Eros, para nos ajudar. Tudo 109 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI o que produz laços de afeto entre os homens nos serve como antídoto da guerra”. Freud diz ainda que “o psicólogo não precisa se sentir envergonhado de aqui falar de amor, na mesma linguagem empregada pela religião: ama teu próximo como a ti mesmo”. Certamente os desafios colocados pela mundialização da humanidade exigem uma nova consciência e o estabelecimento de novos paradigmas. Tudo indica que eles precisam caminhar em direção a uma lealdade mais ampla e a sentimentos de fraternidade mais universais. Muitos já vivem nesta nova realidade de consciência. A educação pode levar as massas humanas nesta direção. Não há limites para a abrangência que a fraternidade humana pode alcançar. Ou, como escreveu Darwin, “existe apenas uma barreira artificial” que impede as simpatias dos homens “de abraçarem os homens de todas as raças e nações”. Cabe a todos desconstruir essa barreira artificial com otimismo e determinação. 110 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DA LEI, DO DELITO E DOS DIREITOS HUMANOS Marcos Colares* Creio que para muitos o texto do artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH dispensa explicação ou comentário, estes também não vêem porque as coisas poderiam se dar de outra maneira. Isso demonstra que os seres humanos desenvolveram-se, mas nem sempre foi assim, nem o é em todos os lugares do globo. A história da humanidade é longa e heterogênea. Ao longo do tempo fomos desenvolvendo culturas e modos de apreensão da realidade. Numa perspectiva social o homem foi se aglutinando segundo fatores de ordem familiar, religiosa, econômica, política, intelectual e tantos outros o quanto tenha sido capaz a nossa inventividade de criar. Dessas conjugações de saberes e interesses surgiram boa parte das instituições sociais que conhecemos hoje. A idéia de delito tem um forte componente cultural. Certos valores, como o direito a expressar o próprio desejo e o direito ao gozo, largamente estudados por Freud e tão caros às sociedade ocidentais cosmopolitas, não têm o mesmo apelo em todas as culturas. Assim, como enfatizou Émile Durkheim, o delito é construído a partir de representações sociais historicamente determinadas – o que representa crime para um povo em certo momento necessariamente não precisa ter a mesma conotação para outros povos, sequer necessita ter sito assim no passado ou continuar a ser no futuro. Por isso, é relevante observar a necessidade da configuração de determinada ação ou omissão como delituosa em determinado tempo e lugar. Uma vez caracterizada certa atitude humana como delituosa ela passará a ser passível de sanção para o grupo que a vê como delito. É natural que haja certo incômodo em absorver como delituosas posturas diversas da nossa cultura, mas é ai que reside a liberdade de autodeterminação dos povos. Os documentos das Nações Unidas quer os de caráter principiológicos, quer aqueles que indicam manifestações pragmáticas têm sido tolerantes com manifestações MARCOS COLARES – Advogado, Sociólogo, Doutor em Educação, Mestre em Sociologia, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Diretor do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará. * 111 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de caráter cultural, exceto aquelas que ofendem a dignidade da pessoa humana ou lhe tiram a vida. O princípio da presunção de inocência vem sendo adotado como meio legitimo de proporcionar ao acusado meio para o oferecimento de defesa em relação à acusação que lhe é imputada. A palavra réu e seu feminino, ré tem sido entendida como sinônimas de culpado. Na verdade réu é aquele que responde; no caso responde a um processo judicial. Talvez a antecipação da condenação, tão comum nos regimes guiados pela força, seja a responsável pela expressão popular: “cara de réu”, querendo significar, semblante de sofrimento. Assim, é possível concluir que a Lei tem a função de determinar o que é delituoso, indicar os meios para o indiciamento do réu e proporcionar-lhe condição de defesa. O fato de o julgamento ser público de que trata o artigo 11 da DUDH, não tem a intenção de transformar este momento em espetáculo, situação relatada em diversas crônicas – desde a Antiguidade – que narram os momentos de aplicação de sansões físicas. O aspecto de publicidade em questão vem se opor aos tribunais de exceção, onde não se busca a Justiça, mas um simulacro, sem qualquer respeito ao direito de defesa do réu e à regularidade de um processo judicial. O papel do advogado na defesa dos direitos e garantias de seu constituinte assume alto relevo na tentativa de consubstanciação dos Direitos Humanos. Em várias situações advogados têm sido sancionados pela coragem de defenderem seus constituintes contra o arbítrio e a intolerância. Nessas ocasiões ocorre uma incongruência, posto que o advogado e seu constituinte juridicamente não se confundem. Por outro lado, quando as instituições estão corroídas pela vilania ou não superaram o patamar da vindita a existência de julgamento assume foros de teatralidade; sem qualquer compromisso com o ideal de Justiça. Noutro enfoque, há de se observar que o aspecto cronológico da Lei é de fundamental importância tanto para determinar a existência da cominação quanto para determinar a sua medida. A atenção com dozemetria das penas pode ser na encontrada na história da humanidade desde a Antiguidade; o Código de Hamurabi, se opondo a violência da “lei do mais forte”, é exemplo 112 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI disso. Também vem da Antiguidade a preocupação com a demarcação temporal do ato delituoso e de sua possível sansão; posto que assim já se expressavam os brocados jurídicos de Justiniano, ao dizer: A estimação do delito passado nunca aumenta com a ocorrência de fatos posteriores. Pode-se afirmar que o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos fundamenta-se em três princípios: a anterioridade da lei penal, a presunção de inocência e o direito de defesa do réu. Isto vale para qualquer sociedade humana. Num tempo de alta tecnologia da informação corremos o risco de imaginarmos a existência de culturas superiores, para as quais as questões aqui tratadas já estão plenamente resolvidas; triste engano: qualquer sociedade pode ser vil. O caminho da Justiça se traça com respeito à dignidade da pessoa humana e vigilância contra qualquer forma de abreviamento do devido processo legal. Tratar o réu com dignidade, proporcionar-lhe meios de defesa, e aplicar-lhe estritamente a sanção prevista em Lei nos dignifica como seres humanos e como sociedade organizada. Por mais difícil que algumas vezes isso possa ser é preciso que se preservem os Direitos Humanos dos réus, sem isso todo o nosso discurso será vão. 113 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI IGUALDADE NA DIFERENÇA: eis a questão Maria José de Figueirêdo Cavalcanti* Introdução O tema que se nos apresenta, carrega, em si, dificuldades semânticas e doutrinárias de grande monta, ao trabalharmos com conceitos como o da igualdade e o da diferença, principalmente o primeiro termo, o qual traz em si prima facie, o pensamento de uma operação de mensuração, no que descamba para uma unidade de medida comparada com uma entidade mensurada. Em assim sendo, uma operação comparativa. A diferença, por sua vez, dentro de uma teorética contemporânea não comporta um aspecto de inferioridade e razão de discriminação pura e simples, o que conotaria uma diferença-exclusão; porém, se reveste, sim, de uma característica de fundamentação de direitos não-comparativos, pela existência de uma diferença-especificidade, lastreada no conceito filosóficojurídico da pessoa humana, esta, integral e integrada na espécie humana, e nos sistemas normativos que acolhem o princípio da igualdade e de sua efetividade na materialização de seus postulados. A semântica do vocábulo homem, vista em perspectiva diacrônicohistórica leva ao entendimento de que ser homem-mulher não é rigorosamente ser a totalidade igualitária da humanidade; inversamente, criou-se, na visão político-jurídica ocidental, um par de vocábulos que tem enfrentado os séculos, qual seja, o de que o homem é o macho, sendo ele detentor de todas as atividades do espaço público. Ao longo dos tempos, algumas minorias entraram (aqui entendido minorias de direitos) na seara dos anátemas sociais: além da mulher, o negro, o indígena, o operário etc, pois na visão simplista da “diversidade descritiva”, aquelas categorias eram crismadas como sendo de inexpressivo patamar social, ou de natureza inferior, sofrendo o exame comparativo para a não-consecução dos direitos, pelo antiigualitarismo vigente no perpassar dos sáculos. * Maria José de Figueirêdo Cavalcanti - Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Administração Pública pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas. Professora/Consultora na área administrativa e constitucional. Pesquisadora na área de Direitos Humanos e da Filosofia do Direito. 115 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Com um processo de reavaliação, espancando até a herança aristotélica e as idéias iluministas, o mundo hodierno passa da visão monocular sobre a problemática para um espectro dialógico e plural, ainda que ambivalente, das questões sobre gênero, raça, etnia, status etc. Na questão do gênero, têm-se discussões mais acaloradas, portadoras de teses inéditas, tais como a “diferença-especificidade”, a “diferençaoriginária” e uma transposição do léxico político homem para o discurso da totalidade homem-mulher, de forma absoluta, como absoluta é a pessoa humana com todas as suas diferenças individuais específicas. E este tema, o do gênero, ganha, aqui, relevo, para uma discussão mais detida. O esforço desse lastro conceitual é enfrentado com as limitações de espaço para os fins a que se destina este ensaio, e na trilha da incansável questão da igualdade tão desejada e liame de uma justiça material a ser efetivada. O tema, pois, deixa de ser lucífugo para embrenhar-se nas searas das discussões travadas cristalinamente. 1. A Cultura Ocidental Arquetípica: da Antiguidade ao Iluminismo Os fundamentos da cultura ocidental estão encravados no arquétipo homem. Daí, homem, humanidade, humanismo, fulcrados os conceitos na noção greco-latina de Antrhópos, Homo, Homem, Homme, Mensch, Man, o que quer dizer que a humanidade tem como parâmetro a ascendência do homem, “a relação do Homem com Deus”, “o lugar do Homem no Cosmos”, “a luta do Homem com a Natureza”, nas palavras de Richard Tarnas.32 Ainda, Tarnas refere-se à cultura ocidental como sendo conduzida por “um impulso heróico de forjar um ego humano racional e autônomo, separando-o da unidade primordial com a Natureza. Todas as suas perspectivas religiosas, científicas e filosóficas fundamentais foram influenciadas por essa decisiva masculinidade...”.33 Por outro lado, o pensamento aristotélico a respeito da mulher é Ver TARNAS, Richard. A Epopéia do pensamento ocidental – Para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo. Trad. Beatriz Sidou, 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 467-468. 33 Ibidem, p. 468. 32 116 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI condizente com o sentimento de cidadania da polis grega.34 Ao estabelecer uma relação entre a polis e a família, assere Hannah Arendt que a distinção entre a esfera de vida privada e a da política era da ordem de um afastamento, pois as esferas não se interligavam até quando surge um vetor – o da cidadania – no sentido de que era cidadão quem era o chefe da família e o proprietário.35 Entre os romanos, havia a ascendência masculina no santuário da família, pois o homem era o dominus e o pater famílias. Assim, aduz Arendt, o que fez ver como sagrados os limites que cercavam o lar não era o respeito pela propriedade privada, mas a razão de que o dono da casa era aquele que participava dos “negócios do mundo”. E não sendo o dominus, não seria, pois cidadão36. Dentro desse contexto só havia iguais na polis; na família, entretanto, permanecia uma “severa desigualdade”.37 Este é o locus das atividades domésticas, onde o agente dessa esfera é considerado de forma inexpressiva, como ser secundário, inferior e até incompleto, como veio a ser considerada a mulher na Idade Média. Faz-se necessário frisar que a regra comporta exceções. Dentre os pré-socráticos, houve uma relação de igualdade, por exemplo, na sociedade pitagórica, pois é sabido que em sua confraria, mulheres eram aceitas; sabido igualmente que a esposa de Pitágoras, Teano, teria redigido um tratado sobre a arte de vencer os ciúmes e, por igual, Myia, filha de Pitágoras e de Teano escrevera uma Carta a Fílis, tratando dos deveres de uma jovem mãe.38 Na esteira de nosso raciocínio, mister rememorar que o Direito Romano regeu as instituições e os costumes dos países germânicos e que durante o século XVII foi esse Direito admitido na Universidade de Paris. Ora, sabe-se que o Direito Romano, como dito antes, não favorecia ARISTÓTELES refere-se à autoridade do marido sobre a mulher, qualquer que seja a idade desta. Segue-se que à mulher compete pouco poder de deliberação e que “um modesto silêncio é a honra da mulher”. Cfr. ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 33-37. 35 Cfr. ARENDT, Hannah. A Condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 37 e segs. 36 Ibidem, p. 38-39. 37 Ibidem, p. 41. 38 Cfr. JACQUEMARD, Simone. Pitágoras e a harmonia das esferas. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007, p. 116-117. 34 117 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI a condição da mulher. A influência romana sobre a França tornou-se extensa e palpável: a centralização do Estado francês; a maioridade dos filhos; a obrigatoriedade de a mulher, ao se casar, adotar o sobrenome do marido (do apelido, como se dizia no Código Civil Brasileiro de l916, que tinha o correlato francês como paradigma).39 É verdade que no decurso da História, estiveram presentes mulheres-mito, como, e.g., Antígona, Proxágoras na Antiguidade Clássica; Hildegard von Bingen, Joana D´Arc na Idade Média, e as incontáveis mulheres da Modernidade e da Contemporaneidade, emprestando a sua inteligência à causa da igualitarização dos direitos. Foi o Cristianismo que brindou a enormes setores da população, à época, com o sentido de fraternidade, dignidade e igualdade no seio de suas comunidades, e a propugnar a liberdade, em grande número de casos, através da influência de sua doutrina sobre os amos. Assim é que, conforme opinião de Mário Curtis Giordani, o Cristianismo que se tornara religião de Estado desde o reinado de Teodósio I, também passa a constituir um “fator determinante da Civilização”, ao que acrescento: constituiu-se igualmente em unidade de categoria de liberdade no que viria a ser o estudo dos Direitos Humanos, dado o espírito de sua doutrinação ao apregoar a fraternidade – ama ao próximo como a ti mesmo –, inclusive ao difundir nas mais variadas esferas administrativas um sentido de abrandamento ao uso de certos institutos, como, e.g., proibindo o abuso do direito de propriedade (ius abutendi) e reelaborando o conceito de boa fé (bona fides), dando a esta um cunho de autoconsciência no gerir institutos e instituições dentro do arcabouço estatal. Assim, é que na esteira do pensamento filosófico de Lima Vaz, não se haverá de “medir os atos humanos por uma regra perfeita, num métron absoluto, e que seria a idéia subsistente da justiça.” 40 A justiça, para esse filósofo, significa a disposição permanente do acolhimento do outro.41 Para maiores informações sobre a matéria, ver PERNOUD, Régine. Idade Média – o que não nos ensinaram. Trad. Maurício Brett Menezes. 2ª ed. (rev.). Rio de Janeiro: Agir, 1994, p. 101-108. 40 Cfr. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia I – problemas de fronteira. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 96. 41 Ibidem, p. 97 39 118 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Sob o aspecto fenomenológico, houve essa tentativa no século das Luzes, precisamente durante a eclosão da Revolução Francesa. Mesmo assim, imbuída dos vetores do Direito Romano, foi debalde essa experiência, a considerar o desenvolvimento do movimento revolucionário, em meio a seus paradoxos. O que houve na tentativa de uma política de gênero foram os clamores de mulheres revolucionárias e sobremodo o ponto de partida dado por uma delas, em estabelecer um “direito diferente” que abraçasse a questão da liberdade, da igualdade e da dignidade das mulheres.42 Atualmente, existem alguns dilemas: como proceder a igualdade de gênero, ou de etnia, raça, orientação sexual etc? Sem a igualdade, o que resta da cidadania? E como acasalar a teoria da igualdade com a teoria da diferença? A liberdade concebida como um direito ou um espaço deve ser defendida apenas contra os outros? São inquirições que demandam olhares perscrutadores e analíticos na direção da evolução dos princípios que de forma até ousada, porém retardatária, entraram no sistema normativo constitucional brasileiro através de uma “igualdade prescritiva” 43 e que reorientam hoje os estudos do Direito do Estado, dos estatutos jurídicos civis e de todo o artefato jurídico que se propõe a materializar um direito justo e a sua distribuição, com fundamento na dignidade da pessoa humana. 2. As Teorias da Igualdade e da Diferença. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Inúmeras são as teorias que tratam de dar cunho científico Refiro-me à “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, elaborada por Olympe de Gouges, em 1791, em resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, vindo a lume em 26 de agosto de 1789. Para um estudo mais alargado sobre essa personagem e sua Declaração, remeto para o meu livro O Lado feminino da revolução francesa – uma outra revolução. Brasília/ São Paulo: EGP, 2003. 43 Tomo de empréstimo a expressão como utilizada por Letizia Gianformaggio, ou seja, a igualdade prescritiva como sendo algo a ser cotejado à igualdade descritiva, fazendo a diferença fundamental entre um discurso formulado em termos de ser e um discurso utilizado em termos de dever ser. Cfr. GIANFORMAGGIO, Letizia. Igualdade e Diferença: são realmente incompatíveis? In BONACCHI, Gabriella e GROPPI, Ângela (Orgs.). O Dilema da cidadania – direitos e deveres das mulheres. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora UNESP, 1995, p. 268-269 42 119 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI à questão da igualdade, tema, aliás, discutido desde tempos imemoriais. O novo despertar da consciência da igualdade nasce no Iluminismo e a rebater a questão emoldurada no formalismo jurídico. Daí, falar-se em igualdade formal e em igualdade substancial (conceito este nascente já na contemporaneidade). A igualdade substancial diz mais com a justiça chamada animada, vale dizer, um processo de justiça corretiva, a qual, como o próprio nome diz, se vale da apreciação mais acurada para uma correção, diante de pólos díspares. Aqui, a igualdade é avaliativa. As duas modalidades de igualdade mais costumeiramente abordadas trazem a chancela do Estagirita, quando ou falam em igualdade proporcional, ou, ainda, aquela jungida ao critério do merecimento - “A cada um segundo o seu próprio mérito.”44 Por óbvio, estamos diante de conceitos descritivos. Dentro do desenvolvimento das categorias jurídicas que enxergam o ser humano como pessoa dotada de uma essência chamada dignidade, as teorias referenciadas descambam para a vala da desigualdade, de vez que a equação igualdade-desigualdade são faces de uma mesma moeda. Se a igualdade-prescritiva não se realiza, estará instalada a desigualdade. Assente que o suporte filosófico-político de nossa Lei Maior agracia a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Brasileira (art. 1º, III), há que se fazer a ilação de que o cidadão ou o nãocidadão é dotado de dignidade e como tal é um ser plenificado em sua ontologia e, portanto, deve ser visto em perspectiva de uma igualdade avaliativa a ser acrescentada à igualdade descritiva e à igualdade prescritiva.45 E isso deve se viabilizar, repito, em face das especificidades da pessoa humana, que é igual a outra pessoa humana, porém não idêntica. Aqui perguntar-se-á, respondendo: quem é o modelo da mulher? Quem é o paradigma do homem negro, ou do indígena? O Cfr. ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. (rev.). Bauru-SP: EDIPRO, 2009, p. 158-160, (1301, a e b), e p. 141, (1195, b, 30 em diante). 45 Aqui sigo de perto as pegadas do raciocínio teorético de GIANFORMAGGIO, Letizia, in op. cit. 44 120 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI homem, o homem branco? Não há paradigmas, pois a pessoa humana é ontologicamente aquilo que ela é, sem paralelos. De consequência, a diferença que torna os dados da questão iguais promana da especificidade de cada pessoa humana, cabendo, assim, visualizar o indivíduo pela avaliação descritiva (seleção das situações que ensejam igualdade), pela avaliação prescritiva (o que entrou como comando legal. fazendo a regra vigente) e pela igualdade avaliativa, pois todos têm a mesma natureza e nesse sentido todos são iguais. A distribuição dos bens materiais e imateriais é devida sem obstáculos, menos ainda por razões de discriminação. Para atingirmos aqui o ponto central que nos cerca, ou seja, o da dignidade da pessoa humana, há que se dizer que se situa a questão historicamente num mundo de especulação teológico-cristã, pois desde a mais remota época em que se estuda a questão do ente humano e o seu valor, há que se vislumbrar a temática no campo da elucubração dos pensadores cristãos desde o alvorecer da Idade Média. E aqui também se acha presente o especular a liberdade, pois os temas referentes ao ser humano e a sua liberdade estiveram quase sempre conjugados. A questão da dignidade da pessoa humana sempre foi percorrida sob o filtro da religião católica quando se a associa como sendo referente ao ente criado à imagem e semelhança de Deus. Podese aqui afirmar que tal estudo especulativo já conduz ao raciocínio da pessoa humana, à qual é agregada uma dimensão de interioridade e de unicidade, dentro das quais pratica a liberdade. Aqui a idéia de vida interior está demarcada, como consciência de si. O ente criado é a reprodução em imagem e semelhança de seu Criador. No decurso dos séculos, aprimora-se a elucubração para se distinguir nitidamente dentro dessa unicidade e interioridade a existência de uma dignidade agregada à pessoa humana. O Direito se impregnou desses conceitos e os trouxe para o domínio da especulação do Direito Público não só na questão da igualdade, como dentro do correlato tema – agora amplificado – dos direitos humanos. 121 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Na sequência da laicização do Direito, essa unicidade de alguma forma foi desestruturada , para dar lugar a dois mundos: a do mundo exterior e a do mundo interior, em razão da cisão operada pelos estudos da racionalidade e até do cogito, ergo sum, assim como se construiu o postulado da igualdade em sinergia com o mundo laico. Laicizado o Direito e publicizado o valor dignidade da pessoa humana, há que se enveredar por outros caminhos, sobrevalorizando o ente humano, extraindo de seus contornos as pechas e os preconceitos que perduraram nos desvãos das mentalidades. CONCLUSÃO De tudo o que foi exposto infere-se que novas buscas doutrinárias têm sido demandadas para fazer a afirmação de que os diferentes são iguais, em face de que nos avanços doutrinários e na prossecução do Direito em atingir o reduto da Justiça, as novas mentalidades incorporaram o esforço teórico em dar fulcro a uma matéria que nasce dos escombros do Iluminismo. Desses escombros avulta uma crise do pensamento jurídico, o qual moldado na cosmologia e no logos, faz com que as realidades do agora em face dos esquemas clássicos requerem novas interpretações, novas ações humanas e novas pautas éticas, até para que, no revolvimento da História, se possa compreendê-la melhor. A teoria do ente humano em sua trajetória, vislumbra novos paradigmas doutrinários e no evolver da manifestação filosófica, põe-se no fundo da questão da igualdade um novo sentido, qual seja, o significado do ser diferente, em razão da presença do elemento ontológico da diferenciação. Se todos os entes humanos possuem ou são dotados do mesmo substrato ôntico, a equação igualdade-diferença aí está encapsulada, dentro de um sentido pleno de totalidade – cada pessoa humana é feita de dignidade – e é ao mesmo tempo o outro, a outra, dessa imensa heterogeneidade chamada espécie humana. 122 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Se a palavra nomos (lei) significa distribuir, possuir o que foi distribuído e habitar, nas palavras de Hannah Arendt, para que se imponha uma política de igualdade de gênero, de raça, de etnia e outras, mister que não somente a lei (igualdade prescritiva) seja ditada, mas se impõe uma outra igualdade – igualdade avaliativa – para que o nomos não se desfigure apenas em uma moldura formal, sem exequibilidade e sem efetividade. Bibliografia ARENDT, Hannah. A Condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. (rev.) Bauru-SP: EDIPRO, 2009. ______. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário da política. Trad. Carmem C. Varriale et allii. 4ª ed. Brasília, DF: Editora UnB, 1998, Vol. I. CAVALCANTI, Maria José de Figueirêdo. O Lado feminino da revolução francesa – uma outra revolução. Brasília/São Paulo: EGP, 2003. GIANFORMAGGIO, Letizia. Igualdade e diferenças: são realmente incompatíveis? In Dilema da cidadania – direitos e deveres das mulheres. BONACCHI, Gabriella e GROPPI, Ângela (orgs.). Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora UNESP, 1995. GIORDDANI, Mário Curtis. Iniciação ao Direito Romano. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1986. JACQUEMARD, Simone. Pitágoras e a harmonia das esferas. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007. PERNOUD, Régine. Idade Média – o que não nos ensinaram. Trad. Maurício Brett Menezes. 2ª ed. (rev.). Rio de Janeiro: Agir, 1994. SALDANHA, Nelson. Da Teologia à metodologia. Secularização e crise no pensamento jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. 123 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI TARNAS, Richard. A Epopéia do pensamento ocidental – Para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo. Trad. Beatriz Sidou, 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. TOBEÑAS, Jose Castan. Humanismo y Derecho. El Humanismo en la historia del pensamiento filosófico y en la problemática jurídico-social de hoy. Madrid: Instituto Editorial Réus, 1962. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia I – problemas de fronteira. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998. 124 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI O DIREITO A MOBILIDADE HUMANA Marina Silva** Num contexto internacional de aumento no número de migrantes no mundo e de tentativas cada vez mais duras de restringir seus deslocamentos, o art. 13 da Declaração Universal dos Diretos Humanos tem sido cada dia mais lembrado e citado, para fundamentar o direito à mobilidade humana. De acordo com as Nações Unidas, em 2005, existiam 200 milhões de imigrantes no mundo, mais do que o dobro do número de imigrantes em 1980. Chama a atenção que 60% dos imigrantes estão em países desenvolvidos, contra 40% em países em desenvolvimento. Os latino-americanos e caribenhos representam 13% desse total, ou seja, 25 milhões de pessoas. Os Estados Unidos seguem sendo o maior país receptor do mundo, com 28,4 milhões de imigrantes, de acordo com dados do Censo de 2000. O Banco Mundial, em 2006, afirmou ser difícil imaginar a integração econômica global sem o processo migratório, e que a migração internacional ocuparia um lugar cada vez mais proeminente na agenda global futura. Cristalizavase assim o binômio “migrações & desenvolvimento”, bastante fundamentado na percepção de que o boom dos fluxos migratórios se fez acompanhar por um fluxo imenso de remessas de dinheiro desses migrantes para suas famílias, em seus países de origem. Um exemplo disso foi a realização, em 2007, nas Nações Unidas, do Diálogo de Alto Nível “Migrações e Desenvolvimento”. Os movimentos populares, por outro lado, têm tomando posição em defesa dos direitos humanos dos migrantes em eventos como o Fórum Social das Migrações (2005 e 2006), a I Cúpula de Comunidades Migrantes Latino-americanos (2007), o I Encontro Ibérico de Comunidades de Brasileiros no Exterior (2002), o II Encontro de Brasileiros e Brasileiras na Europa (Bruxelas, 2007), entre outros. É importante salientar que estas mobilizações vão muito além de questões localizadas, parecendo apontar, antes disso, para a necessidade de um novo mundo, onde os direitos fundamentais da pessoa humana sejam * Marina Silva - é Senadora da República pelo PSOL. Ex-ministra do Meio Ambiente (2003/2008). Professora de História do ensino médio. 125 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI garantidos, independentemente de nacionalidade, raça ou credo. Muitas vozes já se levantam no mundo apontando os migrantes como sujeitos históricos de transformação social, arautos da cidadania universal. Faz parte desse raciocínio a percepção de que o fenômeno das migrações internacionais aponta para a necessidade de repensar-se o mundo não com base na competitividade econômica e o fechamento das fronteiras, mas, sim, na cidadania universal, na solidariedade e nas ações humanitárias. Nesse contexto, a Declaração Universal de Direitos Humanos aparece com um farol, com seu enfoque inclusivo. O Direito de Ficar Penso aqui no caso dos deslocados ou refugiados ambientais, que são obrigados a sair de seus locais de origem ou mesmo de seus países, em função de desastres climáticos, construção de grandes obras do desenvolvimento. O aquecimento global provocará, com certeza, vagas de “migrantes climáticos”; cientistas antecipam que os países pobres e em desenvolvimento serão os mais vulneráveis. Estima-se que 250 milhões de pessoas já estão, atualmente, deslocadas, por causa do clima. Mais 50 milhões poderão seguir o mesmo caminho até 2010. De outro lado, os números mais moderados e comprovados do último Relatório Mundial da Anistia Internacional (2007) dão conta de que em 87 países existem presos políticos; em 31 países pessoas continuam “desaparecendo”; em 55, é praxe o exercício de “execuções extrajudiciais”; em 117, o uso da tortura é comum. O relatório também tem estatísticas sobre as restrições ao direito de ir e vir praticados em países onde os cidadãos são impedidos de entrar ou permanecer, em nome de uma suposta segurança nacional, proibidos, apesar da submissão a situações como as acima mencionadas em suas nações de origem, de buscar o refúgio ou a denúncia. O direito de ir e vir é resultante do principio da liberdade, confirmando a natureza do homem de movimentar-se, deslocar-se de um lugar 126 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI a outro, dali saindo ou ali permanecendo o tempo que melhor lhe aprouver. Trilhar livremente novos caminhos e ser senhor dos seus passos, eis um grande desafio do homem do século XXI. Gênesis 28, 15 “Vê! Eu estou contigo e te guardarei em toda parte aonde fores e te farei voltar para esta terra, pois não te abandonarei até eu ter cumprido tudo o que te disse”. 127 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI PAZ E GUERRA Moacyr Scliar** Comentando a famosa profecia em que o profeta Isaías descreve metaforicamente um mundo de paz, diz Woody Allen: “Sim, o leão deitará com o cordeiro. Mas duvido que o cordeiro consiga conciliar o sono.” Este irônico ceticismo reflete a ambivalência de nosso mundo em relação à paz. De um lado, trata-se de um anseio universal, um tema constante nos textos das três grandes religiões monoteistas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Judeus e muçulmanos usam praticamente a mesma saudação: “Shalom aleikhem” e “Salam Aleikhum” ambas significando “A paz seja convosco”. E diz Jesus, no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados os filhos de Deus”(Mateus, 5:2). Não por coincidência, Isaías viveu num período de guerras e sangrentos conflitos. As duas grandes potências da época, Egito e Assíria, disputavam a hegemonia na região que hoje conhecemos como Oriente Médio, com o sacrifício de inúmeras vidas. Não é de admirar, pois, que Isaías fale, até como aspiração, de um mundo pacífico em que “Uma nação não levantará a espada contra outra/ e não se adestrarão mais para a guerra”(Isaías, 2:4). A guerra nos faz desejar mais ardentemente a paz. A guerra nos lembra, dolorosamente, a necessidade da paz. Mas aí voltamos ao comentário de Woody Allen. Por que, apesar da profecia, não conseguirá o cordeiro conciliar o sono? Porque ele está ao lado de um carnívoro. Não será o desejo do cordeiro pela paz que transformará esse carnívoro num vegetariano. Trata-se, pois, de uma insônia que tem fundamento e que soporífero algum resolverá. Da mesma maneira, apesar da admirável mensagem ética das religiões, guerras continuaram se sucedendo, muitas vezes travadas exatamente em nome da fé. Guerreiros zelosos fizeram, e fazem, correr rios de sangue para convencer outras pessoas a aderir àquilo que consideravam e consideram, a verdadeira crença. E a pergunta se impõe: afinal de contas, somos lobos ou somos cordeiros? É a violência inevitável ou podemos viver pacificamente? * Moacyr Jaime Scliar - é um dos mais conhecidos escritores brasileiros da atualidade. Formado em Medicina, trabalha como médico especialista em saúde pública é professor universitário. 129 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Este é um tema sobre o qual muito foi escrito. Mas existem duas personalidades cuja manifestação é particularmente interessante: Albert Einstein (1879-1955) e Sigmund Freud (1856-1939). Ambos tinham muita coisa em comum. Ambos eram europeus, ambos de ascendência judaica (portanto pertencentes a um grupo que pagou um alto preço durante a Segunda Guerra), ambos eram figuras destacadas, não só em seu campo de ação, como do ponto de vista do pensamento em geral. Ambos tiveram de emigrar por causa do nazismo, Einstein para os Estados Unidos, Freud para a Inglaterra. Ambos viveram as duas guerras mundiais. Assim, quando Einstein foi convidado pelo Instituto Internacional de Cooperação Intelectual da Liga das Nações a escolher um interlocutor para trocar idéias acerca da política e da guerra, de imediato ocorreu-lhe o nome de Freud. A correspondência entre eles foi publicada num livreto chamado “Por que guerra?” que apareceu logo depois da ascensão de Hitler ao poder, e que, por motivos óbvios, circulou de forma muito limitada. Na primeira carta, datada de 29 de abril de 1931, Einstein convidava Freud a aderir ao “grande objetivo de libertar o homem, interna e externamente, dos perigos da guerra.” Este “interna e externamente” é muito importante. Einstein reconhecia que a guerra não resulta só da exortação de ditadores, da demagogia belicista; depende do eco que essas coisas despertam nas pessoas: “Líderes políticos ou governos devem seu poder ou ao uso da força ou ao apoio das massas.” Basta recordar as gigantescas demonstrações de apoio a Hitler para concluir que Einstein sabia o que estava dizendo. Por outro lado, e como diria numa carta posterior, “Não consigo penetrar nas zonas obscuras do sentimento e da vontade humanos.” Bem, esta era a especialidade de Freud: explorar aquele obscuro compartimento da mente que passou a ser conhecido como o inconsciente, no qual são geradas as forças obscuras que muitas vezes governam nosso comportamento. Freud dividia os instintos humanos em dois grupos, aqueles que conservam e unem, e que são os instintos eróticos, e aqueles que destroem e matam, os instintos agressivos ou destrutivos. A este respeito dizia: “Não existe a possibilidade de ‘erradicar’ as más tendências (….) Um ser humano é raramente apenas bom ou mau; usualmente ele é ‘bom’ num contexto, e ‘mau’ em outro.” Mas o ser humano aprende, diz Freud, a transformar instintos egoístas em instintos sociais; este último faz com que sejamos amados, o 130 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI que, afirma o criador da psicanálise, é uma “vantagem” pela qual vale a pena fazer sacrifícios. E aí vem a frase lapidar: “A civilização é alcançada através da renúncia à satisfação dos instintos.” O que não se faz sem um preço: “A sociedade civilizada, que exige boa conduta sem se preocupar com a base instintiva desta conduta... empenhou-se, erroneamente, em impor padrões morais de grande exigência, forçando assim seus membros a distanciar-se da disposição instintiva.” O resultado é a neurose. É, de certo modo, uma abordagem pessimista, mas que inclui um elemento de realidade. Freud apoiaria Woody Allen: o cordeiro da profecia tem sobradas razões para não dormir. Lobos não abdicam de seus instintos; eles não têm regras morais, não têm leis, não têm psicanalistas a quem recorrer para entender seus impulsos agressivos. Estes impulsos agressivos explicam o comportamento aparentemente absurdo, quando não revoltante, de pessoas que sob outros aspectos, são razoáveis, racionais. As premissas de Freud encontraram apoio em dois experimentos famoso na recente história da psicologia. O primeiro deles foi conduzido pelo psicólogo da Yale University, Stanley Milgram. Começou em julho de 1961, três meses depois do julgamento, em Jerusalém, do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, que, em sua defesa, insistia em dizer que, ao enviar os prisioneiros de campos de concentração para a morte estava apenas “cumprindo as ordens” de seus superiores, o que levou Hannah Arendt a falar, num ensaio famoso, na “banalidade do mal”. Milgram se propôs a averiguar uma questão crucial: até onde uma pessoa pode ir quando está cumprindo ordens? Para isto contratou pessoas que, mediante um gerador elétrico, deveriam dar choques de crescente intensidade num “cobaio”. Na realidade, o gerador não dava choque algum; o “cobaio”, vivido por um ator, simulava ser a vítima desses supostos choques gritando de dor. O condutor do experimento, porém, mandava que as pessoas continuassem acionando o aparelho, e aí as respostas variaram. Alguns desistiam, inclusive abrindo mão do pagamento; outros mostravam sua angústia rindo nervosamente; mas vários (26 de 40 participantes) chegaram ao “limite” de 450 volts, mostrando que realmente a disposição de cumprir ordens ultrapassava senso de compaixão. Por que? Discutindo seu próprio trabalho, Milgram aventou duas hipóteses: a primeira é de que pessoas pouco habituadas 131 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI a tomar decisões transcendentes se submeterão ao grupo, a hierarquia; e também que a pessoa, funcionando como instrumento de outros, não se sente mais responsável pelas próprias ações, ou seja, o argumento usado por Eichmann. O segundo experimento foi conduzido em 1971 pelo professor de psicologia Philip Zimbardo na Stanford University (California). Estudantes de graduação foram escolhidos para, ao acaso, desempenhar os papéis de guardas e prisioneiros, numa prisão simulada montada no porão da universidade. Os jovens rapidamente adaptaram-se a seus papéis, a ponto de um terço dos “guardas” ter exibido o que foi considerada uma conduta sádica, causando grande sofrimento aos “prisioneiros”. O experimento, que ficou famoso, teve de ser encerrado em seis dias. Zimbardo foi muito criticado por um trabalho considerado pouco ético e pouco científico, muito difícil de ser replicado em outros locais. Ou seja: todos temos dentro de nós, em nosso inconsciente, um verdugo em potencial, que espera apenas um pretexto para torturar o prisioneiro que, por essas ambivalências da natureza humana, também habita o nosso íntimo. Einstein tinha esperança de que Freud pudesse ajudar na tarefa de exorcizar os demônios interiores que levam à guerra e à agressão: “O senhor, disso estou convencido, estará mais apto a sugerir métodos educativos, fora da esfera política, capaz de eliminar estes obstáculos.” Para Einstein era necessário que cada nação abdicasse “em alguma medida” de sua soberania, de sua liberdade de ação, em prol da segurança do mundo como um todo. Contudo, era obrigado a reconhecer que “A ânsia de poder que caracteriza os detentores do poder em cada nação recusará a limitação dessa soberania.” A resposta de Freud, datada de setembro de 1932 e escrita em Viena, obviamente não poderia ser muito otimista. Ele concordava com Einstein ao dizer que “(...) Só há uma maneira de terminar com a guerra e esta maneira é o estabelecimento, por consenso comum, de um organismo central de controle que terá a última palavra em qualquer conflito de interesse.” Seria um organismo de um lado judiciário, mas de outro, dotado de poder para exercer “ação coercitiva”. Mas Freud colocava todas essas coisas no condicional, porque, naquele momento, representavam apenas um sonho longínquo. Ele pergunta: 132 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI “Quanto tempo teremos de esperar para que a humanidade se torne pacifista? Impossível dizer, mas tenho esperança de que estes dois fatores – a disposição cultural do ser humano e a forma ameaçadora que as guerras do futuro podem tomar – possam por um fim ao impulso bélico.” E concluía: “Tudo que trabalha pelo desenvolvimento cultural trabalha também contra a guerra.” Há uma conhecida experiência, que consiste em colocar peixes em aquários de dimensões cada vez menores. À medida que o “espaço vital”diminui os peixes cada vez mais se agridem com mordidas, o que fala a favor da agressão inata que Freud mencionava. Mas há um detalhe importante aí: não são os peixes que controlam o tamanho dos aquários, é a pessoa que faz o experimento. Enquanto os seres humanos forem comandados por um desígnio externo, os resultados mais absurdos podem ser esperados. Mas na medida em que – graças à cultura, graças ao conhecimento – ampliam sua autonomia, o bom senso e a racionalidade podem prevalecer. Por isso Freud acreditava na cultura, e especificamente numa cultura da paz. Essa conclusão, que de certo modo contraria o seu próprio raciocínio pessimista, é algo no qual vale a pena depositar nossa esperança e investir nossos melhores esforços. 133 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI TODO SER HUMANO TEM DIREITO À VIDA, À LIBERDADE E A SEGURANÇA PESSOAL Paulo Vannuchi ** A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem como uma de suas muitas virtudes a invejável concisão do texto. Ele resume, em enunciados curtos, às vezes vazados de entonação poética, lições que a humanidade só conseguiu assimilar ao custo de milênios de guerras, das quais o morticínio nazista despontou como chocante atualização de uma barbárie que o mundo julgava extinta. No Brasil de 2008 e do sexagésimo aniversário desse documento civilizador, a quantas anda o direito à vida? O que significa liberdade? A segurança pessoal vem sendo respeitada? Bom começo para tais respostas é lembrar o alerta de Hannah Arendt a respeito daquele mágico artigo 1º prescrevendo que “livres e iguais em dignidade e direitos nascem todos os seres humanos”. Não se trata de uma descrição da realidade, argumenta a pensadora judia-alemã, e sim uma afirmação programática. A humanidade, reunida por suas representações nacionais num ambiente de comoção perante o horror da guerra e do Holocausto – e também petrificada pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki – proclama, voluntária e conscientemente, um compromisso no sentido de criarmos um mundo onde sejamos todos livres e iguais. Na mesma rota segue Norberto Bobbio quando sugere exercício muito simples a quem queira ter um panorama sobre os direitos humanos na atualidade: leia o texto da Declaração e, em seguida, olhe em seu redor. Assim sendo, no Brasil de 2008 temos a comemorar que já fomos capazes de percorrer 20 anos de institucionalidade democrática plena, em processo de permanente consolidação e aperfeiçoamento, desde que promulgada a Constituição Cidadã, de Ulysses Guimarães. Os direitos humanos passaram a ser crescentemente internalizados em nosso sistema normativo, o Brasil aderiu a quase todos os instrumentos * Paulo Vannuchi - Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR). 135 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI internacionais que a ONU e a OEA produziram para proteger esses direitos – racismo, criança, mulher, tortura, pessoas com deficiência, desaparecimentos forçados etc – e gozamos de visível reconhecimento nos foros internacionais voltados ao tema. No entanto, seguimos convivendo com um cotidiano de violações que interpelam asperamente as autoridades públicas dos três poderes, nos três entes federados, bem como a rica rede de organizações da sociedade civil, entidades, instituições e ONGs que se dedicam à proteção dos direitos humanos em seu conjunto ou defendem algum segmento vulnerável da população brasileira. O direito à vida emerge, com nitidez, como o componente mais angular da Declaração Universal. Fundamentado no argumento teológico de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, ou nas idéias racionalistas e iluministas que evitam digressões sobre cosmogonia, esse direito é assentado numa conclusão convergente: o ser humano é portador de dignidade intrínseca, imanente, essencial. Como decorrência, tem-se que o direito à vida não pode ser subjugado por qualquer norma jurídica ou política, despontando com proeminência sobre todas elas. A afirmação do direito à vida é comum aos dois grandes troncos em que a Declaração de 1948 se desdobrou em 1966, quando do nascimento dos Pactos dos Direitos Civis e Políticos, a primeira geração, e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, segunda geração. Antes disso, aparece reiterada explicitamente na Declaração Universal, nos subseqüentes artigos 5º, repelindo a tortura, bem como nos artigos 24 e 25, prescrevendo a necessidade de lazer, repouso, férias, saúde e alimentação, com destaque para o registro de que a infância e a maternidade gozarão de proteção especial. Dentro desse enfoque analítico, não fica difícil constatar, no Brasil de 2008, que o caminho a percorrer para assegurar plenamente o direito à vida é ainda mais longo que a distância já vencida. Entre os avanços, cabe saudar o fato insofismável de que, desde 2003, nosso País finalmente ouviu, após décadas de insensibilidade das elites governantes, o grito de Josué de Castro clamando pelo enfrentamento da fome. 136 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Caminhamos a passos largos para comemorar um marco histórico fundamental na consolidação dos direitos humanos em nossa vida nacional, que é a garantia de três refeições por dia a todos os brasileiros. Sem observar um direito tão elementar, torna-se praticamente impensável obter a energia pessoal necessária à conquista de todos os demais direitos. Estamos, sim, falando do “direito a ter direitos”, da já mencionada Hannah Arendt. Por outro lado, toda reflexão sobre o direito à vida evoca imediatamente a questão da pena de morte, que segue sendo aplicada rotineiramente no Brasil, não obstante sua rejeição pela legislação penal referente aos períodos de paz. A pena de morte extrajudicial é aplicada diariamente nas grandes metrópoles brasileiras, seja pelas organizações criminosas que serão abordadas no tratamento do direito à segurança pessoal, seja pelas polícias estaduais que ainda resistem a assimilar o imperativo de que o crime só pode ser combatido e derrotado dentro do estrito respeito à lei, e jamais pelo caminho tortuoso, contaminador e ineficaz do crime. Somente no âmbito do CDDPH – Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, comissões especiais vêm investigando, nos últimos anos, atividades de grupos de extermínio em nada menos que seis estados brasileiros. E essas investigações revelam um cenário quase uniforme: alegação pelos executivos estaduais de que os fatos remontam a administrações anteriores, morosidade de juízes sempre sobrecarregados, inexistência de Defensorias Públicas, precariedade de recursos humanos no Ministério Público, cumplicidade corporativa dentro do aparelho policial. Muitas vezes, o simples medo de enfrentar a violência organizada, por sentimentos que decorrem do zelo pela própria vida. O direito à liberdade é referido expressamente em 16 dos 30 artigos da Declaração Universal, seja mediante emprego explícito da palavra ou de seus derivados “livre” e “livremente”. Em outros 11 artigos, essas palavras estão ausentes, mas nitidamente refletidas no veto ao trabalho escravo, na condenação da tortura, no combate à discriminação, na exigência de tribunais justos ou de regras para detenção, limitação das penas, proteção da privacidade, garantia de asilo e de nacionalidade, proteção da propriedade. Nessa contagem meramente 137 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI aritmética, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se configura como verdadeira ode à liberdade. A liberdade já foi definida por um filósofo alemão como “consciência da necessidade” e cantada por Cecília Meirelles, no Romanceiro da Inconfidência, como sendo “essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique, e ninguém que não a entenda”. Observando e respeitando, com humildade, os vastos e inesgotáveis significados dessas formulações filosóficas e poéticas, não incursionaremos aqui pelas disjuntivas conceituais clássicas na história do pensamento político: liberdade negativa versus liberdade positiva; liberdade de versus liberdade para, liberdade liberal versus liberdade democrática. Registraremos, tão somente, que os direitos de liberdade constituem nossa melhor marca comparativa quando se remonta ao terrível período de trevas implantado a partir de 1964, sobretudo após o Ato 5, de 40 anos atrás. Como todos deveriam saber – sem jamais esquecer – superamos há apenas duas décadas um regime tirânico que se notabilizou pela suspensão dos direitos individuais, eliminação do habeas corpus, cassação de mandatos eletivos, banimentos, exílio, ocupação militar de fábricas e universidades, prisões, torturas, assassinato de opositores políticos, estupros, degolas, desaparecimentos e ocultação de cadáveres. E seria injusto, imperdoável mesmo, esquecer nesta publicação a violência perpetrada contra Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Vitor Nunes Leal, agredidos na vitaliciedade de ministros da Suprema Corte, em 16 de janeiro de 1969, pela fúria repressiva de governantes ditatoriais. Triste ironia da história, os poucos sobreviventes daquele regime liberticida usufruem hoje, de forma oportunista e arrogante, a liberdade que aboliram em seus tempos de poder, para escrever – agonizantes, raivosos e isolados – artigos de imprensa protestando contra a anistia de João Goulart ou contendo insultos pessoais contra autoridades públicas consagradas pelo voto popular e contra aqueles que se empenham em sustentar o sagrado “Direito à Memória e à Verdade”. Se a liberdade de que a cidadania brasileira desfruta hoje é ainda 138 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI carente de necessários desenvolvimentos – por exemplo, democratização dos meios de comunicação de massa, eliminação da supremacia do poder econômico nas disputas eleitorais, implantação dos dispositivos de participação direta previstos na Carta de 1988, muitos outros mais – não resta dúvida de que o desafio mais central reside hoje no imperativo de combater as extremas desigualdades econômicas e sociais que seguem presentes em nosso País. Em linguagem clara: os direitos de liberdade correm o risco de serem reduzidos a um exercício de retórica cínica quando não está assegurada a igualdade de ponto de partida para o pleno exercício de todas as liberdades democráticas. Dissemos ponto de partida, e não igualdade de oportunidades. A vaga da universidade está lá, é uma oportunidade igual para todos os que disputam o vestibular. Mas o ponto de partida para essa disputa é absolutamente desigual entre o jovem que tem computador pessoal desde os seis anos de idade e outro que nunca teve. Daí a exigência de agressivas políticas afirmativas que tendam à harmonização desse ponto de partida pelo exercício da eqüidade. E cabe lembrar, com Bobbio: mais que um simples sinônimo de igualdade, equidade é uma palavra que deve ser interpretada como justiça do caso concreto, envolvendo tratar desigualmente os desiguais, para produzir igualdade. Por fim, o direito à segurança pessoal coloca em pauta o tema que talvez constitua um dos nós mais centrais na atual problemática dos direitos humanos no Brasil: o direito à segurança pública. De uma vez por todas, cabe afirmar, em alto e bom som, que a segurança pública é direito humano de primeiríssima grandeza: direito de não sermos assaltados, roubados, seqüestrados, assassinados ou alvos de balas perdidas. Ao longo de décadas, os poderes públicos não souberam ou não quiseram equacionar de modo consistente o enfrentamento da violência criminal. Como resultado, as estatísticas negativas dispararam, especialmente na periferia das grandes metrópoles brasileiras, onde o Rio de Janeiro desponta como símbolo mais eloqüente, embora nem sempre carregando os piores indicadores. Superado o período ditatorial, em que ocorreu íntima associação 139 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI entre polícia e repressão política, uma das grandes prioridades nacionais nessa área específica das políticas públicas é desbloquear a relação que ainda leva policiais a verem os defensores de direitos humanos como se fossem inimigos, e vice-versa. O Pronasci – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – se constitui na melhor chance já oferecida ao Brasil para enfrentar com eficácia esse desafio prioritário. Seu livreto de apresentação inclui direitos humanos em cada uma das páginas, com o diagnóstico adequado para a verdadeira reinvenção da segurança que nosso País exige: formação policial de excelência, remuneração condigna, proximidade e parceria com as comunidades, inteligência e prevenção como ênfases, equipamento adequado, uso proporcional da força etc. Acima de tudo: ali está o reconhecimento de que é indispensável associar ação policial e presença permanente dos poderes públicos no oferecimento de todos os elementos constitutivos de um Estado de bem-estar social: escolas, centros de saúde, equipamentos esportivos, oportunidades de produção e fruição cultural, participação política, proteção aos segmentos vulneráveis. De ponta a ponta, a implantação dessas mudanças revolucionárias exigem um postulado muito claro: o crime só pode ser combatido com eficiência nos marcos da lei. Quando o policial combate o crime empregando criminosamente a tortura e outros tratamentos ilegais, nasce imediatamente uma identidade pessoal entre bandido e agente do Estado. Ambos se percebem igualmente marginais. E com tal proximidade no plano simbólico abre-se o caminho para que o celular entre na cela, o dinheiro do assalto se transforme em moto ou lancha do policial, a arma aprendida no DP volte a ser localizada no arsenal do Comando Vermelho ou de outra quadrilha qualquer. Aos operadores do Direito, em particular aos advogados que desempenharam um papel tão relevante nas lutas históricas pela recuperação da democracia nas décadas de 1970 e 1980, cabe um protagonismo fundamental no percurso de longo prazo para que o Brasil, definitivamente, assimile todos os preceitos civilizadores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dedicando a merecida atenção aos três elementos angulares abordados em seu Artigo 3º. Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o tráfico dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. 140 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA TORTURA EM DOCUMENTOS NORMATIVOS INTERNACIONAIS E BRASILEIROS Pedro B. de Abreu Dallari* No tratado constitutivo da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1945, fixou-se como um dos propósitos fundamentais para a entidade nascida nos escombros da segunda guerra mundial “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos” (art. 1°, 3)46. Fruto dessa prioridade, em 10 de dezembro de 1948 vem à luz, no âmbito da Assembléia Geral da própria ONU, a Declaração universal dos direitos humanos, com a finalidade de propiciar uma “compreensão comum desses direitos e liberdade”, de modo a respaldar o pleno cumprimento do compromisso dos Estados-membros com a sua promoção47. No rol de direitos fundamentais listados na Declaração universal, figura – na forma do art. V – referência expressa à vedação da tortura: ARTIGO V Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Essa disposição de 1948 desdobrou-se, nas décadas subsequentes, em preceitos normativos inscritos em documentos internacionais e, também, na legislação dos Estados nacionais, aí incluído o Brasil. Isto com o objetivo de se promover sua efetividade. O exame desses dispositivos correlatos dos principais diplomas internacionais e brasileiros – cuja compilação se constitui no propósito deste artigo – permite que se ateste a evolução do tratamento da matéria no âmbito do Direito Internacional Público e a grande influência desse processo na Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari é advogado e professor da Faculdade de Direito e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Coordenou a Comissão de Direitos Humanos da OAB de São Paulo (1998-2000) e integrou, na qualidade de membro titular, a Comissão Nacional de Direitos Humanos, do Conselho Federal da OAB (2001-2006). 46 A Carta da Organização das Nações Unidas foi celebrada na cidade norte-americana de São Francisco em 26 de junho de 1945, tendo sido promulgada no Brasil por via do Decreto n° 19.841, de 22 de outubro de 1945. 47 Resolução 217-A (III) da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948. * 141 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI conformação da legislação do País. Na esfera internacional, o Pacto internacional sobre direitos civis e políticos, adotado pela ONU em 1966, acarretou a transposição daquela disposição do art. V da Declaração universal – documento a princípio com caráter de recomendação48 – para o corpo de um tratado, este documento apto a ensejar a obrigatoriedade de sua observância pelos Estados que a ele se vinculassem. Embora isto não tenha ocorrido de imediato com o Brasil, o que só veio a se dar em 1992, a influência do Pacto já se fez sentir por ocasião da elaboração da Constituição Federal de 1988, como se verá mais adiante49. No art. 7 desse Pacto de 1966 em matéria de direitos civis e políticos50, assim consta: ARTIGO 7 Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou cientificas. Essa rota estabelecendo uma lista de direitos e liberdades fundamentais inicialmente em uma declaração para, mais à frente, convertê-los em disposições obrigatórias de tratado internacional foi também observada na estruturação do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Assim é que a Declaração americana dos direitos e deveres do homem – aprovada em conferência realizada em 194851, mesmo ano em que se deu a aprovação da Declaração produzida pela ONU – ensejou a celebração, em 1969, da Convenção americana sobre direitos humanos, tratado também conhecido por Pacto de São As resoluções da Assembléia Geral da ONU não têm o condão de obrigar os Estados-membros; tal efeito está presente apenas nas resoluções do Conselho de Segurança. Todavia, a importância da Declaração universal dos direitos humanos fez com que progressivamente fosse reconhecida doutrinariamente para o seu conteúdo a expressão de regras costumeiras ou mesmo de princípios de direito. 49 O Pacto internacional sobre direitos civis e políticos foi aprovado pela Assembléia Geral da ONU em 16 de dezembro de 1966 e sua promulgação no Brasil se deu apenas em 1992, através do Decreto n° 592, de 6 de julho daquele ano. 50 Também em dezembro de 1966, no dia 19, a Assembléia Geral da ONU aprovou o Pacto internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, cuja promulgação no Brasil se deu simultaneamente à do outro Pacto, em 6 de julho de 1992, com a edição do Decreto n° 591. 51 A Declaração americana foi aprovada na IX Conferência Internacional Americana, que teve lugar em Bogotá e na qual também se deu a aprovação da Carta da Organização dos Estados Americanos, tratado de criação da OEA. 48 142 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI José da Costa Rica ou apenas Pacto de São José52. Todavia, se no âmbito do sistema da ONU tanto a Declaração Universal como o Pacto sobre direitos civis e políticos fazem referência explícita à proibição da tortura, o mesmo não se dá no sistema interamericano. Com efeito, em 1948, para a Declaração americana, não se utilizou o termo, apenas indicando-se que toda pessoa tem “direito a um tratamento humano durante o tempo em que o privarem da sua liberdade” (art. XXV), assim como “de que se lhe não inflijam penas cruéis, infamantes ou inusitadas” (art. XXVI). Já em 1969, no entanto, fixouse no Pacto de São José regra explicitamente voltada à vedação da tortura. Assim é que o art. 5 da Convenção americana sobre direitos humanos, consagrado ao direito à integridade pessoal, contempla no item 2 preceito bastante assemelhado àquele do art. 7 do Pacto da ONU, anteriormente reproduzido. É a seguinte a redação do art. 5: ARTIGO 5 Direito à Integridade Pessoal 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. 3. A pena não pode passar da pessoa do delinqüente. 4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas. 5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. 6. As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados. Nas duas décadas subseqüentes, a abordagem do tema da tortura veio a ganhar O texto da Declaração que veio a ser adotado pela Assembléia Geral da ONU foi elaborado pelo V Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção da criminalidade e o tratamento dos criminosos, ocorrido em Genebra no mesmo ano de 1975. 52 143 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI ênfase no plano internacional, evoluindo do estágio inicial – consubstanciado nos documentos examinados até aqui e no qual sua prática configura ilícito por parte do Estado que não promove a devida vedação – para um quadro normativo em que se preceitua para os Estados o compromisso com a responsabilização criminal dos torturadores. Nesse sentido, sucederam-se a Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 1975, a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, adotada pelo mesmo órgão da ONU em 1984, e a Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura, celebrada em conferência realizada na cidade colombiana de Cartagena em 1985. A Declaração de 1975 – proclamada pela Assembléia Geral da ONU por meio da Resolução nº 3452 (XXX), aprovada na reunião de 9 de dezembro da 30ª sessão anual do órgão53 – promoveu a definição da prática da tortura, descrevendo seus elementos tipificadores (art. 1)54, e fixou para os Estados o dever de criminalizála, por meio de sua inserção nas respectivas legislações penais (art. 7)55. Essa deliberação foi seguida de imediato e na mesma data pela aprovação de outra resolução – a de nº 3453 (XXX) –, na qual a Assembléia Geral enunciou uma série de medidas destinadas a promover a efetividade da Declaração, a serem materializadas no âmbito da própria ONU, pela Comissão de Direitos Humanos e pelo Comitê de Prevenção e Controle da Criminalidade, e no âmbito da Organização Mundial de Saúde. Adotada em 1984, nove anos após o advento da Declaração, a Convenção contra O texto da Declaração que veio a ser adotado pela Assembléia Geral da ONU foi elaborado pelo V Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção da criminalidade e o tratamento dos criminosos, ocorrido em Genebra no mesmo ano de 1975. 54 O art. 1 da Declaração, para a qual não há versão oficial no idioma português, está disposto nos seguintes termos: “1. For the purpose of this Declaration, torture means any act by which severe pain or suffering, whether physical or mental, is intentional inflicted by or at the instigation of a public official on a person for such purposes as obtaining from him or a third person information or confession, punishing him for an act he has committed or is suspected of having vomited, or intimidating him or other persons. It does not include pain or suffering arising only from, inherent in or incidental to, lawful sanctions to the extent consistent with the Standard Minimum Rules for the Treatment of Prisoners. 2. Torture constitutes an aggravated and deliberated form of cruel, inhuman or degrading treatment or punishment.”. 55 O art. 7 da Declaração tem a seguinte redação: “Each State shall ensure that all acts of torture as defined in article 1 are offences under its criminal law. The same shall apply in regard to acts which constitute participation in, complicity in, incitement to or an attempt to commit torture.”. 53 144 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes – revestida da qualidade jurídica de tratado internacional e, portanto, como visto anteriormente, apta a ensejar a obrigatoriedade de sua observância pelos Estados-partes –, resultou justamente do progressivo acúmulo no tratamento do assunto56. Tal perspectiva é constatável pelo exame do preâmbulo da Convenção, em que as partes, após lembrarem o compromisso com a promoção dos diretos humanos presente na Carta constitutiva da ONU, resgatam os antecedentes relacionados especificamente ao tema da tortura e aqui mencionados: Considerando a obrigação que incumbe os Estados, em virtude da Carta, em particular do Artigo 55, de promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais. Levando em conta o Artigo 5 da Declaração Universal e a observância dos Direitos do Homem e o Artigo 7 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que determinam que ninguém será sujeito à tortura ou a pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante, Levando também em conta a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, aprovada pela Assembléia Geral em 9 de dezembro de 1975, [...] Logo no art. 1 da Convenção contra a tortura a figura da tortura é objeto de definição, para a qual se aproveitou consideravelmente a formulação constante da Declaração de 1975. Assim é a íntegra desse art. 1, constante de dois parágrafos: ARTIGO 1 1. Para os fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou A Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes foi adotada pela Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1984, tendo sido promulgada no Brasil apenas em 1991, por força do Decreto n° 40, de 15 de fevereiro. 56 145 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. 2. O presente Artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo. Além de estabelecer para cada Estado-parte a obrigação de adotar “medidas eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição” (art. 2), a Convenção, incidindo sobre providência já indicada na Declaração, consagrou a obrigatoriedade da criminalização da prática da tortura, conforme assinalado no art. 4 do texto convencional, de seguinte redação: ARTIGO 4 1. Cada Estado Parte assegurará que todos os atos de tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal. O mesmo aplicar-se-á à tentativa de tortura e a todo ato de qualquer pessoa que constitua cumplicidade ou participação na tortura. 2. Cada Estado Parte punirá estes crimes com penas adequadas que levem em conta a sua gravidade. Cuidou-se, também, no corpo da Convenção, do estabelecimento de mecanismos de monitoramento da observância das disposições pactuadas, determinando-se a constituição de um Comitê contra a Tortura (art. 17), integrado por peritos independentes e incumbido da atribuição de receber e examinar relatórios sobre as medidas adotadas pelos Estados-partes (art. 19), assim como de tomar conhecimento de informações relacionadas à ocorrência de tortura, sendo-lhe conferida a competência para demandar do Estado infrator esclarecimentos e, 146 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI eventualmente, a adoção de providências (arts. 20 e 22)57. No plano do sistema interamericano de direitos humanos, deu-se em 1985 – quase que simultaneamente, portanto, à edição da Convenção emanada da ONU, que é de 1984 – a celebração da Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura58, voltada ao aprofundamento do tratamento de matéria já objetivada no art. 5 da Convenção americana sobre direitos humanos, reproduzido anteriormente neste artigo. E da mesma forma que a Convenção da ONU, a Convenção interamericana trata de tipificar a prática da tortura, além de determinar aos Estados-partes sua criminalização, conforme se depreende dos arts. 2, 3 e 6 de seu texto, a seguir transcritos, tendo-se reservado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a incumbência de monitorar o cumprimento do tratado (art. 17): ARTIGO 2 Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica. Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contato que não incluam a realização dos atos ou aplicação dos métodos a que se refere este Este sistema de monitoramento veio ainda a ser aprimorado com a adoção, em 18 de dezembro de 2002, do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que disciplina “um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” (art. 1). O Brasil é parte do Protocolo, que foi promulgado internamente por meio do Decreto n° 6.085, de 19 de abril de 2007. 58 A Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura, concluída em 9 de dezembro de 1985, foi promulgada no Brasil pelo Decreto n° 98.386, de 9 de novembro de 1989. 57 147 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Artigo. ARTIGO 3 Serão responsáveis pelo delito de tortura: a) Os empregados ou funcionários públicos que, atuando nesse caráter, ordenem sua comissão ou instiguem ou induzam a ela, cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam; b) As pessoas que, por instigação dos funcionários ou empregados públicos a que se refere a alínea a, ordenem sua comissão, instiguem ou induzam a ela, comentam-no diretamente ou nela sejam cúmplices. [...] ARTIGO 6 Em conformidade com o disposto no artigo 1, os Estados Partes tomarão medidas efetivas a fim de prevenir e punir a tortura no âmbito de sua jurisdição. Os Estados Partes segurar-se-ão de que todos os atos de tortura e as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados delitos em seu direito penal, estabelecendo penas severas para sua punição, que levem em conta sua gravidade. Os Estados Partes obrigam-se também a tomar medidas efetivas para prevenir e punir outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, no âmbito de sua jurisdição. Esse crescente adensamento verificado no enquadramento jurídico da prática da tortura acabou por se refletir no direito brasileiro, isto por via da Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, muito embora o País, naquele momento, ainda não figurasse como parte em qualquer dos tratados relacionados à matéria e nem mesmo houvesse a tipificação da conduta na legislação penal nacional. Assim é que o processo constituinte instalado em 1987, na esteira do encerramento do longo período de ditadura militar, vai acarretar a inclusão no texto da nova Carta Federal – mais especificamente no Capítulo I (Dos direitos e deveres individuais e coletivos) do Título II (Dos direitos e garantias fundamentais) – de disposição expressamente voltada à vedação da tortura. Com efeito, assim preceitua o inciso III do art. 5° da Constituição da República: 148 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI ARTIGO 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...] E, logo em 1990, no contexto de elaboração dos diplomas jurídicos voltados a dar operacionalidade à nova ordem constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho daquele ano) fez inserir no direito brasileiro, pela primeira vez, regra destinada explicitamente a criminalizar a prática da tortura59. No Título VII, que trata Dos crimes e das infrações administrativas, o art. 233 instituiu tal previsão legal: ARTIGO 233 Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura: Pena - reclusão de um a cinco anos. § 1º Se resultar lesão corporal grave: Pena - reclusão de dois a oito anos. § 2º Se resultar lesão corporal gravíssima: Pena - reclusão de quatro a doze anos. § 3º Se resultar morte: Pena - reclusão de quinze a trinta anos. Ainda no âmbito do processo de reconstrução do sistema jurídico nacional, outro fato relevante relacionado à matéria aqui enfocada foi a decisão de vinculação do País aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos aos quais já se fez referência neste artigo. Dessa forma, no ano de 1989 o Brasil procedeu à ratificação da Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura60, que havia sido celebrada em 1985, e da Convenção contra a tortura e outros A título de registro, deve-se observar que figuras penais assemelhadas já se encontravam inscritas no ordenamento jurídico brasileiro anteriormente a 1990, como é o caso do crime de maus-tratos (art. 136 do Código Penal) e do crime de ofensa à integridade corporal ou à saúde (art. 209 do Código Penal Militar). 60 A Convenção interamericana foi ratificada em 20 de julho de 1989 e promulgada pelo Decreto n° 98.386, de 9 de novembro de 1989. 59 149 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes61, esta de 1984. Já em 1992, deu-se a adesão aos dois Pactos da ONU de 1966 (Pacto internacional sobre direitos civis e políticos62 e Pacto internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais63) e à Convenção americana sobre direitos humanos (Pacto de São José), de 196964. A previsão do crime de tortura, inscrita no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, reforçada pelas disposições desse conjunto de tratados internacionais então recém incorporados à ordem jurídica do País, levou o Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão de 23 de junho de 1994, a declarar a existência jurídica do crime de tortura no direito penal positivo brasileiro na hipótese da vítima ser criança ou adolescente, apesar da posição contrária de parte dos julgadores, que argumentaram no sentido da ausência, no corpo do art. 233, de elementos suficientes para configurar o comportamento delituoso65. É a seguinte a ementa do referido acórdão: Tortura contra criança ou adolescente – existência jurídica desse crime no direito penal positivo brasileiro – necessidade de sua repressão – convenções internacionais subscritas pelo Brasil – previsão típica constante do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90, art. 233) – confirmação da constitucionalidade dessa norma de tipificação penal – delito imputado a policiais militares – infração penal que não se qualifica como crime militar – competência da justiça comum do estado-membro – pedido deferido em parte. A relevância das normas internacionais para a fundamentação da decisão do STF ficou realçada na fundamentação do acórdão, como pode ser facilmente constatado na passagem que se segue: A Convenção contra a tortura , adotada no âmbito da ONU, foi ratificada em 28 de setembro de 1989 e promulgada pelo Decreto n° 40, de 15 de fevereiro de 1991. 62 A adesão ao Pacto sobre direitos civis e políticos se efetuou em 24 de janeiro de 1992 e sua promulgação se deu pelo Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992. 63 A adesão ao Pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais se efetuou em 24 de janeiro de 1992 e sua promulgação se deu pelo Decreto n° 591, de 6 de julho de 1992. 64 A adesão à Convenção se efetuou em 25 de setembro de 1992 e sua promulgação ocorreu por via do Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992. Em 10 de dezembro de 1998, deu-se o depósito, pelo Brasil, da Declaração de aceitação da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, organismo jurisdicional instituído e regulado pela Convenção. A Declaração foi objeto de promulgação pelo Decreto n° 4.463, de 8 de novembro de 2002. 65 Hábeas Corpus n° 70389-5 – São Paulo, tendo sido relator designado para elaboração do acórdão o Ministro Celso de Mello. 61 150 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA – CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969). Mais do que isso, o legislador brasileiro, ao conferir expressão típica a essa modalidade de infração delituosa, deu aplicação efetiva ao texto da Constituição Federal que impõe ao Poder Público a obrigação de proteger os menores contra toda a forma de violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, in fine). [Destaques conforme o texto original.] Em 1997, afinal, com o advento da Lei n° 9.455, de 7 de abril – que “Define os crimes de tortura e dá outras providências” –, a prática da tortura foi objeto de diploma normativo específico, cujo art. 1° descreve as condutas delituosas e, com ligeiro acréscimo introduzido em 2003 no respectivo § 4° , tem a seguinte redação: ARTIGO 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena - reclusão, de dois a oito anos. § 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou 151 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos. § 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: I - se o crime é cometido por agente público; II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos; III - se o crime é cometido mediante seqüestro. § 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. § 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Relativamente a esse enunciado do art. 1° da Lei n° 9.455/1997, cabe observar que o legislador brasileiro seguramente se valeu de muitos dos elementos emanados da legislação internacional. É de se destacar, todavia, que a regra brasileira amplia as hipóteses de caracterização da ocorrência de tortura ao não restringi-la a atos praticados por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, como fazem as Convenções adotadas respectivamente pela ONU e no plano interamericano. Ainda sob o aspecto internacional, deve-se assinalar que o art. 2° da Lei n° 9.455/1997 admite a extraterritorialidade na incidência da norma brasileira: ARTIGO 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira. Um comentário final acerca da Lei n° 9.455/1997 guarda relação com seu art. 4°, 152 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI que determinou a revogação do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, isto sob a justificativa de que as disposições da nova lei já abrangeriam aquelas aplicáveis estritamente a menores de 18 anos. Tal estipulação, no entanto, ensejou forte oposição por parte de entidades voltadas especificamente à defesa dos direitos de crianças e adolescentes, que, por entenderem-no mais rigoroso, advogam a restauração do art. 233. Em que pese essa controvérsia – e outras que possam estar associadas à busca do aperfeiçoamento do marco jurídico –, é inegável que a Lei n° 9.455/1997 resulta, como se procurou demonstrar, da consolidação de processo evolutivo que, internacionalmente e no âmbito interno, buscou e vem buscando viabilizar o combate a prática delituosa das mais odiosas. Tal processo ainda não se concluiu e, mesmo em relação ao que já se produziu, a descrição que se procurou fazer neste breve artigo acerca da evolução no enquadramento jurídico da tortura, embora ampla, não é exaustiva. No Estatuto do Tribunal Penal Internacional, de 199866, por exemplo, em que se cuida de estabelecer jurisdição internacional em matéria penal de caráter permanente, a tortura é listada entre os crimes contra a humanidade (art. 7°, 1, f) e os crimes de guerra (art. 8°, 2, a, ii). Ao avanço na elaboração normativa deve corresponder, todavia, um real empenho no sentido de se dar efetividade a essas regras, revertendo-se o quadro de permissividade que, em muitos quadrantes do planeta, ainda impera em relação à prática de tortura e que acarreta a impunidade dos responsáveis. Cabe registrar que tal situação caracteriza fortemente inclusive a realidade brasileira, como ficou salientado em relatório apresentado em 2008 à Assembléia Geral da ONU pelo Comitê contra a tortura, instituído pela Convenção da ONU de 1984, no qual se conclui que a tortura e tratamentos igualmente degradantes continuam a se verificar por todo o País de forma generalizada e sistemática67. Celebrado em Roma em 17 de julho de 1998, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi promulgado no Brasil por meio do Decreto n° 4.388, de 25 de setembro de 2002. 67 No relatório de atividades do Comitê contra a tortura submetido em 2008 à Assembléia Geral da ONU se procede ao registro de investigação referente à prática de tortura no Brasil, concluída em 2006 com o seguinte veredicto: “In its conclusions, the Committee noted that the Government of Brazil fully cooperated with the Committee’s visit, constantly expressed its awareness and concern with the seriousness of the existing problems, as well as its political will to improve. However, the Committee noted that tens of thousands of persons were still held in delegacias and elsewhere in the penitentiary system where torture and similar ill-treatment continued to be meted out on a widespread and systematic basis.” (Report of the Committee against Torture - Thirty‑ninth session (5‑23 November 2007), Fortieth session (28 April‑16 May 2008). General Assembly Official Records, Sixty‑third session, Supplement No. 44 (A/63/44), pág. 100, fonte: www. un.org). 66 153 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI TODAS AS PESSOAS NASCEM LIVRES E IGUAIS EM DIGNIDADE E DIREITOS Plínio Arruda Sampaio* O Brasil que queremos é o Brasil Socialista. Esse Brasil não será produtor de mercadorias, pois organizará sua economia para produzir os bens de uso necessários a fim de que todos os brasileiros vivam com dignidade e possam desenvolver plenamente suas potencialidades em todos os planos da existência humana. No mundo e no Brasil, a forma de organização desse modo de produção surgirá das práticas de luta das massas populares no processo de transformação da sociedade que as oprime. Por isso, pode-se abreviar a exposição desse Brasil futuro sem necessidade de entrar no exame de fórmulas técnicas abstratas e nem na explicação detalhada sobre o tipo de socialismo que se está propondo. É necessário, porém, tendo em vista o fracasso das experiências socialistas do século XX, deixar claro que o socialismo do século XXI terá que resolver as questões da democracia, do pluralismo, da participação popular, ou seja, terá que organizar-se como um Estado Democrático de Direito. O conceito desse tipo de estado é resultado de um longo processo de aprimoramento das relações entre o Estado e seus cidadãos – a partir de três princípios básicos: independência e autonomia dos três Poderes; apreciação de toda e qualquer lesão ou ameaça a direito pelo Poder Judiciário; igualdade entre o cidadão e o Estado perante o Juiz. A construção do socialismo do século XXI e do Estado Democrático de Direito são empresas históricas simultâneas. O objetivo deste texto é analisar a principal ameaça que pesa, atualmente, sobre o Estado Democrático de Direito: a criminalização da pobreza. * Plínio Soares de Arruda Sampaio- é um intelectual e ativista político brasileiro. Formado em Direito pela USP em 1954, militou na Juventude Universitária Católica, da qual foi presidente, e na Ação Popular, organização de esquerda surgida a partir dos movimentos leigos da Ação Católica Brasileira. Foi promotor público e atualmente preside a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), além de dirigir o semanário Correio da Cidadania 155 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Os pobres sempre foram criminalizados e criminalizar a pobreza foi a primeira reação dos estados burgueses aos ataques às torres gêmeas de Nova York e ao Pentágono, em 2001. Essa nova onda iniciou-se nos Estados Unidos, está se alastrando rapidamente pelas democracias liberais do hemisfério Norte. Os ataques de 11 de setembro de 2001 forneceram o pretexto que a burguesia estadounidense necessitava para promover uma profunda modificação no arcabouço jurídico do seu Estado, a fim de ajustá-lo à nova institucionalidade que o capital monopolista deseja implantar em todo o mundo: o Estado-Mercado, substituto do Estado-Nação. O Patriot Act, primeiro de uma série de leis restritivas da liberdade individual, autoriza os órgãos de segurança a deter pessoas; vasculhar escritórios e residências; abrir correspondência; fazer escutas telefônicas; torturar e matar terroristas e até pessoas suspeitas de prática de atividades terroristas. Numa penada, essa legislação feriu princípios constitutivos do Estado Democrático de Direito, pois afetou a tripartição dos Poderes; a exigência de mandado judicial para diligências policiais restritivas de garantias individuais; a presunção de inocência das pessoas até sentença condenatória de ultima instância passada em julgado pela prática de crime definido previamente em lei, após processo judicial contraditório, assegurado o pleno direito de defesa. É fácil ver que a nova legislação alterou inteiramente a sistemática de criminalização de condutas no Estado Democrático de Direito, pois passa a punir pessoas pela sua condição pessoal e não pela conduta previamente tipificada em uma lei prévia – retrocesso à legislação penal anterior ao Iluminismo. O brasileiro executado no metro de Londres foi vítima de lei idêntica ao Patriot Act, editada na Inglaterra, na sequência do exemplo estadunidense: o rapaz foi fuzilado porque um agente da policia londrina confundiu-o com uma pessoa suspeita de terrorismo. Esse enorme retrocesso, que desfigura completamente a democracia estadounidense, deve-se a dois fatores: primeiro, à necessidade que a burguesia daquele país tem de manter seu povo sempre com a sensação de que está sofrendo uma grande ameaça, a fim de legitimar seu poder e seu gigantesco orçamento militar; e segundo, à necessidade de ameaçar os pobres, a fim de que eles se submetam à nova disciplina do capital – disciplina esta 156 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI que significa aceitação de condições de trabalho mais restritivas e de serviços públicos menos abrangentes. Todos sabemos que as mudanças ocorridas nos países centrais do sistema capitalista tendem a se propagar para os países periféricos, de modo que não se pode tratar do “Brasil que queremos” sem discutir o problema da criminalização da pobreza aqui. A Constituição de 1988, no seu artigo 1o, constitui a República brasileira como um Estado Democrático de Direito e, artigo 5o, estabelece claramente os limites de atuação do Estado, ao especificar extensivamente os direitos e deveres individuais e coletivos. Contudo a inclusão desses direitos na Carta Magna não chegou a conferir ao nosso país o status de um Estado Democrático de Direito, pois, como todos sabemos que a Constituição não se aplica a todos os brasileiros. Aqui, o pobre não precisa ser criminalizado para sentir a mão pesada do Estado. Sempre sofreu – e continua sofrendo - diariamente, agressões dos agentes da segurança pública, independentemente da conduta que tenha tido. Assim sendo, a discussão da criminalização da pobreza no caso brasileiro precisa transcender o estrito âmbito da legislação positiva. Não é segredo para ninguém que, na maioria das delegacias e cadeias do país, os pobres suspeitos da pratica de crime sempre estiveram sujeitas à tortura. Os vinte anos de vigência do artigo 5o.da Constituição-“Cidadã” não conseguiram acabar com essa prática vergonhosa. Pelo contrário, nota-se, nos dias que correm, um agravamento assustador, não somente desse tipo de abusos, mas até a execução sumária de criminosos ou meros suspeitos. Quem não se recorda de uma cena televisada do interior de um helicóptero da Polícia do Rio de Janeiro, na qual os políciais atiram contra dois jovens em fuga desesperada por um terreno baldio? Chacinas deste tipo tornaram-se tão frequentes que não provocam mais comoção alguma na opinião pública. Policiais trocam tiros com delinquentes sem a preocupação com a segurança dos transeuntes e fuzilam pessoas presas em plena luz do dia. O pouco empenho das autoridades superiores dessas corporações e dos próprios governantes na apuração desses gravíssimos fatos assinala o grau 157 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de deterioração do tecido ético do Estado brasileiro. Mas o capítulo novo na longa história de agressão do Estado brasileiro às pessoas pobres - objeto desta reflexão - consiste na criminalização das organizações que defendem os direitos dos pobres. A falta de um Patriot Act para autorizar essa perseguição não deve nos confundir: no Brasil, a criminalização das entidades devotadas à organização e defesa dos direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, bem como das entidades de defesa dos direitos humanos está sendo feita de uma forma sutil, pela ação conjugada do Executivo, do Judiciário e da mídia. O primeiro aterroriza a população com suas razias policiais nas favelas e nos morros; o segundo, pune fulminante e draconianamente as organizações populares e seus líderes, e o terceiro produz um tipo de noticiário tecnicamente preparado para incompatibilizar a opinião publica contra as autoridades e as entidades que exigem o respeito aos direitos dos presos. Criminalizar é o ato de tipificar em lei uma conduta passível de pena, e, portanto, do ponto de vista da técnica jurídica, não há como falar em criminalização da pobreza. Mas só uma visão muito positivista do direito deixa de ver - nos “caveirões” que aterrorizam crianças e velhos nos morros do Rio de Janeiro, e na omissão dos governantes diante dos abusos que suas políticas cometem nos lugares em que vivem os pobres - uma pena imposta a uma população, cujo único delito consiste em ser obrigada a conviver com bandos delinqüentes em territórios por estes dominados. Há igualmente criminalização da pobreza na gritante disparidade de atuação do Poder Judiciário diante de ações interpostas contra pessoas pobres e pessoas ricas. Quando um grupo do MST ocupa uma terra, o mandado de despejo é fulminante e seu cumprimento pela força policial inexorável e quase sempre violento. Mas quando um grande empresário constrói um edifício contra todas as normas da municipalidade, a mesma Justiça demora anos e anos para dar sentença, quase sempre termina aceitando o fato consumado. Quando um militante do MST danifica um posto de pedágio durante um protesto, o processo corre célere e a pena é elevada. Entretanto, o processo 158 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI contra um ex-governador tramita tão lentamente que termina prescrevendo. Não há necessidade de alongar o relato de casos semelhantes numa Conferência da OAB para afirmar, sem medo de contestação, que a atuação da Justiça brasileira pune severamente os pobres e encontra mil maneiras de poupar os ricos. Contudo, o objetivo central desta análise é chamar atenção para um novo tipo de atuação da Justiça em relação às greves, ocupações de terra, fechamento de estradas, e outras manifestações mais contundentes do conflito social existente na sociedade brasileira. Pode-se classificá-la com uma forma velada, mas muito efetiva, de criminalização da pobreza. Ela se revela na velocidade da concessão de liminares; nas reintegrações de posse; nos interditos proibitórios; quando os requerentes são grandes empresários ou proprietários urbanos ou rurais. Esta diferença de tratamento revela-se ainda nas multas que são aplicadas em ações movidas por empresas privadas ou órgãos públicos contra sindicatos e entidades da sociedade civil que promovem greves ou protestos em defesa de presos ou de menores mantidos em instituições do Estado. As exageradas quantias fixadas por alguns juízes revelam o propósito de asfixiar financeiramente essas entidades, de modo a obrigá-las a cessar qualquer tipo de pressão sobre o capital ou sobre o Estado. A tendência mundial para a criminalização da pobreza tem no Brasil formas veladas mas muito eficazes, evidencia que a burguesia brasileira não aceita o princípio de que a democracia não elimina o conflito inerente a todo tipo de sociedade de classes. Apenas cria normas para impedir que esse conflito descambe na barbárie. Atualmente, a noção de que o bandido não está protegido pela lei tende a ser aceita como senso comum. Urge mobilizar todas as forças da sociedade para reverter essa noção letal para o Estado Democrático de Direito, pois, como dizia o grande Rui Barbosa: “A lei que não protege o meu inimigo, não me serve”. Nos anos de chumbo da ditadura, a OAB, emprestando sua voz sua voz aos que não tinham voz, contribuiu decisivamente para o movimento que 159 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI galvanizou a opinião pública contra o arbítrio e a violência do Estado. Hoje, a situação dos pobres caminha para o mesmo quadro de arbítrio e violência. É hora da OAB emprestar novamente sua prestigiosa voz aos que náo têm voz. A casa dos advogados do Brasil tem a legitimidade necessária para liderar um grande movimento de opinião pública contra o desrespeito aos direitos e garantias individuais e coletivos. Será sua grande contribuição para fazer a opinião pública avançar na direção do “Brasil que queremos”. 160 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI NOVOS TEMPOS, NOVOS RUMOS! Renato Zerbini Ribeiro Leão* “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão. Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla. Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades. Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso.” (Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos) INTRÓITO Os preâmbulos dos tratados internacionais são as justificações éticas, históricas, morais, políticas e sociais da necessidade de existência desses Doutor em Direito Internacional e Relações Internacionais. Professor Universitário de Direito Internacional Público, Política Internacional e as Três Vertentes da Proteção Internacional da Pessoa Humana em Brasília. Coordenador Geral do Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE. Advogado inscrito na seccional OAB/DF. * 161 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI documentos normativos internacionais. São a fonte de inspiração civilizatória das normas constituintes de um documento jurídico de Direito Internacional Público. Em conseqüência, humanizam a fria letra da norma internacional e revelam, resumidamente, o modo de se compreender o assunto em pauta no tratado por parte da sociedade internacional da época. O preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos possui uma lógica existencial. A partir da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, todos os países do mundo, inclusive aqueles que não atravessaram o largo processo histórico de formação do Estado liberal e democrático moderno, dispõem de um código internacional para decidir como se comportar e como julgar os demais. É um código que não só se aplica no âmbito universal mas encerra também preceitos que têm valor em áreas anteriormente não tomadas em conta nas Constituições dos Estados ocidentais.68 Diferentemente de outras épocas, na atualidade as normas internacionais proíbem qualquer “trato desumano ou degradante”. Houve um tempo no qual a denúncia limitava-se a citar determinados governos, que descuidavam dos interesses da população; hoje, pode-se acusá-los de violar as normas internacionais, que prevêem, por exemplo, o direito à alimentação, o direito a uma moradia digna, o direito ao meio ambiente sadio, etc.69 No nosso início do século XXI impera o princípio de afirmação da dignidade humana. O reconhecimento dos Direitos Humanos no cenário mundial caminhou, às vezes discretamente, outras efusivamente, junto com o desenvolvimento das Relações Internacionais. Entre o séc. XVII e começos do séc. XX, as Relações Internacionais eram substancialmente mantidas entre entidades de governo soberano em um território relativamente amplo e sobre a população estabelecida nesse território. Cassese aponta como as três características principais da comunidade internacional daquela época:70 ALBUQUERQUE MELLO, C. D. de. Curso de Direito Internacional Público. RJ/SP, Renovar, 2000. (“A Declaração Universal dos Direitos Humanos não possui qualquer valor de obrigatoriedade para os Estados. Ela não é um tratado, mas uma simples declaração, como indica o seu nome. O seu valor é meramente moral. Ela indica as diretrizes a serem seguidas neste assunto pelos Estados. (...) De qualquer modo pode-se afirmar que atualmente há uma espécie de consenso em considerá-la um sistema internacional e, portanto, obrigatória.” p. 823). 69 CASSESE, Antônio. Los derechos humanos en el mundo contemporáneo. Barcelona, Ariel, 1993. pp. 7-57. 70 Id., ibid. p. 17-21. 68 162 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 1. Os Estados viviam em um estado de natureza. 2. Um cenário movido por um princípio que constituía a conseqüência necessária das relações individualistas entre os membros daquela sociedade anárquica, o princípio da reciprocidade. Tal princípio significa basicamente que as normas entre associados regiam-se principalmente por acordos bilaterais ou, em certos casos, multilaterais; entretanto, todos baseados nas recíprocas vantagens dos contratantes. 3. Os povos e indivíduos carecem de peso. Os indivíduos aparecem como sujeitos passivos do direito internacional, ou seja, titulares apenas de obrigações internacionais, contra os quais os soberanos poderiam e deveriam lutar com todas suas forças.71 Naquela época os Direitos Humanos estavam confinados dentro das fronteiras dos Estados pelo princípio da soberania estatal; no entanto, quando deixam de ser considerados matérias de exclusiva jurisdição dos Estados soberanos e “passam a estar inseridos entre as prerrogativas da sociedade internacional, a sua defesa passa a ocorrer independente das limitações territoriais impostas pelos Estados”.72 As características descritas anteriormente mantiveram-se, basicamente, sem grandes transformações até a metade do século XIX, durante o qual uma pequena chama viria lançar uma nova perspectiva no cenário político e jurídico de então, qual seja, a teoria das nacionalidades propugnada por Pasquale Stanislao Mancini. Esta expressava a importância das diversas nações, “agrupações humanas unidas por uma língua e cultura comum, por tradições e costumes comuns”.73Encarnava, ademais, os ideais das classes dirigentes de certos países europeus e remetia suas conseqüências a um plano Albuquerque Mello, C. D. Op. cit. (“A partir do século XIX começou a reação contra a subjetividade do indivíduo. Neste período predomina a soberania absoluta do Estado. Surge no DI o que já foi denominado de uma aristocracia de Estados. O indivíduo somente atinge o mundo jurídico internacional através do Estado.” p. 766-767). 72 Rodrigues, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos – a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. RJ/SP, Renovar, 2000. p. 61. 73 CASSESE. Op. cit. p. 21. 71 163 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI metajurídico como ideal de ação política. 74 Canotilho, o grande constitucionalista português, considera que os direitos do homem não se baseiam apenas em “grandezas invariáveis jusnaturalisticamente formuladas”, pois é “patente a sua conexão com as constelações histórico-sociais”. Ensina que “todos os teóricos do direito natural racionalista se preocuparam com a justificação do Estado e com a legislação do domínio”, esquecidos de que “a falta de liberdade política da burguesia constituirá um dos incentivos principais a favor da luta pelos direitos do homem”. Lembra ainda que um estudo histórico e jurídico criterioso, vinculando essas duas vertentes de análise, é capaz de demonstrar que “a doutrina de Locke, juntamente com a de Rousseau, concebia a liberdade como liberdade no Estadosociedade, como corpos políticos indiferenciados, ao contrário das doutrinas fisiocráticas da ordem natural, conducentes à concepção exclusiva de uma liberdade perante o Estado” e foi a evolução “desta doutrina que acabaria numa Statuslehre de G. Jellinek, em que os direitos de liberdade, praticamente, já não eram os de Rousseau ou de Locke, mas autovinculações jurídicas do Estado, agora entendido como personalidade jurídica”.75 Os Direitos Humanos, tal como concebidos atualmente, conhecem uma verdadeira mudança de rumo histórico no cenário produzido antes em 1917 e, posteriormente, em 1945, com o findar da Primeira Guerra Mundial e a conclusão da Segunda. No segundo pós-guerra, assiste-se também a outro grande fenômeno revolucionário da comunidade internacional: lança-se uma doutrina jusnaturalista dos Direitos Humanos a fim de que seu conteúdo tenha em conta as relações entre cada Estado e seus cidadãos e cidadãs.76 A origem das Nações Unidas77 está fortemente vinculada e Mancini via a alguns Estados europeus reinar sobre várias nacionalidades, enquanto que outras nacionalidades estavam fragmentadas entre diversos Estados. Exemplo: Império Austríaco, por um lado, e Alemanha e Itália, por outro. 75 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, Renovar, 1999. p. 359-361. 76 Para Guido Fassò “o jusnaturalismo despontou de novo depois da Segunda Guerra Mundial, como reação ao estatismo dos regimes totalitários. Em grande parte o fenômeno se verificou ainda no âmbito da cultura católica; mas também nos ambientes protestantes alemães e em medida notável no mundo laico, a idéia do direito natural se apresentou de novo, sobretudo como dique e limite ao poder do Estado.” In: BOBBIO, N. et alii. Dicionário de Política. Brasília, Edunb, 1992. p. 659. 77 A Organização das Nações Unidas foi estabelecida em 26 de abril de 1945, na Conferência de São Francisco. 74 164 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI influenciada pelo final da Segunda Guerra Mundial e pela ideologia de seus vencedores. Em conseqüência, o Conselho de Segurança, máximo órgão de decisão da ONU, esteve sob influência dos ideais dos países vencedores daquele confronto bélico global, desde sua criação. Tal Conselho, representado pelos cinco países vencedores da II GM, Estados Unidos da América, Inglaterra, França, China e a, então, URSS 78, refletia o ideal político, social, econômico e militar de cada uma daquelas potências. Basicamente, arena para um duelo entre as grandes democracias ocidentais e os países da Europa socialista. Os cinco grandes países, que representavam claramente duas correntes ideológicas opostas fincadas diametralmente no seio da ONU, marcariam a divisão precipitada e imprudente dos direitos humanos em civis e políticos, por um lado, e econômicos, sociais e culturais, por outro. Uma ovacionando a liberdade de expressão, pensamento e religião, as liberdades individuais em geral, cultuando o neoliberalismo como o caminho inquestionável do cenário econômico mundial; a outra, ainda que contrária aos direitos humanos em um primeiro momento, defendendo os pilares socialistas, propondo direitos de extrema importância, como é o caso do princípio de igualdade (ou seja, a proibição de discriminações fundadas em raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, nacionalidade, propriedade, etc), direito de associação, direito a autodeterminação dos povos coloniais, dentre outros. A União Soviética era contrária à discussão dos Direitos Humanos, não só pelo autoritarismo do governo estalinista, mas, também, pelo peso do pensamento marxista. O conceito tradicional dos Direitos Humanos formado na tradição jusnaturalista assenta-se em três pilares:79 1. Esses Direitos são inerentes à pessoa humana e prescindem de qualquer reconhecimento positivo (existem inclusive quando negados pelo Estado). 2. A ordem natural que os sustenta é válida em todas as partes e é imutável, prescindindo do contexto social do indivíduo. 3. Esses Direitos são próprios dos indivíduos enquanto tais, não dos grupos sociais. Naquele tempo a URSS significava União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com a Perestroika, em 1982, desmantelou-se a União e o assento a ela reservado no Conselho de Segurança das Nações Unidas, desde então, pertence à Rússia. 79 CASSESE. Op. cit. p. 39. 78 165 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Segundo Cassese, Marx simplesmente rejeita esses três princípios e sustenta que os Direitos Humanos aclamados pela sociedade capitalista eram uma simples manifestação da burguesia; uma simples expressão das exigências dessa classe.80 Nesse sentido, os direitos e as liberdades têm apenas um valor instrumental, servindo para subverter mais rapidamente a ordem existente. Contrariamente, esses valores já não servem na sociedade comunista porque esta realiza a integração entre o indivíduo e a comunidade. Marx proclamava que a justiça social e a dignidade humana traziam elementos que transcendiam as fronteiras do Estados como a consciência social de se fazer parte de uma classe trabalhadora onde quer que se esteja.81 Ou seja, a doutrina dos Direitos Humanos estava em conflito com a ideologia e a prática na URSS.82 Portanto, a ordem internacional em 1945, época do nascimento da Organização das Nações Unidas, apresentava o domínio dos EUA no ocidente, tanto no plano militar e econômico como na confirmação de um modelo cultural vigoroso que ganhava uma esplendida difusão mundial. Na Europa do Leste, Stalin colhendo os frutos da vitória, faz da URSS a segunda potência do planeta, expandindo o regime soviético aos países daquela região.83 Por outro lado, a decadência dos impérios coloniais e a emergência de novas superpotências estabelecem as raízes da descolonização e a aparição do então chamado Terceiro Mundo.84 CASSESE. Op. cit. p. 39. Entretanto, especialmente o jovem Marx enfatiza a noção de “emancipação humana”, em si mesma compatível com a noção filosófica de liberdade humana abrangida pela filosofia do direito natural. Um exemplo é a seguinte passagem da “Questão Judaíca”: “A emancipação humana somente está completa quando o homem real, individual, tiver absorvido em si mesmo o cidadão abstrato; quando um homem individual, na sua vida cotidiana, no seu trabalho e em suas relações tiver se tornado um ser da espécie...” In: TUCKER, Robert C. (org.). The Jewish Question. The Marx-Engels Reader. New York, W. W. Norton, 1978. p. 46. 80 RODRIGUES. Op. cit. p. 63. Cassese sustenta que, apesar do debate ideológico das potências da época, não se pode esquecer o enorme aporte libertador do pensamento de Marx no campo dos direitos econômicos e sociais, ademais da contribuição geral à teoria dos direitos humanos proporcionada pelo “revisionismo” marxista. 83 Kennedy, Paul. Ascensão e queda das grandes potências: transformação econômica e conflito militar de 1500 a 2000. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Campus, 1989. (“Assim as exigências externas e internas da Guerra Fria podiam alimentar-se mutuamente, disfarçadas ambas pelo recurso aos princípios ideológicos. Liberalismo e comunismo, sendo idéias universais, eram mutuamente exclusivos; isso permitia a cada um dos lados compreender, e retratar, todo o mundo como uma arena na qual a luta ideológica não se podia separar da vantagem política e de poder. Ou se estava com o bloco liderado pelos americanos, ou com o bloco soviético. Não havia meio-termo; na era de Stalin e Joe McCarthy, era imprudente pensar que pudesse haver. Era essa a realidade estratégica, a que não apenas os povos de uma Europa dividida, mas também os da Ásia, Oriente Médio, África, América Latina e outros teriam de ajustar-se.” p. 356). 84 Kennedy assim explicava o terceiro mundo: “O desmoronamento (...)dos impérios no Extremo 81 82 166 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Nesse contexto, formatava-se o cenário de discussões político- diplomáticas no seio da ONU, assim como se construía o caminho do desenvolvimento, realização e aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Cuturais, que, juntos, compõe a Carta Internacional de Direitos Humanos. Essa realidade histórica faz com que o Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) pugne pela afirmação do indivíduo como sujeito do Direito Internacional Público (DIP). Trata-se, portanto, de uma construção factual e jusfilosófica consubstanciadora de uma idéia fincada a partir de uma lógica seqüencial sustentada nos sujeitos contemporâneos do DIP: os Estados, as Organizações Internacionais e os Indivíduos. Isto é, os Estados, mediante a celebração de um tratado internacional, criam as Organizações Internacionais, em cujo seno e à luz do patrocínio dos Estados, facilitam o surgimento dos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais emergem o indivíduo como um sujeito de DIP, capaz de demandar seus Estados por violação a uma das normas de um tratado internacional de direitos humanos. Trata-se, inclusive, de um processo que se retroalimenta. Conseqüentemente, se poderia afirmar que o Preâmbulo da DUDH é a consagração política da passagem de uma sociedade internacional, sobretudo desde a óptica do DIP, de viés estatocêntrica, para uma sociedade internacional que reposiciona o indivíduo no epicentro de suas discussões.85 OS DIREITOS HUMANOS NAS GRANDES CONFERÊNCIAS QUE ANTECEDERAM A CRIAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS Algumas personalidades políticas da época marcaram presença nas Conferências de preparação para a criação da ONU e contribuíram para a Oriente depois de 1941, a mobilização das economias e o recrutamento de mão-de-obra de outros territórios dependentes, durante a guerra, as influências ideológicas da Carta do Atlântico, e o declínio da Europa – tudo isso se combinou para liberar as forças de transformação no que, na década de 1950, foi chamado de terceiro mundo. (...)Mas ele era descrito como “terceiro” mundo precisamente porque insistia na sua distinção dos blocos dominados pelos americanos e pelos russos.” (Op. cit. p. 375). 85 Sobre isso consultar: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Recta Ratio nos Fundamentos do Jus Gentium como Direito Internacional da Humanidade. Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras Jurídica – Cadeira N. 47. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. 167 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI construção histórica dos direitos humanos naquela instituição supranacional. Assim sendo, o discurso do presidente dos EUA , F. Roosevelt, de 26 de janeiro de 1941 ante o Congresso norte-americano, representou um dos antecedentes construtivos e normativos mais imediatos do direito internacional dos direitos humanos, o qual serviria para dar o ritmo e inspirar outros tratados e documentos internacionais da ONU, inclusive os que consubstanciam a Carta Internacional de Direitos Humanos. Esse discurso exorta a construção de um mundo sedimentado em quatro liberdades fundamentais: a liberdade da palavra e expressão; liberdade de culto e crença religiosa; liberdade de desejar, de estar livre da miséria e da necessidade e o direito de ser liberado do medo, significando a redução de armamentos no cenário mundial.86 No campo dos Direitos Humanos, os reflexos da Declaração foram tão impactantes que, durante a Sexta Sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, precisamente em 9 de maio de 1950, o representante da Iugoslávia salientou que, para Roosevelt, sem direitos econômicos não poderia existir sociedade livre. Assim mesmo, o Relator da terceira comissão da Assembléia Geral sublinhou ante a sessão plenária da Organização, no dia 9 de dezembro de 1948, no momento da aprovação da DUDH, que as palavras de Roosevelt “traduziam sincera e nitidamente as aspirações do homem do século XX”.87 Outro documento, de que a história antecessora dos direitos humanos na ONU guarda guarida especial, é a Carta Atlântica88, firmada por Roosevelt e Churchill, em 14 de Agosto de 1941, cujos princípios seriam interpretados como sendo a primeira formulação oficial dos objetivos da guerra e os fundamentos da paz para os Aliados89. Cumpre destacar o lugar reservado QUINTANA, Fernando. La ONU y la exégesis de los derechos humanos(una discusión teórica de la noción. Porto Alegre, UNIGRANRIO 1999. pp 35-36. 87 Documents Officiels de la Troisième Session de l´Assemblée Générale. In: Séances Plenières de l´Assemblée Générale, Comptes Rendus Analytiques des séances. Première Partie: 180 séances plenières. Paris, Palais de Chaillot, 21Septembre – 12 Décembre, 1948. p. 853. 88 A Carta Atlântica, segundo Quintana, estabelece ademais a necessidade de uma colaboração mais completa entre todas as nações, grandes e pequenas, com a finalidade de garantir a todas uma melhor condição para a classe obreira, e a seguridade social. Assim mesmo, a Declaração das Nações Unidas, que foi firmada em Washington, em 1º de janeiro de 1942, por vinte e seis países em guerra contra os países do Eixo, e adere aos princípios contidos na Carta Atlântica, eleva o estipulado no último documento ao nível do direito internacional. 89 Esse foi um momento histórico marcante, porque na oportunidade Roosevelt propõe uma nova ordem internacional e, pela primeira vez, discutia-se o mundo pós-guerra, em situação de conflito. 86 168 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI às liberdades individuais e aos direitos humanos e, definitivamente, as quatro liberdades fundamentais de Roosevelt que aparecem contempladas ali. Diz o Art. 6º da Carta: Después de la destrucción final de la tiranía nazi, esperamos verse establecer una paz que permitirá a todas las naciones permanecer en seguridad al interior de sus propias fronteras, y que garantizará a todos los hombres de todos los países una existencia liberada del miedo y de la necesidad.90 Importa frisar que esse artigo foi defendido também pelo representante da Austrália. No momento de seu país aderir ao documento, sustentava que deveria ser reconhecido o direito de viver “liberado da necessidade”. Por esse mesmo caminho veio a intervenção do representante de Cuba, que propunha incluir no texto um outro dispositivo relativo ao direito à alimentação.91 Um documento também de importância relevante na formação do foro internacional dos direitos humanos na ONU que, embora proclamado na pré-história desse órgão supra-estatal refletiu intensamente no êxito da Carta Internacional de Direitos Humanos, foi a Declaração de Filadélfia.92 Proclamava, entre outras coisas, o imperativo da justiça social, estabelecia uma nova enumeração dos direitos do trabalhador, com as condições que permitem o seu exercício, e previa o dever de realizar uma utilização mais completa e ampla dos recursos produtivos do mundo.93 O objetivo principal das Conferências patrocinadas pelas potências mundiais no período imediatamente anterior à criação da ONU foi, certamente, a manutenção da paz e a segurança internacional, entretanto a vertente dos direitos humanos jamais deixou de configurar como parte da essência de tais documentos. A afirmação anterior pode ser comprovada, uma vez analisada a Carta Atlântica, artículo 6º. Id., ibid. p.37. 92 Adotada em 10 de maio de 1944 pela unanimidade dos membros da Organização Internacional do Trabalho. 93 A afirmação pode ser extraída dos considerandos da Declaração de Filadélfia. 90 91 169 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Conferência de Dumbarton Oaks,94 de outubro de 1944. Nela se propunha criar uma organização que viesse a assegurar justamente a manutenção da paz e da segurança internacional, e independentemente do conflito ideológico presente na Conferência patrocinado pelas potências da época, a delegação norteamericana obteve o apoio necessário de seus participantes para incluir na Carta das Nações Unidas uma menção expressa à promoção dos direitos humanos como “meio de criar as condições de estabilidade e bem-estar necessários à manutenção das relações pacíficas entre os Estados.”95 Em decorrência, estipula o capítulo IX do Plano de Dumbarton Oaks: En vistas de crear las condiciones de estabilidad y de bien-estar necesarias para el mantenimiento de relaciones amigables y pacíficas entre las naciones, la Organización deberá facilitar la solución de los problemas humanitarios internacionales de orden económico, social y otros, y promover el respeto de los derechos humanos y de las libertades fundamentales. La Asamblea general, y bajo su autoridad, un Consejo económico y social, deberán estar encargados del cumplimiento de esta función.96 A importância de Dumbarton Oaks é fundamental para o atual estágio dos direitos humanos na ONU, porque foi daí que emergiram as idéias que originariam a Comissão de Direitos Humanos tal como concebida atualmente, sob a supervisão do Conselho Econômico e Social (ECOSOC). A Comissão teve um papel decisivo na redação e codificação dos artigos que compõem os documentos da Carta Internacional. Dizia a proposta:97 (...) el Consejo económico y social deberá instituir una Resultou do acordo a que chegaram as quatro Potências na Conferência de Moscou (1943). As discussões em Dumbarton Oaks deram-se em dois tempos: uma primeira fase, de 28 de agosto a 28 de setembro, reunindo os representantes de EUA, Reino Unido e URSS; uma segunda fase, de 29 de setembro a 7 de outubro, com os representantes da China, EUA e Reino Unido. 95 Carta das Nações Unidas. Capítulo I, Artigo 1º, Incisos 1, 2 e 3. 96 Déclaration de Dumbarton Oaks. Documents Nations Unies. In: Journal du Droit International 1940-1945. Tome 67-72, n. 1, París, 1945. Apud: Quintana. Op. cit. pp. 41-42. 97 Sessão D do Capítulo IX das propostas de Dumbarton Oaks. 94 170 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Comisión económica, una Comisión social y otras Comisiones que considere pertinentes. A Comissão de Direitos Humanos da ONU não aparece explicitamente mencionada no texto, entretanto uma disposição deixa aberta a possibilidade de que seja no futuro constituída. Assim, o documento aprovado em Dumbarton Oaks estabelecia, explicitamente e pela primeira vez, um compromisso internacional acerca da promoção dos direitos humanos. A Conferência de Yalta, realizada entre os dias 4 e 11 de fevereiro de 1945 na Criméia (URSS), também teve uma importância capital na construção e sedimentação histórica dos direitos humanos na ONU. Nela Estados Unidos, Reino Unido e URSS98 publicaram uma Declaração na qual elogiavam os resultados obtidos em Dumbarton Oaks e convocaram uma Conferência das Nações Unidas a ser realizada em São Francisco, a partir de 25 de abril de 1945, com o objetivo principal de manter a paz e segurança internacionais. Especificamente no tocante aos direitos humanos, a Conferência de Yalta determinou através da “Declaração sobre a Europa Liberada” documento adotado - o estabelecimento de instituições democráticas e o compromisso de que os países liberados, sempre que possível, estabeleceriam, por meio de eleições livres, governos que fossem a expressão da vontade dos povos, construindo uma ordem internacional inspirada nas leis da paz, da segurança, da liberdade e do bem-estar da humanidade em sua totalidade. O futuro dos Direitos Humanos teve na Conferência Interamericana de Chapultepec99 um de seus precedentes mais destacados. Os objetivos do conclave eram tratar problemas relativos à guerra e à paz. A Conferência abrigou um fato histórico muito importante para a temática em discussão, que foi a adoção de uma ata final contendo uma série de resoluções pilotos em matéria de direitos humanos. Após mencionar que a Declaração das Nações Unidas de 1942 havia sancionado a necessidade de estabelecer a proteção internacional dos direitos fundamentais, afirmava que era necessário não só enumerar, e/ou definir Um dado histórico e político importante da Conferência de Yalta foi a decisão sobre a forma de participação da URSS na ONU. Esta teria além do direito de veto, como membro permanente, mais três assentos naquele Organismo Supranacional: Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia. 99 Realizada no México entre os dias 21 de fevereiro e 8 de março. Estiveram presentes 21 nações americanas, com exceção da Argentina. 98 171 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI esses direitos, como também os deveres correspondentes, numa declaração a ser adotada pelos Estados sob a forma de Convenção ou Pacto. Destaca-se sua Resolução XLI, onde se estipulava que a paz mundial não poderia consolidar-se enquanto os homens não pudessem exercer seus direitos fundamentais, sem distinção de raça ou de religião; e, ainda, proclamava o princípio da igualdade de direitos para todos os homens, qualquer que fosse sua raça ou religião.100 A contribuição interamericana à afirmação dos direitos humanos na ONU também se assentou na reverberação do direito a um recurso eficaz ante os tribunais nacionais. Este, desde uma perspectiva normativa material, foi absorvido do artigo XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (de abril de 1948) para o artigo 8 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (de dezembro de 1948). Aliás, aquela é precursora desta.101 Em solo europeu, como já não havia mais guerra, realizou-se em Berlim, de 17 de julho a 2 de agosto de 1945, a Conferência de Potsdam. Nela estavam presentes os novos líderes das potências: Harry Truman, substituindo a Roosevelt (falecido em 12 de abril de 1945); Clement Attlee, em representação do Reino Unido (Churchill perderá as eleições britânicas); e Stalin, em representação da URSS. Ali, estabeleceu-se que os aliados dariam ao povo alemão a oportunidade de preparar-se para a reconstrução de suas vidas sobre uma base democrática e de cooperação pacífica à vida internacional. OS DIREITOS HUMANOS NA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS A organização das Nações Unidas foi criada durante a Conferência de San Francisco, realizada entre os dias 25 de abril e 26 de junho de 1945, nos EUA. O tratado que forma o estatuto chamado Carta das Nações Unidas (ou Carta de San Francisco) foi firmado em 26 de junho de 1945 e entrou em vigor em 24 de outubro daquele mesmo ano, no momento que foi ratificado pela URSS, EUA, China, Reino Unido e França – as cinco potências – e pela maioria dos estados Resolução XLI da Conferência Interamericana de Chapultepec. Sobre este tema ler: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O legado da Declaração Universal e o futuro da Proteção Internacional dos Direitos Humanos em AMARAL JÚNIOR, Alberto e PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.). O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. São Paulo: Edusp, 1999, p. 17. 100 101 172 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI fundadores da Organização Internacional, participantes da Conferência.102 Notou-se, desde que se efetivou a criação da ONU103, a formação de quatro aglomerações bem definidas que mantinham uma forte influência nas discussões, desenvolvimento e formação da doutrina dos direitos humanos no seio daquela entidade. Um grupo de países ocidentais, que rapidamente tomaram a liderança política da instituição e tinham nos Estados Unidos, França e Inglaterra, seus mentores políticos e ideológicos, seguidos por muitos outros países do Ocidente político, entre os quais figurava a Austrália. Um segundo bloco formado pelos países da América Latina que agarraram, desde o início, a causa dos direitos humanos, tomando muitas vezes, nesse campo, decisões mais avançadas que a dos próprios países mais desenvolvidos do hemisfério. O bloco dos países socialistas, em conformidade com seus princípios e idéias, dotados de extremo cuidado político e desconfiança generalizada, aceitaram colaborar no avanço dos direitos humanos. E os países asiáticos, com exceção dos muçulmanos dirigidos pela Arábia Saudita e pelo Paquistão, pouca presença tiveram nas discussões iniciais da matéria.104 Apesar das quatro aglomerações supracitadas, o grosso do confronto político e ideológico deu-se entre o Ocidente e a Europa socialista. Tal fato é verificável através dos debates travados durante os anos em estudo (1945-1966) e confirmado pela composição encarregada de conciliar e elaborar as diferentes propostas e teses que brotaram das discussões. O Comitê de Redação, composto principalmente por membros da corrente ocidental e pela URSS, estava assim constituído: Austrália, Chile, EUA, França, Gran- Bretanha, Líbano e URSS. As discussões então travadas nas Nações Unidas encarnavam o contexto político e diplomático da Guerra-Fria.105A Carta das Nações Unidas, no que diz respeito aos direitos humanos, contemplava dispositivos bem distantes das expectativas e esperanças que haviam sido suscitadas pela declaração do 102 São membros originários da ONU aqueles Estados que firmaram e ratificaram a Carta das Nações Unidas, logo depois da participação na Conferência de São Francisco ou, pelo menos, firmaram a Declaração das Nações Unidas de 1942. 103 Naquele, então, os membros da ONU eram 58: 14 ocidentais, 20 latino americanos, 6 socialistas, 4 africanos e 14 asiáticos. 104 Sobre o assunto, ler Cassese. Op. cit. pp. 40-46. 105 Clima político-ideológico instaurado no cenário mundial imediatamente depois de terminada a II Grande Guerra, por parte das duas maiores potências do momento: EUA e URSS. 173 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Presidente Roosevelt de 1941. De fato, cada uma das potências vitoriosas da II GM trazia, no momento de redação da Carta, problemas no campo dos direitos humanos. Nos EUA, a discriminação racial; e, na URSS, a falta de liberdade e expressão política. Os dispositivos da Carta de San Francisco não permitem uma definição clara e precisa dos direitos humanos. O documento limita-se a mencionar a promoção e/ou desenvolvimento dos mesmos, considerados como uma das metas da ONU, juntamente ao seu outro grande objetivo: a manutenção da paz e segurança internacionais.106 A CARTA INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS A Carta Internacional de Direitos Humanos é um conjunto de documentos conformado pela Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC) e por seus protocolos e documentos adicionais. Em 1945 o mundo marcava-se claramente dividido em duas correntes político-ideológicas que direcionavam o sistema internacional a girar em torno de uma natureza bipolar, comandada pelos EUA, por um lado, e pela URSS, por outro. Os EUA guiavam os países capitalistas ocidentais que defendiam a democracia liberal como o único regime político capaz de promover o respeito às liberdades e direitos fundamentais, e o pleno desenvolvimento dos indivíduos, tanto do ponto de vista econômico quanto político. A URSS comandava o bloco socialista que tinha, na democracia social ou real,107 a chave para a eliminação das desigualdades sociais e o meio para o estabelecimento da paz universal, já que países socialistas não disputariam guerras entre si.108 O informe da Comissão Preparatória das Nações Unidas de 1945 foi que recomendou originariamente a criação de uma comissão de direitos humanos, para redigir uma declaração internacional de direitos. A conclusão Vide Art. 1° da Carta das Nações Unidas. Com relação à discussão a respeito de “democracia e socialismo”, ler o verbete Democracia. In: BOBBIO et alii. Dicionário de Política. Brasília, Edunb, 1992. pp. 324-325. 108 Sobre a temática tratada neste parágrafo, ler WIGHT, Martin. A política do poder. Brasília, Edunb, 1985. pp. 175-192. 106 107 174 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI deste documento, a quarta e última etapa na obra de criação da ONU, teve, como nas três etapas anteriores:109 1. Aprovação das propostas do Plano de Dumbarton Oaks (adotadas em 1944) completadas por decisões tomadas na Conferência de Yalta (fevereiro de 1945). 2. Firma da Carta das Nações Unidas em San Francisco, que cria a ONU e institui a Comissão Preparatória (26 de junho de 1945). 3. Reuniões de Londres (a partir de 16 de agosto de 1945) patrocinadas pelo Comitê Executivo dessa Comissão, encarregada de elaborar o informe. O documento da Comissão Preparatória relativo ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC) estabelecia, em seu capítulo III, Seção 4, parágrafos 14 e 16, a criação da Comissão de Direitos Humanos, cujas atividades deveriam estar orientadas para uma declaração internacional de direitos humanos. Foi na Primeira Sessão do Conselho Econômico e Social que se criou, por meio da resolução 5(I) de 16 de fevereiro de 1946, a Comissão Nuclear de Direitos Humanos, a qual foi formada de nove membros designados com base em sua capacidade pessoal.110 Depois de distintas argumentações e opiniões políticas acerca do tema, a Comissão de Direitos Humanos reuniu-se pela primeira vez, entre os dias 27 de janeiro e 10 de fevereiro de 1947, em Lake Success, e estava constituída pelos seguintes membros: Presidente, Sra. Roosevelt (EUA); Vice-Presidente, P. C. Chang (China); Relator, Ch. Malik (Líbano), W. R. Hodgson (Austrália), O. Ebeid (Egito), R. Cassin (França), H. Metha (Índia), G. Ghani (Iran), T. Kaminsky (Bielorússia), C. P. Romulo (Filipinas), Ch. Dukes (Reino Unido), V. F. Tepliakov (URSS), J. A Mora (Uruguai), Ribnikar (Iuguslávia), Lebeau (Bélgica) e Guardia (Panamá). Nessa sessão encarregou-se ao Presidente, Vice-Presidente e ao QUINTANA. Op. cit. p.69. Seus membros originários eram Paal Berg (Noruega), René Casin (França), Fernand Dehousse (Bélgica), Victor Raúl Haya de la Torre (Peru), K.C.Neogi (Índia), Sra. Roosevelt (EUA), Jhon C.H. Wu (China), e também por pessoas que os membros do ECOSOC, representando URSS e Iugoslávia, designariam ao Secretário Geral da ONU. Posteriormente, C. L. Hsia substitui a C. H. Wu, como representante de China; e D. Brkish e A. Borisov representam a Iugoslávia e URSS, respectivamente. 109 110 175 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Relator, com a ajuda do Secretariado das Nações Unidas, elaborarem um projeto preliminar da Declaração Internacional de Direitos Humanos, a ser submetido à discussão e aprovação de todos os integrantes da Comissão na Sessão seguinte, de dezembro de 1947. Por não haver sido adotada uma devida repartição geográfica na eleição dos membros do Grupo de Redação, essa decisão foi alvo de críticas por parte do ECOSOC, e o procedimento para a elaboração do projeto foi modificado, de acordo com a resolução 46(IV) do ECOSOC, de 28 de março de 1947. Um novo Comitê, com base em uma repartição geográfica mais eqüitativa, foi nomeado e reuniu-se em Lake Succes, de 11 de junho a 5 de julho de 1947, dando início aos trabalhos de redação. Estava composto pelos seguintes membros: Presidente, Eleanor Roosevelt (EUA); Vice-presidente, P.C. Chang (China); Relator, Ch. Malik (Líbano), Ralph L. Harry (Austrália), M. Santa Cruz (Chile), René Casin (França), Geoffrey Wilson (Reino Unido) e V. Koretsky (URSS). O Comitê adotou, por solicitação de seu Presidente, como material inicial de trabalho, um anteprojeto de declaração de direitos preparado pelo Secretariado da ONU (Divisão de Direitos Humanos da Secretaria Geral, presidida pelo jurista canadense John P. Humprey), composto de um preâmbulo e 48 artigos.111 Segundo integrantes da Divisão de Direitos Humanos, a principal virtude do documento consistia na tentativa de “dar uma resposta positiva ao interrogante de saber se era ou não possível chegar-se a um acordo sobre uma norma universal em matéria de direitos humanos.”112 Uma longa e controversa discussão cercava a atmosfera da CDH e do Comitê de Redação. Jurisconsultos internacionais e cientistas sociais ampliavam o leque de discussões, baseados em distintos pensamentos ideológicos que se assentavam no cenário mundial, a suscitarem indagações e questionamentos acerca da liberdade do indivíduo perante as forças da coletividade, dos juízos de valor na sociedade industrial, do fundamento jusnaturalista dos direitos O documento continha quase todos os direitos mencionados em diversas constituições nacionais e outros dispositivos presentes no texto de declaração internacional em poder do Secretariado. 112 QUINTANA. Op. cit. p. 76. 111 176 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI consagrados, da inclusão dos direitos econômicos e sociais na futura declaração de direitos, e até das relações entre direitos individuais e sociais, e de suas diferenças na implementação de cada categoria de direito.113 O trabalho de redação da futura Declaração não se interrompia. A partir de um primeiro documento elaborado por R. Casin e outros membros do Comitê, composto por um preâmbulo e 43 artigos, o Comitê de Redação submeteu à Segunda Sessão da Comissão de Direitos Humanos dois anteprojetos, para que fossem discutidos e passados para uma versão final. Durante a Segunda Sessão da Comissão de Direitos Humanos114, ficou decidido115 denominar ao primeiro documento Declaração, ao segundo documento Pacto e ao conjunto Carta, isto é, a expressão Carta Internacional de Direitos Humanos seria dirigida à totalidade dos três documentos em preparação. Criaram-se três grupos de trabalho para o exame em separado dos documentos e, a partir dos informes desses grupos, a Comissão de Direitos Humanos elaborou dois textos, um para a declaração e outro para o pacto, que foram enviados aos governos para as devidas observações e sugestões. Os dois documentos, a Declaração e o Pacto, com as devidas propostas dos governos, foram, então, revisados na Segunda Sessão do Comitê de Redação.116 A metodologia utilizada foi a da apreciação inicial do Pacto, seguida da análise dos dois outros documentos que comporiam a Carta Internacional. Tal processo não contou com o apoio dos representantes da URSS e do Líbano, que gostariam de examinar primeiramente a Declaração, ou seja, começar pelos princípios fundamentais, para depois, então, efetuar o estudo do Pacto e das medidas de aplicação.117 Durante a Terceira Sessão da Comissão de Direitos Humanos, realizada em Lake Succes, de 24 de maio a 18 de junho de 1948, revisou-se apenas o projeto de Declaração, tomando em conta as emendas propostas pelos distintos representantes, não havendo tempo hábil para a apreciação do Pacto Esta discussão e análise histórica vem aprofundada em Trindade, Antônio A. Cançado. Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos. Vol. I. Porto Alegre, Fabris, 1997. pp. 35-37. 114 Acontecida em Genebra, de 12 a 17 de dezembro de 1947. 115 Decidido a partir de uma proposta sírio-libanesa. 116 Realizada en Lake Succes, de 3 a 21 de maio de 1948. 117 A eleição interna no Comitê de Redação para a utilização da metodologia assinalada no texto deu-se por 5 votos a favor, 1 em contra e 2 abstenções. 113 177 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI e das medidas de aplicação. A CIDH informou em seu relatório118 ao ECOSOC que a Comissão não havia concluído integralmente a sua obrigação, ou seja, faltavalhe incluir o Pacto e as medidas de execução e/ou aplicação, propondo que essa tarefa deveria ser finalizada na Quarta Sessão da Comissão, em 1949. O ECOSOC enviou o projeto de declaração à Assembléia Geral, que incumbiu a sua Terceira Comissão, encarregada de assuntos sociais, humanitários e culturais (III CAG), de o analisar e formular propostas. A III CAG concluiu pelo estudo apenas da Declaração, entendendo que não estava em condições de fazer um exame mais profundo dos outros dois documentos. Ademais, aprovou a iniciativa do representante do Haiti (E. Saint-Lot), que estabeleceu o caráter universal do documento, bem como a emenda da França, que trocava a palavra internacional pelo termo universal. Assim, em 10 de dezembro de 1948, em sua Terceira Sessão Ordinária, a Assembléia Geral da ONU, reunida em Paris (Palais de Chaillot), por meio de sua Resolução 217 A (III), adotou a Declaração Universal de Direitos Humanos, que obteve 48 votos favoráveis, 8 abstenções e nenhum voto em contra.119A Declaração Universal legitimava a preocupação da sociedade internacional com a promoção e a proteção dos direitos humanos, condenando as violações maciças e persistentes, inclusive em conflitos armados, e elegendo a eliminação da pobreza extrema e da exclusão social prioridades internacionais. Portanto, tendo contraído essas obrigações perante a comunidade internacional, os Estados não poderiam, como tampouco podem atualmente, alegar que a matéria é de exclusiva jurisdição doméstica.120 O PREÂMBULO DA DUDH DE CARA À ATUALIDADE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Nesse contexto, o preâmbulo da DUDH registra as realidades O Relator era o representante do Líbano, Sr. Malik. Votaram a favor: Birmânia, Canadá, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, República Dominicana, Equador, Egito, El Salvador, Etiópia, França, Grécia, Guatemala, Haiti, Islândia, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Luxemburgo, México, Países Baixos, Nova Zelândia, Nicarágua, Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Filipinas, Suiam, Suécia, Síria, Turquia, Reino Unido, Estados Unidos da América, Venezuela, Afeganistão, Argentina, Austrália, Bolívia, Bélgica e Brasil. Abstenções: Bielo-Rússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, África do Sul, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e Iugoslávia. 120 RODRIGUES. Op. cit. p. 70. 118 119 178 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI éticas, históricas, morais, políticas, sociais e jurídicas que culminaram com a sua proclamação. Consuma, assim mesmo, o espírito dos princípios gerais do direito internacional público121 estipulados explicitamente nos primeiro e segundo artigos da Carta de San Francisco. A comunhão destes com o registro daquelas consolida esse preâmbulo como a fonte iluminadora do direito contemporâneo da sociedade internacional. O preâmbulo constitui-se, então, como uma consideração cogente de contornos histórico, político, social e jurídico que marcam a civilização humana da contemporaneidade. Ante uma rápida, mas não despercebida revisão histórica, nesse início do século XXI, a pressão ideológica de outrora, expressada pelo pensamento político-econômico e pelo poderio militar das máximas potências vitoriosas da II Guerra Mundial, no período imediatamente posterior ao desfecho daquele triste episódio da história humana, já não existe mais. Por essa razão, o fenômeno catalisador da divisão inconseqüente das duas ramas dos direitos humanos desapareceu. Hoje em dia, o caráter global e harmônico dos direitos humanos ocupa o centro da discussão da agenda internacional. Entretanto, apesar de tanto se falar em um suposto mundo globalizado, encontramo-nos justamente no meio da luta do primado da razão de Humanidade sobre a razão de Estado. Nela, pulula o fato inquestionável de que o conhecimento talvez seja a forma mais eficaz de emancipação humana e a compreensão do mundo no qual vivemos, tão complexo e dissimulado, está estritamente vinculado ao conhecimento humano. São os limites deste que fomentarão o sentido de solidariedade humana, de atenção cuidadosa à condição dos demais, porque, em última análise, todos dependemos de todos e a sorte de cada um está inexoravelmente ligada à sorte dos demais. Sublimidademente, as democracias da contemporaneidade necessitam de uma urgente atualização de cara as características das sociedades atuais: mais informadas, educadas e próximas. Aos Estados urge a reconquista da legitimidade representativa de suas classes políticas. Trata-se de um clamor social: as pessoas estão “politicamente fartas” e já dão perigosos sinais, inclusive em países onde o risco a democracia parecera fora de questão, a esse respeito. 121 São eles: igualdade soberana; autonomia, não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados; proibição do uso da força; resolução pacífica das controvérsias internacionais; cooperação internacional e respeito aos direitos humanos. 179 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Na América Latina, por exemplo, se um dia vivenciamos os golpes de Estado patrocinados pelas ditaduras militares, hoje experimentamos os golpes de Estado perpetuados por instituições civis, em tese, democráticas (vide, por citar um exemplo, o caso hondurenho) e o vírus da possibilidade das reeleições indefinidas. Na seara dos direitos humanos é impossível falar em democracia onde se conculca os direitos fundamentais, se despreza o Estado de Direito, se deprecia a política e a cidadania. Os Estados contemporâneos, fincados nas premissas dos direitos humanos, dependem da ética, da moral e da justiça social, para ademais dos princípios da modernidade (liberdade, igualdade e fraternidade), estarem consagrados como legítimos perante sua cidadania. A afirmação anterior é uma condicionante irrefutável do Estado contemporâneo. Conseqüentemente, transpondo essas idéias ao conjunto de Estados ou ao cenário internacional, inclusive contrariando ao afirmado por muitos teóricos e juristas guardiães do status quo, me somo àqueles, que como Ash,122 defendem o fato de que estamos imersos em uma nova ordem, ou melhor dito, em uma desordem multipolar global, na qual se nota o término do momento unipolar onde a supremacia do hegemon, que se empenha por menoscabar as normas do direito internacional e do multilateralismo nas Relações Internacionais, parecera invencível. E essa nova multipolaridade é produto, ao menos, de quatro tendências: 1) Ascensão ou ressurgimento de uma série de Estados que prosperam ou renascem e cujos recursos energéticos competem com os das potências tradicionais do Ocidente. 2) O crescente poder dos atores não-estatais. Estes podem ser muito distintos. Compreendem desde as ONGs, das companhias energéticas e farmacêuticas, das regiões chamadas “autonômicas” e grupos religiosos, e aterrizam em movimentos como Hamás, Hezbolá e Al Quaeda. São atores que ainda sem nenhuma investidura ou capacidade oficiais, são perfeitamente capazes de mudar ou transformar a agenda de um ou de muitos Estados, assim como de outros sujeitos do Direito Internacional. 122 ASH, Timothy Garton. “El mundo, siete años después” em Jornal El País, diário, edição de Domingo, 14/09/2008, Seção Crónica: Opinión. 180 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI 3) As transformações na moeda de troca do poder. Os avanços nas tecnologias que se podem empregar para a violência oferecem a grupos reduzidos de pessoas a capacidade de desafiar Estados poderosos. É um fato que os avances na tecnologia da informação e nos meios globalizados fazem com que o exército mais poderoso da história da humanidade possa perder uma Guerra, não no campo de batalha cheio de sangue e mentira, senão no terreno da opinião pública mundial. Este fato se pode comprovar inclusive pelas pesquisas realizadas nos países tradicionalmente favoráveis às enganosas guerras recentes. 4) Os desafios mesmos do Direito Internacional. Esses, talvez, provêm da mente humana, fantasiados nos interesses dos Estados mais poderosos. Quem saberá? Mas, o certo é que observamos três grandes desafios do DI: a) sua fragmentação à luz de seu vertiginoso crescimento e setorialização; b) em conseqüência do anterior, a proliferação de jurisdições internacionais; e, c) a geração de regimes internacionais específicos como meio ambiente, direitos humanos, direito do mar, comércio internacional e atualmente, como tudo indica, o combate ao terrorismo. Em suma, o que produzem todas essas tendências tão distintamente combinadas é a diminuição do poder relativo dos Estados ocidentais. E, se acrescentamos a essas tendências a terrível destruição ambiental em escala planetária e o desperdício dos recursos naturais, o cenário é ainda mais desesperador. E, no centro de tudo, imerso na dimensão mais ampla de sua diversidade, está o ser humano: perdido, ilusionado, equivocado, mas, possuidor de uma razão que o tem permitido sobreviver por milhares de anos. E nisso reside a esperança: na razão humana. No fato de que o homem e a mulher, por fim, descubram que a eternidade humana somente poderá ser conquistada por eles mesmos: o ser-humano. Não obstante, há que se destacar o importante rol que o indivíduo 181 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI passa a desempenhar na sociedade internacional a partir da segunda metade do século XX. Este passa a ser não só um sujeito do Direito Internacional Público, como também um ator transformador inquestionável da sociedade internacional. A sociedade civil organizada assume um papel preponderante na agenda internacional. A título de exemplo, cita-se o Fórum Social Mundial. Quando este começou, o status quo esforçou-se por desqualificá-lo, apelidando-o com diversos adjetivos: turba de utópicos, movimento legado dos hippies, herdeiros de um socialismo ultrapassado, acadêmicos desairosos, etc.... Estes, somados a tantas outras denominações que se lhe ocorria. Tudo isso, fundamentalmente, porque o lema de Porto Alegre retroalimentava-se em um ideal romântico e necessário: “outro mundo é possível!” Tal perspectiva ecoou da beira do Guaíba – reverberando por Bamako, Caracas, Karachi, Nairóbi e Belém – e atingiu uma parte considerável do planeta. Paralelamente, na gélida suíça, o status quo discutia a economia mundial, ou pelo menos aquela que segundo eles era a real, no Fórum Econômico Mundial de Davos. E para estes, resultava muito apropriado que os de Porto Alegre, expoentes da sociedade civil organizada e potenciais contestadores da situação hegemônica, escolhessem levar adiante tal espaço contextual conspirador nos trópicos: um rincão que exala pecado, luxúria e também criatividade. Desde a perspectiva davosiana este seria um espaço mais apropriado para as idéias carnavalescas e, portanto, carente de qualquer seriedade científica, política e social. O interessante desse paralelismo é que, a raiz da atual crise financeira, os bem trajados de Davos pensam em adotar os remédios receitados pelos maltrapilhos de Porto Alegre. Ou pelo menos, as fantasias de Porto Alegre iluminaram as passarelas de Davos. Essa é a leitura que se depreende da manifestação firmada em Berlim pelos principais líderes da União Européia datada de 22 de fevereiro de 2009. Nesse dia foi acordado um plano através do qual se exalta o combate imediato aos paraísos fiscais, através da criação de sanções diretas aos Estados que os albergam. Este problema, tantas vezes tido como postergável, é agora vitalmente considerado para se enfrentar o componente financeiro da crise. Ademais, no auxílio às economias em dificuldade, o FMI deverá movimentar-se de maneira rápida e eficaz para concretizar as ajudas 182 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI possíveis. Assim mesmo, a regulação dos mercados financeiros e a supervisão de seu funcionamento, de forma verdadeiramente global, são urgentemente necessárias. Tudo isso umbilicalmente vinculado ao estrito controle das agências de qualificação creditícia. O protecionismo também foi fortemente condenado. A UE, em seu conjunto, clama por solidariedade e coordenação. Porto Alegre, por reiteradas vezes, já havia dito tudo isso. Ou seja, se desde o princípio Davos houvesse escutado os brados do Guaíba, teríamos poupado quase dez anos no desenvolvimento de estratégias para combater e contornar a atual crise financeira. Concomitantemente, nos EUA, até mesmo o pacote inicial de combate à crise do Presidente Obama, apesar de seus contornos protecionistas, propõe uma regulação dos bancos e das finanças, assim como um teto salarial para os altos executivos privados. Ilumina-se um cenário a partir do qual os EUA redirecionam-se para um modelo político socialmente moderno e sustentável (sobretudo com relação à saúde, educação e energias alternativas) parecido ao europeu. Buscarão, os EUA, relegitimar, de maneira inteligente, o seu poder brando nas relações internacionais trás um brusco e sombrio passado? Pelo menos, deveriam tentá-lo. Aliás, justiça seja feita, foi o Presidente Lula quem propôs, em 25 de setembro de 2008, durante sua viagem oficial a Nova Iorque, a consolidação de um palco de legalidade financeira internacional, através do qual emergiriam regras comuns capazes de garantir uma maior transparência e a coordenação dos órgãos nacionais e internacionais de supervisão financeira internacional. Pois tudo leva a crer que os prejuízos dessa crise, inclusive os bancários, serão “socializados” pela cidadania mundial. Por outro lado, é difícil visualizar aos banqueiros compartilhando seus lucros. Essa idéia do Presidente Lula teve importantes apoios de líderes internacionais como, por exemplo, de Gordon Brown, primeiro ministro britânico, de José Luis Rodríguez Zapatero, presidente espanhol, ademais dos líderes da Austrália, da Dinamarca, da Comissão Européia e da União Africana. Quem sabe não foi ela a fonte inspiradora da reunião de Berlim deste ano que tentou influenciar a Cúpula do G-20 ampliado realizada aos 2 de abril de 2009 em Londres. Parágrafo à parte e ressaltado: assusta o fato de apesar de tanto 183 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, o ser humano - ou a grande maioria de sua elite política e financeira - ainda desprezar a educação como ferramenta necessária de inclusão social, combate à pobreza e geração de riqueza. Uma educação universal de qualidade é o meio mais rápido e eficaz para se combater qualquer crise econômica e humana. Nesse sentido, nossa geração já é capaz de legar um futuro mais harmônico e sustentável aos nossos filhos e netos. Persistir em intencionalmente deixar passar despercebido essa possibilidade de um futuro socialmente justo, ambientalmente seguro e harmonicamente civilizável para toda a espécie humana em seu conjunto é um ato falho de razoabilidade humana que esta e as anteriores gerações insistem em perpetuar. O fato é que o mundo de hoje nos amedronta. As sociedades parecem perdidas com relação a seus valores e costumes. A solidariedade humana é pontual e ocasional. As famílias se desintegram com uma facilidade jamais vista. Os Estados cada vez mais enviam sinais de sua incapacidade para atender as principais demandas da maioria de seus cidadãos. A cada dia são propostas mais leis para fechar as fronteiras entre os Estados e para apartar pessoas de diferentes raças e classes sociais. Os Estados, sobretudo os mais ricos, endurecem suas normas nesse sentido com regularidade. Desde a perspectiva multilateral, a agenda positiva da segunda metade do século passado vem perdendo fôlego nesse início do século XXI, pois os espaços concedidos àqueles Estados mais humildes se apequenam cotidianamente. Tudo isso não acontece simplesmente porque as relações internacionais de hoje em dia estejam mais complexas do que as de outros tempos, pois cada tempo tem sua complexidade específica. O grande tema é que as relações internacionais deste início de século estão revestidas da realidade da contemporaneidade. Uma realidade cujos sintomas políticos, econômicos, sociais, jurídicos, estratégicos e militares revelam suas características principais de interesses individualistas e poucos solidários. Na contemporaneidade do multilateralismo desordenado global, a ética e a moral comum esfumam-se meio a um individualismo exacerbado. Os pilares dessa constatação contribuem para a fortaleza da atual crise. Um Estado forte e presente, fincado em princípios da ética, da justiça social, da moral, dos direitos humanos indivisíveis e universais, é a única perspectiva possível, pois. 184 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Com relação a atual crise que nos carcome, tudo indica que no diagnóstico e na proposição de soluções possíveis para vencê-la, Porto Alegre sobrepôs-se a Davos. Não importa: que ambos comunguem e conspirem em prol de um mundo melhor! A soma de esforços e idéias resulta fundamental para superar este frágil momento da espécie humana. Finalmente, quando se trata do ser humano, a sorte de cada um de nós está inexoravelmente vinculada a dos demais. Vencer esta crise é uma tarefa atinente a todos os atores da sociedade mundial (sobretudo, sociedade civil, Estados e organizações internacionais), que deverão trabalhar em conjunto para superá-la, construindo e legando um cenário mais positivo (justo, solidário e sustentável) para as gerações vindouras. São estes os principais desafios a que se deve fazer frente o Direito e, sobretudo, os direitos humanos nesse inicio de século. É por essa realidade e os desafios dela decorrentes que acreditamos na prevalência da razão Humana sobre a razão de Estado. Se existe una crise universal, esta não é simplesmente uma crise dos Estados ou dos seus valores, trata-se de una crise do ser humano mesmo e que só nós poderemos superar, pois ainda que muitos e muitas tenhamos esquecido, foi o Estado criado por nós como forma de organização social e não o contrário. Buscar novos tempos e novos rumos significa encontrar-nos, a nós mesmos, os seres humanos, no tempo e no espaço da afirmação da dignidade humana pelos Direitos Humanos universais, indivisíveis e complementares. Em conseqüência, os Direitos Humanos não desaparecerão por fazer-se respeitar através de suas normas oriundas do Direito Internacional Público e do multilateralismo. O risco do menoscabo das normas de Proteção Internacional da Pessoa Humana123 reside justamente no pólo oposto da afirmação anterior; ou seja, será o abrandamento da normativa oriunda do Direito Internacional Público e das normas de convivência harmônica e pacífica entre os Estados ante a falsa retórica bélica e unilateral, esta última despossuída de qualquer razoabilidade humana, o fato capaz de fazer com que os Direitos Humanos retrocedam. Por isso, mas que nunca, considerar as premissas do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos como norte inquestionável do caminho a ser trilhado pela sociedade internacional faz-se urgente e necessário. Em sendo assim, a afirmação é sim: um outro mundo é possível! 123 Compreende: o Direito dos Conflitos Armados (Direito Humanitário), Direitos Humanos e Direito dos Refugiados. 185 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DIREITO A JULGAMENTO PÚBLICO, IMPARCIAL E JUSTO: O FORATLECIMENTO DE UM DIÁLOGO HUMANO Ricardo Brisolla Balestreri** Direito a julgamento público, imparcial e justo: O fortalecimento de um diálogo humano O art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma uma das dimensões da realização do direito por meio do tratamento em condições de igualdade, de forma pública, por tribunal independente e imparcial e de forma justa. Trata-se de uma dimensão fundamental que ao longo dos últimos anos tem logrado grandes avanços e conquistas. Se lançarmos o nosso olhar em uma perspectiva histórica, perceberemos que em um capítulo não tão distante da nossa construção civilizatória, a possibilidade de acesso à justiça não era assegurada a todos os indivíduos e que os julgamentos não eram perante tribunais independentes. Apenas alguns estamentos sociais ligados à nobreza tinham o direito de julgarem e serem julgados por seus pares. Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pela primeira vez foram proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do Homem (ou do homem moderno) de forma ecumênica mas,e nos dizeres de Bobbio, somente depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos é que podemos ter a certeza histórica de que a humanidade partilha de alguns valores comuns. Desde então, a possibilidade de acesso à justiça por todos os Licenciado em História, especialista em Psicopedagogia Clínica e em Terapia de Família. Integra o Comitê Nacional de Educação para Direitos Humanos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos/Presidência da República e o Comitê Nacional de Combate e Prevenção à Tortura no Brasil. Atuou como especialista contratado pelo Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no Grupo de Arquitetura do Sistema Único de Segurança Pública(Susp/Senasp). Participou, como Consultor Independente, do Núcleo de Acompanhamento da Execução do Programa Nacional de Direitos Humanos, a convite do Ministério da Justiça. Presidiu a Anistia Internacional-Seção Brasileira. Nos últimos anos esteve, a convite oficial, visitando e conhecendo experiências educativas e policiais na Noruega, Holanda e Estados Unidos. No Brasil, prestou consultoria em formação de recursos humanos a governos, prefeituras, ONGs, Fundações e colaborou com a capacitação de professores, policiais federais, civis, militares, corpos de bombeiros e guardas municipais em diversos estados. Secretário Nacional de Segurança Pública. * 187 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI cidadãos, da estruturação de um Estado não arbitrário e não tão somente autoexecutor de penas, de tribunais laico com poder autônomo, com a possibilidade de dirimir conflitos na esfera pública mediante critérios e princípios legais balizadores da justiça, vem se consolidando de forma permanente e cotidiana na nossa sociedade. Se guiarmos nosso olhar para os últimos sessenta anos, perceberemos que a efetivação do direito prescrito no art. 10 da Declaração vem se edificando por meio do surgimento de novos mecanismos de acesso, como por exemplo a mediação de conflitos e a justiça itinerante e a criação de novas de carreiras de Estado que advogam pelos interesses da sociedade e pela possibilidade de acesso democrático à justiça - como o Ministério Público e a Defensoria Pública. Veremos, ainda, que inúmeras redes sociais e de cidadania estão sendo ativadas, na medida em que realizam direitos sociais de interesse coletivo, que políticas públicas estão sendo implantadas no sentido de ampliar e assegurar esse acesso, que reformas estão sendo realizadas no sentido de dar mais celeridade aos ritos processuais e de criar mecanismos mais rápidos e acessíveis para a resolução de conflitos, como os juizados especiais, e que o próprios tribunais estão avançando na sua concepção de gestão, de forma a assegurar uma melhor prestação do serviço no âmbito do Judiciário. O que se percebe, portanto, é que ao longo das últimas décadas um importante esforço está sendo realizado no sentido de ampliar o acesso a justiça, de atualizar e de democratizar o processo decisório judicial e de dar transparência e independência aos Tribunais. A professora Eliane Botelho Junqueira chamou a atenção para o grande despertar do interesse brasileiro, no início dos anos 80, por esta temática, não só em decorrência de um movimento internacional de ampliação do acesso a justiça, mas sim, internamente, do processo político-social que, então, se iniciava nas pressões, alertando que: “ainda que durante os anos 80 o Brasil, tanto em termos da produção acadêmica como em termos das mudanças jurídicas, também participe da discussão sobre direitos coletivos e sobre a informalização das agências de resolução 188 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de conflitos, aqui estas discussões são provocadas não pela crise do Estado de Bem Estar Social, como acontecia então nos países centrais, mas sim pela exclusão da grande maioria da população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde.” O que se percebia, nesse contexto, era um grande distanciamento entre a população mais carente ou desprivilegiada e o Poder Judiciário, considerado um dispositivo privado das elites e com bloqueios simbólicos de acesso a mecanismos estatais de intermediação de conflitos. Após a Constituição Federal de 88, consolidaram-se, ainda, novos institutos de acesso ao Poder Judiciário - como o mandado de segurança coletivo - que possibilitam, por exemplo, aos movimentos sociais, romper com os limites formais da igualdade legal formal, aprofundar a democratização do acesso a justiça e ampliar a cidadania. Contudo, em um país com profundas desigualdades sociais como o nosso, com ranços patrimonialistas, elitistas, machistas, racistas, homofóbicos e discriminadores em diversos outros aspectos, ainda clama a urgência de avanços nesse campo. Boaventura de Sousa Santos sugere que a estratégia mais promissora de reforma da justiça está na “procura dos cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados. Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias”. Alguns modelos jurídicos começam a despontar, ainda que minoritariamente, e agregam ao direito um germe pedagógico e emancipatório. Esses modelos ampliam a noção de direito, assumindo sua tessitura aberta, de constante devir, e sua prática dialógica. Tais modelos pressupõem uma relação de alteridade, sem hierarquias, de efetiva escuta, de forma que o julgador (juiz - autoridade localizada no Estado) a partir de uma pauta restrita (o código, a lei), não se sobreponha em relação a sujeitos que não são reconhecidos em suas identidades (ainda não reconhecidos plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio da realização de seus 189 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI direitos. É o caso da mediação, da chamada justiça restaurativa e dos modelos de justiça comunitária. Essas experiências resgatam a humanidade do direito na medida em que colocam o indivíduo na posição de sujeito e não de objeto numa mediação judicial. Nesse sentido, a juíza Gláucia Falsarelli Foley se refere ao conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça, pleiteando, assim, por uma Justiça sem jurisdição porque efetivamente operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade. Ou, como ela diz em outro lugar, para não perder de vista o seu potencial emancipatório. Isso porque, completa, “desde já se verifica certa resistência à proposta de se reconhecer, valorizar e estimular novos instrumentos para a democratização da própria realização da justiça, restituindo à comunidade e aos seus cidadãos o exercício da autonomia política, por meio da gestão dos próprios conflitos”. Tudo isso mostra, como o faz Boaventura de Sousa Santos, o quanto o “acesso à justiça é um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já que para além das condicionantes econômicas, sempre mais óbvias, envolve condicionantes sociais e culturais resultantes de processos de socialização e de interiorização de valores dominantes muito difíceis de transformar”. O trabalho acadêmico da promotora Luisa de Marillac apontou a dimensão pedagógica do direito sob a ótica de resgate do humano, na relação jurídica, que vem sendo sistematicamente sonegado pelas práticas jurídicas burocráticas e tecnicistas centradas na atividade estatal. Segundo a autora: “O direito, monopólio do Estado, transforma o conflito em lide e retira das pessoas a possibilidade de aprender a partir do conflito, de construir, com o outro, alternativas de convívio. Esse desfalque não é, muitas vezes, sentido conscientemente, presentes e fortes que são as crenças produzidas de que uma decisão jurídica tem caráter de superioridade, em razão da técnica e da verdade científica de que se reveste. A consciência da ideologização do direito, proposto pela crítica, levanta a questão, ao menos para os juristas, do mito da cientificidade das decisões jurídicas. 190 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Para os destinatários do direito, no entanto, é preciso mais. É preciso que as práticas jurídicas sejam reformuladas. Tal qual o movimento crítico que denunciou a pompa e os antiquados recursos pedagógicos dos cursos de direito, é preciso rever – já com atraso – a pompa e os antiquados procedimentos judiciais. “Excelências”, “Meritíssimos” e “Doutores” precisam abrir espaço para os seres humanos carentes de comunicação, obscurecidos atrás de altos balcões e de mesas imponentes. Esse desvelamento, de duas faces, rejuvenesce o profissional do direito e dignifica as pessoas que recorrem ao sistema judiciário.” Segundo a autora, quando direito e educação se fundem, a partir da discussão de igualdade e diferença, se percebe o quanto o direito tem negligenciado sua dimensão pedagógica, não primando por práticas dialógicas e horizontalizadas, que reconheçam o valor de todos os sujeitos envolvidos. Assim, ultrapassando a noção do direito como técnica ou ciência neutra de regulação social, e transcendendo o aspecto ideológico do discurso jurídico, revelado pela teoria crítica, uma dimensão pedagógica do direito reivindica a prática da autonomia. O diálogo – o encontro com o outro – aparece como meio propício à devolução à sociedade, às pessoas, da consciência de seu poder de se dar a si as próprias normas. A dimensão pedagógica do direito, portanto, resgatando sua humanidade, exige horizontalidade em suas práticas. Descobrir e avançar em métodos e práticas que possibilitem esse processo horizontal e dialógico, que auxilie na construção da autonomia, é tarefa ampla que somente pode se dar pelo diálogo e compromisso dos novos teóricos e práticos do direito. Desafio importante para os próximos sessenta anos da Declaração Universal, no sentido de alargar o conceito de acesso à Justiça como o fortalecimento de um diálogo humano. Boaventura de Sousa Santos, uma vez mais, nos provoca a alargar o conceito de acesso à Justiça e pensá-lo como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade 191 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos. Esta mediação leva, por meio do trabalho de tradução, a criar “condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência”, mas que buscam criar sentidos e direções para práticas de transformação social e de realização da justiça. Fora desse contexto emancipatório, o que resta é a configuração do acesso à justiça como objeto delimitado, mesmo considerados os dois níveis de acesso: igualdade constitucional de acesso representado ao sistema judicial para resolver conflitos e garantia e efetividade dos direitos no plano amplo de todo o sistema jurídico. Atingimos um estágio de desenvolvimento do Direito Humano que não mais nos permite conformar-nos com uma realidade que não busque uma ampliação da consciência de que todos os seres humanos são sujeitos de direito. Assim, para que assegure-se um julgamento público, imparcial e justo, que possa, de fato, emancipar os sujeitos e garantir a realização do que se lhes é devido, imprescindível é levar-se em consideração o fortalecimento do diálogo humano e da dimensão pedagógica do direito, traduzindo-se, em tal campo, os valores dos direitos humanos e apontando-se para a construção de uma sociedade mais democrática e igualitária no respeito e celebração das diferenças. 192 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI DIREITO DO INDIVÍDUO EM RELAÇÃO AO SEU GRUPO E AOS BENS Romany Roland Cansanção Mota** Relevante registrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH é o documento traduzido no maior número de línguas no mundo124. Esse fato, por si só, justifica a comemoração de seu sexagésimo aniversário. Contudo, a vanguarderia Ordem dos Advogados do Brasil, guardiã da cidania, celebra a efeméride realçando que 2008 é o ano em que realiza a XX Conferência Nacional125; enquanto a Constituição Cidadã completa vinte anos de promulgada. Por certo muita coisa mudou desde que Austrasésilo de Athayde se tornou o relator, pelo Brasil, do texto da Declaração Universal126, que arrola os direitos básicos e as liberdades fundamentais que pertencem a todos os seres humanos, sem distinção de raça, cor, sexo, idade, religião, opinião política, origem nacional ou social ou qualquer outra. A DUDH reconhece solenemente (a) a dignidade da pessoa humana, (b) o ideal democrático; (c) o direito de resistência a opressão; e (d) a concepção comum desses direitos; proclamando em seus trinta artigos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. É fácil vislumbrar a sistemática adotada para a redação da Carta da Liberdade, Igualdade e Fraternidade (DUDH); senão vejamos: (a) princípios gerais – artigos 1º e 2º; (b) direitos de ordem individual – artigos 3º a 11; (c) direito do indivíduo em relação ao seu grupo e aos bens – artigos 12 a 17; (d) direitos políticos, faculdades espirituais e liberdades públicas – artigos 18 a 21; (e) direitos econômicos, sociais e culturais – artigos 22 a 28; (f) deveres do indivíduo com a comunidade (direitos de terceira geração); por fim, (g) o artigo 30 afirma que a interpretação de qualquer dispositivo contido na DUDH somente pode ser feito em benefício dos direitos e das liberdades nela proclamados. Os sessenta anos de DUDH marca, nos Estados Unidos, a eleição Conselheiro Federal pela OAB/AL, ex-Presidente CNDH/OAB, 1998. Guinness Book of World Records, - ed 2004 – (http://pt.wikipedia.org/wiki/) 125 A I Conferência Nacional da OAB foi em 1958; portanto, há 50 anos. 126 50 Anos da Declaração Universal de Direitos Humanos: conquistas e desafios, OAB, CNDH, 1998, p. 11. * 124 193 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de Obama como o primeiro Presidente negro que travará luta pelo equilíbrio financeiro mundial (Lincoln enfrentou a Guerra da Secessão que impediu a divisão do país; enquanto Luter King enfrentou difícil luta racial, na defesa dos direitos humanos – ambos vítimas de assasinatos); enquanto o mundo participa cada vez mais das conquistas tecnológicas de países diversos e convive com a vaidade científica de alguns; convém uma reflexão alargada no sentido de que a chamada “globalização” não começou agora, como dizem alguns. Contrariando a tese dos defensores da “tecnologia avançada” – que é importante para todos – afirmamos, faz tempo, que a “globalização” formal, surgiu, nasceu, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH. Reconhecemos até que a “globalização” – de conteúdo moral – através dos milênios pode ter surgido com a Maçonaria; pois, apesar dos landmarks, a Ordem Maçônica sempre orientou a seus “iniciados a nada gravar ou escrever”, em razão dos eventuais opositores; todavia, independente do fluxo ou refluxo dos movimentos sociais, sempre defendeu a Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Mais recentemente, no início do Século XX – 1917 – um grupo de integrantes da Maçonaria fundou a Associação Internacional de Lions Clubes sempre procurando universalizar a Igualdade entre os cidadãos em seus “clubes de serviço” enquanto entidade de direito privado. O sucesso de tal instituição foi tanto que hoje está presente em 204 países e a Associação de Lions Clubes é considerada a melhor ONG do planeta127; enquanto a ONU é integrada por aproximadamente 150 países-membros. Não há negar, contudo, que no âmbito do Direito Internacional a iniciativa da Terceira Assembléia da ONU que naquela época reuniu 58 países no Pallais Chaillot em Paris e culminou com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se consitui no marco formal inaugural da chamada globalização; pois, como afirma Ricardo Balestreri128 “pela primeira vez um paradigma solidário, fundado na igualdade de direitos, foi assumido de forma praticamente consensual pelo conjunto de países”. Nesse contexto de conteúdo moral universal que se incere como Pesquisa do “Finantial Times” solicitada pela ONU 50 Anos da Declaração Universal de Direitos Humanos: conquistas e desafios, OAB, CNDH, 1998, p. 157 127 128 194 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI marco incial da globalização, a nacionalidade proclamada no artigo 15 que dispõe: “I - Todo homem tem direito a uma nacionalidade; II - Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”; há de merecer permanente reflexão, estudo e defesa. Por sua amplitude, o tema nacionalidade, enseja oportunidade para inúmeros aspectos, entre eles: conceitos; aquisição ( originária, derivada, tácita); métodos de determinação – jus sanguinis, jus soli e misto (que combina filiação com o lugar de nascimento) -; naturalização – Lei nº 818/49 -; tipos de naturalização; perda da nacionalidade; situação do estrangeiro no Brasil – Lei nº 6.815/80.... De logo se percebe que nacionalidade tem importância para o Direito Interno como Internacional; pois, se constitui num conjunto de prerrogativas de Direitos Fundamentais, já que não são apenas comuns aos cidadãos de determinado país; mas de todo ser humano do planeta, pugnando-se que a humanidade possa concretizá-los objetivando os princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Por isso afirmamos que antes da globalização tecnológica, financeira ou virtual, a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH se constitui no paradigma de globalização como expressão de contexto moral. Não podemos esquecer que pelo próprio conceito, nacionalidade é “Substantivo abstrato, formado do radical latino “natio”, que significava nascimento, do verbo latino “nascere”, nascer. Posteriormente, passou a significar o conjunto dos nascidos de uma mesma linhagem. Em sentido jurídico, é o vinculo permanente que liga uma pessoa física ou moral a uma nação, como parte integrante de sua dimensão pessoal, quer dizer, de seu povo” Nacionalidade pode ser entendida, ainda, como “de direitos e deveres, públicos e privados, que atribuem ao indivíduo a qualidade de cidadão” ou qualidade ou condição de nacional da pessoa ou coisa: nacionalidade da mulher casada com estrangeiro; nacionalidade de um navio, de um rio”. Não podemos esquecer, ainda, que naturalização é o é ato pelo qual o cidadão estrangeiro renuncia à sua condição de cidadão de seu país e adota a nacionalidade de outro país, ou ainda, ato gracioso pelo qual o governo de um Estado concede ao estrangeiro nele domiciliado, que o requer, satisfazendo os 195 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI requisitos legais e renunciando à nacionalidade de origem, os mesmos direitos e prerrogativas de que gozam os seus nacionais; e por fim, que é o meio mais comum de perda da nacionalidade, visto que nela o indivíduo demonstra claramente o seu desejo de mudar de nacionalidade. Quando voltamos os olhos para a nacionalidade, contatamos que no Brasil há três formas de aquisição de nacionalidade: a) pelo nascimento; b) pela nacionalização; c) pela naturalização. É válido o registro de que são brasileiros natos: a) todos os indivíduos nascidos no território nacional, ainda que de pais estrangeiros, exceto se estes estiverem a serviço de seu país; b) os filhos de brasileiros, nascidos no exterior, se os pais estiverem a serviço do Brasil; c) filhos de brasileiro, ou brasileira, nascidos no exterior se vierem a residir no Brasil e optarem pela nacionalidade brasileira dentro de quatro anos após atingirem a maioridade. Já a nacionalidade da pessoa física pode ser chamada de: a) originária - quando decorre do fato do próprio nascimento; b) adquirida - a que se verifica por vontade expressa do indivíduo capaz, que renuncia à nacionalidade de origem; c) tácita - a que resulta da lei (vg. naturalização, casamento). O indivíduo é sujeito do próprio Estado em razão de sua nacionalidade; portanto, o povo, sem o qual o Estado não pode existir nada mais é do que o “conjunto dos nacionais”. Todo o indivíduo deveria ter apenas uma nacionalidade; mas encontramos pessoas sem nacionalidade – apátridas, ou com mais de uma nacionalidade. Por outro lado, convém registrar que em sentido estrito somente se pode falar em nacionalidade em relação ao ser humano – pessoa física; mas, por extensão é comum se fazer referência à nacionalidade de pessoa jurídica, sendo comum hoje a expressão “pessoa jurídica nacional ou estrangeira”. Desnecessário tecer maiores comentários sobre os métodos de determinação da nacionalidade; pois, são auto-explicativas as referências aos sistemas jus sanguinis, jus soli e o sistema misto; porém, convém registrar que a aquisição automática de nacionalidade pode ser aplicada a cidadãos como resultado do reconhecimento, da adoção ou legitimação. Noutro norte, as condições gerais para que um estrangeiro se naturalize brasileiro são: 1.º prova de que possui capacidade civil, segundo a 196 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI lei brasileira; 2.º residência continua no território nacional, pelo prazo mínimo de cinco anos; 3.º saber ler e escrever a língua portuguesa; 4.º exercício de profissão ou posse de bens suficientes à manutenção própria e da família; 5.º bom procedimento; 6.º ausência de pronuncia ou condenação no Brasil; prova de sanidade física. Os portugueses são dispensados da 4.ª condição, sendo-lhes exigida apenas residência ininterrupta de um ano. A concessão é faculdade do Presidente da República através de ato referendado pelo Ministério da Justiça. Em linhas gerais, a naturalização pode ser a) individual - quando relativa apenas a determinada pessoa; b) coletiva - a que incide sobre uma população ou parte desta, em virtude de sua anexação à de outro Estado; c) ordinária - aquela concedida ao estrangeiro que não goza dos mesmos direitos concedidos aos naturais do país; d) extraordinária - a que atribui ao naturalizado todos os direitos civis e políticos inerentes aos nacionais; e) tácita - adquirida por uma lei especial, de caráter geral; f) expressa - aquela que é conferida por decreto do governo do país a que o alienígena se radicou, mediante pedido deste. Entre nós, adquire, tacitamente, a nacionalidade do país o estrangeiro que nele reside, possui bens imóveis, for casado com brasileira ou tiver filho brasileiro. Já a perda da nacionalidade pode ocorrer, em síntese: a) por mudança de nacionalidade; b) pelo casamento; c) pela naturalização; d) por cessão ou anexação territorial; e) pela renúncia pura e simples; f) por algum ato incompatível com a qualidade de nacional ou considerado como falta; g) pela presunção de renuncia em conseqüência de residência prolongada em país estrangeiro, sem intenção de regresso. À guisa de conclusão, registrando que vários autores abordam o tema129; pode-se afirmar que o direito de escolher sua nacionalidade é um dos direitos primordiais do homem, desde que ele seja juridicamente capaz, e desde que seja-lhe compensador fazer tal mudança, ou, conforme visto, convém que a pessoa avalie se é-lhe proveitoso inclusive acumular títulos de nacionalidades. Filiando-nos à corrente daqueles que entendem que Direitos Humanos é o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano 129 ACCIOLY, Hildebrando Manual de Direito Internacional Publico. Ed. Saraiva. Pequena Enciclopedia de Moral e Civismo. Fernando Bastos de Ávila – MEC. Enciclopedia Saraiva do Direito. Prof. R. Limongi França - Ed. Saraiva. NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica. 197 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana é que nessa comemoração aos sessenta anos de proclamação da DUDH a Ordem dos Advogados do Brasil oportuniza mais esta reflexão; a fim de que cada cidadão esteja apto a ser um defensor permanente dos direitos humanos, contribuindo de forma efetiva para a educação da humanidade. Devemos todos recordar que são características dos direitos humanos: (a) Imprescritibilidade - são imprescritíveis, ou seja, não se perdem pelo decurso de prazo; (b) Inalienabilidade - não há possibilidade de transferência, seja a título gratuito ou oneroso; (c) Irrenunciabilidade - não podem ser objeto de renúncia (polêmica discussão: eutanásia, aborto e suicídio); (d) Inviolabilidade - impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por ato das autoridades públicas, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e criminal; (e) Universalidade - a abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos, independente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica; (f) Efetividade - a atuação do Poder Púbico deve ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstas, com mecanismos coercitivos; e (g) Indivisibilidade - porque não devem ser analisados isoladamente. Por exemplo: o direito à vida, exige a segurança social (satisfação dos direitos econômicos). Lembrando que negar o direito a nacionalidade é uma forma de tortura, congratulando-nos com a guardiã da cidadania nacional, a operosa Ordem dos Advogados do Brasil e com seu battonier Cezar Brito e recordamos Peter Gabriel ao afirmar: “quando se olha dentro dos olhos e se aperta as mãos de alguém que foi torturado, é muito difícil virar as costas à divulgação dos direitos humanos”. 198 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO Sylvia Helena Steiner** Após sete anos da entrada em vigor do Estatuto de Roma, e já contando com 111 Estados Partes que o ratificaram, vejo que o Tribunal Penal Internacional é ainda uma instituição pouco conhecida em nosso país. Na condição de juíza brasileira junto ao Tribunal Penal Internacional, creio ser importante uma vez mais aproveitar o espaço concedido pela Ordem dos Advogados do Brasil para dizer algumas palavras sobre o papel do Tribunal Penal Internacional, nos dias atuais, e sobre a importância da implementação do Estatuto de Roma em nosso país. O tema é extremamente amplo, e vejo-me obrigada a fazer escolhas, já que seria impossível referir-me a todos os aspectos do Estatuto. Assim, e apenas como uma exposição introdutória, nos limites pertinentes aos temas selecionados para a presente obra, pretendo dizer, em poucas palavras, o que é exatamente o Tribunal Penal Internacional. Vou começar a falar um pouco sobre a história que conduziu a comunidade internacional à criação do Tribunal Penal Internacional. O Tribunal Penal Internacional não nasceu de um momento para outro como fruto de idéias brilhantes de algumas mentes privilegiadas. Nasceu como fruto de um longo processo histórico, um processo que podemos chamar de internacionalização da proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana. Costumo, juntamente com alguns outros autores, fixar as primeiras sementes desse processo de internacionalização da proteção de direitos fundamentais nos primeiros tratados, bilaterais e multilaterais, que foram assinados no início do século XIX e que diziam respeito à eliminação da escravatura e à coibição do tráfico de escravos. Pela primeira vez, desde o ponto de vista do cenário internacional, Estados se reuniram e contrataram compromissos que não envolviam os seus interesses particulares, mas sim ações de terceiros Estados não-participantes * Sylvia Helena Steiner é Juíza do Tribunal Penal Internacional e Desembargadora Federal aposentada. 199 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI daqueles acordos, e que iriam sofrer as consequências desses tratados. Essa, no meu entender, é a primeira semente desse processo de internacionalização e é de uma importância fundamental porque, pela primeira vez, colocava-se a comunidade internacional como parte legítima para defender interesses de comunidades que não eram as de seus nacionais. Pouco tempo depois, mas ainda em meados do século XIX, as primeiras Convenções de Genebra, de 1864, vieram à luz para regular o direito de guerra, também elegendo determinados grupos de pessoas como objeto de proteção não só dos Estados, mas da comunidade internacional. Portanto, essas são as duas mais importantes sementes plantadas num determinado momento histórico e que representavam a outorga de proteção internacional a toda uma categoria de entidades, de órgãos ou de grupos de pessoas e, ao mesmo tempo, impunham uma limitação ao poder soberano absoluto dos Estados, inclusive em relação à condução das hostilidades em regiões de conflito. Falar, em meados do século XIX, de limitação dos poderes absolutos dos Estados frente à necessidade de preservação de um patamar mínimo de ética no relacionamento desses Estados com grupos de indivíduos, e falar na existência de certos direitos fundamentais inalienáveis de todo e qualquer ser humano, que deveriam ser colocados, sob quaisquer circunstâncias, acima das razões de Estado, foram os grandes avanços do Direito Internacional e as sementes desse processo de internacionalização ao qual me referi. Ao mesmo tempo, desenvolveram-se as idéias do direito dos povos à autodeterminação, à proteção de todos contra os excessos praticados pelo poder estatal, o direito à segurança das comunidades, inclusive em tempos e em situações de conflito armado. Essas as idéias que foram plantadas. O reconhecimento da existência de certos direitos fundamentais e inalienáveis dos seres humanos, considerados individualmente ou como coletividades, foram irremediavelmente integrados à nossa civilização e não há como voltar atrás. Também é um processo que não tem volta, um processo irreversível, a idéia de que esses direitos inalienáveis merecem a proteção dos nossos Estados como responsáveis pela proteção dos seus nacionais, mas que, quando 200 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI falham os nossos Estados, esses mesmos direitos têm de ser protegidos pela comunidade internacional como um todo. A Primeira Guerra Mundial marcou um retrocesso nesse processo evolutivo do Direito Internacional. No entanto, já ao final daquele conflito, surgia, pela primeira vez, a idéia da criação de um tribunal internacional destinado a julgar os acusados da prática de violações às leis e aos costumes de guerra. No entanto, por força ainda dos estreitos conceitos de soberania, dos antigos institutos do Direito Internacional, como, por exemplo, o da extradição, o Tribunal de Leipzig não alcançou seus objetivos, tendo em vista que lhe foi negada a entrega dos principais acusados da prática de crimes naquela situação de conflito. Muito pouco tempo depois, a humanidade passa pelos horrores da 2ª Guerra Mundial. Esses horrores, que assumiram proporções não apenas numéricas, traduzidos no cometimento de atrocidades contra comunidades inteiras, fizeram com que a comunidade internacional, de uma vez por todas, decidisse que atos como os praticados durante o conflito armado não poderiam mais ser considerados como violações de direitos fundamentais que pudessem ser reprimidas ou punidas apenas pela legislação interna, ou pela vontade dos Estados. Foi neses momento que a comunidade internacional decidiu-se pela instalação do Tribunal de Nuremberg. Sabemos todos nós as críticas que lhe foram dirigidas — a maior parte delas, aliás, merecida. À época o tribunal, dentro da ótica dos avanços do Direito Penal contemporâneo, poderia ser considerado como um típico tribunal de exceção. Foi criado após os fatos, para julgamento de crimes que não haviam sido até então tipificados, para julgamento dos vencidos pelos vencedores, em afronta ao princípio da legalidade estrita dos delitos e das penas. Conhecemos todas as críticas. No entanto, desde o ponto de vista da evolução do Direito Penal Internacional, um mérito não pode ser retirado ao Tribunal de Nuremberg: o de ter sido um marco ao deixar gravada, de uma vez por todas e de forma irreversível, a idéia de que a comunidade internacional tinha e tem o direito de processar e julgar aqueles que cometem crimes que ponham em risco a paz e a sobrevivência da própria humanidade. 201 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A humanidade, como vítima, passa a ter portanto legitimidade, no campo do direito internacional, para exigir ou para proceder ao processo e julgamento dos acusados da prática dos mais graves crimes contra a paz e contra a sua própria segurança. Logo após a 2ª Guerra Mundial, e com os trabalhos do Tribunal de Nuremberg ainda em andamento, a Comissão de Direito Internacional da recém criada ONU começa a estudar e a redigir o primeiro anteprojeto da criação de um tribunal penal internacional permanente. Entretanto, somente na década de 90 a idéia de criação de um tribunal penal internacional foi reavivada pela instalação, por meio de resoluções do Conselho de Segurança da ONU, dos dois tribunais ad hoc, um deles criado para processo e julgamento dos acusados da prática de crimes no território da extinta Iugoslávia130, e o Tribunal de Ruanda131, também criado para processo e julgamento dos acusados da prática de crimes no território deste Estado. Sem dúvida, os tribunais ad hoc já significaram um avanço muito grande em relação ao Tribunal de Nuremberg e ao Tribunal de Tóquio, os tribunais do pós-guerra. Já não há mais vencedores julgando os vencidos, mas tribunais criados e instalados pelo órgão internacional que representa a comunidade internacional como um todo, entidade que escolhe juízes representantes dos diversos Estados e, portanto, com o peso e a responsabilidade da independência e da imparcialidade. Os crimes já estão suficientemente definidos em diversos tratados internacionais, como a Convenção sobre o Genocídio de 1948, as Convenções de Genebra de 1949, a Convenção contra a Tortura de 1984, a Convenção contra o Apartheid de 1973 . Portanto, estavam superadas a maior parte das críticas que eram dirigidas aos tribunais do pós-guerra. No entanto, persistia como crítica uma espécie, digamos assim, de vício de origem. O Conselho de Segurança da ONU é em sua essência o órgão político da Organização das Nações Unidas. Pela Carta das Nações Unidas, em seu Capítulo VII, é o órgão responsável pela manutenção e pela restauração da paz na comunidade internacional. No entanto, por sua função política, evidentemente é um órgão dotado de seletividade. O Conselho de Segurança da ONU, por intermédio de suas resoluções, determina a instalação de tribunais 130 131 S/Res/827- 25 May 1993 S/Res/955- 8 November 1994 202 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI ad hoc onde quer e quando quer. Trata-se de decisão política. Não faço, nesse ponto, nenhuma crítica ao papel político que necessariamente deve ser exercido por um órgão pertencente às Nações Unidas. Foi em razão da instalação dos dois tribunais ad hoc que finalmente ressurgiu o anteprojeto de criação de um tribunal penal internacional permanente, abolindo-se assim toda e qualquer possível crítica quer quanto ao seu funcionamento, quer quanto à sua origem, quer quanto à sua legitimidade perante a comunidade internacional. O anteprojeto teve andamento e culminou com a convocação da Conferência de Roma, em 1998. A partir daí, sabem todos que a comunidade internacional, representada na ocasião por mais de uma centena de Estados, assinou o Estatuto de Roma e criou, então, o Tribunal Penal Internacional. O tribunal não tem jurisdição retroativa. Só pode exercer sua jurisdição sobre fatos ocorridos após sua entrada em vigor, em julho de 2002. Para os Estados que ratificaram o Estatuto após essa data, a entrada em vigor se dá a partir da ratificação. Os juízes são eleitos pelos representantes dos Estados Partes e, portanto, pela própria comunidade internacional representada pela Assembleia dos Estados Partes, e recebem um mandato por tempo certo, com a responsabilidade da independência e da imparcialidade, inclusive em relação aos países de que se originam. O Tribunal foi criado por um tratado e, portanto, estabelecido dentro dos parâmetros do Direito Internacional, na medida em que os Estados a ele se submetem através do exercício voluntário de um dos seus atos típicos de soberania: a ratificação. No Estatuto estão descritos os delitos e as penas, respeitado integralmente o princípio da estrita legalidade dos delitos e das penas, e estão reconhecidos todos os direitos fundamentais das pessoas acusadas. Sem dúvida, o Estatuto de Roma traz um modelo daquilo que o nosso sistema costumou apelidar de sistema garantista de Direito Penal e Processual Penal. Preserva o estatuto de Roma o princípio da legalidade dos delitos ( artigo 22) e das penas ( artigo 23). O princípio da legalidade importa, igualmente, na proibição do recurso à analogia, estando assim previsto, no artigo 22, parágrafo 2, que “em caso de ambiguidade, a lei será interpretada em 203 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI favor da pessoa objeto de investigação, processo ou condenação”. O princípio de necessidade vem treconhecido já no Preâmbulo do Estatuto, ao prever a jurisdição do tribunal sobre os crimes mais graves. O artigo 17, parágrafo 1, alínea “c”estabelece ainda um segundo patamar de gravidade, como uma das condições de admissibilidade de um caso. A irretroatividade do Estatuto (artigo 11) 132, e a ultra-atividade de lei mais benéfica ( artigo 24 ) completam o quadro de garantias penais. No quadro das garantias processuais, os artigos 55 e 67 do Estatuto estabelecem o rol de direitos processuais mínimos, aplicáveis desde a fase de investigações. Para não alongarmos demais este tópico, basta citarmos a presunção de inocência, o direito ao silêncio, a ser assistido por advogado de sua escolha, o dever de o Tribunal arcar com as despesas da defesa em caso de réu indigente, o direito à interpretação e à tradução das principais peças processuais, o direito de repergunta às testemunhas de acusação, dentre outros. O ônus da prova repousa integralmente sobre o Promotor, que é também obrigado a investigar as provas dirimentes ou exculpatórias. Cumpre sempre lembrar que o artigo 21 do Estatuto de Roma, ao elencar as fontes de direito aplicável pelo tribunal, deixa expresso, em seu parágrafo 3, que a aplicação e a interpretação de quaisquer das normas do Estatuto, das Regras de Procedimento e dos Elementos dos Crimes, além das demais fontes nele previstas, há de ser feita de forma compatível com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. O mais importante de tudo: o tribunal tem caráter complementar, não se sobrepõe aos sistemas judiciais internos de nossos Estados. Ele não veio para se sobrepor nem para substituir os sistemas judiciais internos dos nossos Estados. Esse tribunal, portanto, preserva o respeito à soberania dos Estados, e coloca à disposição da comunidade internacional, como um todo, um sistema complementar de jurisdição, de modelo garantista, que pode ser acionado quando o sistema doméstico não queira ou não possa atuar de forma genuína. Merece ainda destacar que o Estatuto de Roma não reconhece as 132 O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1 de julho de 2002. Portanto, somente crimes cometidos após essa data podem ser considerados como dentro da competência temporal do Tribunal Penal Internacional. 204 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI imunidades tradicionalmente acolhidas pelo direito internacional. Seu artigo 27 estabelece que o Estatuto aplica-se igualmente a todas as pessoas, sem qualquer distinção derivada da posição oficial ocupada pelo suspeito da prática de qualquer dos delitos ali descritos. Na luta contra a impunidade dos mais graves crimes cometidos contra a paz e a sobrevivência da humanidade, não se poderia excepcionar o processo e julgamento dos mais altos líeders políticos e militares. A legalidade da exceção às regras de imunidade foi reconhecida em recente julgado da Corte Internacional de Justiça, órgão judiciário máximo das Nações Unidas, ao ressalvar a juurisdição exercida pelos tribunais penais internacionais.133 O Tribunal Penal Internacional é portanto, sem dúvida alguma, o passo mais avançado já dado na luta pela quebra do ciclo de violência e do ciclo de impunidade no cenário internacional. Diante desse quadro, poderíamos perguntar: por que mais e mais Estados devem ratificar o Estatuto de Roma? As respostas poderiam ser muitas. Repito o que disse anteriormente: não é minha intenção alongar em demasia minha exposição. Tentarei alinhavar apenas dois aspectos que considero os mais relevantes. Diria primeiro que a paz é condição de sobrevivência de toda a humanidade. Quando se fala em paz, não se fala de qualquer paz, não se fala da Pax Romana, a paz imposta pelos vencedores aos vencidos. Também não se fala da paz negociada à revelia das vítimas, aquela paz pela qual o poder e os despojos simplesmente são divididos entre os que deixaram como rastro a vida de milhares de pessoas, e em que as vítimas não têm voz nem vez. Essa paz é passageira e não cala a voz das vítimas. Falamos aqui da paz duradoura, aquela que concilia, aquela que restaura a confiança da comunidade na Justiça. É a paz que decorre da International Court of Justice, the case the Democratic Republic of Congo v. Belgium, Judgement of 14 February 2002. No seu parágrafo 61, a Corte estabelece que”( ...) the imunity from jurisdiction enjoyed by incumbet Ministers of Foreign Affairs does not mean that they enjoy impunity in respect to any crimes they might have committed, irrespective of their gravity. Jurisdictional immunity may wll bar pprosecution for a certain period or for certain offences; it cannot exonerate the person to whom it applies from all criminal responsibility. Accordingly, the immunities enjoyed under international law by an incumbent or former Minister of Foreign Affairs do not represent a bar to criminal prosecution in certain circumsntances. The Court refers to circumstances where (...) such persons are subject to criminal proceedings before certain international criminal courts, where they have jurisdiction.” 133 205 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI investigação independente dos fatos, da justa punição dos criminosos, e da devida reparação às vítimas. O compromisso dos Estados democráticos na busca dessa paz passa necessariamente pelo compromisso da punição dos agressores e pelo compromisso de reparação às vítimas. E é nessa busca de paz que se insere o Tribunal Penal Internacional. Poderia, talvez, como segundo argumento e de ordem mais pragmática, lembrar que a adesão a um sistema internacional de justiça, como o proposto pelo Tribunal Penal Internacional e pelo Estatuto de Roma, é a melhor garantia de nossos Estados quanto ao respeito à sua tão invocada soberania. O Tribunal Penal Internacional, como já dito, tem caráter complementar. Não substitui e nem tem prevalência sobre a jurisdição interna de nossos Estados, ao contrário dos Tribunais ad hoc — e isso muitos não sabem. Quando ouvimos discussões sobre eventuais inconstitucionalidades ou dificuldades de ordem legislativa que poderia trazer o Estatuto de Roma em relação às nossas legislações internas, esquecemos-nos de ter em mente que os tribunais ad hoc têm jurisdição prevalente sobre as jurisdições internas dos Estados. É jurisdição imposta aos Estados pelo Conselho de Segurança da ONU, sem que se pergunte previamente se os Estados estariam de acordo ou não com as suas regras, de acordo ou não com as suas penas, de acordo ou não com o seu sistema punitivo e com as suas regras de procedimento. Os tribunais ad hoc, aos quais todos os Estados estão submetidos pelo simples fato de pertencerem à Organização das Nações Unidas, consistem, em tese, um “perigo” muito maior à soberania nacional do que o Tribunal Penal Internacional, um tribunal com jurisdição complementar à qual nos submetemos voluntariamente, através do ato de ratificação, que é ato típico de exercício da soberania nacional. Creio que, quanto a esse aspecto, nada mais precisaria ser dito. Avanço um pouco mais para perguntar: se já ratificamos o Estatuto de Roma134, porque temos de implementá-lo em nossa legislação interna, na legislação penal do nosso Estado? Muitas seriam as respostas, mas vou ater-me às que considero mais relevantes. 134 Ratificado e promulgado em.25/09/2002, pelo Decreto 4.388. 206 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A primeira delas: Ao ratificar um tratado — e o Estatuto de Roma é um tratado —, um Estado assume primeiramente uma obrigação essencial: a de cumprir com os termos do tratado. É o princípio da boa-fé, do pacta sunt servanda, que é a pedra angular do Direito Internacional, e sempre o foi em todos os tempos. Ao ratificar o Estatuto de Roma um Estado assume, além da obrigação de cumprir com as normas do Estatuto , duas obrigações: primeira, a de processar e julgar aqueles acusados de cometer crimes de guerra, crime de genocídio e crimes contra a humanidade — esta é a primeira e fundamental obrigação que o Estado assume; segunda, a de cooperar com o Tribunal Penal Internacional sempre que solicitado. Vou falar umas poucas palavras sobre a primeira dessas obrigações que assume o Estado: processar e julgar, através do seu Poder Judiciário, do seu Ministério Público, das suas regras de procedimento, os acusados da prática dos crimes mais graves contra a paz e a sobrevivência dos Estados. A maior parte dos Estados já está comprometida, por diversos tratados internacionais, a processar e a julgar, por exemplo, os acusados de violações às leis e aos costumes de guerra. A maior parte dos Estados, incluindo-se o nosso, já se comprometeu, por meio da ratificação da Convenção contra o Genocídio, do pós-guerra, a processar e a julgar os acusados da prática de genocídio135. No entanto, tenho certeza de que a maior parte dos Estados não poderia cumprir com essa obrigação porque, por força das nossas Constituições, alguém só pode ser processado e julgado por um crime se esse crime estiver descrito, tipificado, na legislação interna. E são poucos os Estados que implementaram até agora as obrigações decorrentes da Convenção contra o Genocídio ou das Convenções de Genebra e seus Protocolos. Assim, para que possamos cumprir as obrigações decorrentes da ratificação do Estatuto de Roma, temos de implementar, introduzir em nossa legislação interna, a tipificação dos crimes e definir as penas a serem aplicadas àqueles que praticarem os delitos previstos no Estatuto de Roma. Por que isso é importante? Porque o fato de processarmos e 135 Além da ratificação da Convenção, o Brasil a promulgou através do Decreto 30.822/52. 207 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI julgarmos os acusados da prática desses delitos é nossa garantia contra a ingerência do Tribunal Penal Internacional. O Tribunal Penal Internacional, tendo caráter complementar, respeita a jurisdição interna dos Estados. Na hipótese da prática de crimes previstos no Estatuto de Roma dentro do nosso Estado ou por nossos nacionais, se não tivermos legislação de implementação, o Estado poderá ser considerado, nos termos do artigo 17 do Estatuto de Roma, como um Estado que não tem meios para exercer genuinamente a sua jurisdição primária. Assim, estaria em princípio autorizado o exercício complementar de jurisdição pelo Tribunal Penal Internacional. Portanto, a implementação é condição básica para o exercício da jurisdição que chamamos de primária e para que o Tribunal Penal Internacional não tenha que ser acionado para o exercício da sua jurisdição complementar. Um segundo dado que considero importante ser lembrado é o de que a implementação é condição necessária não só para o exercício da jurisdição primária pelo Poder Judiciário dos Estados, nos termos do Estatuto de Roma, mas também para o exercício da chamada jurisdição universal, à qual nos submetemos — e poucos também o sabem — quando ratificamos as Convenções de Genebra136 e seus Protocolos Adicionais137, quando ratificamos a Convenção contra o Genocídio138, quando ratificamos a Convenção para a Punição e Erradicação do Crime de Tortura139, apenas para dar exemplos. A idéia de jurisdição universal não é nova. Desde que a Corte Internacional Permanente de Justiça decidiu, no início do século passado, num caso relativo à pirataria, que o pirata é inimigo da humanidade (hostis humani generis – expressão já cunhada na antiguidade por Cícero), a idéia de que autores de certos delitos podem ser julgados por qualquer Estado, independentemente da sua nacionalidade ou da nacionalidade das vítimas, já é universalmente aceita. O princípio aut dedere, aut judicare nada mais significa do que isso. Os Estados podem julgar os acusados de determinados crimes, Em 29/06/57 Em 05/05/92 138 Em 14/05/52 139 Em 28/09/89 136 137 208 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI independentemente das limitações relativas ao território e à nacionalidade. Podem, mas, se não querem fazê-lo, têm o dever de entregá-los a outro Estado que os julgue. Esta a obrigação assumida: julgue, ou entregue a quem o faça. Já está, portanto, assentado no Direito Internacional que o genocida, o perpetrador de crimes contra a humanidade, o torturador, o criminoso de guerra, são inimigos da humanidade. Em outras palavras, podemos dizer que nosso Estado, no exercício da jurisdição universal, pode julgá-los, independentemente de fatores como nacionalidade e território. Se não quisermos ou não pudermos fazê-lo, entregue-se os suspeitos a outro Estado que o faça, ou entreguem-nos ao Tribunal Penal Internacional. Em conclusão, afirmo, sem sombra de qualquer dúvida, que a ratificação e a implementação do Estatuto de Roma garantem a soberania de nosso Estado, garantem a primazia de nossa jurisdição interna e permitem ao nosso Estado o exercício da jurisdição universal. Além disso, e embora não constitua condição de procedibilidade, facilita o cumprimento de nossa obrigação de cooperar com o Tribunal, sempre que para isso formos solicitados. Como Juíza no Tribunal Penal Internacional, posso dizer — e aqui como testemunho pessoal — que o Tribunal tem exercido suas funções com independência e imparcialidade; que seus juízes têm trabalhado arduamente nos oito casos atualmente em andamento140, e têm dado total e completa publicidade e transparência às rotinas de funcionamento da Corte.. Posso assegurar que o Tribunal, seus juízes e seus promotores conhecem e resguardam as salvaguardas que lhes são atribuídas pelo Estatuto de Roma e pelas regras de procedimento contra qualquer forma de pressão, contra qualquer forma de ingerência, contra qualquer tentativa de desvio da sua função como Tribunal independente e imparcial. O Tribunal pretende o exercício de uma jurisdição universalista, e 140 Em fase de julgamento, os casos The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo (ICC-01/04-01/06) e The Prosecutor v. Germain Katanga and Mathieu Ngudjolo Chui( ICC-01/04-01/07); aguardando confirmação da decisão que remete o acusado a julgamento, The Prosecutor v. Jean Pierre Bemba ( 01/05-01/08) ; em fase de procedimento preliminar, The Prosecutor v. Bahar Idriss Abu Garda ( ICC-02/05-02/09); aguardando cumprimento dos mandados de prisão: The Prosecutor v.Joseph Kony &others ( ICC-02/04-01/05); The Prosecutor v. Bosco Ntaganda ( ICC-01/04-02/06); The Prosecutor v. Ahmad Muhamad Harun & Ali Kushayb ( Icc-02/05-01/07); The Prosecutor v. Omar Al Bashir( ICC-02/05-01/09). Todas as decisões e demais documentos de cada caso podem ser consultados no site do tribunal: www.icc-cpi.int 209 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI seu caráter universalista se amplia tanto mais se amplie o número de Estados que ratifiquem o Estatuto de Roma. Divide o Tribunal com os Estados a preocupação pela independência e imparcialidade de suas decisões, pelas garantias do processo eficiente e justo, e pela estrita legalidade. Assim, com a ratificação do Estatuto de Roma e a implementação da legislação interna, reforçam-se os mecanismos internos e internacionais necessários para a quebra do ciclo vicioso de impunidade. Se em nosso direito interno não abrimos mão de um Direito Penal, de um sistema punitivo eficiente que tenha, ao mesmo tempo, um caráter preventivo e um caráter retributivo o que é inerente à idéia do justo - também não há por que não pretendermos que no sistema internacional haja mecanismos eficientes de prevenção e de retribuição necessários para devolver à humanidade o sentido do justo e, às vítimas, respeito e reparação. A Emenda Constitucional 45 reconheceu a constitucionalidade do ato de ratificação do Estatuto de Roma, e assim o integrou, de forma definitiva, à legislação interna. A ratificação portanto, seguida do reconhecimento constitucional de que nosso país submete-se à jurisdição do tribunal, torna superadas as discussões anteriores à ratificação do Estatuto, e que tanto envolveram os juristas de nosso país. Entretanto, o princípio da legalidade, como dito acima, exige a tipificação dos delitos e das penas correspondentes, para que o país possa, em caso de prática de delitos em seu território ou por seus nacionais, exercer sua jurisdição primária. Por tal razão, foi enviado ao Congresso Nacional, onde tramita, o Projeto de Lei n. 4038/2008. O PL define os crimes de genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra e, seguindo o modelo legislativo interno, impõe em abstrato penas mínima e máxima a cada uma das figuras delitusosa nele previstas. Na definição dos delitos, respeita, ao máximo, a nomenclatura utilizada por nosso Código Penal e pela legislação penal especial. Aliás, é importante ressaltar que o PL em nada altera os códigos penal e processual penal, apenas dispondo sobre determinados aspectos especiais em que a legislação ordinária seria inaplicável. Por exemplo, descreve o PL as peculiaridades do regime de responsabilidade penal dos chefes militares e de outros superiores hierárquicos, cria novas causas de agravamento da pena, e exclui a prescrição como causa extintiva de punibilidade. Em matéria processual, modificam-se, em relação aos delitos previstos no PL, certos prazos procedimentais, as limitações ao número de 210 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI testemunhas, e determina-se novas regras de competência entre as justiças federais comum e militar. Por fim, o PL trata da cooperação entre nosso Estado e o Tribunal Penal Internacional. Nos termos do PL, o pedido de cooperação feito pelo Tribunal Penal Internacional não depende de homologação ou exequatur. Entre outros pedidos, o Tribunal Penal Internacional poderá pedir a cooperação do Estado para a prisão e entrega de um acusado que esteja ou que entre em território nacional, para determinar atos de investigação, e de arresto ou sequestro de bens. Aqui, mais uma vez, ressalta a importância da implementação interna do Estatuto de Roma. Nos termos do direito internacional, um Estado Parte num tratado não pode negar cumprimento a uma obrigação assumida com a ratificação sob o fundamento de não possuir, em sua legislação interna, mecanismos que permitam a execução da obrigação. Da mesma forma, não admite o direito internacional o descumprimento de uma obrigação assumida com a ratificação de um tratado sob o fundamento de o tratado ser contrário a disposições do direito interno141. Vou finalizar esta breve exposição, e espero ter alcançado o objetivo principal de dar a conhecer, àqueles que ainda não tiveram a oportunidade de conhecer o TPI, as bases em que assenta a legitimidade do Tribunal Penal Internacional, fruto de um lento e irreversível processo histórico de universalização da proteção de direitos fundamentais de toda a humanidade. Também espero ter dado a conhecer as normas básicas que regem essa nova instituição. Enfim, espero que a comunidade política e jurídica de nosso país convença-se da importência da implementação do Estatuto de Roma no seio da legislação nacional, para que o país possa definitivamente preparar-se para exercer seu papel na luta contra a impunidade. ­­­­­­­­­­­ ­­­­­­­­­­­­­­ 141 Na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, está expresso que « todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido de boa fé »( artigo 26) e que « uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado »( artigo 27). Apesar de o nosso país ainda não ter ratificado a Convenção de Viena ( aparentemente o pedido de autorizaçào para a ratificação tramita no Congresso desde 1992), o certo é que o país ratificou a Convenção de Havana sobre Tratados, de 1929, que traz disposições semelhantes, em seu conteúdo, às da Convenção de Viena. Lembre-se ainda que o princípio da boa fé é considerado norma de jus cogens, e portanto obriga a todos, independentemente da ratificação de um tratado. 211 ­­­­­­­­­­­­­­­ OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI VERSO E REVERSO DA PROTEÇÃO INTEGRAL PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Vicente de Paula Faleiros** Neste texto pretendemos abordar a questão dos direitos da criança e do adolescente, considerando o processo histórico-social e de construção da legislação para a infância em nosso país. Nosso pressuposto é de que a desigualdade social, prevalecente no país, se expressou até mesmo nos direitos formalmente estabelecidos, categorizando diferentemente os filhos da elite e os pobres, o que só veio ser rompido com o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996. A doutrina liberal de direitos iguais nem sequer esteve presente na história dos direitos infantojuvenis no Brasil, caracterizando-se nosso marco legal como uma “esquizofrenia” ou polarização normativa desigual142, com duas vertentes, uma proposta para a elite e outra para os pobres, configurando-se a maioria da população como exceção, não se fazendo dela uma prioridade de atendimento e nem para ela uma política de inclusão. Nosso pressuposto é de que a maioria da população não é a regra, e sim a exceção na definição histórica tradicional das políticas sociais. Direitos para uns, deveres para os outros. Até o último quartel do século XX, para quem tinha a chance de ir à escola, esta era, ao mesmo tempo, um dever, uma obrigação e uma forma de ascensão social. Os pais desses afortunados sempre diziam aos filhos: “primeiro Assistente social, PhD em sociologia, coordenador do CecriaCentro de Referências, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, professor da UCB e pesquisador da UnB ** 142 Além de uma dupla disposição de normas legais, podemos observar também no país uma dupla aplicação da lei, que não cabe aqui desenvolvermos. Gisela Pankow (1983) assinala que na nossa época nas relações inter-humanas, e mais especificamente no acesso ao poder, não se trata mais de se respeitar o outro, mas de dominá-lo. Em lugar de uma comunicação que poderia dar acesso à liberdade do outro, desenvolvemos uma forma arbitrária da lei que se chama a regra do jogo. Se não se respeita essa regra fica-se excluído. (p.198). Roberto Schwars (2001) chama a atenção para o fato de que o escravagismo era praticado num contexto de idéias e normas liberais, o que denomina de idéias fora de lugar. Assinala ainda que o favor e não o direito funciona como mediação quase universal na política. 213 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI a obrigação, depois a diversão” e também “se não estudar não vai ser doutor”. A obrigação de estudar, própria dos filhos da classe dominante, visava destinar seus filhos a uma vida com distinção, no entanto com características marcantes e diferentes para os gêneros masculino e feminino. Enquanto a mulher se preparava para a vida doméstica e/ou religiosa, o homem se preparava para vida pública143. Para o pobre, a obrigação era a do trabalho subalterno para ganhar vida “dignamente”. O trabalho era o destino tanto da criança filha de escravos, como o dos trabalhadores urbanos, migrantes e rurais. Em 1890, segundo dados da Repartição de Estatística do Arquivo do Estado de São Paulo (Moura, 1999) um quarto da mão de obra do setor têxtil da capital, São Paulo, era de menores, chegando essa proporção a 30% em 1910. Já no final do século XIX, Franco Vaz assinalava que existiam 19.067 matriculados para um total de 106.390 crianças no Distrito Federal, então Rio de Janeiro (Faleiros, 1995), correspondendo os matriculados a apenas 17,9% das crianças, isto na capital da República. Se para os filhos de trabalhadores o futuro era o do trabalho nas fábricas, durante a escravidão o futuro dos pequenos escravos era a escravidão. O futuro se anunciava subalterno. As crianças pobres sempre participaram do mundo do trabalho, seja como operários, seja como trabalhadores rurais, seja como vendedores e vendedoras de produtos na rua, mas não participavam da vida escolar. Na sociedade brasileira, a proposta republicana de escola para todos fracassou, em comparação com o desenvolvimento da República em outros países, como na França, que significou a escolarização em massa. A proclamação da República no Brasil, no entanto, não significou uma mudança na redução das desigualdades sociais. As famílias pobres buscavam nos internatos e orfanatos filantrópicos ou estatais e até mesmo nas casas de correção, muitas vezes, uma saída para um modo de vida menos duro que o trabalho diário e explorado. Aliás, o internato privado era também uma opção para as famílias abastadas, que buscavam o colégio como forma de educação e de disciplinamento de seus filhos. A disciplina e a ordem deveriam existir não somente nas famílias e internatos, mas também 143 Mauad (1999) assinala que nos colégios privados do final do século XIX as meninas aprendiam mitologia, inglês e francês, história antiga e moderna e “obras de agulha de todas as qualidades”e saíam aos 14 anos para a igreja. 214 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI nas ruas. Franco Vaz nota ainda, que a lei 947 de 29/12/1902 autorizava o governo a reorganizar a polícia, a criar colônias correcionais para reabilitação profissional dos “vadios, capoeiras, meninos viciosos” julgados no Distrito Federal. Para os vadios existia a correção, principalmente na visão higienista dos anos 20, que buscava a formação de uma raça sadia e de uma ordem social disciplinada pelos padrões da moralidade, principalmente para a mulher e para a família. Podemos encontrar em Franco Vaz uma mescla de recomendações de disciplina e de medidas higiênicas quando propõe: “implantação de maternidades, regulamentação dos serviços de amas de leite, fiscalização e multas por fornecer tóxicos às crianças, retirada do pátrio poder em caso de desleixo, difusão de conhecimentos sobre a infância ( diante do “tratamento impróprio dado pelas mães”), combate aos “monstros da tuberculose, da sífilis e da varíola”, fundação da Casa de Expostos, asilos públicos e privados para a infância como bureau ouvert, obrigação do ensino da higiene, criação de institutos de proteção e subvenções à Santa Casa. Na ordem liberal oligárquica reinante, já defendia uma intervenção mínima do Estado diante do problema da chamada infância desvalida, mas nos moldes do paternalismo, do autoritarismo e da reprodução da condição operária. A Lei de 1891 que regulamentou o trabalho infantil foi, segundo Rui Barbosa, inócua, pois se limitava a definir uma idade de trabalho que nunca foi respeitada. Em 1909, foram criadas 19 escolas profissionais por Nilo Peçanha, destinadas à formação de aprendizes artífices (para o trabalho, embora pudessem ser autônomos), e que foram implementadas numa negociação política com as unidades da Federação. Assim, para os pobres restava o trabalho, a repressão e a subalternidade. Nesse período, a questão da educação estava articulada à questão da disciplina e da higienização, aliando-se ao controle da saúde o controle dos comportamentos, distinguindo-se os chamados normais dos denominados anormais. Para Carvalho (1997), a “escola nova” de Lourenço Filho se vinculou às mudanças que vieram no bojo da industrialização, apostando no poder civilizatório da modernidade, para que a escola pudesse se organizar como uma indústria, pressupondo-se inclusive uma atenção ao interesse do aluno. Para os que não se integrassem no processo de aprendizagem dessa sociedade emergente, ou seja a maioria, restava-lhes serem considerados 215 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI menores, incapazes, irregulares, devendo-se aplicar a eles o Código de Menores, estabelecido de maneira formal em 1927. O Código de Menores de 1927: tutela de pobres e desordeiros O Código de 1927, estabelecido pelo Decreto n 17.943-A de 12 de outubro desse ano, consolidou “as leis de assistência e proteção a menores”144 que foram se constituindo desde o início da República e visavam aos delinqüentes e abandonados, ou seja aqueles que não tinham família ou não obedeciam à ordem vigente. Estas duas categorias resumem a focalização dada, então, nas políticas para a infância: os coitadinhos e os perigosos. Significou, no entanto, uma maior intervenção do Estado na ordem familiar, estabelecendo-se uma vigilância da autoridade pública, que se sobreponha à família para garantir a higiene e a raça, principalmente dos que eram amamentados, os filhos da elite. Por meio do Programa de Controle da Lactação e da Alimentação o governo estabeleceu a inspeção das pessoas que tivessem crianças pequenas sob sua guarda, mediante salário, além do controle das mulheres que viriam a se “alugar como nutriz”. A autoridade pública podia impedir o abrigo de crianças em casas consideradas perigosas, anti-higiênicas ou imorais. Os Estados e municípios deviam organizar a vigilância sanitária e higiênica das creches, gotas de leite ou instituições de puericultura com subsídios do Governo Federal. O Código estabelecia várias categorias de crianças. Os infantes expostos, abandonados em lugares públicos ou privados, por sua vez, poderiam ser recolhidos com um registro secreto (sic!), para manter o silêncio sobre a paternidade, em defesa da honra de alguém que fizera um filho bastardo. Embora o Código tenha abolido o sistema das rodas, dispositivos em forma de cilindro na parede das Santas Casas, que recolhiam para dentro as crianças nele depositadas do lado de fora, seus dispositivos morais ficaram mantidos. Havia também os abandonados que não tinham habitação certa ou responsáveis que os assumissem, ou que vivessem em famílias consideradas 144 Para aprofundar a relação Estado/sociedade na Primeira República, ver Faleiros (1995), Rizzini (1995) e Marcílio (1998), dentre outros. Falava-se em 1912 de “infância criminosa” (projeto n.94 de 17/7) e em 1924 (Lei 2.059) fala-se em “menores delinqüentes”. Marcílio (p.201) assinala que já na segunda metade do século XIX as “instituições coloniais de proteção à infância desvalida (como Roda do Expostos), não mais respondiam às novas realidades e exigências do Brasil”. 216 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI “imorais”, além de abusivas pela crueldade, negligência ou exploração ou em situações de perigo ou risco145. Os vadios eram os refratários a receberem instrução ou a entregar-se a trabalho sério e útil, habitualmente a “vagar pelas ruas” e logradouros públicos (Art. 28). Os mendigos “habitualmente pediam esmolas”, enquanto que os considerados libertinos “convidavam companheiros ou transeuntes para a prática de atos obscenos”, e os prostitutos “viviam da prostituição de outro”. Para os delinqüentes menores de 14 anos, não existia um devido processo legal, tendo como destino o internato. A condenação por crime grave exigia estabelecimento especial para o internamento dos maiores de 16 e menores de 18 anos. A idade de 18 a 21 anos constituía circunstância atenuante e permitia sua separação dos condenados maiores. Para os menores delinqüentes de 14 a 18 anos, ficava a critério do Juiz qualquer decisão a seu respeito, fundando-a na personalidade moral do menor e na gravidade da infração. Também por determinação do Juiz, podia-se aplicar a liberdade vigiada. O Código proibiu o trabalho dos menores de 12 anos, e para os menores de 14 anos havia proibição de trabalho se não tivessem completado a instrução primária. A lei só parecia formal e igual para todos, pois deixava brechas para o trabalho dos pobres, já que a autoridade competente poderia autorizar o trabalho de menores de idade, sancionando a desigualdade perante a lei pela própria autoridade. Na realidade, a indústria empregava menores a partir dos 12 anos com salários inferiores ao dos adultos e com longas jornadas. O Código traduzia a formalização de uma lei para os pobres e perigosos, destinados ao trabalho e a uma vida subalterna, agora sob o controle da Justiça de Menores destinada à correção dos perigosos e à tutela dos coitados. A ditadura de Vargas, institucionalizada em 1937, aprofundou a visão de harmonia entre patrões e empregados, já formulada desde 1930, acoplando o corporativismo ao controle estatal dos sindicatos e da vida política. Para o controle da vida política nomeavam-se interventores de cima para baixo. Na esfera da educação levou em conta um pacto com a Igreja Católica, principalmente após a posse de Capanema em 1935 no Ministério da Educação, para preservação e apoio ao ensino privado e combate ao marxismo. Em 1936 Capanema propôs as bases do primeiro Plano Nacional de Educação, O artigo 9 do Decreto 17.943-A de 12/10/1927 reza que a autoridade pública pode ordenar a apreensão da criança quando sua casa for “perigosa ou anti-higiênica”. 145 217 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI com discussão sobre o “monopólio” do ensino pelo Estado, apoiado pelos representantes da Escola Nova. O Plano foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, mas em 1937, com o fechamento do Parlamento, não foi aplicado. Na visão então dominante, a criança, no ensino básico, era vista como “matéria plástica, a que é possível aplicar todas as espécies de hábitos e atitudes” (In SCHWARTZMAN, Simon et al.,1984, p.188), cuja educação ficava a cargo de estados e municípios. No ensino secundário, predominava o ensino privado, contando com 82,9% dos 629 estabelecimentos existentes no país em 1939. No ensino secundário, Capanema defendia o ensino da moral, da ética e do patriotismo, vendo-se o adolescente como servidor da ordem, com o ensino controlado pelo estado. Na era Vargas, a política para a infância pobre se confunde com o sinistro SAM (Serviço Nacional de Assistência aos Menores) onde se praticava a tutela do pobre/perigoso, aliada a uma brutal repressão. Foram criadas as delegacias de menores para onde eram enviados os meninos encontrados na rua e considerados suspeitos de vício e crime. Nos internatos do SAM, predominava a ação “repressiva e o desleixo contra os internos, ao invés da ação educativa”, ou seja, não havia qualquer proposta pedagógica nessas unidades, além de condições e instalações de péssima qualidade para os internos. Para manter uma raça saudável, principalmente para os filhos da elite, criou-se o Departamento Nacional da Criança (DNCr), que se propôs combater as “criadeiras”, mulheres que cuidavam de crianças e que eram consideradas causadoras de doenças pela pobreza e falta de condições higiênicas. Estimulou a amamentação materna e a vigilância dos lactários. O DNCr estimulou, também, a implantação de creches, junto com a Legião Brasileira de Assistência, fundada em 1943, formando os clubes de mães. Essa mesma política teve continuidade até 1964. Após a queda da ditadura de Vargas, em 1946 a Constituição democrática de então definiu o ensino primário obrigatório para todos nas escolas públicas, com determinação para uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (proposta em 1948) que só veio ser aprovada em 1961, cuja discussão trouxe à tona a disputa entre o ensino privado e público. A lei afirmava que a educação é direito de todos podendo ser assegurado pelo poder público e pela 218 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI iniciativa particular. Cabia ao estado fornecer recursos quando fosse provada a insuficiência de meios (artigo 2º). O artigo 30 da referida lei punia o pai que não colocasse o filho na escola, privando-o de emprego público mas, não recebia punição se fosse pobre ou se houvesse insuficiência de escolas. Desta forma, a própria Lei, isentava as crianças pobres da obrigatoriedade da escola, “por comprovado estado de pobreza dos pais” ou por insuficiência de escolas”. Ou seja, uma vez mais não se estabeleceu a norma igual de cidadania, pois a maioria da população continuou a ser exceção, a viver em “estado de exceção”, de exceção dos direitos, uma vez que a escola não era lugar para pobres, que continuavam no seu lugar de origem e destino : o trabalho. A ditadura de 1964 deu certo impulso ao ensino profissionalizante, dicotomizando-o do ensino médio, mas não teve sucesso com a profissionalização obrigatória, vindo-se a separar o ensino médio geral do ensino profissionalizante. Este, por sua vez, foi implantado no Sistema “S” (SENAC, SENAI) sob o comando direto dos patrões do comércio e da indústria. As classes médias altas e a elite nunca se integraram ao ensino profissionalizante que ficou, mais uma vez destinado às camadas pobres que conseguissem terminar o ensino fundamental ou primário. No contexto dessa ordem autoritária da ditadura baseada, ela mesma, na negação dos direitos políticos (por exemplo o não direito de voto e de candidatura), civis (por exemplo, não ter direito de ir e vir, de manifestação e de associação) e sociais (pois eram restritos e definidos pela tecnocracia dominante), aliada à repressão e à tortura dos opositores ao regime, é que se promulga o Código de Menores de 1979, de acordo à doutrina da situação irregular e com uma proposta repressiva. O termo situação irregular é conceitochave para se entender o Código de 1979. Compreendia a privação das condições de subsistência, de saúde e de instrução, por omissão dos pais ou responsáveis, além da situação de maus-tratos e castigos, de perigo moral, de falta de assistência legal, de desvio de conduta por inadaptação familiar ou comunitária, e autoria de infração penal (Art. 2º). Pobreza, é assim, situação irregular, ou seja considerada exceção, estado de exceção. A prática da política para a criança e o adolescente em situação irregular era operacionalizada pela FUNABEM (Fundação Nacional do Bem- 219 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Estar do Menor), propondo-se a prevenção e a ação contra o processo de marginalização146 do menor, ou seja, do que era considerado anormal. Essa marginalização seria causada, segundo o próprio diretor da FUNABEM, Mário Altenfeder, pela migração, pela urbanização e pelo esfacelamento da família, acrescentando que “dentro desse sistema, programas específicos serão montados para favelas e mocambos, para conjuntos habitacionais”. Mais uma vez a maioria é considerada exceção, marginalizada, anormal, objeto de uma ação corretiva e não de promoção da cidadania. O Código de Menores reforçava o poder do Juiz, pois, segundo a Lei, quando o Juiz desse uma sentença para que o menor fosse protegido, assistido ou vigiado teria a certeza de haver uma unidade do sistema. Esse sistema de repressão se fez articulado aos órgãos de segurança nacional, base de sustentação do poder ditatorial. Consideradas em situação irregular, a criança e o adolescente podiam ser internados por serem pobres, carentes ou abandonados, sem ordem escrita da autoridade competente e sem flagrante delito. A doutrina da situação irregular, anterior ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), era punitiva e tinha como conseqüência afastar a criança e o adolescente pobres da convivência com a coletividade por serem vistos como ameaça social. Prova disso era o fato de se atribuir à “vadiagem”, à “atitude suspeita”, à “perambulância” ou a outras motivações do mesmo tipo, 70% dos casos de meninos e meninas apreendidos nas ruas. Também eram internados os deficientes físicos e doentes mentais. Assim, a Lei 6.697 de 10 de outubro de 1979, denominada Código de Menores, deu continuidade ao Código de 1927, acentuando as disposições relativas ao abandono e à delinqüência, já definidas como categorias no Código de 1927. Apesar de uma conotação de “tratamento” relativa ao infrator, dentro dos estabelecimentos e no processo de internamento predominava a mesma visão moralista, de inibição dos desvios e de vícios na família ou na sociedade, sob a ordem da Justiça de Menores. 146 A marginalização é definida como “afastamento progressivo do processo normal ( sic!) de desenvolvimento”. In FUNABEM, ANOS 20., PP. 199. É o conceito de normalidade social que predomina. 220 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A redemocratização do país e a cidadanização O início da década de 1980 foi marcado pelo ressurgimento dos movimentos sociais, impulsionando o processo de redemocratização do país, trazendo para o debate político nacional o restabelecimento do Estado de Direito, isto é o reconhecimento, pelo Estado, não só dos direitos civis e dos direitos políticos, mas do direito a ter direitos, da garantia da cidadania. Nesse processo, grupos e movimentos já, a partir da década de 1980, ganharam mais força e começaram a se articular, gerando um amplo movimento em defesa dos direitos da criança e do adolescente para colocá-los na Lei, como cidadãos e, portanto, sujeitos de direitos. Dentre esses atores se destaca o DCI (Defesa da Criança Internacional), constituído a partir de 1979, por ocasião do Ano Internacional da Criança, como coordenador das organizações não-governamentais -ONG’sque participaram da elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, da ONU. O Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente -FDCA, começou a articular-se em 1987 e deu origem, em março de 1988, ao Fórum DCA; hoje existem Fóruns em todos os estados da Federação. Aproveitando os processos de democratização da sociedade brasileira e de elaboração constituinte, os diferentes grupos interessados na defesa dos direitos infanto-juvenis propuseram-se a trabalhar, juntos, na produção do conteúdo que deveria ser assegurado na Constituição Federal relativo a esta área. Esse movimento foi bastante significativo e se manifestou por meio de duas Campanhas: “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade Nacional”, que teve, em 1986 o apoio do Ministério da Educação, e envolvia mais de seiscentas instituições públicas, privadas e internacionais. Elaboraram as Emendas Populares 064 e 096 “Criança-Prioridade Nacional”, conseguindo arrecadar cerca de 250 mil assinaturas de apoio, emendas que foram traduzidas nos artigos 227 e 228 da Constituição. Esses artigos consagram a doutrina da proteção integral, assegurando à criança e ao adolescente ao mesmo tempo: os direitos básicos fundamentais da pessoa humana e direitos especiais, como ser ou pessoa em desenvolvimento. O paradigma da proteção integral: direitos e deveres para todos Nesse processo de luta, e já em acordo com o texto da Convenção 221 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que viria a ser adotado na Assembléia Geral das Nações Unidas de 20 de novembro de 1989147, foram aprovados, em 1988, os referidos artigos 227 e 228 da Constituição Federal. O Preâmbulo da Convenção ao invocar o reconhecimento: da dignidade e da liberdade inerentes à pessoa humana; dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana; de cuidados e proteção especiais que a criança necessita em virtude de seu desenvolvimento; de um ambiente harmonioso de desenvolvimento na família e na comunidade; do dever do Estado em garantir esses direitos nas políticas públicas, estabelece os pilares do paradigma da proteção integral. Esse paradigma instituinte representa uma profunda ruptura com o marco legal da maioria como exceção, com o as regras do jogo (ver nota de rodapé número 1) de nossa tradição política e com a doutrina da situação irregular. Assim se traduz essa proposta: • Ruptura com a consideração da criança pobre como “maioria em exceção”, considerando a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, como cidadãos de pleno no direito; • Ruptura com a ordem autoritária sobre a criança, tornando-a autora, protagonista de seu próprio destino e não objeto da ordem, garantia da raça, semente do futuro, incapaz de decidir, enfim como menor ; • Ruptura com a tutela clientelista dos pobres e a política dualista de educação para a elite e trabalho para os pobres, assegurando direitos iguais e um sistema igual de garantias; • Ruptura com a visão repressiva das instituições; • Ruptura com a política social excludente e marginalizante, repressiva e clientelista; • Ruptura com o desrespeito à dignidade e com a violência contra a criança e do adolescente. O paradigma da proteção integral pode ser assim desglosado no artigo 227 da Constituição Federal: 147 Esta Convenção foi também aprovada pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n°. 28 de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo Presidente da República através do Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990 222 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI “é dever da família, da sociedade e do estado”, isto é dos responsáveis pelo desenvolvimento da criança, nas suas relações com as redes primárias e secundárias; “assegurar”, ou seja, não apenas declarar, mas efetivar um direito que pode ser exigido, que tem exigibilidade na Justiça; “`a criança e ao adolescente”: e não ao menor, ao delinqüente, ao abandonado, ao pobre, mas todas e todos com idade inferior a 18 anos148, sem distinção de raça, de cor, de religião, de origem; “com absoluta prioridade”: isto é com o necessária efetividade e pronto atendimento do interesse da criança; “o direito”: isto é o reconhecimento de sua cidadania e dos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais indivisíveis, próprios de todo Estado de Direito; “à vida, à saúde, à alimentação”: visando à garantia da vida e da autonomia da existência; “à educação, à cultura, ao lazer e à profissionalização”: ou seja à formação, à aprendizagem continuada e à inserção nos valores e na fruição da vida boa149 da sociedade onde vive; “à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”: com garantia do respeito à personalidade da criança, à sua palavra, à dignidade de seu corpo e aos laços ou vínculos mais profundos e significativos que a ligam ao convívio social, sendo a família e a comunidade; “alem de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”: com proteção especial, isto é impedindo que sejam objeto de outrem ou do comércio, do crime, da ameaça e da violação de dos direitos acima enumerados, punindo-se quem vier a violar esses direitos. Esses direitos valem para todos os cidadãos e, portanto, são também 148 O Estatuto estabeleceu que o termo criança se refere a quem tem idade inferior a 12 anos e o termo adolescente à faixa etária de 12 a 18 anos, com medidas diferençadas para cada idade, no que tange ao processo penal. 149 Vida boa é o termo usado na filosofia política para designar a vida digna e feliz na satisfação das necessidades individuais e históricas. 223 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI deveres das crianças e adolescentes a quem são exigidos o respeito aos direitos assegurados à cidadania no seu conjunto. Direitos de uns são direitos de todos. No artigo 228, fica definida a inimputabilidade penal até 18 anos de idade, mas sujeitando os infratores a normas da legislação especial. Estes são considerados, assim, inimputáveis mas não impuníveis150, podendo receber as sanções da lei. O Estatuto da Criança e do Adolescente, fruto de um movimento de mobilização e pressão social151 e da ação da Frente Parlamentar pela Criança, que se constituiu logo após a promulgação da Constituição de 1988, foi aprovado em 25 de abril de 1990 no Senado Federal e, em 28 de junho de 1990, na Câmara dos Deputados. Em 29 de junho de 1990 o projeto foi homologado pelo Senado e sancionado pelo presidente da República no dia 13 de julho de 1990, passando a vigorar no dia 14 de outubro desse mesmo ano como a primeira lei de acordo com a Convenção Internacional pelos Direitos da Criança e do Adolescente. A experiência acumulada em todo esse processo serviu aos movimentos estaduais e municipais de defesa dos direitos da criança e do adolescente e, na elaboração das constituições estaduais e leis orgânicas locais, foram também assegurados os direitos da criança e do adolescente. O ECA, como veio a ser chamada a Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, juntamente com essa legislação adicional veio estabelecer um sistema de garantia dos direitos da criança, também denominado de sistema de exigibilidade de direitos, de acordo com o paradigma da proteção integral. Assim: • Crianças e adolescentes são cidadãos protagonistas de sua trajetória, de acordo com o seu desenvolvimento; • Crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e devem ter prioridade absoluta na família, na sociedade e no Estado; • A participação e controle social da sociedade são garantidos na deliberação sobre as políticas da infância e da adolescência através dos Conselhos de Direitos152, em todos os níveis de governo como órgãos O Dicionário Aurélio define como impunível: “que não pode ou não deve ser castigado; não punível”. 151 Ver FALEIROS, Vicente e PRANKE, Charles (coords), 2001. 152 É um órgão de caráter deliberativo, formulador das políticas públicas e controlador das ações de atendimento à infância e à juventude no município.O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente se configura como importante espaço democrático de discussão, análise e formulação de políticas públicas de atendimento dos direitos da 150 224 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI paritários; • São estabelecidos conselhos tutelares153 para zelar pelos direitos da criança e do adolescente como instância socioeducacional colegiada escolhida pela comunidade; • É punida a violação dos direitos da criança e do adolescente; • É estabelecida a prioridade para a convivência familiar e comunitária da criança e adolescente; • É estabelecida a integração e articulação de ações governamentais e não - governamentais na política de atendimento, considerando-se tanto as políticas sociais, como os serviços especiais dentro da municipalização; • São criados os fundos dos direitos da criança e do adolescente em todos os níveis vinculados aos respectivos conselhos de direitos; • É propugnada integração operacional dos órgãos de atendimento; • Fica incluída, nas diretrizes da política de atendimento, a mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade (&IV do Art. 88 do ECA); • É garantido o devido processo penal para o adolescente a quem se atribua prática de ato infracional; • É estabelecida a limitação dos poderes da autoridade judiciária; • Fica definida a implementação de mecanismos de proteção dos interesses difusos e coletivos; • É estabelecido o fim da política de abrigamento, a não ser em casos excepcionais (& único do Art. 99 do ECA), ou seja, política de desinstitucionalização. Estão estruturadas no ECA tanto a promoção, como a formulação, o controle social como a defesa dos direitos da criança e do adolescente. A promoção dos direitos é efetivada por meio de políticas públicas, incluindo a criança e do adolescente, a partir de uma ação conjunta entre os poderes públicos e a sociedade. Vale notar que a forma de participação da sociedade nos conselhos não substitui as diversas formas de participação popular existentes.. 153 Os conselhos tutelares são uma das mais importante inovações do ECA.. Seus membros são eleitos pela comunidade e devem conhecer a realidade local e suas redes de proteção. O Conselho Tutelar é um órgão público municipal permanente e autônomo, que tem como missão institucional zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente e contribuir para mudanças na forma de atendimento a estes direitos no município. Sua criação tem respaldo legal no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei Municipal. 225 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI parceria com órgãos da sociedade, compreendendo a prevenção e o atendimento a esses direitos com um diagnóstico da situação; formulação de um plano de ação e um orçamento bem estabelecido e articulado; assim como um sistema protetivo para toda a população infanto-juvenil e um sistema socioeducativo para os adolescentes envolvidos com o ato infracional. A dimensão de formulação e controle social implica um sistema de deliberação, zelo e vigilância desses direitos por meio dos conselhos de direitos, dos conselhos tutelares, dos fóruns e conferências, e movimentos protagônicos infanto-juvenis e da sociedade. Em dezembro de 2003, realizou-se a Vª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, cujo eixo foi o Pacto pela Paz assinado na Quarta Conferência em 2000 por representantes dos governos Federal e estaduais. Os eixos do Pacto fôramos direitos do artigo 227, acima citado: saúde; educação; cultura, esporte e lazer; assistência social; proteção especial (violência sexual, e trabalho infantil); medidas socioeducativas; conselhos de direitos, tutelares e fundo; mecanismos de exigibilidade dos direitos e meios de comunicação. A dimensão de defesa significa responsabilizar aqueles que deveriam efetivar esses direitos e não o estão fazendo, implicando diversos atores de âmbitos governamental e não-governamental, como as Secretarias de Justiça, Secretaria de Segurança Pública, Ministério Público, Defensoria Pública, Conselhos Tutelares, Centros de Defesa e associações legalmente constituídas que possuam, entre seus fins institucionais, a defesa dos direitos da população infanto-juvenil. A nova institucionalização do Estatuto da Criança e do Adolescente implica, não só uma garantia de direitos, mas também a democratização e descentralização do Estado, num processo de participação da sociedade na gestão pública, principalmente, através da implementação de conselhos paritários, com poder deliberativo. O ECA estabelece, portanto, uma nova relação de poder que traduz, na arena política, conflitos vigentes não só entre o instituinte e o instituído, mas entre novos atores que entram em cena e aqueles que detinham o poder hegemônico. Esse processo de cidadania, participação e descentralização se manifesta também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada em 1996. No quadro seguinte, fazemos um cotejo entre os dispositivos do ECA e os da LDB, mostrando que ambas as leis se inspiram no movimento instituinte de 226 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI cidadanização expresso na Constituição de 1988. O paradigma da proteção integral no ECA e na LDB 227 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Nos anos 90 acentuaram-se as mudanças nas relações econômicas e de poder no contexto da mundialização produtiva, comercial e financeira do capitalismo que, articuladas às políticas nacionais de redução do Estado, cortes nos gastos públicos e privatização trouxeram, no seu bojo, o desemprego, a exclusão social e a influência do narcotráfico e, ao mesmo tempo, favoreceram uma política de focalização, deixando-se de implementar as políticas universais de educação, saúde, assistência e outras que garantam a proteção integral. Se, por um lado, o paradigma da proteção integral conseguiu fazer avançar os direitos das crianças e adolescentes, com diminuição da mortalidade infantil, maior acesso à escola, estabelecimento de um processo de implementação da pré-escola, por outro, a mundialização, o neoliberalismo e a exploração capitalista aprofundaram os desafios para que houvesse uma real aproximação entre o Brasil real e o Brasil legal, no sentido de que a maioria da população não fosse a exceção, mas regra na efetivação da cidadania. Esses desafios estão sendo enfrentados nos Conselhos, nos Fóruns, nas Conferências, na mídia154, nas organizações não governamentais e também por políticas governamentais. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e (CONANDA), criado em 1991 pela Lei 8.242 vem definindo diretrizes, que são democraticamente discutidas, para tornar mais operacional esses sistema de garantia de direitos. Ao mesmo tempo, na área da educação as conferências, conselhos e fóruns têm levantado permanentemente a questão e as propostas para uma educação cidadã e de qualidade. O Plano Nacional de Educação (Lei 10.172/91) é um avanço na garantia de direitos à educação. A articulação entre a assistência social e o processo educativo vem sendo promovida por meio da merenda escolar, da distribuição do livro didático, do programa de erradicação do trabalho infantil e principalmente por meio do Bolsa Escola, hoje Bolsa-Família155. Embora o valor reduzido da bolsa, esta medida vem impulsionando o acesso e a permanência das crianças na escola, facilitando a sobrevivência da família. Com a importante participação da Agência de Notícias da Infância (ANDI) A implementação do Programa Bolsa-família (Medida Provisória 132 de 20/10/2003) agrega os programas Fome Zero (Lei 10.689/2003), Bolsa-Escola (Lei 10.219/2001), Auxílio-Gás (Decreto 4.102/2002) e Bolsa-Alimentação (Medida Provisória 2.206-1/2001), no sentido de assegurar um alívio à pobreza, com cadastro geral dos pobres (Decreto3.877/2001) sem, contudo criar uma nova agenda nas políticas sociais. 154 155 228 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A luta contra o trabalho de crianças e adolescentes vem sendo feita por meio do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, com envolvimento da Sociedade e num pacto federativo. O acesso à escola vem sendo implementado com a ampliação de vagas, mas a qualidade da escola deixa a desejar. Esta questão pode mudar com a valorização do professor (salário básico digno) e com o FUNDEB. Se é verdade que não se superou a desigualdade real, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a LDB, no entanto, não só se inscrevem na história como um sistema de atendimento, mas como um projeto civilizatório, voltado para a realização dos direitos humanos da criança como cidadã. A concepção de criança não é mais a de um adulto em miniatura ou de um objeto sem vontade própria, mas de um sujeito de direitos protagônico de seu desenvolvimento com o dever do Estado, da família e da sociedade de protegê-la. No período pós ECA a questão da punição de adolescentes infratores tem sido objeto de discussões na sociedade, de apresentação de projetos de lei reduzindo a idade penal, sobretudo quando da existência de uma violência grave praticada por adolescentes. (Faleiros, 2004). A redução idade penal é apresentada como um remédio sem considerar o processo do crime e as condições da internação em unidades fechadas. Uma das principais propostas para o atendimento de adolescente infratores foi a construção do SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Sócioeducativo. Trata-se de uma política pública com o objetivo de inclusão social e profissional do adolescente em conflito com a lei. Esta política pressupõe a integração do Sistema de Justiça e Segurança Pública com o Sistema Educacional, o Sistema Único de Saúde e o SUAS – Sistema Único da Assistência Social. Essa política valoriza a educação dos adolescentes e não a repressão, sem descuidar da responsabilização do infrator pelos atos praticados e levando em conta a sua situação de sujeito de direitos e deveres em desenvolvimento. Para tanto é necessário que as instituições tenham condições de oferecer a formação necessária, o atendimento especializado e uma gestão democrática. É comum, no entanto, observar-se que as condições dessas instituições não se adéquam aos propósitos do SINASE que exige a responsabilidade do poder público, tanto do Judiciário como do Executivo, dos 229 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Conselhos de Direitos e Tutelares, da comunidade e da família. Outro tema relevante na garantia dos direitos da criança e do adolescente é a nova regulamentação da adoção. A nova Lei de Adoção (Lei 12.010 de 03 de agosto de 2009) está consoante com o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, aprovado em 2006 pelos Conselhos Nacionais de Assistência Social e de Direitos da Criança e do Adolescente. O referido Plano tem como base o direito da criança a uma família e a ruptura com as práticas de abrigamento, que deve ser provisório e excepcional. O direito à família é a expressão mais significativa do direito à proteção integral com garantia do desenvolvimento e do respeito à criança como pessoa e como cidadã. No artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ambos devem ser criados e educados no seio de sua família, e excepcionalmente, em família substituta, por decisão judicial. Se for adotada a criança tem os mesmos direitos dos filhos biológicos, sendo a mesma irrevogável, diferentemente da guarda ou tutela, outras figuras jurídicas de proteção à criança. A adoção, nessa perspectiva, não é vista como um meio para resolver problemas de herança (como o foi no passado) ou para atender somente à necessidade do adotante. É a criança que está em primeiro lugar e deve ser reconhecida em sua necessidade de família. Inverte-se o foco: passa-se da perspectiva do adotante para a do adotado. A família é considerada em seus vínculos biológicos e em seus vínculos afetivos. Para proteger a criança a Lei busca assegurar uma política pública para a convivência familiar, inclusive com a obrigação de dotação orçamentária. Essa política, em primeiro lugar, deve prestar apoio à família desde a gestação para que a escolha de doar um filho não seja em razão de pobreza ou de falta de formação e conhecimento. Estabelece prazos para o abrigamento, quando ocorrer, com um prazo máximo de dois anos, com agilização dos procedimentos judiciais. A criança, quando possível, deve ser sempre ouvida e contar com preparação adequada, com respeito à sua identidade social e cultural. A Lei dita muito rigor para a adoção por estrangeiros. A Lei estabelece ainda que serão criados cadastros estaduais e nacional de crianças e adolescentes de serem adotados e de pessoas ou casais 230 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI habilitados à adoção, o que pode reduzir a defasagem entre a demanda ou preferência dos adotantes por certo tipo de crianças e a realidade existente de crianças com faixa etária acima de 4 anos e de cor negra ou parda.Os adotantes podem conhecer melhor a realidade e re-elaborar suas pretensões, com apoio psicossocial. A criança adotada tem o direito de conhecer sua família de origem e de ter acesso irrestrito ao processo de adoção quando completar 18 anos, o que vai implicar em um diálogo amoroso entre o adotante e o adotado sobre suas origens, o que vai facilitar a ruptura do silêncio sobre as origens da criança para sua plena integração, inclusive com tios, avós e primos. A política de adoção implica, pois medidas integradas e interdisciplinares do Judiciário, do Executivo, das famílias e da comunidade para que a criança possa se desenvolver com proteção integral, cidadania e autonomia com vínculos familiares de afeto. Uma terceira dimensão de mudanças no ECA foi a referente ao combate à violência sexual contra crianças e adolescentes com destaque para a lei 11.829 que penaliza a pornografia e a pedofilia, por todos os meios de registro de imagens e armazenamento das mesmas, e também o assédio ou aliciamento de crianças e adolescentes para fins sexuais. Essa lei está articulada com as mudanças no código penal que redefine os crimes sexuais (Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009). São tratados como crimes contra a dignidade sexual, agravando-se as penas de estupro (não mais somente contra a mulher) se a vitima é menor de 18 ou maior de 14 anos. O estupro de vulnerável (menor de 14 anos) tem aumento de pena. Além disso, a Lei tipifica os crimes sexuais contra vulnerável, definido que “induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer a lascívia de outrem” tem a pena de reclusão de 2 a 5 anos. Nos demais crimes previstos no Título VI do Código Penal, referente aos crimes contra a dignidade social, há aumento de pena quando praticada contra menores. A legislação passou a contemplar uma reivindicação da sociedade para mudar o paradigma referente aos crimes sexuais que considerava a mulher em posição de inferiorização e numa perspectiva machista. Além disso tornou a criança e o adolescente mais protegidos em razão da sua condição de pessoa em desenvolvimento. A idade de 18 anos passou a ser um limite fundamental dessa 231 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI proteção pois pressupõe-se que a maturidade e a autonomia já se encontram consolidadas nessa idade. Na mesma lei o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a incluir o Art. 244-B que tipifica o crime de corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 anos com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticála. A atuação do crime organizado envolve adolescentes e mesmo crianças na prática de atos contrários à Lei. À guisa de conclusão podemos salientar que os direitos da criança e do adolescente se inscrevem na perspectiva dos direitos humanos que se tornaram o horizonte de fundamentação de um pacto civilizatório diante da crise dos valores provocada pela competitividade globalizada e pelo neoliberalismo. A construção de uma sociedade pactuada pelos direitos humanos implica o envolvimento do Estado, da sociedade e da família para que se reconheça e se assegure o respeito e a dignidade de adultos e crianças. Bibliografia ANDRADE, J. E. Conselhos tutelares, sem ou cem caminhos. São Paulo:Veras Editora,2000. ANCED. 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São Paulo, Editora Jalovi, 1980. CONANDA. Relatório Final da III Conferência Nacional do Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília: Conanda, 2000. CONANDA. Anais da II Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, Agosto/1997.Brasília: Conanda, 1998. CONANDA, Anais da IV Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, 19 a 22/11 de 2001. Brasília: Conanda, 2002 CONANDA. Diretrizes nacionais para a política de atenção integral à infância e à adolescência. Brasília: Conanda, 2000. CURY, M.; Silva, A. F. ª e MENDEZ, E. G. orgs. Estatuto da Criança e do Adolescente - Comentários Jurídicos e Sociais. São Paulo: Malheiros Editores, 1992. FALEIROS, V. P. e PRANKE, C. Coords. Estatuto da Criança e do Adolescente- Uma década de direitos- avaliando resultados e projetando o futuro. Campo Grande: Editora da UFMS, 2001. FALEIROS, V. P. Infância e processo político no Brasil. In: PILLOTTI, F. e RIZZINI, I. Orgs. A arte de governar crianças. 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Os meses que se seguiram ao fim da guerra forneceram informações sobre o elevado nível de degradação moral e espiritual a que chegou a espécie humana. Foram descobertos os campos de concentração em massa e as experiências macabras a que seres humanos foram submetidos. Hannah Arendt ao cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, nos primeiros anos de 1960, iria encontrar uma tese para explicar o inexplicável: o homem como protagonista da banalização do mal. Independente de existir ou não um diploma legal a verdade é que a experiência do Sagrado permeia as civilizações e as sociedades humanas. É parte integrante da cultura dos povos e a ela está conectada como a sombra se projeta do corpo, como a pele protege o corpo humano. Mas haveria de fazer parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos a afirmação inequívoca e indubitável do que dispões seu artigo 18: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.” Atônito, aturdido, perplexo. É assim que o ser humano se vê quando contempla os imensos desafios que jazem à sua frente. É a perplexidade de existir em um mundo convulsionado, onde o que parece sólido há muito se desmanchou no ar, em que a História, a sua história teve seu fim decretado * Washington Araújo é graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UniCEUB), mestre em Comunicação Social (Cinema) pela Universidade de Brasília, professor do Curso de Pós-Graduação do UniCEUB – Brasília e professor de Cursos de Extensão na Unilegis – Brasília. 235 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI nos estertores do século passado, no qual o equilíbrio – sempre tênue – entre forças historicamente antagônicas como uniformidade e diversidade, capital e trabalho, competição e cooperação, nacionalismo e cidadania mundial tem se mostrado extremamente frágil e projeta para os anos vindouros razões para preocupação. Uma preocupação planetária. É inegável que a maior parte dos conflitos sangrentos de nossa História resultam da intolerância e do fanatismo religioso. Na Idade Média conflitos ceifaram milhares de vidas. As Cruzadas colocaram lado a lado o poder temporal dos reis e governantes com os símbolos sagrados tanto do Cristianismo quanto do Islã. A descoberta do Novo Mundo em 1492 também se escreveu com a tinta rubra da fé que deveria se impor a ferro a e a fogo e o resultado foram milhões de indígenas escravizados, torturados, assassinados. Há seis décadas (1939/2009) a Europa foi palco da mais tenebrosa cicatriz de nossa história espiritual – o extermínio de 6.000.000 de judeus sob o jugo de Adolf Hitler e seus asseclas. Não faz muito tempo assistíamos nas telas de nossa tevê o genocídio dos curdos no Iraque e no Irã, o massacre dos sérvios e croatas nos Bálcãs por motivo religioso. Permanece intocado o drama agônico de milhões de tibetanos que, apartados de seu líder espiritual, o Dalai Lama, continuam mantendo a muito custo a chama de sua fé acesa. No Irã sobrevivem 300.000 membros da religião bahá´í vítimas contumazes de governos intolerantes, fanáticos e avessos completamente ao diálogo interreligioso. E enquanto digito essas palavras estou, infelizmente, convencido de que grande número de seres humanos são forçados a abdicar de suas crenças, são alvo de todo tipo de perseguição movida sistematicamente pelos governos de plantão, em particular, cidadãos de países que esposam ideologias totalitárias. Os dons naturais que distinguem o gênero humano de todas as outras formas de vida encontram-se resumidos naquilo a que se chama espírito humano; o intelecto é a sua qualidade essencial. Esses dons permitiram à humanidade construir civilizações e prosperar materialmente. Mas tais realizações, por si só, nunca saciaram o espírito humano, cuja natureza misteriosa o predispõe para a transcendência, para estender-se em direção a um domínio invisível, à realidade suprema, àquela essência das essências incognoscível chamada Deus. As religiões, trazidas à humanidade por uma série de luminares 236 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI espirituais, têm sido os principais elos de ligação entre a humanidade e essa realidade suprema, e têm galvanizado e refinado a capacidade da humanidade para alcançar o sucesso espiritual juntamente com o progresso social. Nenhuma tentativa séria de endireitar os afazeres humanos e de alcançar a paz mundial pode ignorar a religião. A sua percepção e prática pelo homem são assuntos amplamente cobertos pela História. Um eminente historiador descreveu a religião como «uma faculdade da natureza humana». Que a perversão desta faculdade tenha contribuído em grande parte à confusão que atualmente reina no mundo, e os conflitos existentes entre os indivíduos e no seu íntimo, dificilmente pode ser negado. Ao mesmo tempo, nenhum observador imparcial pode menosprezar a influência preponderante exercida pela religião sobre as expressões vitais da civilização. Mais ainda, a sua indispensabilidade à ordem social tem sido repetidamente demonstrada pelo seu efeito direto sobre as leis da moralidade. Falando da religião como força social, Bahá’u’lláh (1817-1892) disse: «A religião é o maior de todos os meios para o estabelecimento da ordem no mundo para o contentamento pacífico de todos os que nele habitam». Referindose ao eclipse ou à corrupção da religião, ele escreveu: «Se a lâmpada da religião for obscurecida, reinarão o caos e a confusão, e as luzes da eqüidade, da justiça, da tranqüilidade e da paz deixarão de brilhar». Enumerando as conseqüências disso, as Escrituras Bahá’ís destacam o fato de que, «nestas circunstâncias, a perversão da natureza humana, a degradação do comportamento humano, a corrupção e a dissolução das suas instituições revelam-se em seus aspectos mais repugnantes e revoltantes. O caráter humano é aviltado, a confiança é abalada, os nervos da disciplina são relaxados, a voz da consciência humana é silenciada, o sentido da decência e da vergonha é velado, os conceitos do dever, da solidariedade, da reciprocidade e da lealdade são distorcidos, e os próprios sentimentos de paz, alegria e esperança extinguem-se gradualmente. Se, por conseguinte, a humanidade chegou a uma situação de conflitos paralisantes, precisa então olhar para si mesma, para a sua própria negligência, para os cantos de sereia a que tem dado ouvidos, para a fonte dos mal-entendidos e da confusão perpetrada em nome da religião. Àqueles que se têm agarrado cega e egoisticamente às suas ortodoxias particulares, e que impuseram aos 237 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI seus devotos interpretações errôneas e contraditórias dos pronunciamentos dos Profetas de Deus, a esses cabe uma pesada responsabilidade por toda esta confusão - uma confusão agravada pelas barreiras artificiais erguidas entre a fé e a razão, a ciência e a religião. Isto porque, partindo-se de um exame imparcial dos pronunciamentos feitos efetivamente pelos Fundadores das grandes religiões, e levando-se em conta os meios sociais em que tiveram de cumprir as suas missões, não se vislumbram fundamentos para as alegações e os preconceitos que transformam as comunidades religiosas do mundo, e, conseqüentemente, todos os afazeres humanos. O ensinamento de que deveríamos tratar os outros tal como gostaríamos de ser tratados, uma ética repetida de várias maneiras em todas as grandes religiões, apóia esta última observação em dois aspectos particulares: resume a atitude moral, o aspecto promotor da paz que emana dessas religiões, independentemente do lugar ou da época em que tiveram a sua origem; e implica também um aspecto de unidade que é a sua virtude essencial, uma virtude que a humanidade, com a sua visão fragmentada da História, não tem podido apreciar. Se a humanidade tivesse visto os Educadores da sua infância coletiva em seu verdadeiro caráter, como agentes de um processo civilizatório, teria indubitavelmente colhido benefícios incalculavelmente maiores dos efeitos cumulativos das suas sucessivas missões. Desafortunadamente, não o fez. O ressurgimento da religiosidade fanática, que atualmente se observa em muitas terras, não pode ser visto senão como um derradeiro espasmo antes da sua extinção. A própria natureza dos fenômenos violentos e destrutivos a ele associados é atestado eloqüente da falência espiritual que representa. Efetivamente, uma das características mais estranhas e mais tristes de irrupção atual do fanatismo religioso é o modo como, em cada caso, está minando não só os valores espirituais conducentes à unidade da humanidade, mas também aquelas vitórias morais únicas ganhas pela religião particular a que pretende servir. Por mais vital que tenha sido a sua força ao longo da História da humanidade, e por mais dramático que seja o atual ressurgimento do fanatismo religioso militante, a religião e as instituições religiosas, no decorrer das últimas 238 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI décadas, estão sendo considerados por um número crescente de pessoas como irrelevantes em relação às principais preocupações do mundo moderno. Em seu lugar, as pessoas voltaram-se ou para a procura hedonística da satisfação material, ou para a devoção a ideologias fabricadas pelos homens com o objetivo de salvar a sociedade dos males evidentes de que padece. Lamentavelmente, muitas dessas ideologias, em vez de abraçarem o conceito de unidade da humanidade e promoverem o aumento da concórdia entre os diversos povos, manifestaram tendência a deificar o Estado, a sujeitar o resto da humanidade ao domínio de uma nação, raça ou classe, a procurar suprimir toda a discussão e o intercâmbio de idéias, ou a abandonar friamente milhões de seres humanos à sorte de um sistema d mercado que, de forma mais que patente, esta agravando as agruras em que se encontra a maioria da humanidade, ao mesmo tempo que permite que pequenas parcelas vivam em condições de riqueza, com que nossos antepassados dificilmente poderiam sonhar. Como são trágicos os resultados da fés substitutas que os sábios mundanos da nossa era criaram! Na desilusão maciça de populações inteiras que foram ensinadas a venerar em seus altares, pode ler-se o veredicto irreversível da História acerca do seu valor. Os frutos que essas doutrinas produziram, após décadas de um exercício cada vez mais irrestrito do poder por aqueles que lhes devem a sua ascensão no mundo dos homens, são as enfermidades sociais e econômicas que invadem todas as regiões do mundo nos anos finais deste século XX. Na base de todas essas aflições exteriores estão os danos espirituais, refletidos na apatia que se apossou da massa dos povos de todas as nações e na extinção da esperança nos corações de milhões de destituídos e angustiados. Chegou o momento em que aqueles que pregam os dogmas do materialismo, quer do Leste ou do Oeste, tanto o capitalismo quanto o socialismo, terão de apresentar contas da tutela moral que têm presumido exercer. Onde está o “novo mundo” prometido por essas ideologias? Onde está a paz internacional a cujos ideais proclamaram a sua devoção? Onde estão os avanços para novos domínios de progresso cultural, produzidos pelo enaltecimento desta raça, daquela nação ou de determinada classe? Por que é que a vasta maioria dos povos do mundo está se afundando cada vez mais na fome e na miséria, quando os árbitros atuais dos afazeres humanos têm a sua 239 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI disposição riquezas incalculáveis, a uma escala jamais concebida pelos Faraós e pelos Césares, e nem mesmo pelas potências imperialistas do século passado? Muito em especial, é na glorificação das conquistas materiais simultaneamente origem e característica comum de todas essas ideologias - que encontramos as raízes da falsa crença de que seres humanos são incorrigivelmente egoístas e agressivos. E é aqui que o terreno tem que ser desobstruído para a edificação de um novo mundo digno dos nossos descendentes. A conclusão de que os ideais materialistas falharam, quando examinados à luz da experiência, evoca um reconhecimento honesto de que tem de ser feito agora um novo esforço para encontrar soluções para os problemas angustiosos do planeta. As condições intoleráveis que predominam na sociedade falam de fracasso comum de todos eles, circunstâncias que tende a reforçar, em vez de aliviar, o entrincheiramento de parte a parte. Claramente, há necessidade urgente de um esforço em comum para remediar tal estado de coisas. O que é preciso, acima de tudo, é uma mudança de atitude. Irá a humanidade continuar com a sua obstinação, apegada a conceitos superados e suposições impraticáveis? Ou irão os seus dirigentes, independentemente das suas ideologias, dar um passo à frente e, animados por uma vontade inabalável, conferenciar uns com os outros, numa procura solidária de soluções apropriadas? Aqueles que se interessam pelo futuro do gênero humano bem podem ponderar este conselho: “Se os ideais há muito nutridos, se as instituições honradas pelo tempo, se certas suposições sociais ou fórmulas religiosas já não promovem o bem-estar geral da humanidade, se deixaram de corresponder às necessidades de uma humanidade em constante evolução, que sejam, então, repelidos e relegados ao limbo das doutrinas obsoletas e esquecidas. Por que razão, num mundo sujeito à lei imutável da transformação e da decadência, deveriam ficar isentos da deterioração que há necessariamente de alcançar todas as instituições humanas? Afinal, a única finalidade das normas jurídicas, das teorias políticas e econômicas, é a salvaguarda dos interesses da humanidade em seu todo - e não é a humanidade que deve ser crucificada para a preservação da integridade de qualquer lei ou doutrina particular”. Há que se fazer também considerações sobre a percepção que temos do mundo atual após o acelerado desenvolvimento dos meios de comunicação 240 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI e integração econômica e tecnológica. O processo conhecido como globalização avançou célere no último quarto de século e a interdependência entre povos e nações tornou-se fato consumado. Mas, à medida que passamos a nos enxergar como um só mundo, como cidadãos de um único planeta vimos confrontados por duas visões distintas – apreciar a rica diversidade humana ou menosprezar esse padrão distintivo de nossa evolução rumo ao estabelecimento de uma civilização universal. Em apoio à atitude positiva de inclusão de todos os seres humanos no contexto de sermos membros de uma só família mundial e que atende pelo nome de humanidade vimos o surgimento de um sem número de organismos internacionais, multilaterais reunindo países, povos e culturas em busca de objetivos comuns como, por exemplo, distribuição equitativa de bens econômicos e políticas públicas para a justiça social, encurtamento do imenso abismo que separa ricos de pobres. O contraponto tem surgido com igual vigor – o surgimento de atitudes belicosas, pensamentos beligerantes acerca da natureza humana, focos de intolerância étnica, racial, religiosa além do fomento de filosofias fundamentalistas. Em outras palavras poderíamos afirmar que a intolerância – seja de qual matiz for – apresenta-se como o maior obstáculo ao estabelecimento de uma civilização firmada no respeito e na promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana pois a liberdade de ser, pensar e crer bem pode ser considerada como a característica distintiva da condição humana, uma característica que não pode, sob qualquer preceito ou instância, ser diminuída ou vilipendiada sob pena de jogarmos na lata de lixo da História todos os avanços até hoje conquistados. Tendo estes pensamentos em mente pensei, então, no número expressivo de vidas de seres humanos que são brutalmente interrompidas por se recusar a abdicar de suas crenças. Levas de seres humanos condenadas pelo ato de pensar. Gerações inteiras desperdiçadas em lutas inúteis onde brilham os fogos fatídicos da intolerância. É que cada um de nós abriga no lado esquerdo do peito uma usina de emoções, sentimentos, percepções, intuições. A mente cria as leis, as salvaguardas, gera os mecanismo de proteção de direitos. Mas é o coração que lhes concede o sopro do espírito, as brisas da alma, as digitais do Sagrado. Foi assim que queria hoje escrever apenas com o coração. Nada de dedos e muito menos de teclado. 241 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Queria escrever com ondas do mar, dessas em que a crista se sobressai. Nada de lamentar o tempo perdido e muito menos fazer considerações sobre o que ainda há de vir. Queria escrever com o sentimento mais puro e por isso mesmo, mais refinado e precioso. Nada de rebuscar lenha colocada na fornalha da mente, sempre fumegante. Queria escrever apenas com os olhos, olhos que vêem perfeição. Nada de olhos que buscam a todo o momento aperfeiçoar o imperfeito. Queria escrever tudo em tonalidades de azul, do escuro ao claro, passando pelo meio, onde nuvens poderiam ser colocadas sem alterar um piscar de olhos da paisagem. Nada de cores muito sóbrias e sombrias e muito menos de furtacores. Queria escrever com a luz decrescente do sol que se põe, as palavras seriam fulgores arroxeados, as frases seriam claras como o luar depois das onze da noite. Nada de luzes ofuscantes, holofotes exagerados, nada que faça arder a pupila e canse a vista. Queria escrever palavras em fogo líquido, sendo derramadas pouco a pouco sobre minha consciência, deixando marcas e mais marcas. Nada de coisas que queimam e machucam a sensibilidade. Queria escrever sinais de fumaça sem usar parágrafos longos e sem fazer uso de verbos intransitivos. Nada de sinais muito permanentes e muito menos desses que demoram muito a se evaporar. Queria escrever mil páginas com um só sopro, sopro de vida, sopro de alma. Nada de lufadas criando sensações de desalinho e de desalento. Queria escrever um bilhete que começasse assim: “Apesar de tudo, nunca me afastei de ti.” Nada de bilhetes rebuscados, com vocativos e saudações finais. Queria escrever uma frase que começasse assim: “E amanheceu em meu coração uma nova sensação, uma sensação de que faço parte do todo.” Nada de frases banais e corriqueiras nem de pedaços de pensamento que o tempo de encarregou de lhes dar cabo. Queria escrever um poema sem nome, desses que se acerta com 242 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI o nome à medida que se vai lendo. Nada de poemas fabricados com as placas duras e cinzentas do concreto que tanto se enraízam em Brasília. Queria escrever um verso que pudesse ser lido de mil diferentes maneiras. Nada de métrica nem de observação a teorias literárias. Queria escrever apenas manchetes para jornais. Sem notas explicativas e sem seções do tipo “entenda o caso”. A própria manchete daria conta do recado. Queria escrever uma palavra de consolo e esperança aos que tombam, inocentes, nas guerras inúteis e sem sentido que povoam nossos noticiários. Nada de lágrimas de luto nem de desespero incontido. Queria - como o poeta - compor uma sinfonia que contivesse uma pausa de mil compassos. Nada de novos ritmos, frenéticos, bem arrumadinhos e muito menos delirantes. Queria escrever algo duradouro como a criança escreve seu nome e faz um desenho à beira-mar, inconsciente da onda que se aproxima, inexorável. Nada de tratados verborrágicos nem de verbetes para aprisionar o senso comum. Queria escrever traços que me lembrassem de todos os que amei, amo e virei a amar. Nada de imagens fugidias que em nada marcaram minha peregrinação pela vida. Queria escrever a quem me alfabetizou que fiz bom uso da maioria das letras do alfabeto. Nada de x, y ou z e muito menos de palavras que vagam pelos dicionários sem qualquer senso de direção, desnorteadas em meio a tantos milhares de verbetes. Queria escrever como quem leva flores ao túmulo dos vencidos da Terra. Nada de algazarra nem de piedosas intenções. Queria escrever aos meus companheiros de viagem que continuem o que deve ser continuado e que vivam cada dia como se fosse o seu último dia. Nada de conselhos, provérbios populares, histórias que foram recolhidas na terceira margem do rio da vida. Queria escrever aos amigos que conheci ainda aos dezessete anos, algo que começasse assim com a sentença forte do “a gente ainda nem começou…” Nada de planos e projetos de caminhada a dois, a três ou a quatro e muito menos de multidões desencantadas de futuros amigos. 243 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI Queria escrever um testamento que tivesse a leveza do vôo do bemte-vi, suspenso no ar como se presenciasse o milagre da insustentável leveza do espírito. Nada de coisas materiais e imateriais e nada de nome de possíveis herdeiros. Queria escrever neste momento meu epitáfio: “Nasceu. Viveu. Sonhou”. Nada de triste e profundo, nem muito menos algo que lembrasse que passei por aqui. Queria escrever para os meus mortos mais queridos e mais amados e dizer o que não foi dito enquanto aqui estiveram. Nada de angústias, lamúrias, lamentações. Queria escrever o que não pode ser escrito. Mas que pode, muito bem, ser sonhado, amado e vivido. 244 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI A EXAUSTIVA JORNADA DA HUMANIDADE Xavier J M Plassat174* O tráfico de seres humanos voltou a ser manchete na atualidade global No Brasil, a recém estabelecida Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas adotou a definição do Protocolo de Palermo (Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças) ao definir o tráfico de pessoas “como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”. (Decreto n° 5.948 de 26.10.2006). Escravatura e tráfico são faces da mesma moeda No relógio da história mundial, a proibição da escravatura é fato de ultima hora. A prática da escravidão tem acompanhado a humanidade desde seus princípios, como recordam documentos dos antigos impérios da Babilônia ou papirus do Egito. Um estatuto legal para o escravo existe pelo menos a partir de 1790 antes de JC e, por milhares de anos, permaneceu quase inquestionada a existência de uma não-humanidade ao lado da real. No código antigo de Babilon, se um farmacêutico cometia erro fatal em um paciente, devia ser castigado Xavier J M Plassat - Frade dominicano, francês, 58 anos, formado em Ciências Políticas, Economia e Administração (Paris I). Na França, foi auditor financeiro a serviço das comissões de fábrica (1976-1988). Desde 1989, é agente da CPT, no Tocantins, nas áreas de formação, organização e administração ligadas às lutas camponesas e à reforma agrária. Desde 1997, assume a Coordenação da Campanha Nacional da CPT contra o Trabalho Escravo, a qual representa na CONATRAE. * 245 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI com corte das mãos, salvo se este fosse um escravo, caso em que só deveria fornecer outro. Nas suas cartas, o apóstolo Paulo de Tarso tratou do assunto com naturalidade ao conclamar que “aqueles que se encontram sob o jugo da escravidão tratem seus patrões com todo o respeito, para que o nome de Deus não seja blasfemado. Os que têm patrões que acreditam, não os desrespeitem, porque são irmãos. Pelo contrário: sirvam a eles melhor ainda, pois aqueles que se beneficiam de seus trabalhos são fiéis e irmãos amados.”(1Tm 6,2). O escravo é homem? O próprio Aristóteles o rebaixa à condição de sub-homem quando apresenta uma relação mestre/escravo mutuamente benéfica, à imagem da relação alma/corpo... Na mãe das democracias, uns são chamados a ser cidadãos, outros a laborar para prover às necessidades dos primeiros. Tida por natural, a escravidão só suscita dúvida quando homens livres ‘por natureza’ são capturados e, por fraude ou por guerra, caem na escravidão. Para vários autores, a escravidão física foi tida como mal menor frente ao risco da escravidão moral ou espiritual (do vício). Quem sabe, diria-se hoje, frente ao risco do desemprego ou o perigo da delinquência: qualquer trabalho não é melhor do que nada? Não faltaram ainda as justificações teológicas ou éticas: ao fim e ao cabo, a escravidão decorre do pecado. As vozes contrárias a essa estrutura fundante da organização social de todos os tempos são raras exceções: tratar bem seu escravo é a máxima ressalva, propor-lhe o exercício da virtude como caminho da verdadeira liberdade é a estratégia. Aceitar sua sina como mal menor e quem sabe, expressão da normalidade, é o mote. Isolado no século XVI, o dominicano espanhol frei Bartolomeu de Las Casas será um destes francos e incansáveis atiradores, incomodado pelo grito lançado na Ilha de La Espanhola pela comunidade também dominicana de Antônio de Montesinos: “Estes, não são homens? Com que direito os escravizais?” Durante o século do Iluminismo – que viu filósofos se erguerem contra o absolutismo, o obscurantismo, a realeza e a Igreja – registrou-se o recorde absoluto do tráfico negreiro entre a França e suas colônias (Guadeloupe, Martinique, e sobretudo Santo Domingo, futuro Haíti): 1,1 milhão de escravos africanos, sendo 270 mil somente na década de 1780. Quem destes filósofos levantou voz contra? Nem Rousseau, nem Montesquieu. Apenas com Mirabeau e Diderot aparecerão críticas à desumanidade do sistema 246 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI do comércio triangular e perspectivas – ainda que remotas – para a emancipação dos escravos. Passados 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: o número estimado de escravos que hoje existem mundo afora - entre 12,3 milhões (estimativa da OIT, sendo 1,4 para exploração sexual) e 27 milhões (estimativa da ONG americana Free the Slaves) - ultrapassa a quantidade acumulada de população traficada da África para o outro lado do Atlântico em mais de três séculos de comércio negreiro e, possivelmente, fica acima de qualquer outro momento da história. A OIT estima em 170 milhões o número atual de migrantes no mundo, metade deles ‘economicamente ativos’ e 2,7 milhões ‘traficados’, sendo 15% destes a partir do Brasil: “vidas roubadas” (Binka Le Breton), “gente descartável” (Kevin Bales)... De 1550 a 1850, quando o tráfico, ilegal desde 1830, foi definitivamente abolido, o Brasil importou cerca de 3,5 milhões de cativos africanos, número que representa cerca de 40% dos Africanos arrancados às terras de Angola, Congo, Mina ou Moçambique rumo ao Novo Mundo. Com uma taxa média de mortalidade de 20% a 25% a bordo dos návios negreiros, mais um milhão nunca chegaram ao litoral da Terra da Santa Cruz. Ano sim, ano não, 7 a 15.000 cativos entraram nos portos brasileiros onde seriam leiloados para ir sustentar os ciclos sucessivos da cana, do ouro e do café. Entre 1850 e 1888 – ano da lei Áurea: somente 60 anos antes da Declaração Universal – uma média anual de 5.500 escravos foram traficados das regiões de depressão econômica do Norte e Nordeste com destino aos novos pólos de desenvolvimento do Centro e do Sul. Em 1819, da população total do Brasil (3,6 milhões), 30% são escravos. Em 1872: 15% ainda. E hoje? Os censos deixaram de contabilizar a população escrava no Brasil, por suposto extinta com a Abolição legal. Ninguém também se preocupou em conferir os destinos exatos dos ex-escravos que – pelo efeito calculado da Lei de Terras aprovada just in time para afastá-los do acesso à terra (até então) livre – foram fadados a ingressar no exército de reserva dos sem-terra e sememprego (a não ser voltando a servir nas terras dos seus antigos patrões). O ciclo da borracha recorreu conhecidamente a novos escravos na forma moderna do ‘sistema do barracão’, mas a idéia de que a escravidão havia finalmente sido 247 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI extinta no país passou a ser geralmente aceita. No início dos anos 1970 porém, enquanto o regime militar deflagrava seu ‘milagre econômico’, especificamente dando corpo ao sonho amazônico (terra sem gente para gente sem terra), começaram a surgir denúncias de que o velho conhecido trabalho escravo havia voltado a ser um dos ingredientes convocados. O grito profético do bispo Pedro Casaldáliga e as primeiras denúncias levantadas pela jovem Comissão Pastoral da Terra foram recebidos como agressões anti-patrióticas. Revirar a montanha do negacionismo oficial foi uma luta penosa. Uma peleja de 20 anos, associando figuras das mais diversas: peões escravizados empreendendo ousadas fugas a despeito dos mil perigos que os esperavam no caminho; sindicalistas e agentes de pastoral assumindo despojada acolhida e metódicos levantamentos de depoimentos de vítimas, em ambiente de completa insegurança; corajosas iniciativas de personalidades ímpares do Ministério Público Federal e da OAB então reunidas, junto com a Contag, a CPT e alguns poucos, no Fórum Nacional contra a Violência no Campo; criteriosas denúncias levadas ao conhecimento das instâncias internacionais competentes: sub-Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra (1983), Assembléia Geral da OIT, em Genebra, Comissão de Direitos Humanos da OEA, em Washington (1988). Se o grito da cidadania não convencia as autoridades por dentro do país, seu eco amplificado retumbaria desde Genebra, Washington ou San José de Costa Rica. E assim foi: destacado em sucessivos relatórios do Comitê dos Experts da OIT ou do próprio Secretário Geral da organização internacional, citado a comparecer ou a justificar-se de tais vergonhosas alegações, o Estado brasileiro, aos poucos, não teve mais como se furtar às evidências. Em 1995, o presidente Fernando H. Cardoso, que havia dedicado anos a investigar ‘a peonagem por dívida na Amazônia’, reconhece oficialmente o problema. Surgem então os rudimentos de uma política de repressão ao trabalho forçado: GERTRAF e Grupo Móvel de Fiscalização, então apresentado como a arma decisiva contra um crime já conceituado em legislação nacional e convenções internacionais (nela incorporadas pelo ato da ratificação). Verifica-se rapidamente os limites desta inovação, pois libertar escravos nunca erradicou a escravidão: é um passo obviamente indispensável 248 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI mas um passo apenas inicial em vista de uma ação mais abrangente que, nestes anos, não chegou a ser elaborada. Só começaria a ser idealizada, a partir de 2002, de novo sob pressão interna e externa, no seio da Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Enriquecido pelas propostas da sociedade civil formalizadas na 1ª Conferência Interparticipativa de Açailândia (CDVDH, 2002), este trabalho desembocaria no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em março de 2003 pelo presidente Lula. Um marco decisivo, pela solenidade do compromisso assumido e pelo caráter integrado: abordagem multifocal (repressiva e preventiva) e compromisso de um conjunto abrangente de instituições do Executivo, Judiciário, Legislativo e da sociedade civil. De lá para cá foi louvado pela comunidade internacional o esforço do Brasil para tentar acabar com o trabalho escravo: a política proposta pretendia cortar pela raiz – inicialmente em 4 anos! - a cadeia sistêmica que, no Brasil moderno, produz e reproduz o trabalho escravo. Que alicia populações assoladas pela ‘precisão’ a serviço de empregadores calculistas, obcecados pelo lucro a qualquer custo, e inacessíveis ao rigor da lei. Ao tripé vicioso da impunidade, da ganância e da miséria, a idéia era de contrapor o tripé virtuoso da fiscalização, da repressão e da prevenção, articulando para isso ações do Estado e iniciativas da sociedade civil. As carências do primeiro plano aprovado - ausência de ações de repressão econômica, falta de ações concretas na área de prevenção bem como de políticas efetivas de inclusão social - foram em parte sanadas na segunda edição do Plano, lançada em setembro de 2008, de novo com forte tributo à contribuição da sociedade civil (2ª Conferência de Açailândia, 2006) e ao trabalho da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), criada em 2003. São três os alicerces que sustentam o sistema da escravidão moderna: a miséria, a ganância e a impunidade. Miséria de milhares de famílias sem acesso a terra para trabalhar e produzir seu sustento, sem direito à educação mínima ou à saúde. Dos peões escravizados, independente de raça – porém em maioria afro-descendentes - a maioria é de analfabetos e indocumentados, quase todos sem terra. São legiões de migrantes arrancados da sua terra natal, principalmente do Norte e Nordeste. Muitos são trabalhadores rurais condenados à miséria nas periferias de nossas cidades, depois de terem sido expulsos do campo ‘pelo progresso’. Miséria produzida pela ganância 249 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI de um punhado de pecuaristas e agro-negociantes que concentram terras e recursos naturais, especuladores enriquecidos pela grilagem e a devastação da floresta; plantadores de soja ou de cana em terras que já foram de posseiros antigos e de populações tradicionais, desalojados pelo lucro ou a violência brutal. Ganância incentivada pelo modelo vigente e encorajada pela ausência de punição dissuasiva – em que pese a importância das condenações pecuniárias impostas pela Justiça do Trabalho, ninguém foi para a cadeia e ninguém perdeu a propriedade, instrumento do crime. Qualquer esforço para combater o trabalho escravo deve encarar esses três alicerces como os obstáculos a serem derrubados. Este é o objetivo da Campanha conduzida pela CPT (De Olho Aberto para não Virar Escravo!). Junto com vários parceiros - Centros de Direitos Humanos, Repórter Brasil, OIT, OAB, Ministério Público, Justiça do Trabalho - a Campanha realiza um amplo trabalho de prevenção e formação: divulgação nacional e internacional; sensibilização dos públicos mais vulneráveis, combatendo a tendência à ‘naturalização’ do trabalho degradante entre as próprias vítimas; incentivo à organização coletiva; capacitação de lideranças sociais, formadores de opinião, professores para multiplicar os efeitos de iniciativas necessariamente limitadas. Essa prevenção seria ilusória se não articulada às lutas do campo em favor da reforma agrária e de um modelo de agricultura camponesa sustentável, forma de resistência ao avanço cego de um agronegócio predador, paradoxalmente a menina dos olhos do mesmo poder público engajado na erradicação dos seus efeitos mais cruéis. Uma luta que exige enfim uma efetiva ação repressiva e punitiva por parte do poder executivo e do poder judiciário e o aprimoramento da legislação vigente. Negar hoje a permanência de formas modernas de trabalho escravo no Brasil ficou mais difícil. Exige ousada sutileza ou cínico exercício do paradoxo. Dos 26.500 escravos oficialmente resgatados de janeiro de 2003 a setembro de 2008 – 82% do total libertado em 14 anos de existência do Grupo Móvel – 39% foram encontrados nos estados do Norte e 29% nos do CentroOeste, principalmente ao longo do chamado ‘arco do desmatamento’ que vai do Maranhão ao Mato Grosso, passando pelo Pará e Tocantins – na pecuária (40%) e na produção do carvão vegetal (9%), crescendo nos últimos anos os casos encontrados no cerrado central – cana (26%), soja e demais lavouras 250 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI (16%). Estima-se em 25 a 40.000 o número de trabalhadores que entram anualmente no ciclo da escravidão temporária. As cadeias produtivas que levam produtos do trabalho escravo até o consumidor final hoje são mais conhecidas, graça a pesquisas criteriosas conduzidas pela ONG Repórter Brasil com base nos mais de 500 empregadores sucessivamente incluídos na chamada ‘Lista Suja’ semestralmente publicada pelo Ministério do Trabalho (“Cadastro de Empre­gadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo”, criado pela Portaria MTE 540/2004). Por meio de um Pacto Nacional, empresas assumiram o compromisso de cortar qualquer negócio com fornecedores envolvidos na prática do trabalho escravo. À pressão legal – já reforçada pela habitual imposição feita ao infrator de indenizar os danos morais individuais e/ou coletivos gerados pelo crime - veio se juntar a pressão comercial e financeira, muitas vezes ainda mais implacável: quem sobrevive sem acesso ao mercado ou ao financiamento? Liberdade, dignidade...ou propriedade? Escolhe, pois a vida! Mesmo assim, ainda sobram alguns irredutíveis torcedores do trabalho escravo: aqueles que gastam sua energia em tentar desmoralizar o combate contra esse crime muito mais do que em enfrentar seus conhecidos protagonistas. Um significativo exemplo disso é a interminável saga no Congresso brasileiro da proposta de emenda constitucional que dispõe sobre o confisco da propriedade onde for encontrado trabalho escravo. Introduzida há 13 anos e posteriormente apensada com textos de igual teor, a PEC 438/2001 recebeu aprovação unânime dos Senadores em 2003 e da maioria dos Deputados, em agosto de 2004, sete meses depois da chacina de Unaí, MG, contra três Auditores Fiscais do Trabalho e seu motorista. Desde então o texto ficou enterrado. Não voltou mais à pauta da Câmara para a segunda votação (exigida pelo fato do texto inicial ter sofrido alteração) apesar de várias pressões da sociedade, por último uma petição nacional, lançada pela Frente Nacional contra o Trabalho Escravo (www.trabalhoescravo.org.br). Uma obstinada oposição à eventual adoção da PEC do Trabalho Escravo reúne a centena de congressistas eleitos na chamada Bancada Ruralista, parte deles da base governista. É porta-voz incansável do agronegócio de monocultura exportadora que, mais uma vez, apresenta-se 251 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI como o trunfo da economia brasileira nos mercados globais. Em tese, todos concordam: o trabalho escravo é abominável e deve ser erradicado. Por definição a mais ‘interessada’, a Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária - em breve presidida pela senadora Kátia Abreu, DEMTO, ilustra defensora das posições negacionistas – tem assento na CONATRAE e assinou o Plano Nacional de Erradicação. Ela se posiciona contra o crime de ‘trabalho análogo ao de escravo’, mas logo afirma não identificar nenhum dos seus perpetradores nas suas fileiras. E parte para o ataque: o conceito do trabalho escravo é vago e absurdamente abrangente, e o direito à ampla defesa negado aos incriminados arbitrariamente incluídos na Lista Suja por fiscais prepotentes. Não há nas modernas fazendas filiadas à CNA um só trabalhador mantido à força ou a correntes. No pior dos casos, há vestígios da forma antiga de se trabalhar em nosso interior, como afirmou certa vez outro senador tocantinense, João Ribeiro. Vago, o conceito? Vejamos o entendimento de alguns dos melhores conhecedores desta questão (cf Possibilidades jurídicas de combate escravidão contemporânea, OIT, 2007): Luis Antônio Camargo de Melo: “Na formulação atual do Art.149CP - resultado da Lei 10.803, de 11.12.2003 - a condição análoga à de escravos é o gênero, sendo suas espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante, enfatizando não apenas a supressão da liberdade individual do trabalhador, mas, sobretudo, a garantia da dignidade deste mesmo trabalhador.” A liberdade? Um valor exacerbado pela revolução industrial e exaltado pela burguesa revolução francesa, na onda do laissez faire, laissez passer, centrada no direito sagrado do indivíduo, contra as corporações e até as livres associações. “O trabalho livre como um valor social é algo relativamente recente. Ocorre que por traz da liberdade do trabalhador, que o liberalismo pressupunha, havia o interesse econômico da classe emergente: a burguesia. A liberdade de trabalho foi instrumentalizada para propiciar a livre circulação de riquezas. Foi somente a partir da 2ª Guerra Mundial que o eixo do ordenamento jurídico 252 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI passou para a dignidade da pessoa humana. O respeito à dignidade humana pressupõe a indivisibilidade dos direitos humanos, tais como proclamados na Declaração Universal da ONU de 1948. Sem a observância dos direitos sociais não é possível a satisfação dos direitos civis e políticos. Os direitos sociais devem garantir pelo menos um mínimo existencial. Um trabalhador sem condições mínimas de trabalho está completamente cerceado em sua liberdade.” (Ricardo José M. de Britto Pereira, in: O combate ao trabalho escravo na perspectiva do constitucionalismo, 2008). “Os incisos II, III e IV do art. 1º da Constituição Federal mencionam a cidadania, a dignidade e os valores sociais do trabalho e da iniciativa privada como fundamentos da própria República. A expressão do art. 149 CP abre para um tipo penal amplo. Para quem vive em condições piores que a de um animal, a liberdade não é mais do que um mito. Trabalho forçado: “Para fins da Convenção 29 da OIT, com vigência interna, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ desig­na ‘todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer pena­lidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade’. Conforme Luiz Guilherme Belisário, ‘desse modo, trabalho forçado é aquele realizado sob ameaça, justificando porque o legislador incluiu a vigilância ostensiva e o apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho, como condu­tas incriminadoras do plágio, bem como o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, para retê-lo no local de trabalho. O trabalho forçado também se caracteriza pela restrição de locomoção do trabalhador, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Essa, sem dúvida, uma das práticas mais comuns da escravidão contemporânea. A vítima, aliciada mediante promessas enganosas, é recrutada para trabalhar em regiões distan­tes do seu domicílio ou residência, trazendo consigo a dívida contraída com o “gato” seja pelo transporte ou pelo adiantamento de salário concedido ao trabalhador para deixar guarnecida sua família’.” (Camargo) Condições degradantes: “Se o trabalhador presta serviços exposto à falta de segurança e com riscos à sua saúde, temos o trabalho em condições degradantes. Se as condições de traba­lho mais básicas são negadas 253 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI ao trabalhador, como o direito de trabalhar em jornada razoável e que proteja sua saúde, garanta-lhe descanso e permita o convívio social, há trabalho em condições degradantes. Se, para prestar o trabalho, o trabalhador tem limitações na sua alimentação, na sua higiene e na sua moradia, caracteriza-se o traba­ lho em condições degradantes. Se o trabalhador não recebe o devido respeito como ser humano, sendo, por exemplo, assediado moral ou sexualmente, existe trabalho em condições degradantes.” (José Cláudio M. de Brito Filho, citado por Camargo) “A legislação brasileira pertinente não se limite mais a proteger a liberdade individual, mas a dignidade da pessoa huma­na. É, sem dúvida, um conceito mais amplo e mais apropriado à efetiva repressão das formas contemporâneas de escravidão”, continua Camargo e, citando Raquel Dodge: “Escravizar é grave, porque não se limita a constranger nem a coagir a pessoa, limitando sua liberdade. Também isto. Escravizar é tornar o ser hu­mano uma coisa, é retirar-lhe a humanidade, a condição de igual e a dignidade. Não só a liberdade de locomoção é atingida e, às vezes, a possibilidade de locomoção resta intacta. Guiar-se por esse sinal pode ser enganador. A redução à condição análoga à de escravo atinge a liberdade do ser humano em sua acepção mais essencial e também mais abrangente: a de poder ser. A essência da liberdade é o livre arbítrio, é poder definir seu destino, tomar decisões, fazer escolhas, optar, negar, recusar. Usar todas as suas faculdades. O escravo perde o domínio sobre si, porque há outro que decide por ele. A negativa de salário e a desnutrição calculadas no contexto de supressão da liberdade de escolha são sinais desta atitude. Assim como a supressão de órgão humano e a submissão de mulheres para fins de tráfico.” Ricardo Pereira: “Os direitos fundamentais são, regra geral, relativos. Estão sujeitos a juízos de ponderações por parte dos aplicadores do direito. O direito de propriedade do empresário, por exemplo, não lhe confere o direito de violar a intimidade e a privacidade dos trabalhadores. Mas há direitos absolutos, como a proibição da tortura e da redução à condição análoga à de escravo, pois o núcleo de proteção nestes casos não pode ser relativizado para resguardar outros valores e direitos constitucionais.” Segundo Rousseau, as palavras “escravidão” e “direito” se excluem 254 OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI mutuamente. O direito de não ser escravo chega, portanto, a ser redundante: é dizer o que já está dito. Trata-se de um daqueles direitos que não encontram limites sequer diante de casos excepcionais. Em outras palavras: “são privilegiados porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais” (Norberto Bobbio, citado por Márcio Túlio Viana) “Se o desrespeito à função social da propriedade da terra já é, segundo a Constituição, motivo suficiente para sua possível desapropriação, o uso da propriedade como instrumento para escravizar o próximo é crime absolutamente intolerável contra a dignidade e contra a vida. Nada mais justo que os que praticam esse crime venham a perder sua propriedade, sem compensação, para que o Estado lhe dê destinação apropriada, especificamente, para a reforma agrária!” Entre a propriedade e a dignidade, a doutrina, reafirmada neste pronunciamento recente da CNBB a respeito da PEC 438/2001, nos orienta clara e biblicamente: “Escolhe, pois a vida!” (Nota da Presidência da CNBB, 04.06.2008). A nova abolição que sonhamos terá de ser mais radical que a primeira – não só reprimindo o trabalho escravo, mas criando condições reais de vida digna para todos. (Viana) Não é diferente a lição do frei Bartolomeu de Las Casas: “Todos os direitos para todos!”. Enquanto houver escravos entre nós, nenhum de nós estará realmente livre. 255