os direitos humanos desafiando o século xxi

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OS DIREITOS HUMANOS
DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal
Gestão 2007/2010
255 p.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL
CONSELHO FEDERAL
COMISSÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
OS DIREITOS HUMANOS
DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Brasília
2009
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
SUMÁRIO
Prefácio
Cezar Britto.........................................................................................................07
Apresentação
Agesandro da Costa Pereira..................................................................................09
Declaração Universal dos Direitos Humanos......................................................15
Da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Gênese, Conteúdo Normativo
e Alcance
Antonio Augusto Cançado Trindade....................................................................23
De La Declaracion Universal de Derechos Humanos
Beinusz Szmukler.................................................................................................31
Igualdade de Direitos: Conquista da Humanidade
Dalmo de Abreu Dallari.......................................................................................41
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
Edmundo Oliveira…………………………………………………………………………...........………49
Ninguém será Submetido à Tortura
Fábio Konder Comparato......................................................................................55
Direito a Privacidade e à Liberdade de Viver sem Medo
Flávia Piovesan.....................................................................................................59
Direito de Asilo
João Baptista Herkenhoff.....................................................................................63
Igualdade, Liberdade e a Declaração Universal dos Direitos Humanos
João Luiz Duboc Pinaud.......................................................................................71
Direitos Humanos dos Povos Indígenas
Joênia Wapichana...............................................................................................79
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
José Luciano de Castilho Pereira………………………………………………………................85
O Emergir Doloroso da Consciência Universal dos Direitos Humanos
Luis Henrique Beust…………………………………………………………………………………….….97
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Da Lei, do Delito e dos Direitos Humanos
Marcos Antonio Paiva Colares……………………………………..………………………………111
Igualdade na Diferença: eis a questão
Maria José de Figueiredo Cavalcanti.................................................................115
O Direito a Mobilidade Humana
Marina Silva......................................................................................................125
Paz e Guerra
Moacyr Scliar.....................................................................................................129
Direito à Vida
Paulo Vannuch...................................................................................................135
Enquadramento Jurídico da Tortura em Documentos Normativos Internacionais e Brasileiros
Pedro Borromoletz de Abreu Dallari……………………………………….............………...141
Todas as Pessoas Nascem Livres e Iguais em Dignidade e Direitos
Plínio Arruda Sampaio.......................................................................................155
Novos Tempos, Novos Rumos
Renato Zerbini Ribeiro Leão.............................................................................161
Direito a Julgamento Público, Imparcial e Justo: o fortalecimento de um diálogo humano
Ricardo Balestreri..............................................................................................187
Direito do Indivíduo em Relação ao seu Grupo e aos Bens
Romany Roland Cansanção Mota.....................................................................193
O Tribunal Penal Internacional e o Direito Interno
Silvia Helena Steiner..........................................................................................199
A Educação como Passaporte para a Cidadania
Vicente de Paula Faleiros..................................................................................213
Liberdade de Ser, Pensar e Crer – Desafios à Intolerância
Washington Araújo...........................................................................................235
A Exaustiva Jornada da Humanidade
Xavier J. M. Plassat............................................................................................245
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
PREFÁCIO
A cena internacional enfrenta atualmente momento de perplexidade
ante a constatação da interdependência entre países e povos e a necessidade
premente de lançar os alicerces para a construção de uma paz sólida e duradoura.
Se por um lado encontramos ilhas de prosperidade no mundo atual,
ao mesmo tempo nos damos conta de muitos países onde seus povos vivem
em descompasso com a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Organismos multilaterais são criados em todos os continentes do planeta, sinal
positivo emitido por aqueles que defendem o diálogo como instrumento de
resolução de conflitos. Organizações Não-Governamentais divulgam regularmente
relatórios em que muitos países são omissos quando não partícipes de ações
sistemáticas para a violação dos direitos humanos.
É neste contexto que a Ordem dos Advogados do Brasil chamou
parta si a responsabilidade d eco0nvocar a IV Conferência Internacional dos
Direitos Humanos, ensejando um ambiente adequado à reflexão mais urgente e
que, por sua relevância, veio a ser o tema maior do evento: Os direitos humanos
desafiando o século XXI.
Com o ocaso das ideologias, o inaudito progresso dos meios de
comunicação e o encurtamento das distâncias entre povos e nações, culturas e
tradições é evidente o elevado grau de questionamento quanto à proteção do
rico patrimônio da humanidade – um patrimônio assentado sobre a extensa
diversidade humana. Promover os direitos humanos, trabalhar para que sejam
respeitados pelos governos e sociedades é acreditar na construção de uma nova
Ordem Mundial fundada na justiça e na solidariedade.
Temos a convicção que esta luta pela dignidade humana deve ser a
preocupação dos povos e Estados ante a constatação da necessidade de instruir
a consciência de novos valores civilizatórios. O enfrentamento de desafios dessa
monta requer esforços contínuos visando ao desenvolvimento de valores culturais,
morais, espirituais, bem como o exercício da tolerância e concomitante valorização
da diversidade.
Estes são os propósitos que guiam as reflexões aqui enfeixadas e
sobre os quais se debruçaram pensadores, filósofos, juristas, educadores sempre
tendo como pano de fundo os postulados integrantes da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Cezar Britto
Presidente Nacional da OAB
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
APRESENTAÇÃO
A grande e inadiável tarefa que se apresenta, hoje, para os filósofos,
juristas e políticos é aquela de recolocar o homem no lugar que lhe compete
ocupar no seio da sociedade, aquele lugar de figura central que lhe reservavam
sábios sofistas da antiga Grécia, em conhecida máxima: o homem é a medida de
todas as coisas.
Na verdade, hoje, como ontem, o homem, em todos os lugares do
mundo, aspira emergir da condição de súdito ao status den cidadão, quer ser
mais como pessoa e como membro da sociedade política, ambiciona ter direitos
civis, políticos e sociais, reclama o respeito a sua pessoa e a sua dignidade.
É a história que este status de cidadão, o homem não o ganhou por
encanto, mas o conquistou nas lutas difíceis e ininterruptas que empreendeu,
ora disfarçadas e ora abertas, na postura de oprimidos, escravos, servos,
plebeus, e súditos, contra os déspotas de todos os naipes, em busca das
mudanças revolucionarias na sociedade que lhes pudessem assegurar os direitos
e liberdades fundamentais indispensáveis a dignidade de sua pessoa.
Palmilhando esta rota de ascensão política, lenta, gradual e difícil,
em que amargou reveses dolorosos, o homem contabilizou avanços, alguns
bastante significativos, no rol dos quais, a inserção de capítulos relativos ao
reconhecimentos e proteção dos seus direitos e liberdades fundamentais
nas constituições democráticas modernas, com marco inicial na Constituição
Francesa de 1.791.
A partir destas balizas, são mais duzentos anos de historia, em um
primeiro momento, no curso do século XVIII, os homens obtém o reconhecimento
de direitos civis, depois, no século seguinte, ao lado destes, alcançam direitos
políticos, para, em seguida, conseguir direitos sociais e econômicos, bem como
aqueles outros, os chamados de terceira e quarta geração, que foram brotando
paulatinamente na medida que surgiram novas ameaças a sua dignidade e
liberdade.
Nesta quadra, nos diferentes Estados, os direitos humanos, nascidos
ao sabor das circunstancias vigentes em cada um deles, ainda que elevados à
dignidade constitucional, são, na verdade, direitos nacionais, reconhecidos
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
como direitos dos cidadãos de cada Estado e protegidos apenas dentro de suas
respectivas fronteiras.
Entretanto, esta tutela se revelou insuficiente para a proteção
efetiva dos direitos humanos vez que estes são direito universais, no sentido de
que os seus destinatários não são mais apenas os cidadãos de um Estado, mas
todos os homens da terra, e, nesta dimensão, o seu reconhecimento e proteção
circunscritos a fronteiras nacionais, não pôde evitar, sobretudo na primeira
metade do século passado, ante a agonia de crenças, valores e sistemas, os
holocaustos que a humanidade assistiu e sofreu indefesa.
É de salientar-se que, terminada Segunda Guerra Mundial, quando
extensas regiões do planeta estavam mergulhadas sob os escombros morais e
materiais do conflito, os homens do mundo inteiro, profundamente alarmados
com tudo que acontecera, se dedicaram a difícil tarefa de construir o seu futuro
sob a inspiração de novos modelos e instrumentos políticos, não aviltados pelas
aludidas deficiências.
Estas novas ferramentas políticas, segundo os sociólogos, juristas
e políticos de boa vontade, comprometidos com construção do novo mundo,
deveriam ser plasmados, sob a inspiração dos ideais do respeito a dignidade
humana e da proteção de seus direitos fundamentais, da democracia e da paz,
pois, sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia e
sem democracia não pode haver paz.
Com tais objetivos, sob tais auspícios e apelos, é que a Organização
das Nações Unidas, editou a sua Declaração Universal dos Direitos Humanos, o
primeiro instrumento legal a reunir um conjunto de princípios que incorporaram
os direitos e liberdades da pessoa humana, plasmando a fonte de um direito
cosmopolita, sob o enfoque rigorosamente ético, o consenso universal, e, como
tal, imposto aobservância dos seus destinatários.
Entretanto, não se pode esquecer que, apesar dos esforços de
todos os seus defensores, o caminho a percorrer para que aquele documento
cumpra integralmente seu destino, ainda é longo e difícil, restam desafios a
serem vencidos.
Penso, que, este, que era o grande desafio de ontem, continua a
10
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
ser o mesmo desafio de hoje, passados sessenta anos da proclamação solene
da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a necessidade imperiosa de
proteger os direitos que ela proclama, por meio de providencias adequadas e
eficientes, de moldes a impedir que eles continuem a ser violados, como vem
sendo, a cada dia com maior freqüência e intensidade.
Milhões de pessoas no mundo inteiro são violentadas, humilhadas,
ofendidas e discriminadas, por suas crenças, por suas raças, por seus valores,
por suas convicções políticas, enfim, por sua resistência às forças poderosas que
dominam o mundo de hoje.
Subsistem as ditaduras, as truculências, os conflitos, os genocídios,
e os holocaustos como métodos de ação política, externa e interna, para
construir impérios, plasmar dominações, institucionalizar a rapinagem, sustentar
interesses escusos, amparar privilégios caducos e custodiar preconceitos
absurdos, semeando a destruição e a morte.
O pior de tudo isto, é que estes desatinos são perpetrados por
conhecidos malfeitores, sob a cínica invocação da defesa dos direitos do homem,
ladainhas tantas vezes repetidas nos órgãos de comunicação, que chegam a ser
aceitas por muitos, como expressões de verdade.
Estes fatos lamentáveis, que ocorrem nos diferentes cenários do
mundo, vazios de compromissos éticos, tem servido aos corifeus das estruturas
caducas, para questionar a eficácia da declaração, atribuindo-lhe uma dimensão
utópica, incompatível com as exigências do desenvolvimentos político, social e
econômico das nações.
Estas colocações, falhas em valoração ética, e, improcedentes
em apreciação política, representam, tão somente, cínicas aleivosias, de que
se valem os reacionários para a interpretação nadequada de realidade, com
o propósito indisfarçável de sufocar ações, postas em sintonia com os justos
anseios da sociedade.
Penso que, ao lado das atividades implantadas pelos organismos
internacionais para assegurarem a tutela dos direitos humanos, nestes últimos
anos, a mais ampla divulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
moldes a torná-la conhecida e entendida por milhões de pessoas que vivem a sua
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
margem no mundo inteiro, mesmo no nosso País, representa uma contribuição
do maior relevo para a construção de uma civilização de paz e fraternidade.
Com tais propósitos e esperanças, Ordem dos Advogados do Brasil,
por sua Comissão Nacional dos Direitos Humanos, fez inserir no rol de suas
celebrações do sexagésimo aniversario da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, como a mais relevante de todas elas, o lançamento deste livro
“Sessenta Anos da Declaração dos Direitos Humanos - Conquistas e Desafios”,
com o propósito de contribuir para que aquele documento se torne mais
conhecido, mais amado, mais observado e mais eficiente, de moldes a alcançar
plenamente aos fins a que se destinou, na linha das esperanças daqueles que,
em todos os cantos do mundo, trabalham em prol da dignificação da pessoa
humana.
Este livro não é uma singela reedição dos “Cinqüenta Anos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos - Conquistas e Desafios”, lançada
há dez anos, com os mesmos propósitos, mas um livro novo, escrito por autores
novos da melhor estirpe, que se debruçaram sobre as realidades, as crises e
os problemas do mundo de hoje, em cujas claves, os princípios éticos cederam
lugar as expectativas de um progresso neutro, alheio aos valores humanos, com
resultados desalentadores e muitas vezes trágicos.
Nesta dimensão, o livro além dos seus denunciados propósitos,
consigna uma convocação, uma denûncia e uma profissão de fé.
Uma convocação a todos os homens e mulheres de boa vontade a
uma grande jornada, a de tornar efetivos, atuantes e protegidos todos os direitos
humanos, solenemente declarados, em todos os cantos da terra, de moldes a
assegurar seus benefícios a milhões de pessoas que, dele, são privadas deles
ao impacto de políticas cínicas e maquiavélicas, habilidosamente plasmadas, ou
descarados atos de violência.
Uma denûncia expressa na veemente condenação às políticas
amorais que se definem como a arte de conquistar e conservar o poder, no
âmbito interno ou externo, por meio da fraude ou da violência, com a única
condição de que esse meio lhe assegure o sucesso, e, nesta trajetória, afronta a
dignidade da pessoa humana e lhe nega seus direitos fundamentais.
12
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Nesta dimensão, este livro é também uma profissão de fé nos
homens e mulheres de todo o mundo que lutam para construir uma civilização
de paz.
Neste ensejo, agradeço ao Eminente Presidente Nacional da Ordem
dos Advogados do Brasil, Raimundo César Brito Aragão, que, na linha dos seus
compromissos com a face institucional da entidade, acolheu este projeto,
o apoiou e disponibilizou todos os recursos materiais e imateriais para sua
concretização.
Por igual, agradeço a todos os membros da Comissão Nacional
dos Direitos Humanos, pelo trabalho zeloso e eficiente, no exercício de suas
responsabilidades, e seus servidores Evandro Vitoriano Elias, e Mary Cristina
Ramalho pelo zelo e dedicação com que participaram do planejamento e
execução do projeto.
Agradeço, finalmente, aos autores dos preciosos trabalhos
reunidos neste livro, todos eles escritores do mais alto conceito, amadurecidos
intelectualmente, posicionados na vanguarda do pensamento ético, social
e político do nosso tempo, pela inestimável e prestigiosa colaboração que
prestaram a esta empresa e a esta obra magistral.
Agesandro da Costa
Pereira
Conselheiro Federal
Presidente da Comissão Nacional de Direito
Humanos
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948.
Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram
em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento
de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a
mais alta aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado
de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à
rebelião contra tirania e a opressão,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas
entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos
direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e
na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover
o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em
cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e
liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da
mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A Assembléia Geral proclama A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal
comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de
que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta
Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, por promover o
respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas
de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua
observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios EstadosMembros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de
razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade. Artigo II
Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Artigo III
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de
escravos serão proibidos em todas as suas formas. Artigo V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano
ou degradante.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Artigo VI
Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa
perante a lei.
Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a
igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer
discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a
tal discriminação. Artigo VIII
Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio
efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam
reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo IX
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo X
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública
por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos
e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo XI
1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei,
em julgamento público no qual lhe tenham sido assegurada todas as garantias
necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento,
não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era
aplicável ao ato delituoso.
Artigo XII
Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu
lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda
pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo XIII
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das
fronteiras de cada Estado.
2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este
regressar.
Artigo XIV
1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo
em outros países.
2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente
motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e
princípios das Nações Unidas.
Artigo XV
1.Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito
de mudar de nacionalidade.
Artigo XVI
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça,
nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua
dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos
nubentes.
Artigo XVII
1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;
este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo XIX
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo XXI
1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país, diretamente
ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será
expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto
secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXII
Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à
realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo
com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais
e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua
personalidade.
Artigo XXIII
1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições
justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por
igual trabalho.
3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que
lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade
humana, e a que se acrescentará, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção
de seus interesses.
Artigo XXIV
Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das
horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
20
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.
Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma
proteção social.
Artigo XXVI
1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória.
A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução
superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos
e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero de instrução que será
ministrada aos seus filhos.
Artigo XXVII
1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da
comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus
benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais
decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja
autor.
Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos
21
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
e liberdades estabelecidas na presente Declaração possam ser plenamente
realizadas.
Artigo XXIV
1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno
desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas
às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar
o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de
satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de
uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos
contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.
Artigo XXX
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como
o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer
qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer
dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.
22
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS:
GÊNESE, CONTEÚDO NORMATIVO E ALCANCE
Antônio Augusto Cançado Trindade*
O artigo 8 da Declaração Universal de Direitos Humanos conta com
um histórico legislativo dos mais significativos, reveste-se de transcendental
importância ao consagrar o direito de acesso à justiça, e tem gerado nos últimos
anos uma notável jurisprudência dos tribunais internacionais de direitos humanos.
As atuais comemorações dos sessenta anos da Declaração Universal de Direitos
Humanos (adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas aos 10 de dezembro
de 1948) representam uma ocasião das mais oportunas para resgatar a gênese e
identificar o conteúdo normativo e o alcance do artigo 8 da Declaração Universal,
a qual deu o ímpeto inicial à gradual generalização da proteção internacional dos
direitos humanos. A Declaração como um todo, - cabe recordar, - abriu caminho
para a adoção dos mais de setenta tratados sobre a matéria que em nossos dias
operam regular e permanentemente nos planos global e regional; inspirou a
incorporação de diversas normas de direitos humanos a sucessivas Constituições e
legislações nacionais de numerosos países; e serviu de fundamento a numerosas
decisões de tribunais internacionais e nacionais. A Declaração Universal, como
interpretação autêntica das disposições de direitos humanos da Carta das
Nações Unidas, encontra-se hoje incorporada ao domínio do direito internacional
consuetudinário, sendo expressão de alguns princípios gerais do Direito. A referida
Declaração contribuiu decisivamente ao processo histórico da humanização do
Direito Internacional contemporâneo1.
Os travaux préparatoires da Declaração Universal de 1948
Ph.D. (Cambridge); Ex-Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Professor Titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio-Branco; Doutor Honoris Causa por
distintas Universidades latino-americanas; Membro Titular do Curatorium da Academia de
Direito Internacional da Haia, do Institut de Droit International, e da Academia Brasileira de
Letras Jurídicas.
*
1
. Cf., a respeito, A.A. Cançado Trindade, “International Law for Humankind: Towards a New
Jus Gentium - General Course on Public International Law - Part I”, 316 Recueil des Cours
de l’Académie de Droit International de la Haye (2005) pp. 31-439; A.A. Cançado Trindade,
“International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium -General Course on Public
International Law - Part II”, 317 Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la
Haye (2005) pp. 19-312.
23
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
comportaram fases distintas. A antiga Comissão de Direitos Humanos das Nações
Unidas decidiu pela elaboração de um projeto em abril/maio de 1946, quando
designou uma “comissão nuclear” para os estudos iniciais. Paralelamente, conduziu
a UNESCO consultas (no decorrer de 1947) a reconhecidos pensadores da época
sobre as bases de uma futura Declaração Universal. O projeto da Declaração
propriamente dito foi preparado no âmbito da Comissão de Direitos Humanos das
Nações Unidas, por um Grupo de Trabalho que o elaborou entre maio de 1947 e
junho de 1948. A partir de setembro de 1948, o projeto da Declaração passou ao
exame da III Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas, para enfim ser
aprovado em 10 de dezembro daquele ano pela própria Assembléia2.
Uma das disposições mais importantes da Declaração Universal de
Direitos Humanos encontra-se precisamente em seu artigo 8, segundo o qual toda
pessoa tem direito a um recurso efetivo ante os tribunais nacionais competentes
contra os atos violatórios dos direitos fundamentais que lhe são outorgados pela
Constituição ou pela lei. O artigo 8 consagra, em última instância, o direito de acesso
à justiça (no plano do direito interno), elemento essencial em toda sociedade
democrática. O projeto de artigo que se transformou no artigo 8 da Declaração
Universal, a despeito de sua relevância, só foi inserido no projeto na etapa final
dos travaux préparatoires da Declaração Universal, quando já se encontrava a
matéria em exame na III Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas. Apesar
disso, significativamente não encontrou qualquer objeção, tendo sido aprovado
na III Comissão por 46 votos a zero e três abstenções, e no plenário da Assembléia
Geral por unanimidade. A iniciativa, tardia mas revestida de tanto êxito, proveio
de Delegações dos Estados latino-americanos (tendo tido o México como portavoz). Pode-se mesmo considerar que o artigo 8 representa a contribuição latinoamericana por excelência3 à Declaração Universal.
Tanto foi assim que, na Conferência de Bogotá que adotou a Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem de abril de 1948, uma disposição
correspondente, no mesmo sentido, havia sido adotada por unanimidade das
.Cf. A.A. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, 2a. ed., vol. I, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 2003, capítulo I, pp. 51-87; UNESCO, Los Derechos del Hombre - Estudios
y Comentarios en torno a la Nueva Declaración Universal, México/ Buenos Aires, Fondo de Cultura
Económica, 1949, pp. 233-246.
3
. A iniciativa latino-americana se influenciou fortemente nos princípios que regem o recurso de
amparo, já então consagrado em muitas das legislações nacionais dos países da região.
2
24
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
21 Delegações presentes. A disposição do artigo 8 da Declaração Universal se
inspirou, desse modo, na disposição equivalente do artigo XVIII da Declaração
Americana que a antecedeu em oito meses. O argumento básico que levou à
inserção desta disposição nas Declarações Americana e Universal de 1948 residiu
no reconhecimento da necessidade de suprir uma lacuna em ambas: proteger os
direitos do indivíduo contra os abusos do poder público, submeter todo e qualquer
abuso de todos os direitos individuais ao julgamento do Poder Judiciário no plano
do direito interno4. Em suma, a consagração original do direito a um recurso efetivo
ante os juízes ou tribunais nacionais competentes na Declaração Americana (artigo
XVIII) foi transplantada para a Declaração Universal (artigo 8), e desta última para
as Convenções Européia e Americana sobre Direitos Humanos (artigos 13 e 25,
respectivamente), assim como para o Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações
Unidas (artigo 2(3)). A projeção do artigo 8 da Declaração Universal nos tratados
de direitos humanos hoje vigentes contribui ao reconhecimento em nossos dias de
que esta garantia judicial fundamental constitui um dos pilares básicos do próprio
Estado de Direito em uma sociedade democrática.
O artigo 8 da Declaração Universal, e as disposições correspondentes
nos tratados de direitos humanos vigentes, estabelecem o dever do Estado
de prover recursos internos eficazes. É em razão deste dever que se exige dos
indivíduos demandantes, que interpõem denúncias de violações de seus direitos
ante instâncias internacionais, o prévio esgotamento dos recursos de direito interno
(como condição de admissibilidade das referidas denúncias). O dever do indivíduo
de esgotar tais recursos encontra-se inelutavelmente vinculado ao dever do Estado
de prover recursos internos eficazes. O critério que aqui prevalece é o da eficácia
dos recursos internos: não basta que estejam formalmente disponíveis, tem o
Estado que demonstrar que são na prática adequados e eficazes. Caso contrário,
não há recursos internos que esgotar, e as supostas vítimas de violações têm o
campo aberto para acudir de imediato às instâncias internacionais de proteção.
Assim, é o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos que atribui funções
4
.Cf. A. Verdoodt, Naissance et signification de la Déclaration Universelle des Droits de l’Homme, Louvain, Nauwelaerts, [1963], pp. 116-119; A. Eide et alii, The Universal Declaration of Human Rights - A
Commentary, Oslo, Scandinavian University Press, 1992, pp. 124-126 e 143-144; R. Cassin, “Quelques
souvenirs sur la Déclaration Universelle de 1948”, 15 Revue de droit contemporain (1968) n. 1, p. 10; R.
Cassin, “La Déclaration Universelle et la mise en oeuvre des droits de l’homme”, 79 Recueil des Cours
de l’Académie de Droit International de La Haye (1951) pp. 328-329.
25
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de proteção ao direito interno dos Estados. Os recursos de direito interno passam,
desse modo, a integrar os procedimentos da própria proteção internacional dos
direitos humanos5. O direito internacional e o direito interno encontram-se em
constante interação no presente domínio de proteção, em benefício dos seres
humanos protegidos.
O dever dos Estados de prover recursos internos adequados e eficazes,
consagrado nos tratados de direitos humanos a partir da proclamação inicial nas
Declarações Americana (artigo XVIII) e Universal (artigo 8) de Direitos Humanos,
constitui efetivamente um pilar básico não só de tais tratados como do próprio
Estado de Direito em uma sociedade democrática, e sua aplicação correta tem
o sentido de aprimorar a administração da justiça em nível nacional. Além disso,
esta disposição-chave encontra-se intimamente vinculada à obrigação geral dos
Estados, consagrada igualmente nos tratados de direitos humanos, de respeitar
os direitos nestes consagrados e garantir o livre e pleno exercício dos mesmos
a todas as pessoas sob suas respectivas jurisdições (e.g., Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, artigo 1(1); Convenção Européia de Direitos Humanos,
artigo 1; Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, artigo 2(1)). Assim,
por meio da consagração do direito a um recurso efetivo ante os juízes ou tribunais
nacionais competentes, e da obrigação geral - a este direito indissociavelmente
ligada - da garantia dos direitos protegidos, os tratados de direitos humanos
atribuem funções de proteção ao direito interno dos Estados Partes.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem precisado a
natureza jurídica e o alcance do direito consagrado no artigo 25 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, a partir de sua decisão quanto ao mérito no
caso de Castillo Páez versus Peru (1997), e dos julgamentos quanto ao mérito nos
casos, e.g., de Suárez Rosero versus Equador (1997), Paniagua Morales e Outros
versus Guatemala (1998), Blake versus Guatemala (1998), “Meninos de Rua”
(Villagrán Morales e Outros) versus Guatemala (1999), Cantoral Benavides versus
Peru (2000), Bámaca Velásquez versus Guatemala (2000), Comunidade Mayagna
(Sumo) Awas Tingni versus Nicarágua (2001), Hilaire, Benjamin e Constantine
. A.A. Cançado Trindade, The Application of the Rule of Exhaustion of Local Remedies in International
Law, Cambridge, Cambridge University Press, 1983, pp. 1-445; A.A. Cançado Trindade, O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito Internacional, 2a. ed., Brasília, Edit. Universidade de Brasília, 1997,
pp. 1-327.
5
26
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
versus Trinidad e Tobago (2002), Cantos versus Argentina (2002), J.H. Sánchez
versus Honduras (2003), M. Urrutia versus Guatemala (2003), Tibi versus Equador
(2004), Yatama versus Paraguai (2005), Palamara Iribarne versus Chile (2005).
A Corte Européia de Direitos Humanos, a seu turno, tem igualmente
se debruçado sobre a matéria, que forma hoje objeto de uma vasta jurisprudência
sob a Convenção Européia de Direitos Humanos, a par de um denso debate
doutrinário6. Tal jurisprudência, em seus primórdios, sustentava o caráter
“acessório” do direito consagrado no artigo 13 da Convenção Européia, encarado
- a partir dos anos oitenta - como garantindo um direito substantivo individual
subjetivo. Gradualmente, em seus julgamentos quanto ao mérito nos casos
de Klass versus Alemanha (1978), Silver e Outros versus Reino Unido (1983), e
Abdulaziz, Cabales e Balkandali versus Reino Unido (1985), a Corte Européia passou
a reconhecer o caráter autônomo do artigo 13. Após anos de hesitações, a Corte
Européia, em seu julgamento quanto ao mérito no caso de Aksoy versus Turquia
(1996), determinou a ocorrência de uma violação “autônoma” do direito a um
recurso efetivo ante as instâncias nacionais competentes (artigo 13 da Convenção
Européia). Posteriormente, vem destacando a alta relevância do artigo 13, em
decisões sucessivas a partir de seu julgamento quanto ao mérito no caso Kudla
versus Polônia (2000).
O direito a um recurso eficaz ante as instâncias nacionais competentes
tem sua efetividade em muito fortalecida nos Estados que incorporaram as
disposições dos tratados de direitos humanos em seus ordenamentos jurídicos
internos respectivos. Tal incorporação é uma medida das mais desejáveis e
necessárias7; no entanto, os Estados Partes que a ela não tiverem procedido, nem
por isso estão eximidos de assegurar sempre a proteção e garantias judiciais dos
artigos 25 e 13, respectivamente, das Convenções Americana e Européia de Direitos
Humanos, emanadas do artigo 8 da Declaração Universal de Direitos Humanos.
A Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos, por sua vez, estabeleceu
6
. Cf., e.g., P. Mertens, Le droit de recours effectif devant les instances nationales en cas de violation d’un
droit de l’homme, Bruxelles, Éd. de l’Univ. de Bruxelles, 1973, pp. 1-151; D.J. Harris, M. O’Boyle e C.
Warbrick, Law of the European Convention on Human Rights, London, Butterworths, 1995, pp. 443461; L.-E. Pettiti, E. Decaux e P.-H. Imbert, La Convention Européenne des droits de l’homme, Paris, Economica, 1995, pp. 455-474.
7
. Cf., no tocante ao Brasil, A.A. Cançado Trindade (Editor), A Incorporação das Normas Internacionais
de Proteção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro, 2a. edição, Brasília/San José da Costa Rica,
IIDH/ACNUR/CICV/CUE/ASDI, 1996, pp. 1-845.
27
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
violações das garantias judiciais (artigo 7(1) da Carta Africana de Direitos Humanos
e dos Povos) em suas decisões nos casos, e.g., de “Rencontre Africaine pour la
Defense des Droits de l’Homme” versus Zâmbia (1996), “Constitutional Rights
Project” (em relação a Akamu, Adega et alii) versus Nigéria (1995), Alhassan
Abubakar versus Gana (1996).
Cumpre ter sempre presente que, ao ratificar os tratados de direitos
humanos, os Estados Partes contraem, a par das obrigações específicas relativas a
cada um dos direitos protegidos, a obrigação geral de adequar seu ordenamento
jurídico interno às normas internacionais de proteção. As duas Convenções de
Viena sobre Direito dos Tratados (de 1969 e 1986, respectivamente) proíbem
que uma Parte invoque disposições de seu direito interno para tentar justificar
o descumprimento de um tratado (artigo 27). É este um preceito, mais do que
do direito dos tratados, do direito da responsabilidade internacional do Estado,
firmemente cristalizado na jurisprudência internacional. Segundo esta última, as
supostas ou alegadas dificuldades de ordem interna são um simples fato, e não
eximem os Estados Partes em tratados de direitos humanos da responsabilidade
internacional pelo não-cumprimento das obrigações internacionais contraídas8.
Desse modo, não é dado àqueles Estados invocar supostas dificuldades ou lacunas
de direito interno, porquanto estão obrigados a harmonizar este último com a
normativa dos tratados de direitos humanos em que são Partes (e.g., Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, artigo 2; Pacto de Direitos Civis e Políticos das
Nações Unidas, artigo 2(2)9.
Não há que passar despercebido que a Declaração Universal de 1948
atribui importância capital ao princípio básico da igualdade e não-discriminação,
dado que - em seus próprios termos - todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos. Tendo presente a concepção da Declaração Universal,
. A jurisprudência tanto da antiga Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI) como da Corte
Internacional de Justiça (CIJ) assinala que as obrigações internacionais devem ser cumpridas de boa
fé, não podendo os Estados invocar, como justificativa para seu descumprimento, disposições de
direito constitucional ou interno. CPJI, caso das Comunidades Greco-Búlgaras (1930), Série B, n. 17, p.
32; CPJI, caso dos Nacionais Polacos de Danzig (1931), Série A/B, n. 44, p. 24; CPJI, caso das Zonas Livres (1932), Série A/B, n. 46, p. 167; CIJ, caso da Aplicabilidade da Obrigação de Arbitrar sob o Convênio
de Sede das Nações Unidas (caso da Missão da OLP), ICJ Reports (1988) pp. 31-32, par. 47.
9
. Assim sendo, se invocam a não-incorporação, ou supostas dificuldades ou lacunas de direito interno, para deixar de prover recursos internos simples e rápidos e eficazes para dar aplicação efetiva
às normas internacionais de proteção dos direitos humanos, estão incorrendo em uma violação
adicional dos tratados de direitos humanos em que são Partes.
8
28
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu histórico e aclamado
Parecer n. 18, de 17.09.2003, sobre a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes
Indocumentados, situou com lucidez o princípio fundamental da igualdade e nãodiscriminação no domínio do jus cogens10, após invocar devidamente a Declaração
de 194811.
Enfim, as normas nacionais e internacionais de proteção formam
efetivamente um todo harmônico, não mais se justificando abordá-las, como
no passado, de forma estanque ou compartimentalizada. Convergem em seu
propósito comum e último de proteção do ser humano. A relevância do dever do
Estado de prover recursos internos adequados e eficazes não há jamais que ser
minimizada. Como assinalei em meu extenso Voto Separado (parágrafos 35-43) no
caso do Massacre de Pueblo Bello versus Colômbia (julgamento quanto ao mérito
e reparações de 31.01.2006)12, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem
sempre e corretamente associado, até o presente, a proteção judicial (artigo 25)
às garantias do devido processo legal. O direito a um recurso efetivo ante os juízes
ou tribunais nacionais competentes no âmbito da proteção judicial - ao qual a
Declaração Universal 1948 deu projeção mundial, mediante seu artigo 8, - é muito
mais relevante do que até recentemente se supôs. Tal direito de acesso à justiça
- nos planos nacional e internacional13 - deve ser entendido lato sensu, como
abarcando não só o acesso formal a um tribunal ou juiz, mas também o respeito
às garantias do devido processo, o direito à prestação jurisdicional, e as devidas
reparações, mediante a execução plena da sentença. Trata-se, em última análise,
de um verdadeiro direito ao Direito.
. Parágrafos 97-101 do referido Parecer n. 18. E cf. o extenso Voto Concordante do Juiz Presidente
A.A. Cançado Trindade, parágrafos 1-89, texto reproduzido in: A.A. Cançado Trindade, Derecho Internacional de los Derechos Humanos - Esencia y Trascendencia (Votos en la Corte Interamericana de
Derechos Humanos, 1991-2006), México, Edit. Porrúa/Universidad Iberoamericana, 2007, pp.
52-87.
11
. Parágrafo 71 do mencionado Parecer n. 18. - Cf., a respeito, recentemente, A.A. Cançado Trindade,
“Le déracinement et la protection des migrants dans le Droit international des droits de l’homme”,
19 Revue trimestrielle des droits de l’homme - Bruxelles (2008) n. 74, pp. 289-328.
12
. Texto do referido Voto reproduzido in: A.A. Cançado Trindade, Derecho Internacional de los Derechos Humanos - Esencia y Trascendencia (Votos en la Corte Interamericana de Derechos Humanos,
1991-2006), México, Edit. Porrúa/Universidad Iberoamericana, 2007, pp. 629-654.
13
. A.A. Cançado Trindade, El Acceso Directo del Individuo a los Tribunales Internacionales de Derechos
Humanos, Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, pp. 9-104; A.A. Cançado Trindade, Évolution du Droit
international au droit des gens - L’accès des particuliers à la justice internationale: le regard d’un juge,
Paris, Pédone, 2008, pp. 1-187.
10
29
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DE LA DECLARACION UNIVERSAL DE DERECHOS HUMANOS
Beinusz Szmukler*
Kant sostuvo que “no hay más que un derecho natural e innato: la
libertad (independencia del albedrío de otros) en la medida que puede coexistir
con la libertad de todos, según una ley universal; este derecho es único, primitivo,
propio de cada hombre, por el solo hecho de ser hombre”
La prisión aunque sea provisional, acarrea graves daños morales y
materiales al procesado, que, en el ulterior juzgamiento puede ser reconocido
inocente.
La privación de libertad personal por el Estado es una facultad
atribuida por el ordenamiento jurídico, como una reacción contra quienes
incurren en una conducta violatoria de derechos de otras personas o del orden
social, definidas legalmente por su gravedad como delitos.
El principio liberal de presunción de inocencia, y su correlato que
exige que la desmoralizante y lesiva medida de privación de libertad sólo se
aplique cuando hay certidumbre de culpabilidad del procesado, es una conquista
lentamente obtenida frente al poder omnímodo del monarca absoluto, que
definía por si mismo la pérdida de libertad, el castigo físico, y hasta la muerte de
sus súbditos.
En el Digesto Romano de “Homine libero exhibendo”, cuya ley 1ª
ordena: ”Exhibe al hombre libre que retienes con “dolo malo”, antecedente
remoto de la Carta Magna de 1265 en Inglaterra, que los nobles obtienen como
consecuencia de la derrota del rey Juan Sin Tierra, que entre otras cosas les
otorga que ninguno de ellos, bajo la misma fórmula “hombre libre”, pueda ser
detenido ni perjudicado en su posición ni declarado fuera de la ley ni exiliado, de
no ser por juicio legal por sus iguales o por la ley del país. En 1628, el Parlamento
le arranca al monarca Carlos I “La petición de derechos”, uno de cuyos puntos
*
Beinusz Szmukler – Presidente de la Asociación de Abogados de Buenos Aires, Presidente Consultivo de la Asociación Americana de Juristas, Consejero del Advisory Board del Centro por la
Indepedencia de Jueces y Abogados de la Comisión Internacional de Juristas, Consejero del
Instituto “Espacio para la Memoria”, ex Consejero de la Magistratura Nacional, ex Profesor Titular
de Derecho Constitucional por concurso.
31
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
centrales es la prohibición de detenciones sin motivo. En 1679, el rey Carlos II
dicta su correlato garantista: el Acta de habeas corpus, que dirigido a un sheriff, un
carcelero o cualquier otro funcionario, a favor de un individuo bajo su custodia,
para que en el plazo de tres días, de recibida la orden, informe los motivos de
la detención del beneficiario y su puesta a disposición del juez o tribunal que
la había ordenado. La persona liberada no podía ser detenida nuevamente por
el mismo delito, y se prohibía el extrañamiento. Para aventar dudas sobre el
privilegio clasista de esta conquista, al que ningún pobre podría acceder, quien
interponía el habeas debía pagar, un monto que establecía el juez, para cubrir los
gastos necesarios para traer al prisionero, y garantizar que éste no escaparía en
el camino. No obstante sus llimitaciones, y de acuerdo con Héctor Fix Zamudio
esta institución constituye la excepción al modelo angloamericano de tutela
jurisdiccional de las garantías y valores constitucionales, que se consideran
como un principio y no como instituciones procesales concretas, ya que se
conformó desde su origen como procedimiento especifico. También se prohibía
el juzgamiento de civiles por tribunales militares. Principios similares establece
el bill of rigths de 1689. La Constitución de Estados Unidos de Norteamérica de
1787, mantiene la esclavitud y carece de una declaración de derechos, que se
concreta recién en 1791, con el agregado de las primeras 10 enmiendas. Entre
ellas se encuentra la no privación de la libertad, sin procedimiento legalmente
establecido, y a ser juzgado en causa criminal, pronto y públicamente por un
tribunal imparcial y competente. Es la “declaración de los derechos del hombre y
del ciudadano” francesa de 1789, la que reconoció, ahora sí para todos, que “los
hombres nacen libres e iguales en derechos” y su artículo 9º preceptúa que “todo
hombre se presume inocente hasta que sea declarada culpable, y si se juzgara
indispensable su arresto, todo rigor que no resulte indispensable para asegurar
el mismo debe ser severamente reprimido por la ley”. Además establecía que
sólo la autoridad judicial puede disponer la detención o prisión, a no ser en caso
de flagrancia, en el cual se sujeta a su ratificación o censura, dentro de un plazo
extremadamente breve.
Durante los 170 años siguientes la lucha por hacer realidad el
derecho enunciado logra su incorporación a la mayoría de las constituciones y
leyes nacionales.
La garantía jurídica del derecho a la libertad es la acción del hábeas
32
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
corpus, que se dirige contra una detención reputada ilegal o preventivamente
frente a la amenaza de que se produzca. Su larga casuística define diversas
hipótesis de detención arbitraria: 1. falta de justa causa, sea por carencia de
imputación, inexistencia de delito, o extinción de la punibilidad; 2. exceso de
duración; 3. rechazo de fianza autorizada por la ley; 4. cese del motivo de la
coacción; 5. incompetencia de la autoridad que dispuso o mantiene la detención;
6. nulidad del auto de prisión in fraganti, del decreto de prisión preventiva, del
proceso o de sentencia condenatoria; 7. violación de las formalidades legales del
acto de detención; 8. detención fuera de los ámbitos penitenciarios establecidos
por la ley, como es el caso de alojamiento indiscriminado de procesados y
condenados, o en condiciones irrespetuosas de la dignidad de la persona; 9.
denegatoria injustificada de libertad condicional admitida legalmente.
Soler sostuvo que la privación de libertad ilegal se produce también
cuando se impide a un sujeto ir a determinado lugar sin que exista norma legal
que autorice tal exclusión. Peco (1942) entendía que el funcionario competente
que teniendo noticia de una detención ilegal, omitiere, retardare o rehusare
hacerla cesar o dar cuenta la autoridad judicial competente, comete un delito
contra la Administración pública.
Un principio mayoritariamente admitido es la competencia de
cualquier juez para entender en un habeas corpus, ya que el valor en juego no
debe frustrarse por dilaciones relativas a la organización judicial, salvo que ésta
asegure la presencia permanente de magistrados para atender tales casos. No
hay que confundir la detención arbitraria frente a la cual es admisible el habeas
corpus, con la derivada de sentencia condenatoria injusta, contraria a los hechos
que surgen de la prueba producida, o al derecho aplicable, que debe corregirse
por vía recursiva.
La función del poder judicial es la de garante del cumplimiento de
las obligaciones de derechos humanos, sea que provengan de la constitución
o la legislación nacional o bien de los tratados internacionales, las que crean
derechos inmediatos para los individuos a partir que el Estado al que pertenecen
ratifica esos tratados, con independencia de su desarrollo local, salvo que su
puesta en ejecución sólo fuera posible por esa vía. En la cuestión que nos ocupa,
su aplicabilidad inmediata no reviste la menor duda, puesto que se trata de una
obligación de no hacer, de no actuar indebidamente, de no excederse en sus
33
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
facultades, no ejercer violencia ilegitima. Aquel que sufre una punición, debe
tener las condiciones mínimas que se garantizan a toda persona, incluyendo
libertad de expresión derecho de petición, derecho a la educación, y en la
medida de lo posible, derecho al trabajo.
Solo pueden limitarse los derechos estrictamente necesarios para
el la investigación judicial o el cumplimiento de la condena. El Registro de la
Delincuencia que suelen existir en casi todas partes deben estar limitadas a los
fines del propio sistema penal, y no ser utilizados para otros propósitos.
Son principios aceptados desde hace más de dos siglos, durante
los cuales se han ido desarrollando: el de legalidad que impone la utilización
de fórmulas precisas a la hora de definir las figuras delictivas, la presunción
de inocencia, el del juez natural, del derecho de defensa o del debido proceso
(incluye la necesidad de proveer un traductor capacitado para el imputado que no
domina el idioma en el que actúa el tribunal), de publicidad, y el non bis in idem,
que Las penas deben ser necesarias y apropiadas, y la reforma y la readaptación
social de los condenados debe ser la finalidad del sistema penitenciario.
Estos preceptos que protegen teóricamente la libertad no son,
desde el punto de vista técnico, garantías, pues para su realización necesitan
protección. Este derecho, como todos los demás, se convierten, al decir de Von
Ihering, en una farsa declamatoria, si carecen de garantía constitucional y de
jueces dignos para hacerla efectiva, cumplidores de su obligación de poner una
valla a la arbitrariedad.
De allí que la Declaración Universal de 1948 no hace más que
ratificar en un instrumento de enorme valor, precisamente porque universaliza,
un principio ya consolidado en la conciencia jurídica de la humanidad, aunque,
lamentablemente, violado a lo largo y ancho del planeta. A partir de ese
momento se inicia un proceso de desarrollo y consolidación normativa, que se
concreta en el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (PIDCyP), bajo
el mismo número de artículo, el 9, establece:
1. Todo individuo tiene derecho a la libertad y a la seguidad
personales. Nadie podrá ser sometido a detención o prisión arbitrarias. Nadie
podrá ser privado de su libertad, salvo por las causas fijadas por ley y con arreglo
al procedimiento establecido en ésta. 2.Toda persona detenida será informada,
en el momento de su detención, de las razones de la misma, y notificada, sin
34
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
demora, de la acusación formulada contra ella. Toda persona detenida o presa
a causa de una infracción penal será llevada sin demora ante un juez u otro
funcionario autorizado por la ley para ejercer funciones judiciales, y tendrá
derecho a ser juzgada dentro de un plazo razonable o a ser puesta en libertad.
La prisión preventiva de las personas que hayan de ser juzgadas no debe ser la
regla general, pero su libertad podrá estar subordinada a garantías que aseguren
la comparecencia del acusado en el acto del juicio, o en cualquier otro momento
de las diligencias procesales, y, en su caso, para la ejecución del fallo. 4. Toda
persona que sea privada de libertad en virtud de detención o prisión tendrá
derecho a recurrir ante un tribunal, a fin de que éste decida a la brevedad
posible sobre la legalidad de su prisión y ordene su libertad si la prisión fuera
ilegal. 5. Toda persona que haya sido ilegalmente detenida o presa, tendrá el
derecho efectivo a obtener reparación. En el artículo 10 se fija que: 1. Toda
persona privada de libertad será tratada humanamente y con el respeto debido
a la dignidad inherente al ser humano. 2. a) Los procesados estarán separados
de los condenados, salvo en circunstancias excepcionales, y serán sometidos a
un tratamiento distinto, adecuado a su condición de personas no condenadas;
b) los menores procesados estarán separados de los adultos y deberán ser
llevados ante los tribunales de justicia con la mayor celeridad posible para su
enjuiciamiento. 3. El régimen penitenciario consistirá en un tratamiento cuya
finalidad esencial será la reforma y la readaptación social de los penados. Los
menores delincuentes estarán separados de los adultos y serán sometidos a un
tratamiento adecuado a su edad y condición jurídica.
En términos similares se expresan los documentos regionales: el
art. XXV de la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre, y
el art. 7° de la Convención Americana sobre Derechos Humanos (Pacto de San
José de Costa Rica).
La jurisprudencia de mi país, supongo que al igual que la del Brasil,
ha realizado amplísimos aportes para garantizar el derecho establecido por el
art. 9 y los Pactos referidos. El espacio fijado para esta nota no nos permite su
análisis. Nos limitaremos entonces a la presentación de las pautas fijadas por el
órgano de las Naciones Unidas, creado por la Comisión de Derechos Humanos
(resolución 1991/42, ampliado por resolución 1997/50), para recibir y tramitar
las denuncias de detenciones arbitrarias por parte de los Estados que han
35
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
adherido al Protocolo Facultativo del Pacto Internacional de Derechos Civiles y
Políticos, el Grupo de Trabajo sobre la Detención Arbitraria. Para que se tenga
idea del nivel de incumplimiento de sus obligaciones por los Estados, señalemos
que en un solo año, el 2001, el Grupo transmitió un total de 79 llamamientos
urgentes en relación con 897 personas a 39 gobiernos y a la Autoridad Nacional
Palestina. Trece gobiernos informaron al Grupo que habían adoptado medidas
para reparar la situación de las víctimas. Conviene notar que por desconocimiento
de la existencia de la vía y los requisitos a cumplir, como por desconfianza en su
utilidad, sólo se denuncia una ínfima cantidad del universo de violaciones.
El Grupo de Trabajo considera arbitraria la privación de libertad
en los casos siguientes:
legal alguna que la
I. Cuando es evidentemente imposible invocar base
justifique (como el mantenimiento en detención de una
persona tras haber cumplido la pena o a pesar de una ley de amnistía que le
sea aplicable); II. Cuando la privación de libertad resulta del enjuiciamiento o
condena por el ejercicio de derechos o libertades proclamados en los artículos
7, 13, 14, 18, 19, 20 y 21 de la Declaración Universal de Derechos Humanos y
además, respecto de los Estados Partes, en los artículos 12, 18, 19, 21, 22, 25,
26 y 27 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos; III. Cuando la
inobservancia, total o parcial, de las normas internacionales relativas al derecho
a un juicio imparcial, establecidas en la Declaración Universal de Derechos
Humanos y en los instrumentos internacionales pertinentes aceptados por los
Estados afectados, es de una gravedad tal que confiere a la privación de libertad,
en cualquier forma que fuere, un carácter arbitrario; IV. detenidos sin orden de
detención y sin haber sido sorprendidos en flagrante delito, o mantenidos en
régimen de detención policial sin haber comparecido ante un juez de instrucción,
en violación de la ley y/o la Constitución del país; V. Incumplimiento de la orden
judicial de puesta en libertad inmediata. VI. Incumplimiento por el juez de dictar
una decisión razonada, para confirmar una detención policial o disponerla. VII.
la dictada por un tribunal sin rostro (Las graves incompatibilidades de la justicia
anónima impuesta en el Perú, que rigió desde 1992 hasta 1998, y la violación
de las debidas garantías procesales que constituye esta justicia excepcional es
muy grave). VIII. Si la detención contraviene los artículos 9 o 10 de la Declaración
Universal de Derechos Humanos, el artículo 9 del Pacto Internacional de Derechos
Civiles y Políticos y los principios del “Conjunto de Principios para la protección
36
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de todas las personas sometidas a cualquier forma de detención o prisión”,
como se da cuando las personas están detenidas sin cargo ni juicio y sin poder
comunicarse con sus abogados y familiares, o parece fundada en sus actividades
políticas, lo que constituye una violación de su derecho a la libertad de opinión
y de expresión garantizada en los artículos 19 de la Declaración Universal de
Derechos Humanos y del Pacto Internacional de los Derechos Civiles y Políticos.
IX. si no hubo más pruebas que las confesiones obtenidas mediante coacción;
X. si no se toman todas las medidas necesarias para garantizar el derecho a un
juicio imparcial, como en el caso actual de los cinco cubanos detenidos en Miami
por haberse infiltrado en organizaciones terroristas cubano-americanas, a fin de
evitar agresiones contra su país. El Grupo observa que “fueron mantenidos en
confinamiento solitario durante 17 meses, durante los cuales la comunicación
con sus abogados y el acceso a la evidencia, y con ello, las posibilidades de una
defensa adecuada se vieron debilitadas”, los abogados de la defensa tuvieron
acceso muy limitado a la evidencia clasificada como de seguridad nacional, ”lo
que afectó negativamente su capacidad para presentar evidencia contraria…ha
socavado el equilibrio equitativo entre la acusación y la defensa”, el Gobierno no
ha impugnado “el hecho de que un año más tarde el mismo admitió que Miami
no era el lugar adecuado para celebrar un juicio donde estaba probado que era
casi imposible un jurado imparcial en un caso vinculado con Cuba”, y “a partir de
los hechos y circunstancias en que se celebró el juicio y de la naturaleza de los
cargos y de las severas sentencias dadas a los acusados se infiere que el juicio no
tuvo lugar en el clima de objetividad e imparcialidad que se necesita para colcuir
que cumple con las normas de un juicio justo”.
El Grupo ha pedido a los gobiernos: a) que reduzcan al máximo
los casos de detención provocada por situaciones de pobreza extrema; b) la
derogación de textos que prevean el encarcelamiento por incumplimiento
de obligaciones contractuales prohibido por el artículo 11 del PIDCyP; c) la
adopción de las medidas necesarias, incluso en la esfera de la formación, para
que los jueces presten la mayor atención al nivel de ingresos de las personas
puestas en libertad bajo fianza a fin de dar pleno cumplimiento al principio de
que la puesta en libertad debe ser la regla y la prisión preventiva la excepción
(párrafo 3 del artículo 9 del Pacto); d) Evitar que las sanciones penales en forma
de multa, que están destinadas en principio a limitar las penas de prisión, no
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
guarden proporción con los ingresos de la persona condenada, a fin de evitar
que ésta sea encarcelada por falta de ingresos suficientes para pagar la multa;
e) reconsiderar el recurso a la privación de libertad para proteger a las víctimas
y, en todo caso, la autoridad judicial se debe encargar de su supervisión. Este
medio sólo se utilizará en última instancia si las víctimas así lo desean.
El Grupo de Trabajo ha calificado reiteradamente como detención
arbitraria la situación muy frecuente en Estados Unidos, de inmigrantes
condenados por diversos delitos, a quienes luego de cumplir la pena, las
autoridades migratorias imponen la expulsión del país, que muchas veces no
se materializa porque su país de origen no los acepta, y son mantenidos en
prisión durante años. Uno de ellos, p.e., culpable de hurto menor y condenado a
cuatro meses de prisión, seguía allí al momento de intervenir el Grupo, habiendo
transcurrido más de 30 meses de que cumpliera íntegramente su condena. Otro
caso aún más grave en idéntica situación llevaba preso siete años de cumplida la
condena. Un tercero no es puesto en libertad por resultarle imposible depositar
una fianza de 20.000 dólares. El Grupo considera esta condición irrazonable,
cuando la fianza exigida es severa y desproporcionada, dados los medios y la
condición del acusado, y afirma que la alegación del gobierno de Estados Unidos
que las personas declaradas culpables de delitos que han cumplido íntegramente
sus condenas puedan seguir siendo una amenaza para la comunidad cuando se
las ponga en libertad se aplica lo mismo a los ciudadanos que a los extranjeros
sujetos a deportación y no puede constituir la base legal de una detención
prolongada.
La Corte Interamericana de Derechos Humanos ha interpretado
la garantía contra detenciones ilegales del art. 7°, inc. 2°, de la Convención
Americana sobre Derechos Humanos estableciendo “que nadie puede verse
privado de la libertad personal sino por las causas, casos o circunstancias
expresamente tipificadas en la ley (aspecto material)”. El Código Procesal Penal
de la Provincia de Buenos Aires determina que “los funcionarios y auxiliares de
la Policía tienen el deber de aprehender: 1. Al que intentare un delito, en el
momento de disponerse a cometerlo”, y: “A quien sea sorprendido en flagrancia
en la comisión de un delito de acción pública sancionado con pena privativa de
libertad”. El art. 154 define flagrancia en los siguientes términos: “... cuando el
autor del hecho es sorprendido en el momento de cometerlo o inmediatamente
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
después, o mientras es perseguido por la fuerza pública, el ofendido o el público,
o mientras tiene objetos o presenta rastros que hagan presumir que acaba de
participar en un delito”. Llegado el caso, el policía que cumplió la detención
debe identificar cuáles fueron las ‘circunstancias debidamente fundadas’ que
lo llevaron a presumir que se estaba ante la inminencia de la comisión de un
hecho ilícito”. Se hace evidente que deben reputarse como casos de detención
arbitraria, las motivadas por el denominado “olfato policial”, cuando, sin orden
judicial previa, la policía detiene a una persona “con el fin de determinar su
identidad”, por su aspecto sospechoso, transitar sólo o junto a otras personas,
por una zona donde se registra un alto índice de criminalidad, o estar parado
frente a la puerta de un local en el que presuntamente hay valores y no dar
razones del motivo, frecuentar lugares de “mala fama’”, etcétera, aún cuando
el resultado de una requisa personal confirmara la existencia de armas u
otros elementos con probable destino para la comisión de delitos. Parecen
oportunas las preguntas –en el marco de la normativa argentina, pero aplicables
universalmente- que se hace Alejandro Carrió:
¿A qué quedaría reducida la operatividad de la garantía que
consagra la Constitución si los jueces de la Nación afirmaran que en definitiva
todo habitante de este país puede ser legítimamente detenido y obligado a
exhibir su documento de identidad en cualquier tipo de circunstancias?
¿Qué norma establece la facultad legítima de las autoridades
policiales para detener a una persona, exigirle la exhibición de documentos
de identidad, palparla en sus ropas, introducirlo a un patrullero, etc., si esa
persona no ha realizado con carácter previo conducta alguna que indique que
ha cometido o está por cometer un hecho ilícito?
¿Cuál es la ley que nos prohibe a los habitantes de la Nación el
decidir salir de nuestros domicilios sin documentos de identidad, bajo el riesgo
de tener que soportar ser detenidos y conducidos, por esa sola circunstancia a
una comisaría?
El juez Douglas, de la Corte Suprema de Estados Unidos, en su
esclarecedor voto emitido en el caso “Terry v. Ohio” afirma: “... Dar a la policía
mayores poderes que a un magistrado es dar un largo paso en la senda hacia el
totalitarismo….. Ha habido poderosas presiones a lo largo de nuestra historia
para que la Corte diluya las garantías constitucionales y otorgue a la policía
39
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
la mano ganadora. Probablemente, esa presión no ha sido jamás mayor de
lo que es hoy. Pero si el individuo no ha de ser soberano en lo sucesivo, si la
policía puede aprehenderlo cuando no le agrade su facha, si puede detenerlo
y registrarlo a discreción, estaremos entrando en un nuevo régimen”. Esa
premonición del magistrado se está cumpliendo. A 6 décadas de la Declaración
Universal de Derechos Humanos, la principal amenaza a las conquistas libertarias
de la humanidad proviene de su país. El derecho internacional, el derecho
humanitario, los derechos humanos proclamados y normatizados en los pactos
de la ONU, nunca tuvieron una contradicción tan flagrante con la realidad. Los
Estados Unidos recurren al terrorismo de estado contra su propio pueblo ( la
“Patriotic Act” autoriza la detención secreta de sospechosos de terrorismo, sin
información siquiera a sus familias, y carentes de toda defensa legal) y los demás
que no se someten a su mandato, cada vez que lo requiere su política imperial,
cualquiera sea la fracción (republicana o demócrata) del partido único que ejerce
el gobierno. Ejemplos paradigmáticos de violación del artículo 9 de la Declaración
Universal son las condiciones de los prisioneros, sin identificación, detenidosdesaparecidos, sin juicio ni derecho de defensa, y sometidos a vejámenes
y torturas durante años en las cárceles de Afganistán, Irak y la base naval de
Guantánamo, el secuestro por la CIA de supuestos terroristas en terceros países
y su traslado, - utilizando potentes aviones, y aeropuertos de países cómplices-,
a otros donde la tortura es legal para ser ‘eficazmente’ interrogados sin las
molestas restricciones legales imperantes en los Estados Unidos; y la prisión en
cárceles secretas.
Alentemos la esperanza que si, como lo demuestra la historia, todo
poder para sostenerse necesita, además de la fuerza, una dosis significativa de
consenso, finalmente, la lucha de los pueblos impondrá el triunfo del derecho
y la efectiva vigencia de la libertad, sobre el terrorismo de estado internacional.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
IGUALDADE DE DIREITOS: CONQUISTA DA HUMANIDADE
Dalmo de Abreu Dallari15*
I. Direito à igualdade e discriminações “liberais”
A igualdade essencial de todos os seres humanos, quanto aos
direitos fundamentais, ganhou grande ênfase e obteve proteção jurídica de
cunho universal a partir da publicação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas
em 1948. A afirmação da igualdade, aí contida, teve por objetivo repelir várias
formas de discriminação, estabelecidas e mantidas por muitas décadas, mesmo
depois das revoluções burguesas que, no final do século dezoito e início do século
dezenove, extinguiram os privilégios da nobreza e implantaram um novo tipo
de organização social, rotulado de liberalismo, no qual, teoricamente, ninguém
deveria sofrer restrições que não fossem as mesmas para todos.
O exame dos documentos fundamentais produzidos pelas
revoluções burguesas revela que a igualdade, embora num certo momento
tenha sido posta no mesmo plano da liberdade, ambas como direitos naturais
da pessoa humana, acabou sendo deixada de lado e, mais do que isso, foi
ostensivamente afrontada, pelo estabelecimento formal de discriminações
e marginalizações que configuravam flagrantes desigualdades de direitos,
tendo por base apenas a identificação com determinados grupos humanos ou
segmentos sociais. Com efeito, dois importantes movimentos revolucionários
que romperam com a ordem antiga, eliminando os títulos de nobreza e os
privilégios que os acompanhavam, a independência das colônias inglesas da
América e a Revolução Francesa, proclamaram a liberdade como direito natural
da pessoa humana. Além disso, os franceses adotaram como lema “Liberdade,
Igualdade, Fraternidade”, dando a impressão de que atribuíam à igualdade a
mesma importância dada à liberdade.
*
Dalmo de Abreu Dallari é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, membro da Comissão Internacional de Juristas, organização sediada em Genebra e acreditada junto à Comissão de Direitos Humanos da ONU, e membro do Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana, ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República do Brasil.
41
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Os desdobramentos desses movimentos revolucionários, a nova
ordem social instaurada e os documentos produzidos, deixaram evidente que
a preocupação com a igualdade, se um dia realmente existiu e foi um dos
objetivos revolucionários, logo foi posta de lado e lançada ao esquecimento. A
atribuição de direitos fundamentais consagrou discriminações muito evidentes,
a tal ponto que nem mesmo o direito à liberdade, afirmado e reafirmado antes
como direito natural da pessoa humana, foi assegurado a todas as pessoas. É
oportuno e útil verificar como se colocou a questão da proclamação e garantia
dos direitos fundamentais nos Estados Unidos e na França, pois com esses dados
comparativos ficará mais evidente a grande importância da proclamação da
igualdade como direito natural de todos os seres humanos, feita pela ONU em
1948, com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
As colônias inglesas da América, buscando a liberdade,
proclamada como direito natural, declararam-se independentes em 1776,
convertendo-se em Estados, e celebraram logo em seguida um tratado, os Artigos
de Confederação, estabelecendo regras de convivência entre os novos Estados
e fixando obrigações que todos deveriam cumprir para que fosse preservada
a liberdade. Visando aperfeiçoar aquele tratado, os Estados reuniram-se em
convenção, na cidade de Filadélfia, no ano de 1787, daí resultando a criação
da primeira Constituição escrita da história. Durante os debates travados pelos
convencionais, foi suscitada a idéia de publicação de uma Declaração de Direitos,
o que já havia sido feito pelo Estado de Virginia, em 1776, numa Declaração que
se inicia com a proclamação de que “todos os homens são, por natureza, livres
e independentes”. Houve várias manifestações contrárias e algumas favoráveis,
estas no sentido de que se declarasse a liberdade como direito natural de todos
os homens.
Entretanto, alguns objetaram que seria incoerente fazer essa
proclamação quando muitos dos convencionais eram senhores de escravos e
não admitiam abrir mão dessa condição. Assim, a Constituição foi aprovada
sem a Declaração de Direitos. Entretanto, por insistência de alguns líderes,
especialmente de Thomas Jefferson, poucos anos depois, em 1789, foram
apresentadas dez emendas à Constituição, que foram aprovadas após dois anos
de discussão, sendo, desde então, referidas como Declaração de Direitos (Bill of
Rights).
42
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Na realidade, essa Declaração de Direitos é um conjunto de
proclamações muito limitado, que afirma alguns direitos, como a liberdade
religiosa, a liberdade de portar armas, a liberdade de reunião e de associação,
estabelecendo ainda algumas regras limitadoras dos poderes públicos,
especialmente em matéria de acusação e defesa em matéria criminal, ficando
também evidente a preocupação com a garantia de independência dos Estados
quanto a interferências do governo central. Um ponto importante foi o cuidado
de não limitar os poderes dos Estados, para que se mantivesse a plena liberdade
recentemente conquistada. Um dado essencial para a presente análise é que
não se faz, naquela Declaração de Direitos incorporada à Constituição, qualquer
referência à igualdade de direitos, além do que não se afirma a liberdade como
um direito de todos, embora concebida como um direito natural. Basta lembrar
que a escravidão dos negros foi mantida, sendo abolida nos Estados Unidos
apenas em 1865, pela 13ª. Emenda à Constituição. Quanto a esse ponto, é ainda
interessante assinalar que os Estados de Geórgia e Connecticut só ratificaram a
emenda abolindo a escravatura em 1939. Assim, pois, a situação legal dos negros
configurava desigualdade óbvia, o que só seria corrigido gradualmente. Com
efeito, mesmo após a abolição da escravatura os negros continuaram excluídos
dos direitos eleitorais em muitos Estados e somente em 1964, por força da 24ª.
Emenda à Constituição, já sob influência da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, obtiveram a plenitude do direito de voto.
Outra discriminação persistente foi a imposta às mulheres. Numa
obra preciosa pela riqueza de informações e pela agudeza das análises (How
Democratic is the American Constitution ?, Yale University Press, 2002), Robert
A. Dahl, Professor Emérito de Ciência Política da Universidade de Yale, observa
que na Declaração de Independência, de 4 de Julho de 1776, foi proclamado
que “todos os homens nascem iguais” e não “todas as pessoas”, o que, em
sua opinião, já era clara manifestação de resistência à igualdade de direitos de
homens e mulheres. Com efeito, as mulheres só conquistaram o direito de votar
em eleições federais no ano de 1919, por meio da 19ª. Emenda Constitucional.
E muito depois disso, na segunda metade do século vinte, depois de aprovada
pela ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é que conseguiram
o reconhecimento, por decisões da Suprema Corte, de que eram contrárias
43
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
à Constituição e ao direito à igualdade de direitos muitas das restrições e
discriminações que eram impostas às mulheres e a vários outros segmentos
étnicos e sociais.
No liberalismo francês as restrições e discriminações foram,
de certo modo, mais chocantes, justamente porque o lema adotado pelos
revolucionários franceses, que se opunham às exclusões e limitações impostas
pelo Antigo Regime, foi “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Logo após a
conquista do Poder pelos revolucionários, em 1789, instalou-se uma Assembléia
Nacional, que aprovou um documento intitulado “Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão”. Também aí houve a exclusão intencional das mulheres, o
que se confirmou com a aprovação da primeira Constituição francesa, em 1791.
Um dado muito expressivo é que as mulheres francesas só puderam ingressar na
magistratura em 1946, quando, terminada a segunda guerra mundial, já se havia
estabelecido o ambiente que levaria à proclamação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos pela ONU. E também quanto aos negros houve a negação da
liberdade e da igualdade, pois a França tinha e continuou a ter escravos mesmo
depois de eliminados os privilégios da nobreza e adotado o constitucionalismo
denominado “liberal”.
A essas espécies de discriminações e de desigualdade de direitos
devem ser acrescentadas outras, como a que vem atingindo os índios e as
comunidades indígenas em várias partes do mundo desde o século dezesseis.
São, também, muito evidentes as discriminações contra migrantes, o que, em
muitos casos, tem um componente racista, como também religioso, o que era
expresso na afirmação de superioridade dos colonialistas e ainda está muito
presente no relacionamento de antigas potencias coloniais com os naturais das
ex-colônias. O componente racista já foi evidenciado em inúmeras situações e
persiste ainda agora em várias partes do mundo ocidental, especialmente em
relação aos migrantes asiáticos e africanos. Há casos em que o tratamento
desigual decorrente do racismo, do preconceito ou de interesses econômicos ou
políticos é patente e formal, havendo outros em que a desigualdade é imposta
com mais sutileza ou por via indireta, mas sempre com o resultado da ofensa ao
princípio da igualdade essencial de todos os seres humanos.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
2. Igualdade essencial das pessoas e dos povos
O artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma
seqüência lógica do artigo 1º, segundo o qual “todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e direitos”, não deixando margem a qualquer espécie
de discriminação. Tendo em conta as formas tradicionais de discriminação,
muitas delas em plena vigência e até mesmo consagradas nas Constituições e nas
leis de inúmeros Estados, a Declaração Universal faz, no artigo 2º, a reiteração
da afirmação de igualdade essencial, mas, além disso, faz uma enumeração das
discriminações mais óbvias e freqüentes, que não deverão mais ser admitidas.
Essa afirmação de igualdade, com a exigência de garantia de direitos iguais,
foi sintetizada nesse artigo da Declaração, em dois incisos, o primeiro deles
referindo-se a discriminações impostas com base em características pessoais dos
discriminados e o segundo tomando por base circunstâncias políticas e jurídicas
de povos e entidades político-jurídicas para a imposição de desigualdade de
direitos aos seus naturais ou habitantes.
Diz o inciso 1 do artigo 2º:
“Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.”
O enunciado desse dispositivo é muito claro, fazendo referência
expressa aos fundamentos mais freqüentes das discriminações, mas deixando
fora de qualquer dúvida que essa enumeração não é exaustiva, sendo igualmente
inaceitáveis outras espécies de discriminação que, desprezando a igualdade
essencial de todos os seres humanos, imponha tratamento diferenciado e
discriminatório a grupos de pessoas que tenham alguma característica que
podem não ser do agrado dos discriminadores, mas que não afetam de qualquer
modo a condição essencial de pessoa. Além disso, é importante assinalar que o
dispositivo da Declaração afirma, textualmente, o direito de gozar dos direitos
e liberdades, o que exige dos Estados e dos governos a fixação de regras e a
adoção de providências visando não só a afirmação formal de direitos iguais,
45
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
mas também a busca efetiva da igual possibilidade de gozo dos direitos.
O inciso 2 teve especial importância no momento de aprovação
da Declaração Universal, porque ainda persistia, em muitas partes do mundo,
o estatuto colonial, colocando povos inteiros em situação de inferioridade e
submissão, sem a garantia dos direitos fundamentais. Quanto a esse ponto é
oportuno lembrar que a partir da Declaração teve início um vigoroso movimento
no sentido da descolonização, que levou à transformação de muitas colônias
em Estados ou à mudança do tratamento jurídico dos povos de territórios não
soberanos e de algum modo sujeitos à soberania de uma potência estrangeira.
Foi, portanto, tendo em conta a situação do mundo no ano de 1948 que se deu
ao inciso 2 do artigo 2º da Declaração Universal o seguinte enunciado:
“Não será tampouco feita qualquer distinção fundada
na condição política, jurídica ou internacional do país ou
território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um
território independente, sob tutela, sem governo próprio,
quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania”.
A afirmação da igualdade essencial dos povos do mundo,
independentemente das características físicas e das peculiaridades culturais, foi
um passo extremamente importante no sentido da garantia do reconhecimento
da igualdade em direitos e dignidade de todos os seres humanos. Num valioso
estudo sobre “Preconceito Racial e Igualdade Jurídica no Brasil” (São Paulo, Ed.
Julex, 1989\0, Eunice Aparecida de Jesus Prudente, Professora da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, observa, com grande precisão, que
“o europeu, ao expandir-se pelo planeta, deparou com diversas civilizações
compostas por povos não brancos, cujas culturas apresentavam-se em
muitos pontos mais avançadas e ricas do que as européias”. Apesar disso, os
europeus brancos e seus descendentes diretos sempre trataram como pessoas
de qualidade inferior os negros e os índios, registrando-se, também, grande
resistência aos imigrantes asiáticos. Em todos esses casos encontra-se uma
conjugação de racismo e de intolerância cultural ou religiosa, como base para o
tratamento desigual e a restrição a direitos fundamentais.
A consideração da situação do mundo no momento da proclamação
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, e sua comparação com
46
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
o que ocorreu posteriormente, sobretudo com a extinção do colonialismo, deixa
evidente a relevante contribuição da Declaração para os avanços da humanidade
no sentido da universalização do reconhecimento da igualdade de todos os seres
humanos em dignidade e direitos. Persistem ainda muitas discriminações, em
parte como conseqüências remanescentes do antigo colonialismo, mas também
motivadas por ambições econômicas e políticas, de cunho internacional ou,
então, decorrentes de fatores internos que impedem muitas pessoas de serem
reconhecidas e tratadas como seres humanos iguais e merecedoras de proteção
e respeito.
Apesar da persistência de muitos focos e fatores de desigualdade,
a conclusão é que houve consideráveis avanços nas últimas décadas e que a
humanidade caminha no sentido da universalização dos direitos humanos,
apesar das resistências opostas por um relativismo cultural que pretende
sustentar a existência de pessoas e povos superiores e inferiores, bem como por
interesses econômicos e políticos de pessoas e grupos poderosos e desprovidos
de consciência ética. Um dado positivo e de grande importância é o fato de
que vem prevalecendo no mundo um novo constitucionalismo, inspirado nos
princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dando eficácia
jurídica e social ao artigo 2º da Declaração. O reconhecimento da igualdade de
todos os seres humanos é um imperativo ético e jurídico e será a base de uma
sociedade justa, condição essencial para que a humanidade possa viver em paz.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Edmundo Oliveira**
Durante os trabalhos preparatórios do Comitê incumbido de elaborar
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 7º foi o que mereceu a
mais longa discussão até que fosse encontrado o escopo da consistência que
deveria fazer do enunciado a peça central de impacto duradouro, representando
o modelo da força moral dos direitos humanos em toda a dimensão do planeta.
O artigo 7º foi aprovado, unanimemente, na Assembléia Geral das Nações
Unidas, em 10 de Dezembro de 1948.
A igualdade perante a lei e sem qualquer discriminação
Igual proteção da lei não sinaliza que todas as leis possam ser
aplicadas igualmente a todos. Significa que todos têm direito a uma formal
proteção da lei, no mundo real do ordenamento jurídico e da consciência ética
compartilhada no Estado. Efetivamente, o artigo 7º é o símbolo da original
vertente dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos fundamentais,
escudo para a elevação dos sentimentos contra prejuízos, constrangimentos e
inquietações que podem culminar com a descrença nas instituições. Na dinâmica
da universalização dos direitos humanos, o artigo 7º abriu portas para o peculiar
resguardo de determinados conjuntos de pessoas, grupos e minorias vez por
outra vulneráveis, por isso merecedores de apropriado regime de proteção
para fins de sólida tutela dos direitos e garantias fundamentais. Assim sendo,
em decorrência da âncora histórica do direito à igualdade formal - traduzida na
expressão “todos são iguais perante a lei” – emergiu o reconhecimento do direito
à diferença, face à necessidade de se conferir legítimas respostas às violações que
colocam em perigo ou atingem a titularidade de específicos direitos no cenário
*
Edmundo Oliveira - Advogado, Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado
do Pará. Ph.D. em Direito Penal, com Pós-Doutorado pela Universidade da Sorbonne, Paris, França. Professor Titular de Direito Penal, por concurso público, da Universidade Federal do Pará.
Membro da Fundação Internacional Penal e Penitenciária, com sede em Berna, Suiça, criada pela
Assembléia Geral da ONU. Professor Pesquisador de Direito Penal Comparado da Universidade
da Flórida e Consultor Científico do Instituto de Segurança Pública da Flórida, com sede no Condado de Lake, Estados Unidos.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
do cotidiano com suas diversidades humanas, na convivência em comunidade.
Como exemplos, cite-se a importância da orientação sexual para a criança, o
amparo assistencial ao idoso, o combate à violência doméstica e o abrando do
constrangimento do morador de rua. O lastro axiológico da igualdade perante a
lei e sem qualquer discriminação vem sendo favorecido pelo grau de consenso
sob a ótica de que o cidadão pode desfrutar dos benefícios de suas diferenças,
sem que tais diferenças propiciem choques de desigualdades.
Nesse sentido, os Países Membros das Nações Unidas adotaram
diversificadas recomendações inseridas nos seguintes instrumentos:
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951),
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (1965), Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos (1966), Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (1966), Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher (1979), Convenção contra a Tortura e Outras Penas
ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984),
Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), Convenção
sobre os Direitos dos Trabalhadores Imigrantes e de suas
Famílias (1990), Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência (2007).
A título de registro, comporta o exemplo de que o artigo 7º da
Declaração apresenta harmônica correspondência com a expressiva linguagem
do artigo 26 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que estatui:
“ Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito,
sem discriminação, a igual proteção da lei. A este respeito,
a lei deve proibir todas as discriminações e garantir a todas
as pessoas proteção igual e eficaz contra toda a espécie de
discriminação, nomeadamente por motivo de raça, de cor, de
sexo, e língua, de religião, de opinião política ou de qualquer
outra opinião, de origem nacional ou social, de propriedade,
de nascimento ou de qualquer outra situação”.
A palavra discriminação adquiriu acentuada singularidade no
50
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
artigo 7º da Declaração. Discriminação implica na violência que materializa a
segregação, a exclusão, a estigmatização, a restrição, a separação ou a distinção.
Dessa violência resulta sérios prejuízos ao exercício saudável da cidadania
operacionalizada com a interação da nacionalidade, etnia, raça e religião. Assim
sendo, discriminação, no texto do artigo 7º, é sinônimo de desigualdade, na
medida em que se refere à potencial modalidade de um tratamento igual dirigido
a circunstâncias diferentes ou, então, de um tratamento diferente dirigido a
circunstâncias iguais.
Convém chamar a atenção para outra característica que, sob o
ângulo metodológico, faz distinção entre discriminação e igualdade. Eliminar
qualquer forma de discriminação implica, substancialmente, na hipótese de
implementação da igualdade perante a lei, combinando-se a arte de construir
estratégias promocionais de prevenção com a legitimação do castigo ao
transgressor, no nível de sua culpabilidade. O Estado pode dispor da sujeição
à punição, em consonância com os critérios da individualização da pena, para
reforçar o que está na lei como proibido ou permitido, visto que a observância
aos pressupostos normativos, nacionais e internacionais, é absolutamente
fundamental para evitar ações ou omissões que ataquem as bases das políticas
públicas. É a dosagem correta do vigor da pena para despertar, na consciência
de cada pessoa, o efeito inibidor da lei que não deve ser desmoralizada como
promessa lírica expositora de ilusões. A propósito, o artigo 5º da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial traz um exemplo
da orientação para o Estado conduzir a combinação de estratégias promocionais
de prevenção com a legitimação do castigo ao transgressor, implementando, ao
mesmo tempo, o imperativo valor da igualdade perante a lei.
Prescreve o artigo 5º:
“De acordo com as obrigações enunciada no artigo 2º desta
Convenção, os Estados Partes comprometem-se a proibir e a
eliminar a discriminação racial sob todas as suas formas e a
garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei, sem
distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica”.
Desafios Contemporâneos da Globalização
51
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
O atual processo de globalização tem imposto desafios ao
progressivo diálogo rumo à integração dos Princípios de Proteção das Nações
Unidas com a leitura dos direitos humanos na esfera do Sistema Constitucional
e legal dos Estados, em condições de promover a realização da justiça social e
distributiva em âmbito nacional, viabilizando meios e medidas concretas para
a transparente e contínua promoção do direito à igualdade formal perante a
lei, respeitando-se o direito à diferença e sempre com repulsa à qualquer
manifestação de descriminação prejudicial à identidade de qualquer pessoa,
em meio à diversidade da conjuntura cultural. Ressalte-se, nesse contexto, a
complementação das regras e orientações das instituições regionais que atuam
nos respectivos Continentes: Organização dos Estados Americanos, União
Européia, União Africana e Comissão para Ásia e Pacífico.
Em benefício da promoção dos direitos e garantias individuais - seja
no plano doméstico, seja no plano das convenções e tratados internacionais que
são ratificados pelo Estado - as obrigações dos governantes e dos operadores
da lei carregam a permanente missão de estabelecer parâmetros de proteção
que façam avançar o peso normativo do artigo 7º da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, com ações pedagógicas preventivas e com os efeitos
ressocializadores da punição que definiu a reprovabilidade da conduta típica e
ilícita.
Por outro lado, não é coerente, sob o pretexto de maior energia de luta
contra a criminalidade, alargar os limites do poder, criando comprometimentos
aos princípios éticos, políticos e sociais que norteiam as linhas de obrigação do
Estado à autolimitação, para que não mergulhe nos subterrâneos da opressão
com ofensas vexatórias à cidadania. Exatamente por isso, o artigo 1º da
Convenção contra a Tortura consolida o raciocínio de que a tortura praticada
pelos agentes do Estado, com base em discriminação de qualquer natureza,
deve ser reprimida com o alcance mais amplo dos instrumentos da legislação
nacional e princípios internacionais que foram ratificados pelo próprio Estado.
Aí está a clareza para o êxito do crescente prestígio da segurança
jurídica modelada pela sintonia do imortal pensamento jurídico que nos ensina
a lidar com as controvérsias sob a égide de que é imprescindível a igualdade
de proteção perante a lei, bem como a igualdade de proteção contra qualquer
discriminação.
52
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A permanente modernidade dessa formulação das Nações Unidas
tem propiciado a lógica lição do quanto é possível revestir fundamentos teóricos
com o manto da significação prática, quando se trata de aspirações rumo ao
pleno exercício de direitos e liberdades fundamentais. Anima-nos o otimismo
da prosperidade no relacionamento Estado-Sociedade, com bons frutos para
o prestígio pragmático da universalidade dos direitos humanos no Terceiro
Milênio. É a renovada esperança de um mundo mais pacífico e com fraternidade
entre as Nações.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
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54
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
NINGUÉM SERÁ SUBMETIDO À TORTURA
Fábio Konder Comparato*
Até o advento dos Códigos Penais modernos, no curso do século
XIX, todo processo penal fundava-se na confissão do réu, considerada a rainha
das provas. No plano internacional, porém, ela só veio a ser expressamente
condenada com a Declaração Universal de Direitos do Homem. A Convenção
Européia de Direitos Humanos, que lhe é posterior, não contém disposição
alguma a respeito. O mandamento do Artigo V foi desenvolvido pelas Nações
Unidas em três tratados da maior importância: o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos de 1966, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984 e o Estatuto do Tribunal
Penal Internacional de 1998.
No Pacto de 1966, a grande novidade, a esse respeito, consistiu em
assimilar à tortura, ou aos tratamentos penais cruéis, desumanos ou degradantes,
a submissão de alguém, sem o seu consentimento, a experimentações médicocientíficas. É claro que essa disposição refere-se, antes de mais nada, às
práticas atrozes perpetradas pelos Estados totalitários, notadamente o Estado
nazista, em seus campos de concentração. Mas ela abrange também pesquisas
médicas e científicas de alto poder ofensivo, levadas a efeito em alguns Estados
democráticos, sem que os pacientes ou a população soubessem do que se
tratava. Nos Estados Unidos, no quadro de uma pesquisa médica iniciada em
1932 pela Seção de Doenças Venéreas, do Centro de Doenças Comunicáveis
do Serviço de Saúde Pública, 600 indivíduos negros do sexo masculino foram
envolvidos, mediante oferta enganosa de tratamento médico gratuito, num
estudo sobre os efeitos da sífilis. Mais de 400 indivíduos, portadores da
*
Fábio Konder Comparato - advogado, escritor e jusrista brasileiro. É professor titular aposentado (em 2006) da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor em Direito pela
Universidade de Paris e doutor Honis Causa da Universidade de Coimbra. Em 2009, recebeu o título de Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especializou-se
inicialmente em Direito Comercial, tendo publicado O Poder de Controle na Sociedade Anônima.
Atualmente dedica-se a dar cursos em outras áreas jurídicas, como Fundamentos de Direitos
Humanos e Direito do Desenvolvimento.É fundador da Escola de Governo, que tem por objetivo
a formação de governantes e já está presente em vários estados da federação.
55
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
moléstia, deixaram de ser tratados, provocando com isso a contaminação de
suas mulheres e crianças. Muitos morreram da doença. Da mesma forma, nos
anos 40 e 50, o governo norte-americano efetuou experimentos com radiações
atômicas em seres humanos. Algumas pessoas sofreram injeções de plutônio e
crianças mentalmente retardadas foram alimentadas com comida radioativa. Ao
mesmo tempo, o governo permitia a emissão de radiações nas proximidades de
zonas urbanas para observar os efeitos daí decorrentes. O Presidente Clinton
apresentou desculpas oficiais às vítimas de ambas as experiências, em 1995 e
1997. No que tange às penas degradantes ou cruéis, é geralmente admitido que
entram nessa categoria todas as mutilações, tais como o decepamento da mão
do ladrão, prescrito na Charia muçulmana, e a castração de condenados por
crimes de violência sexual, constante de algumas legislações ocidentais. O Pacto
de 1966 não explicita, porém, que certas penas, pelo seu caráter drástico, não
devem ser aplicadas a menores. A Convenção sobre os Direitos da Criança de
1989 proíbe a aplicação, a menores de 18 anos, da pena de morte e da prisão
perpétua sem direito ao livramento condicional (art. 37). No tocante à pena
de prisão, generaliza-se, em todas as partes do mundo, a convicção de que
ela só se legitima em casos excepcionais, e que ela deve, por conseguinte, ser
substituída, na medida do possível, por outras formas penais, mais adaptadas à
natureza do crime e à personalidade do criminoso. Pela Convenção contra
a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
somente aprovada pelo Brasil após o regime militar, “o termo tortura designa
qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são
infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma
terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma
terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar
ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em
discriminação de qualquer natureza, quando tais dores ou sofrimentos são
infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções
públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.”
Para a convenção, “não se considerarão como tortura as dores ou sofrimentos
que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam
inerentes a tais sanções ou delas decorram”. Cada Estado-Parte da convenção
56
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
poderá considerar-se competente para julgar casos de tortura: a) quando ela foi
praticada em seu território; b) quando o suposto autor for nacional do Estado
em questão; c) quando a vítima for nacional do Estado em questão. A convenção
criou um “Comitê contra a Tortura”, com funções de investigação análogas às do
Comitê de Direitos Humanos, criado pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos de 1966.
O Estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998 incluiu a tortura
na categoria dos crimes contra a humanidade, que são aqueles “cometidos no
quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população
civil, havendo conhecimento desse ataque” (art. 7º). De acordo com o Estatuto,
o crime de tortura pode existir, ainda que o ato não seja praticado por instigação
ou com a aquiescência de um agente público ou outra pessoa no exercício de
funções públicas.
A tortura no Brasil
Somos herdeiros de uma longuíssima tradição de torturar presos e
mesmo simples detentos, não só para arrancar-lhes a confissão, mas também,
simplesmente, como castigo pelos delitos de que são acusados. Nas Ordenações
Filipinas, o capítulo 133 do Livro V regulava “os tormentos”, determinando em
que casos deviam ser infligidos, excetuando da prática “os fidalgos, cavaleiros,
doutores em cânones ou em leis, ou medicina, feitos em universidade por exame,
juízes e vereadores de alguma cidade”. A Constituição Política do Império do
Brasil de 1824 dispôs, em seu art. 179 – XIX, que “desde já ficam abolidos os
açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis”. Não
obstante, o Código Criminal do Império de 1830 previu as penas de morte, de
banimento e a de galés, que consistia em trabalhos forçados à disposição do
governo, com calceta no pé e corrente de ferro. Além disso, estabeleceu o Código
punições exclusivas para escravos, como a de açoites e ferros, além das galés e
da pena de morte. A Constituição Republicana de 1891 aboliu expressamente a
pena de morte (salvo as disposições da legislação militar em tempo de guerra),
bem como as penas de galés e de banimento judicial. Mas nada dispôs em
relação à tortura. Na Constituição de 1934, declararam-se proibidas as penas de
57
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
“banimento, morte, confisco ou de caráter perpétuo, ressalvadas, quanto à pena
de morte, as disposições da legislação militar, em tempo de guerra com país
estrangeiro” (art.113, alínea 29). Também aqui, nada se dispôs sobre a tortura.
A Carta de 1937, que vigorou apenas no papel, declarou proibidas as “penas
corpóreas perpétuas” (art.122, alínea 13); o que poderia ser interpretado,
a contrario sensu, como permissão para as penas corpóreas temporais. Além
disso, admitiu a Carta a pena de morte em seis tipos de crimes. Já a Constituição
de 1946 proibiu a pena de morte, bem como as de banimento, de confisco e as
de caráter perpétuo (art. 141, § 31). Mas, da mesma forma que as precedentes,
nada dispôs sobre a tortura, como se se tratasse de prática desconhecida
no País. A Constituição do regime militar, promulgada em 1967, reiterou a
proibição da pena de morte, de prisão perpétua, de banimento e de confisco
(art. 150, § 11). Numa disposição de descarado cinismo, declarou, no § 14 do
art. 150: “Impõe-se a todas as autoridades o respeito à dignidade do detento
e do presidiário”. O que foi absolutamente ignorado, como todos sabem, pelos
agentes da repressão política. Chegamos, assim, à vigente Constituição, que
inaugurou, incontestavelmente, uma nova etapa nessa história perversa. Logo
no inciso III do art. 5º, ela declara que “ninguém será submetido a tortura nem
a tratamento desumano ou degradante”. Além disso, proibiu no inciso XLVII do
mesmo artigo as penas de morte (salvo em caso de guerra declarada), de caráter
perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento, bem como as penas cruéis.
Mas, sobretudo, a Constituição de 1988 dispôs que a lei considerará inafiançável
e insuscetível de graça ou anistia “a prática de tortura” (art. 5º, inciso XLIII). Em 7
de abril de 1997, foi promulgada a Lei nº 9.455, que definiu os crimes de tortura.
Infelizmente, porém, a consolidação dessa prática nefanda durante tantos
séculos, sobretudo em razão do tratamento crudelíssimo dos escravos africanos
e afrodescendentes, custa a ser abolida no Brasil. É bem verdade que, tal como
nas Ordenações Filipinas, alguns privilegiados jamais são postos a tormentos nas
delegacias de polícia ou nos presídios. Mas o povo humilde e pobre não só é a
vítima preferencial de torturas de toda sorte, como, o que é bem pior, em grande
parte aceita essa prática como uma fatalidade.
58
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DIREITO À PRIVACIDADE E À LIBERDADE DE VIVER SEM MEDO
Flávia Piovesan*
Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de
um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquin Herrera Flores,
compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem
processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana.
Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem
quando devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos
humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Para
Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma
invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução.
No final do século XVIII, as modernas Declarações de Direitos
inauguravam um discurso liberal da cidadania. Tanto a Declaração francesa de
1789, como a Declaração americana de 1776, acolheram a ótica contratualista
liberal, pela qual os direitos humanos correspondiam aos direitos à liberdade,
segu­rança e propriedade, complementados pela resistência à opres­são. O
território dos direitos e das liberdades, desde então, se instaurava como um
escudo a combater o arbítrio do Estado.
O repúdio ao abuso estatal em prol do respeito à liberdade inspirou
a Declaração Universal de 1948, que surgiu como resposta às atrocidades e aos
horrores cometidos durante o nazismo. A barbárie do totalitarismo invocou
o rechaço ao paradigma dos direitos humanos, por meio da descartabilidade
humana e da absoluta negação do valor da pessoa humana como valor fonte
do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o
Pós-Guerra deveria significar a esperança de sua reconstrução.
Neste cenário, a Declaração de 1948 vem a inovar a gramática
Flávia Piovesan - possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1990) , mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1993) , doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) , ensino-fundamentalprimeiro-grau pelo Colégio Mater Dei (1982) e ensino-medio-segundo-grau pelo Colégio Santa
Cruz (1985). Atualmente é Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de
Direito , com ênfase em Direito Público.
*
59
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de
direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos.
Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob
a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade
de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral,
dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à
condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos
é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e
vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos
humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e interrelacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o
catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.
É neste contexto que a Declaração Universal consagra o direito à
vida privada e à intimidade, como expressão concreta da liberdade de viver sem
medo, pois uma das características do totalitarismo foi justamente estender a
ubiqüidade do poder à vida privada para alcançar uma dominação total, como
lembra Celso Lafer.
O artigo 11 da Declaração Universal dispõe: “Ninguém será
sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na
sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa
tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. No mesmo
sentido, destacam-se o artigo 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos, o artigo 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos e o artigo
8º da Convenção Européia de Direitos Humanos.
Para a Corte Interamericana: “há um âmbito pessoal que deve
estar a salvo de intromissões por parte de estranhos, de forma que a honra
pessoal e familiar, assim como o domicílio, devem estar protegidos ante tais
interferências”. Esta Corte considera que “o âmbito da privacidade se caracteriza
por estar imune às invasões ou agressões abusivas ou arbitrárias por parte de
terceiros ou de autoridade pública. Neste sentido, o domicílio e a vida privada
encontram-se intrinsecamente ligados, já que o domicílio se converte em um
espaço no qual se pode desenvolver livremente a vida privada e a vida familiar.”
Os direitos humanos compreendem, em seu âmago, o exercício das
60
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
potencialidades humanas, de forma livre, autônoma e plena. Requisito, condição
e pressuposto deste exercício é o absoluto respeito à privacidade, à intimidade e à
autodeterminação individual. O direito à vida privada situa-se, assim, como uma
das vertentes da liberdade: a da liberdade como não interferência, usufruída em
um espaço próprio, que permite uma esfera de ação não controlada pelo poder,
nas lições de Celso Lafer.
Estudos demonstram, contudo, o perverso impacto do Pós 11
de setembro na composição de uma agenda global tendencialmente restritiva
de direitos e liberdades. A título de exemplo, cite-se pesquisas acerca da
legislação aprovada, nos mais diversos países, ampliando a aplicação da pena
de morte e demais penas; tecendo discriminações insustentáveis; afrontando o
devido processo legal e o direito a um julgamento público e justo; admitindo a
extradição sem a garantia de direitos; retringindo direitos, como a liberdade de
reunião e de expressão, o direito à privacidade; dentre outras medidas.
Na visão de Giorgio Agamben, os tempos atuais não são de
normalidade, mas de consolidação de um estado de exceção. Há a criação de um
estado de emergência permanente como prática do Estado contemporâneo, a
converter o estado de exceção em uma estrutura jurídico-política estabelecida.
No contexto do pós 11 de setembro, emerge o desafio de
prosseguir no esforço de construção de um Estado de Direito Internacional,
em uma arena que está por privilegiar o Estado Polícia no campo internacional,
fundamentalmente guiado pelo lema da força e segurança internacional. Só
haverá um efetivo Estado de Direito Internacional sob o primado da legalidade,
com o império do Direito, com o poder da palavra e a legitimidade do consenso.
Como conclui o UN Working Group on Terrorism: “a proteção e a promoção
dos direitos humanos sob o primado do Estado de Direito é essencial para a
prevenção do terrorismo”.
O risco é que na ânsia de combater o terrorismo adote-se
uma política de terrorismo de Estado, a violar princípios essenciais ao regime
democrático, como os princípios da publicidade e da transparência, nas malhas
ocultas e secretas de um poder submerso, oculto, invisível, na terminologia de
Bobbio, de um “criptogoverno”. Retomam-se, aqui, as clássicas lições de Kant:
“todas as ações relativas aos direitos de outros homens, cuja máxima não seja
61
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
suscetível de publicidade, são injustas”. A opacidade do poder é a negação da
democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o governo cujos
atos se desenvolvem em público, sob o controle da opinião pública.
É neste cenário que a Declaração Universal e os direitos nela
enunciados, com destaque ao direito à privacidade, constituem uma plataforma
emancipatória e uma racionalidade de resistência, no imperativo ético e
civilizatório de assegurar a liberdade de viver sem medo, preservando a Era dos
Direitos em tempos de terror.
62
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DIREITO DE ASILO
João Baptista Herkenhoff *
1. O que é o “direito de asilo”
O “direito de asilo” protege todo aquele que é vítima de perseguição
em seu país e que busca por este motivo um chão que o acolha. Cria uma
prerrogativa para o indivíduo, perante o Estado em que busca asilar-se. Gera um
dever para o Estado que é procurado como refúgio.
Nenhum Estado civilizado pode negar asilo quando requerido com
base em razões fundadas. E a própria fundamentaçao é relativa. Num Estado,
que caia num regime dictatorial, é fundado que peça asilo todo aquele que, em
princípio, possa ser vítima de perseguição.
Se o Estado, que se vê diante de um pedido de asilo, quiser prova
da perseguição, em muitos casos exigir essa prova seria o mesmo que pedir o
cadáver do perseguido.
O artigo refere-se a dois casos que excluem o direito de asilo:
1) perseguição legitimamente motivada por crimes de direito
comum;
2) atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Não elide o direito de asilo:
a) a alegação falsa ou simulada de crime comum ou ato contrário
aos princípios das Nações Unidas;
b) a alegação de crime comum, ou ato contrário aos objetivos das
Nações Unidas, quando o Estado que persegue não oferece qualquer garantia de
julgamento justo e público do acusado.
Nas duas situações referidas pelo artigo, é indispensável que a
perseguição seja legitimamente motivada para impossibilitar o asilo. Assim é
que, mesmo no caso de atos contrários aos objetivos e princípios das Nações
Unidas, só a perseguição legítima obstacula o direito de asilo.
*
João Baptista Herkenhoff - possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito
Santo (1958) , mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1975)
, pós-doutorado pela University of Wisconsin - Madison (1984) e pós-doutorado pela Universidade de Rouen (1992) . Atualmente é PROFESSOR ADJUNTO IV APOSENTADO da Universidade
Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Direito.
63
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
2. Os credores de proteção: o apátrida, o refugiado, o que vive em terra
estranha. A atenção da ONU para aqueles que são sujeitos e destinatários do
asilo
A situação dos apátridas e dos refugiados mereceu a atenção das
Nações Unidas
A “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” foi adotada em 28
de setembro de 1954, por uma Conferência de Plenipotenciários convocada pelo
Conselho Econômico e Social da ONU. Entrou em vigor em 6 de junho de 1960.14
Essa convenção definiu como “apátrida” toda pessoa que não seja
considerada como nacional seu por qualquer Estado.
A “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” estabelece que as
disposições da mesma convenção sejam aplicadas, no interior dos Estados, a
todos os apátridas, sem distinção de raça, religião ou país de origem.
O estatuto pessoal de todo apátrida reger-se-á pela lei do país de
domicílio ou, na falta de domicílio, pela lei do país de residência.
Assegura-se ao apátrida o acesso aos tribunais de Justiça, o direito
a trabalho em condições não menos favoráveis que aos estrangeiros, o ingresso
no ensino público fundamental e o direito a assistência e socorro públicos.
Em 30 de agosto de 1961, a Assembléia Geral da ONU, por
recomendação da Conferência de Plenipotenciários, adotou uma “Convenção
para reduzir os casos em que as pessoas ficam na condição de apátridas”. Essa
convenção entrou em vigor em 13 de dezembro de 1975.15
Quanto aos refugiados, a ONU, em vista da gravidade do problema
deles, nas mais diversas partes do mundo, criou um “Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados” (ACNUR), cujos Estatutos foram aprovados
pela Assembléia Geral em 14 de dezembro de 1950.16 Esse Comissariado, uma
agência que, por si só, justificaria a existência da ONU, tem como missão acolher
e ajudar os refugiados, onde quer que se encontrem, sem distinção de qualquer
espécie ou natureza. Mais de vinte milhões de seres humanos estão hoje sob o
braço protetor do ACNUR.
Posteriormente, em 28 de julho de 1951, uma Conferência de
Centro de Derechos Humanos, Ginebra. Derechos Humanos – Recopilación de instrumentos
internacionales. Naciones Unidas, Nueva York, 1998, p. 283 e segs.
15
Id., ib., p. 274 e segs.
16
Id., ib., p. 316 e segs.
14
64
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Plenipotenciários que se reuniu em Genebra, por provocação da ONU, adotou a
“Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Essa convenção entrou em vigor
em 22 de abril de 1954.
A convenção definiu como “refugiado” todo aquele ser humano
que, perseguido por motivo de raça, religião, nacionalidade, opinião política,
ou por pertencer a um determinado grupo social, busca proteção em outro país
que não o seu.17
Os refugiados são de todas as raças e religiões. Espalham-se pelo
orbe terráqueo. Obrigados a fugir para salvar a vida ou preservar a liberdade,
abandonam tudo – casa, família, pátria, referências existenciais – em busca de
um futuro incerto em terra estranha. Em muitos casos, o refugiado não conhece
o idioma, nem os costumes, do país de o abriga, o que aumenta seu sofrimento,
sua angústia.
A situação dos refugiados é uma das maiores tragédias de nosso
tempo.
Esse Comissariado, uma agência que, por si só, justificaria a
existência da ONU, tem como missão acolher e ajudar os refugiados, onde quer
que se encontrem, sem distinção de qualquer espécie ou natureza. Mais de vinte
milhões de seres humanos estão hoje sob o braço protetor do ACNUR.
Duas outras importantes posições tomou a Assembléia Geral da
ONU, no sentido da proteção dos refugiados e asilados:
a) a “Declaração sobre o Asilo Territorial”, adotada em 14 de
dezembro de 1967;18
b) a “Declaração dos direitos humanos dos indivíduos que não são
nacionais do país em que vivem”.19
3. A ampliacão do direito de asilo, na América Latina
Os países da América Latina, inclusive o Brasil, deram significativa
ampliação à prática do asilo, instituindo o asilo diplomático. Em decorrência
disso, distinguiram-se os conceitos asilo e refúgio, asilado e refugiado.
O asilo diplomático consiste em abrigar o refugiado na embaixada
do país que concede o asilo.
Id., ib., p. 295 e segs.
Id., ib., p. 321 e segs.
19
Id., ib., p. 323 e segs.
17
18
65
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A propósito, escreveu Márcio Pereira Pinto Garcia:
O asilo, entendido como lugar em que pessoas perseguidas por
motivos politicos encontram imunidade contra a prisão e recebem abrigo contra
perigo iminente, é consagrado no direito internacional público. Uma variante
latino-americana é o chamado asilo diplomatico. Prelúdio do asilo territorial, o
asilo concedido em missões diplomaticas é prática na América Latina. 20
O art. XIV da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a
Constituição brasileira. A recepção do Estatuto dos Refugiados, pelo Brasil.
O art. 4° da Constituição de 1988 diz que a República Federativa do
Brasil rege-se nas suas relações internacionais por dez princípios. Ao relacionar
esses princípios, dentre os quais figuram a prevalência dos direitos humanos,
a autodeterminação dos povos, a defesa da paz, conclui o artigo estatuindo
expressamente no seu último inciso:
X - concessão de asilo político.
A concessão do asilo político não é, assim, um acidente, um
pormenor no conjunto das estipulações do ordenamento jurídico brasileiro. O
asilo político é princípio que fundamenta as relações internacionais do Brasil.
Não obstante essa regra constitucional, o Brasil tardou em criar
mecanismos legais para a implementação do Estatuto do Refugiado, em nosso
país. O Estatuto é de 1951, mas somente em 22 de julho de 1997, a Lei n. 9.474
cuidou de fornecer os instrumentos legais para que aquele documento tivesse
vigência efetiva na ordem juridical nacional.
Nossa Constituição deu plena guarida ao artigo XIV da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não poderia adotar outro caminho.
A Constituição, que agora completa vinte anos, atendendo o clamor da
sociedade buscou fixar para o país rumos em direção à Justiça, à Solidariedade,
ao Humanismo e à Paz.
4. As grandes religiões e o direito de asilo
O asilo não é uma questão apenas jurídica. É uma questão ética
também. Por este motivo, as grandes religiões praticadas no mundo sustentam,
explícita ou implicitamente, a “idéia de asilo”.
Cf. Márcio Pereira Pinto Garcia. Comentário ao Artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. In: Direitos Humanos: conquistas e desafios. Brasília, Letraviva Editora, 1999.
Publicação sob os auspícios do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
20
66
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Chegamos a essa conclusão quando nos debruçamos diante dos
grandes textos do Cristianismo, do Judaísmo, do Islamismo, do Budismo, do
Taoísmo, do Confucionismo.
5. O Cristianismo e o direito de asilo
Jean–François Collange observa que, à luz do Cristianismo, o valor
do homem não está nem na cor de sua pele, nem no seu sexo, nem no seu
estatuto social, nem muito menos na sua riqueza , mas no fato de que em Cristo
ele é aceito como filho de um mesmo Deus. Isto de cada um reconhecer-se como
filho de um mesmo Pai conduz a uma fraternidade autêntica. 21
O Apóstolo Paulo coloca o homem como templo do Espírito Santo:
“Vocês não sabem que são templo de Deus e que o Espírito
de Deus habita em vocês?” 22
Essa afirmação é rica de conseqüências.
Um ser que é templo do Espírito Santo, ou seja, que é morada de
Deus, pode ser torturado, discriminado, condenado sem julgamento honesto ou
até mesmo sem ser ouvido, pode ficar ao desabrigo da lei e da Justiça, a ponto
de só encontrar amparo fugindo do território do Estado que o esmaga?
Se o Cristianismo inspira igualdade, dignidade, fraternidade, será
possível, a partir da concepção cristã de homem e de mundo, negar acolhimento a
quem, vitima de perseguição num pais, procura asilo em outro país? Certamente
que não.
6. O “direito de asilo” à luz do Judaísmo
O Judaísmo funda-se na Bíblia Hebraica que é o mesmo Velho
Testamento dos cristãos, com exceção de um livro, o “Eclesiástico”, que é
considerado livro sagrado pelos cristãos, mas que não é aceito pela Sinagoga
judaica.
Têm explícito acolhimento na Bíblia Hebraica estes valores: o
Jean-François Collange. Théologie des droits de I’ homme. Paris, Les Editions du Cerf, 1989,
p. 254 e seguintes.
22
Cf. Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, capítulo 3, vers. 16. Apud Bíblia Sagrada –
Edição Pastoral. Tradução, introduções e notas de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin.
São Paulo, Edições Paulinas, 1990, p. 1463.
21
67
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
grito de Justiça, principalmente dos fracos (Amós, Miquéias); a igualdade
entre as pessoas, o repouso dominical, o direito de todo homem ao alimento
superpondo-se ao direito de propriedade privada, a proteção dos instrumentos
de trabalho em face do penhor, a sacralidade do salário, a volta da propriedade
ao antigo dono (Deuteronômio); a solidariedade para com o órfão e a viúva
(Deuteronômio, Provérbios); a condenação da usura (Êxodo, Neemias); a
identidade de origem de todos os homens, o homem como imagem de Deus
(Gênesis, Salmos); a maldição contra os que açambarcam bens e que se tornam
proprietários de uma região inteira, o anúncio da libertação para os prisioneiros
(Isaías); a fraternidade (Levítico, Provérbios); a paz (Miquéias); a solidariedade
universal (Salmos). 23
No Deuteronômio ordena-se, expressamente, o acolhimento ao
estrangeiro e afirma-se o direito de asilo.
Voz de um povo que viveu em país que não era seu, escravizado,
oprimido, a herança espiritual do Judaísmo enlaça-se plenamente com a idéia
de asilo.
7. O Islamismo e o direito de asilo
O Islamismo ensina que o homem é “vigário (representante)
de Deus”, conforme se lê no Corão. Prescreve a fraternidade, adota a idéia
da universalidade do gênero humano24 e de sua origem comum; ensina a
solidariedade para com os órfãos, os pobres, os viajantes, os mendigos, os
homens fracos, as mulheres e as crianças, estabelece a supremacia da Justiça
acima de quaisquer considerações; prega a libertação dos escravos; proclama a
liberdade religiosa e o direito à educação; condena a opressão e estatui o direito
de rebelar-se contra ela; estabelece a inviolabilidade da casa. 25
A idéia de asilo, como um direito, integra a Ética islâmica, não
apenas como decorrência dos preceitos gerais de Fraternidade, Solidariedade
para com o fraco, Justiça, como também pela prescrição de acolhimento ao
viajante, devendo interpretar-se o sentido de viajante como justamente aquele
que não está no seu chão.
Há uma semelhança estreita entre a visão islâmica do ser humano
(homem, vigário de Deus), a idéia cristã ensinada pelo Apóstolo Paulo (homem,
Cf. E. Hirsch. Judaïsme et Droits de I’hmme. Paris. Librairie des libertés, 1984, passim.
Cf. Le Coran. Traduit par René Khawam. Paris, Maisonneuve/Larose, 1990.
25
Id., ibid.
23
24
68
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
templo de Deus) e a idéia de homem como imagem de Deus (Gênesis, livro
sagrado de judeus e cristãos).
8. A idéia de asilo dentro da ética do Budismo
Segundo o Budismo, os atos de virtude deveriam ser o critério de
valorização das pessoas.
O Budismo visa à realização plena da natureza humana 26 e à
formulação de uma sociedade pacifica e perfeita.27 Prega a igualdade essencial
de todos os homens, pela identidade da maneira como nascem e pelas condições
inerentes à espécie. Ensina o valor dos atos de virtude prevalecendo sobre a
condição social. Estatui a supremacia do Direito acima da consideração das
castas, o dever de Justiça para com o próximo, o respeito às pessoas, qualquer
que fosse sua condição social. Exalta, como virtudes, o amor da verdade, a
benevolência de espírito, o sentimento de justiça, a generosidade, a cortesia, o
cumprimento da palavra empenhada.28
A consagração do asilo é uma decorrência natural dos horizontes de
vida apontados pelo Budismo.
Fratenidade; generosidade; capacidade de escutar e, portanto, de
compreender, acolher – virtudes exaltadas pela Ética Budista, desaguam, com
amplitude de visão filosófica, na idéia de conceder asilo, de abrir os braços,
proteger o que é perseguido.
9. Taoísmo e asilo
A concepção básica do Taoísmo é a existência de um Ser que é
o princípio de todas as coisas, um Ser inominado, que Lao Tseu designou por
“Tao”. Este “Princípio” é traduzido de várias maneiras pelos estudiosos. René
Grousset nota que Tseu declarou que empregava o termo “Tao” para designar o
princípio das coisas, apenas a título de aproximação, à falta de um termo mais
satisfatório.29
A esse “Princípio”, Lao Tseu chama de mãe de todas as coisas,
Cf. Lama Denis Teundroup. Bouddhisme, voie d’ ouverture et de libération. In: Lumière e Vie.
Lyon Août 1989, tome XXXVIII, nº 193.
27
Cf. Père Pierre Python. L’éthique bouddhique. In : Lumiére e Vie. Lyon. Août 1989, tome
XXXVIII, nº 193.
28
Cf. Môhan Wijayaratna. Le Bouddha et ses disciples, Paris. Les Editions du Cerf. 1990, passim.
29
No mesmo autor e obra citada, p. 305.
26
69
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
diferentemente de outras religiões e filosofias que designam o Princípio ou Deus
no gênero masculino.
O Princípio está em tudo e tudo está no Princípio. Tudo vem do
Princípio e tudo volta ao Princípio. Cada ser que existe é um prolongamento do
Princípio. O mundo é instável e se encontra em permanente evolução. O homem
sábio abandona-se ao turbilhão do “Yin” e do “Yang”, adere ao ritmo universal,
busca simplificar-se, anular-se. Nisto alcança o “êxtase místico”. Tudo é um no
Tao. Os seres são prolongamento do Princípio Imortal Único.30
Será possível admitir que à luz dessa doutrina o coração humano
se feche diante daquele que pede asilo? O Princípio Imortal, que é Mãe, não
conduz ao acolhimento, que é uma virtude mais que tudo materna?
10. O Confucionismo e a idéia ética de asilo
O Confucionismo ensina a fraternidade, o respeito entre as pessoas,
o humanismo, a solidariedade, a busca da virtude e da paz. Prega o amor, o
respeito ao próximo, o tratamento fidalgo entre as pessoas. Toda pessoa deve
procurar alcançar a virtude da humanidade que consiste em ir ao encontro da
auto-compreensão e ajudar o próximo a também compreender-se, fortalecerse e ajudar os outros a que também se fortaleçam. Só é possível o caminho
da perfeição quando o ser humano se respeita a si mesmo e trava um firme
combate contra as próprias paixões. A perfeição de cada um deve objetivar a paz,
em benefício de todos. Que os governantes nutrissem, como virtude primeira, a
grandeza de coração e colocassem o povo acima do Estado.31
Também, a nosso ver, está implícito no código ético do Confucionismo
a prescrição do asilo.
Fraternidade, respeito entre as pessoas, humanismo, solidariedade,
essas virtudes, que estão na medula do Confucionismo, não exigem, para
concretizar-se, a adoção do asilo como prática social?
René Grousset, op. cit., p. 296 e ss.
Cf. René Grousset. Histoire de Ia Philosophie Orientale. Inde – Chine – Japon. Paris, Nouvelle
Libraire Nationale, 1923, p. 316 e seguintes. Cf. também: Eric Santoni, Les Religions. Alleur
(Belgique), Marabout. 1989. Anne-Marie Delcambre. L’ Islam. Paris. Éditions La Découverte,
1991. Jean Filliozat. Les Philosophies de I’Inde, Paris, Presses Universitaires de France, 1987.
30
31
70
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
IGUALDADE, LIBERDADE E A DECLARAÇÃO
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
João Luiz Duboc Pinaud*
Enquanto práticas organizativas da vida humana e lutas sociais, as
idéias políticas referem sempre dois elementos que se completam, em unidade
impartível e até certo ponto cada um deles nutrindo o outro: Igualdade e
Liberdade. Nas vivências democráticas , a partir da antiguidade Greco-romana,
nas lutas demarcadoras de 1848 e do tempo posterior, os temas Igualdade e
Liberdade, expressaram tensões entre pólos políticos antagônicos. Pautas
integradas ou diametralmente opostas foram marcantes presenças políticas
nas sociedades, em termos de idéias ou partidos. Compartições ou oposições
políticas em vários tipos de lutas (notadamente no século XIX) traduziram
vivências e percepções sociais antagônicas ou assemelháveis, demarcando
pontos (correferentes ou opostos) de Igualitarismo e Liberalismo. Historicamente
incontornável que os nexos entre os multiformes experimentos de Igualdade e
Liberdade, representassem oposições e encontros, por sua vez determinantes
de construções de partidos ou grupos organizados. E sempre expressando
constantes, porque incansáveis, lutas políticas. De modo intensificado neste
século XX, quando surgiram avassaladoras forças diametralmente opostas, não
somente no plano das idéias e sim em gradações das oposições e ajustes políticos.
Tais disputas existiram mesmo no interior das tentativas de composições e nas
várias modalidades de lutas partidárias, mesmo sangrentas. Em nosso século a
desigualdade social, embora expressiva da maior parte da humanidade, ainda
*
João Luiz Duboc Pinaud - Advogado militante-OAB-RJ , Professor Titular de Direito Constitucional da UFF, Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros-IAB-1998/2000 , Juiz de Direito do
Estado do Rio de Janeiro , Escritor premiado pelo Instituto Nacional do Livro,ano de1985, com o
Romance Tempo de Família, Secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos-RJ (2000/2002),
Secretário de Estado de Direitos Humanos-RJ-Junho/Novembro-2003, Membro da Comissão
Nacional de Direitos Humanos do CFOAB, Membro da Comissão Especial do Conselho De Defesa dos Direitos da Pessoa Humana(CDDPH)-2004, Presidente da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos políticos da Secretaria Especial De Direitos Humanos-2004, Participante da
Missão de Solidariedade ao Povo do Haiti organizada pelo Jubileu Sul, Membro da Associação
Americana de Juristas e Presidente da Rama do Rio de janeiro da AAJ, Coordenador da PraxisDireitos Humanos Em Ação.
71
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
não permitiu a definição de conceitos jurídico-legais e respectivas práticas,
coordenando possível normalidade político-social envolvente do maior
numero de pessoas. Portanto, valores conexos e inseparáveis de IGUALDADE/
LIBERDADE, aparecem enquanto anúncio, meramente teórico, de direitos ao
nível de propostas político-sociais. Dentro das imposições desigualizadoras
socialmente construídas e apoiadas pelo Poder de um Estado sem, no entanto,
expressar a naturalidade de relações sociais entre pessoas. Vale lembrar a
oposição entre Igualdade e Liberdade diante das distinções e privilégios que,
na França, integraram o Ancien Regime. E considerar que, neste período, os
indivíduos (mesmo sem a distinção do nascimento na “nobreza” ou posse de
superior fortuna diante das pessoas comuns do povo) não lograram afirmação
como pessoas iguais, na vida social. Em nenhuma sociedade historicamente
existente, construiu-se enquanto prática natural, outro tipo de realidade: a vida
social de todos, como exigência de justiça, deve ser igualitária. A desigualdade
humana se manteve em vários e diferentes contextos históricos, e nem chegou
a ser superada, qual saída exigível pelos sistemas democráticos. Afinal, em que
consistiria (teria sido a pergunta cabível ante tal injustiça) a Democracia, cujo
principio retor só poderia ser a igualdade de todos diante da lei e do poder? A
dificuldade do responder o quesito , no plano teórico ou prático, abre problemas
históricos ultrapassantes da pequenez deste estudo em sua limitada reflexão.
Mas vale apenas assinalar elemento diferencial quanto às possibilidades
econômicas igualizadas no viver social e político. E sublinhar: a equalização
teórica e prática, nas lutas “democráticas” nutre propostas político-partidárias
marcando a Igualdade de todos enquanto nota estrutural da democracia. E, na
mesma linha, grifar os valores Igualdade e Liberdade enquanto praticidade de
organização e lutas sociais.
Este tema amplíssimo possibilita, no entanto, referir à igualdade das
pessoas diante da lei e do poder enquanto conquista, temas básicos para estudo
de sua trajetória histórica. As percepções humanas de Igualdade e Liberdade
teriam se constituído, ao longo de sua transmutação em conceitos jurídicolegais. Surgiu, enquanto direitos das pessoas, qual fosse ditado enquanto
propostas político-sociais e diante das imposições desigualizadoras apoiadas por
qualquer Poder, grupo social de força ou imposição estatal. E, em conseqüência,
72
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
poderíamos apontar tal elemento como diferencial? Nos sistemas democráticos
esse desfrutar, com iguais possibilidades de todas as pessoas, em virtude de
alternativa econômica equalizadas no viver social e político, poderia significar
uso acessível a todos? E, em conseqüência, tal espécie de equalização, com
alcances práticos, apareceria como nota estruturadora de qualquer modalidade
democrática, que pudesse ser historicamente vivenciada? Tais quesitos, e muitos
outros que nem podemos pensar, dificultariam qualquer resposta nitidamente
indubitável.
Na enumeração dos problemas imediatos, poderíamos mencionar
o inevitável questionamento dos valores de Igualdade e Liberdade, enquanto
essenciais para sobrevivência compatível com a condição humana. E daí a
exigência de perceber e vivenciar Direitos Humanos. E sua concreção se torna,
inevitavelmente, exigência preliminar em quadro figurando como invioláveis
seus Direitos e bloqueadas suas correspondentes lesões. Tal listagem deve cobrir
todos os atos e omissões ferindo a integralidade tranqüila das pessoas e sem
distinção entre elas. Em qualquer debate, o mero admitir tal alternativa como
algo socialmente concreto apontaria suas inúmeras complicações. Logo, com a
necessidade de superar dificuldades aplicativas surgiria o empenho de conhecer
e estruturar meios jurídico-politicos capazes de garantir tais valores, capazes de
inibir ações nocivas e marcando também os lamentáveis efeitos sociais.
Nos calendários das reuniões DH, persiste a sombria ameaça
de genérico não poder agir. E, de seguida, o desencorajador resultado social
previsto. E com também a antevisão de seus vários danos que a reiteração social
inconseqüente tornara maiores e mais terríveis quando a inércia responde
a violação excutada, com a “certeza” social da inconseqüência. E, com ela,
outra negatividade: em países, como o Brasil, sem a sistemática aplicação de
Direitos Humanos, em pautas governamentais ou práticas sociais. Subsiste
em contrapartida, maior e assustadora, a imediatidade da negação violenta.
Dentro da passividade alienada, os Direitos não são vividos e reconhecidos
como fundamentais, qual o alheamento representasse ausência de escolhas
valorativas feitas na própria vida social, quando se ajusta, pela ausência de
direitos, em apatia ética ante respostas sociais violentas, ou se responde, não
retribui com igual peso.
73
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Quem, no Brasil, atua comprometido com a prioridade da luta por
Direitos Humanos, desvenda de pronto, a constante possibilidade de nenhuma
conseqüência pública restritiva das atitudes supressoras de Liberdade e
Igualdade. Qual fosse aceitável atacar valores prioritários. Na sociedade brasileira
(nem se torna necessário exemplificar com o período escuro da repressão militar
por 1964, que violações de Direitos Humanos marcaram), já tão ferida pelo ab
usus de Governos e de grupos ou pessoas que se colocam socialmente como
“poderosas”, ou seja, jamais alcançadas por nenhuma resposta institucional
correspondente e eficaz. Assim, o “descompromisso” das Instituições ante o
grave da impunidade em Direitos Humanos e o alheamento popular, devem
ser a preocupação maior. E nessa desconsideração ou não inclusão dos
problemas nas pautas relevantes da Nação, adquire nitidez a “apática ausência”
governamental. Sendo possível ler, além da apatia, o alheamento geral diante
das sombras nocivas que sempre envolvem sociedades onde dominam pessoas
que enfrentam governos alheios a tais valores.
O sombrio obstáculo que envolve a prática de Direitos Humanos na
sociedade brasileira, motiva o indispensável aparecimento de grupos populares
comprometidos. Daí o impulso social do empenhar-se em proteger se coloca
como Dever preliminar e maior. Tal luta, aparentando timidez, representa
alternativa concreta e constante da sociedade, que anulam práticas oficiais.
Cabe, neste ponto, lembrar a titulo de exemplaridade o que a Mídia mostrou
recentemente no Rio de Janeiro (setembro de 2009): o servidor-policial
apontando arma de fogo para multidão desarmada e estupefata! São os exemplos
perfeitos do abuso da força pública e aceitos socialmente como normais. E uma
vez reiterados e divulgados pela mídia funcionam como reforço, apóiam aquela
e outras ameaças ou práticas de violência contra o povo, desarmado e ainda
não aguerrido. Alimenta-se pois contínuo concordar com atos violadores de
Direitos Humanos quando não há repúdio ante qualquer violação denunciada,
um “vazio do alheamento” substituindo a resposta exigida pelo o ato violador.
O que significa a ausência de conseqüências e transmuda em apoio ou aplauso
a omissão social.
O registro da violência policial como inadequadas respostas do
Poder Público, pela ineficácia e ineficiência das próprias propostas públicas, não
74
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
significam nada além do que se poderá chamar de aplicação da cosmetologia
oficial para tratamento assintomático das violações de Direitos Humanos.
O abstrato e, portanto distanciado conhecer violações
substitui o conhecimento direto dos fatos, suas omissões geradoras passam,
lamentavelmente, a traduzir inerente “de acordo”. Tal estranho “de acordo”,
vindo das autoridades titulares das respostas funciona como outro estímulo,
qual afirmasse: “Direitos Humanos tutelados não existem. Pratiquem, pois,
contra qualquer um do povo, sem nenhuma conseqüência restritiva, todos os
atos que a violência da animalidade exigir.”
A reflexão coletiva sobre tais violações e responsabilidades pessoais
ou institucionais, enfim, estará previamente demarcada, pela própria condutaexemplo governamental superior, trazendo segurança para o violador com a
impunidade oficializada e não resposta social traduzindo conivência e aprovação.
Caberia indagar se as torturas impunemente feitas pelo Estado
Militar/Policial, durante e após o governo militar no Brasil de 1964, não teceu
vínculos fortes com estímulos e impunidades aos torturadores brasileiros e ao
próprio êxito da criminalidade ocultada de 1964 até os dias atuais?
O trágico desprezar a alternativa da aplicação de Direitos Humanos
- enquanto efetivação de valores político-sociais maiores – não acarreta
condenável “aceitar,” ostensivo e sistemático qual um “dos nossos”, os violadores
de Direitos Humanos?
A Comissão Nacional de Direito Humanos da OAB, não vive dentro
de toca forrada com asbesto (como dito em uma das inúmeras cartas recebidas)
, pois oferece respostas cabíveis ao necessitados, buscando remover o sofrer. E
receber tais relatos como denúncias gravíssimas de crimes, tal como apontadas
por Durkheim: graves rupturas afetando estágios mais ou menos definidos
da consciência social. Como dizer: rupturas afetando estágios mais ou menos
definidos da consciência brasileira diante de sua própria realidade, a Comissão
trabalha no Máximo de suas possibilidades de atuação. Ela participa do
urgentíssimo e indeclinável apoio a pessoas oprimidas, feridas e humilhadas. E
ante esta enorme incumbência, se empenha em imediatamente responder. E tal
esquema de respostas responsáveis não se revela como gesto de compreensão
fácil. Vale repetir que Instituições como a OAB, lastreada pelo seu passado
75
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
recente (ou seja, durante Tirania Militar truculenta e assassina) construiu sua
Ética Política em coragem, luta e riscos diante aquele despotismo. Ela escolheu,
demarcou e assumiu seu itinerário histórico e justamente por isso colocouse entre instituições vanguardeiras dos movimentos populares (estrutura
oxigenada de Igualdade, Liberdade, e Insurgência) , potencializando – como
nunca se viu em nossa história – sua anfíbia condição de entidade representativa
e parcela do poder estatal – pois assumiu os riscos dessa vanguarda – recebeu
em troca ( esvaziando a intolerância dos governantes militares), a confiança do
povo mediante suas entidades representativas e também o que era havido como
tecnicamente eficaz e confiável . Eram vozes das pessoas falando nas casas, nas
ruas, soando em surdina e medo, em suma, o que se chamaria voz do povo. A
//Essa Ordem dos Advogados do Brasil não foi credenciada por dispositivo da
Constituição Federal (Certa vez, em debate com Roberto Campos, voz autoritária
da “consciência” conservadora do capital financeiro, ouvi-o usar repetidamente
a palavra “pleonexia”) como defensora da ordem jurídica, foi mais que isso,
tornou-se efetivamente, repositório da uma sadia e verdadeira consciência ética.
Advogados introjetaram e colocaram-se no saio de lutas diretas, nos espaços das
prerrogativas ou do frontal enfrentamento ante a Ditadura.
Não são outros os dilemas trazidos pelas pautas da OAB. Eles sim
devem ser preliminarmente, discutidos e vistos como desafios em direção a
valores acima dos que foram pensados e vivenciados pela nossa colonial tecnoburocracia. E na correção de nossas falhas, na retificação de caminhos, na pauta
inclusive, das exigências e esperanças que as pessoas brasileiras tributaram aos
integrantes da OAB, notadamente nos mais ainda deploráveis tempos de tirania
militar que, por seu turno, descoloriu-se, como poder estagnante, em face do
atual tempo de esperanças insepultadas, devem inexistir tocas para o esconder
e refúgio dos que, em dias de opressão foram os aplaudidores voluntários
de todos os absurdos praticados , na atmosfera de violência sempre covarde
exercidas em suas casernas cavernas e quartéis.
As respostas, de modo exclusivo, não nos pertencem. Mas,
enquanto tarefeiros de Direitos Humanos, em miúda contribuição e ao nosso
aperfeiçoamento cabe, invertendo os termos, perguntar: será apenas tecnoburocrática a toca onde se esconde? O que, dentro de contextos contrários as
76
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
apurações de violência contra direitos, o que nos é dado fazer? Na pauta do debate
solicitado, pede-se análise da circunstância, intensidade e freqüência crescente
de violações sem troco. O que chega tardiamente ao nosso conhecimento
(p.ex. cartas de detentos doentes, desassistidos e torturados, enviadas para a
Comissão de Direitos Humanos da OAB. E as cartas dos detentos, denunciando
violências suportadas ou implorando apoio, raro encontram seus destinatários
ou seguem os eficazes caminhos.
Essa “posta-restante”, enquanto tal, não possui anima. Qual
animação se espera do inanimado? Os fatos são expansivos, não param ou
esperam. A fundamentação da revolta esta na indignação ante o que se repete,
é assimilado e revigorado na inação ou ação tardia. A longa experiência da OAB
vem mostrando os tantos obstáculos ao recebimento e providências cabíveis
que inúmeras e constantes denúncias, vindas de todos os Estados brasileiros.
As novas dimensões – com ampliação e novo instrumentar
a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do
Brasil - que a Direção da Entidade planeja, deverá abrir outros campos de
eficácia no relevante atendimento, intrinsecamente questionador posto que
sempre enfrenta violações de Direitos Humanos, de várias origens (estatais
ou particulares) e as resoluções adequadas implicam na constante melhoria
dos serviços públicos, enquanto exigem questionamentos, de contundência
inafastável e sempre molestos, quando incisivamente encaminhados, nos
espaços públicos e particulares. Sempre deve ser assim, posto que o desprezar
ou ignorar a urgência social de impedir lesões a Direitos Humanos, deve gerar
respostas fortes, desmoralizantes que, apesar da agressividade que precisa
encerrar ao exigir restaurações, raramente conseguem ser tão duras, dolorosas
e socialmente desconcertantes quanto o ferimento de qualquer (e sempre
nuclear) Direito Humano.
Karl Marx afirmou , em termos não superados, ser a Liberdade a
consciência da necessidade.Tal valor somente se realiza através da Igualdade.
Esses dois valores,em sua inerência,devem ser o principal objeto das lutas
universais em favor de um mundo justo.
77
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS
Joênia Wapichana*
Introdução
A Declaração Universal dos Direitos Humanos abriu novas visões
sobre o Direito. No século XX, a Declaração estabeleceu princípios universais,
e concebeu conceitos de direitos interdependentes e indivisíveis. O mundo
preparava-se para enfrentar dilemas e lacunas jurídicas que eram obstáculos
à garantia e ao gozo dos direitos humanos fundamentais. O artigo 6º da
Declaração Universal traz à luz uma reflexão sobre o direito de ser pessoa, sobre
o direito de ter respeitados diferentes valores e maneiras de viver. Estabeleceu
a importância do tratamento a ser dado ao ser humano – portanto merecedor
de dignidade – a todas as pessoas e em todos os lugares, e com a garantia
da lei, caso isto não se cumpra. Viver dignamente, um direito reconhecido e
base de todos os direitos humanos é ainda hoje um desafio incorporado às
necessidades do homem e da mulher. Os tempos modernos mostraram que a
pretensão de universalidade pensada há 60 anos atrás enfrentaria desafios e
preconceitos ainda não conhecidos ou admitidos. E assim, ao longo do século XX
e XXI foram desenvolvidos novos instrumentos de direitos humanos, que mais
adequadamente interpretaram e exigiram a aplicação da Declaração Universal.
Entre esses documentos, citamos os que se referem aos povos indígenas como
sujeitos especiais de direito como a convenção 169 da OIT e a Declaração
Internacional dos Direitos dos Povos Indígenas.
Mudanças do tratamento do “ser pessoa”
No caso dos povos e indivíduos indígenas, só recentemente
entendeu-se que a proteção de seus direitos fundamentais não poderia deixar
de considerar os diferentes valores, as diferentes culturas, tradições e maneiras
*
JOENIA BATISTA DE CARVALHO é do Povo Indígena WAPICHANA/RR.Primeira mulher indígena
a se formar em Direito no Brasil. Graduou-se na Universidade Federal de Roraima. Advogada
e liderança indígena no Conselho Indígena de Roraima. Pela defesa dos direitos dos povos indígenas da TI Raposa Serra do Sol, já recebeu prêmios nacionais e internacionais de direitos
humanos.
79
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de viver indígenas. Inclusive para o exercício do direito de ser reconhecido e
respeitado como pessoa. Em razão da cultura e valores diferenciados, muitas
vezes na nossa história as pessoas indígenas foram, e em muitos casos ainda
são, tratadas como seres inferiores, tendo desrespeitada sua dignidade
humana, em razão de peculiaridades culturais como suas línguas, hábitos
crenças, modos etc... Por muitos anos a nossa sociedade foi instruída na idéia
de que existia um único modelo certo de ser humano, civilizado e cidadão
(consequentemente detentor de direitos e parte fundamental da sociedade).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos rompe com esse entendimento
e contribui com uma nova mentalidade, aberta à diversidade. É verdade que
tais inovadoras considerações foram efetivamente aceitas apenas muitos anos
depois de proclamada a Declaração (como por exemplo o direito de igualdade da
mulher, não-discriminação dos portadores de deficiência, inclusão dos pobres e
analfabetos no exercício e gozo dos direitos de cidadania). E até hoje, há quem
ainda resista à idéia de diversidade. Não muito longe de nossa realidade atual,
havia as caçadas aos índios para colonização das terras. Ainda se ouve muito
falar que as avós de um ou de outro eram tão “selvagens” que foram pegas a
laço. Imagino o que passaram essas avós indígenas, na sua negação como ser
humano. Por não serem consideradas como pessoas, foram retiradas à força de
suas comunidades, de seu habitat e obrigadas a mudar em todos os sentidos.
A justificativa partia da equivocada idéia de que, o indígena se tornaria cristão
e trabalhador livre, deixando de ser índio para ser cidadão, reconhecido como
pessoa. Tais idéias foram ainda legisladas. A própria legislação civil brasileira de
1916 (Código Civil vigente até 2002) estabelecia a incapacidade civil dos indígenas
conforme o seu grau “de aculturação”. Condicionava-se assim o reconhecimento
legal dos mesmos, como pessoas cidadãs, e limitava-se a possibilidade de serem
respeitados plenamente como “sujeitos de direito”. Da mesma forma, o Estatuto
do Índio (Lei nº 6.001/73) traz em seu texto o tratamento dispensado aos índios,
como “silvícolas”. O termo referia-se àquele que vivia na selva e que não teria
condições de exercer sua vida civil, fadado a um processo de que deveria ser
de assimilação a uma única cultura, religião e lei. A idéia de que uma única
cultura definiria o que é “ser pessoa”, havendo um padrão a ser seguido pela
sociedade em geral, trouxe à tona o desprezo por valores diferentes. Com isso o
80
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
preconceito cresceu e “ser pessoa” passou a exigir um status de “ser superior”.
Consequentemente, o “ser inferior” deveria mudar para “ser pessoa” de fato. E
por mais absurda a idéia, ainda ouve-se muito falar aos índios que eles devem
fazer isso ou aquilo para um dia “serem pessoas”.
E o que mudou?
No Brasil, não restam dúvidas de que a Constituição Federal
de 1988 trouxe significativos avanços em termos de conquista de garantias e
direitos fundamentais, e dos direitos indígenas. Ficou evidente na Carta Magna
a pluralidade étnica existente em nosso país, cabendo ao Estado brasileiro
adotar medidas que assegurem o respeito à diversidade cultural aqui presente.
A Constituição Federal de 1988 veio reconhecer aos povos indígenas o direito
à diferença, consubstanciada no reconhecimento de sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens1 (CF, art. 231). O artigo 231 e seus
parágrafos contemplaram maior proteção jurídica às terras indígenas, com
preceitos inovadores que partiram do reconhecimento dos direitos originários
sobre as terras tradicionais indígenas e da proteção da dignidade das pessoas
e povos indígenas. Elevaram à categoria de tema constitucional o conceito
de terra indígena, pois entendeu-se serem elas imprescindíveis ao bem-estar
e à reprodução física e cultural dos povos indígenas, segundo seus usos,
costumes e tradições (CF, art. 231, § 1º). Apesar do ganho na legislação magna,
ainda pesa sobre os povos indígenas a dependência da vontade política para
o reconhecimento de fato de seus direitos territoriais para a garantia de seus
direitos fundamentais. Enfrenta-se desde falta de recursos a conflitos judiciais,
interesses político-econômicos, ausência de políticas públicas, e discriminações
de todos os tipos, como por exemplo a falta do reconhecimento dos índios
como pessoas. Conforme reconhecido na Constituição, para os povos indígenas
terem sua dignidade e culturas protegidas, precisa-se de segurança de suas
terras. A compreensão da terra, para os povos indígenas, vai além do aspecto
meramente patrimonial. Ela se apresenta como condição de existência, de vida,
81
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
fazendo parte, inclusive, de nossa identidade indígena – é a vida não apenas
física, biológica, mas em suas múltiplas referências. Além da sobrevivência física
de cada um dos membros da comunidade, busca-se garantir a sobrevivência e
o desenvolvimento das comunidades, que têm suas histórias relacionadas com
um determinado local, um modo de ser e viver particular, e uma maneira de se
expressar característica. Assim são reconhecidos e protegidos como indivíduos
e coletividades.
Reconhecimento do tratamento digno – os direitos coletivos dos povos indígenas
A diferença entre direito individual e direitos coletivos tem
respaldado instrumentos internacionais, que surgem para a proteção do direito
dos povos indígenas e de outras coletividades do mundo atual. Em 1989, por
exemplo, diversos paises, entre eles o Brasil, assinaram e adotaram a Convenção
169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho
- OIT. Em 2002, após anos de tramitação, o Congresso Nacional ratificou a
Convenção Internacional, passando a partir de 2004 a ser lei no Brasil, com a sua
promulgação em Decreto presidencial. A Convenção nº 169 da OIT, reconhece os
direitos coletivos de “povos” indígenas, e não somente os direitos de indivíduos
indígenas. Estabelecendo entre outros, a necessidade de adoção do conceito
de povos indígenas no âmbito do direito interno, com garantias ao direito
coletivo essenciais para sua condição como pessoa. “A Convenção foi o primeiro
instrumento internacional a tratar dignamente dos direitos coletivos dos povos
indígenas, estabelecendo padrões mínimos a serem seguidos pelos Estados e
afastando o princípio da assimilação e da aculturação no que diz respeito a esses
povos.” (Ana Valeria Araújo, in Povos Indígenas e as leis dos brancos: o direito a
diferença). E destaca:
O princípio da auto-identificação como critério de determinação da
condição de pessoa indígena, de “ser índio.”
O direito de consulta sobre medidas legislativas e administrativas
que possam afetar os direitos dos povos indígenas.
O direito de participação dos povos indígenas, pelo menos na
mesma medida assegurada aos demais cidadãos, nas instituições eletivas e nos
82
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
órgãos administrativos responsáveis por políticas e programas que os afetem.
O direito dos povos indígenas de decidirem suas próprias prioridades
de desenvolvimento, bem como o direito de participarem da formulação, da
implementação e da avaliação dos planos e dos programas de desenvolvimento
nacional e regional que os afetem diretamente.
O direito dos povos indígenas de serem beneficiados pela
distribuição de terras adicionais, quando as terras de que disponham sejam
insuficientes para garantir-lhes o indispensável a uma existência digna ou para
fazer frente a seu possível crescimento numérico.
O direito a terem facilitadas a comunicação e a cooperação entre
os povos indígenas através das fronteiras, inclusive por meio de acordos
internacionais.
Ao defender direitos coletivos, a Convenção 169 da OIT traz
invocações substanciais para a legislação internacional de direitos humanos,
explicitada em instrumentos internacionais escritos quase exclusivamente
em termos dos direitos individuais. Garantir aos membros de povos indígenas
os mesmos direitos universais de qualquer pessoa humana foi um passo
importante. Entender que esta pessoa humana tem características culturais que
lhes são próprias e que são vividas em coletividade expande a noção jurídica de
pessoa perante a lei.
O advento das novas concepções sobre os direitos humanos
e a situação dos povos indígenas trouxe novos mecanismos de defesa dos
direitos indígenas. Para respeitar o individuo como pessoa é preciso entender
e respeitar o coletivo indígena por meio de suas culturas, tradições e anseios
para o futuro. O que faz ser pessoa não é sua cor, sua língua, ou seus costumes
como bem reconhece a nossa Constituição, dando vida ao dispositivo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. A humanidade está precisamente
na diversidade do nosso ser que, ao fim, despido de todos os pré-conceitos, nos
une pela essência. Uma essência que exige dignidade, que respeita o indivíduo
e o coletivo. Além da Convenção 169 da OIT, outros instrumentos internacionais
avançam na afirmação do respeito aos direitos coletivos dos povos indígenas. A
Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (adotada em setembro
de 2007), exatamente interpreta a Declaração Universal (que trata de direitos
83
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
individuais) no contexto dos povos indígenas. O artigo 43 da Declaração dos
Povos Indígenas chama atenção para o que significa dignidade e bem-estar para
os povos indígenas. O conceito de coletividade que perpassa todo o conteúdo da
Declaração dos Povos Indígenas adiciona mais um elemento para a proteção da
pessoa e de sua dignidade, tal como consta na Declaração Universal. Trata-se do
respeito à diversidade, direito fundamental das pessoas indígenas individuais e
coletivas. O Preâmbulo e artigos 1º, 2º e 3º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, bem como o artigo 6º da Declaração Universal, devem ser lidos em
conjunto com o artigo 9º da Declaração dos Povos Indígenas. Trata-se de direitos
interdependentes. E assim, o reconhecimento da dignidade da pessoa e dos
povos indígenas não pode ser compreendido sem o reconhecimento do caráter
fundamental das terras tradicionais para a existência e continuação dos povos
indígenas e como tais (artigos 10 e 26 da Declaração dos Povos Indígenas). “Os
indígenas têm direito, como povos ou como pessoas, a usufruir plenamente de
todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais reconhecidos pela
Carta das nações Unidas, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e
pela Normativa Internacional dos Direitos Humanos.” [artigo 1º da Declaração
das Nações Unidas sobre os direitos dos Povos Indígenas] Se a bem conhecida
Declaração Universal dos Direitos Humanos comemora seus 60 anos, com ela
não podem ser esquecidos os desafios ainda a serem superados e os esforços
mundiais para a sua implementação. A exemplo, a recém aprovada, e ainda
pouco conhecida, Declaração da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas.
84
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, DE 1948
José Luciano de Castilho Pereira*
1 – Direitos Humanos e Direitos Fundamentais.
1.1. Doutrina Fábio Konder Comparato, examinando a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que:
“reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos
humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados
internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à
dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais
ou não. A doutrina jurídica contemporânea, de resto, (...) distingue os direitos
humanos dos direitos fundamentais, na medida em que estes últimos são
justamente os direitos humanos consagrados pelo Estado mediante normas
escritas. (…) Já se reconhece, aliás, de há muito, que a par dos tratados ou
convenções, o direito internacional é também constituído pelos costumes
e os princípios gerais de direito. (…) Ora, os direitos definidos na Declaração
de 1948 correspondem, integralmente, ao que o costume e os princípios
jurídicos internacionais reconhecem, hoje, como normas imperativas de direito
internacional geral (jus cogens). (1)
É sob essa ótica doutrinária que serão examinados os direitos
decorrentes do trabalho humano subordinado, incluídos na mencionada
Declaração de 1948.
1.2. Os artigos XXIII e XXIV da Declaração cuidam dos fundamentos
do Direito do Trabalho, afirmando que todo homem tem direito ao trabalho, em
condições justas, com proteção contra o desemprego, tendo sempre assegurada
remuneração igual por trabalho igual, sem qualquer distinção. Afirmam ainda
que a remuneração pelo trabalho prestado deve ser justa e satisfatória, para
garantir ao trabalhador e à sua família existência compatível com a dignidade
humana, tendo ainda direito a limitação razoável da jornada de trabalho, a
periódicas férias remuneradas, a repouso e lazer.
85
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
E, para garantia destes direitos humanos, ficou estabelecido
que todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para
proteção de seus direitos.
1.3. A Declaração deu seqüência à linha já traçada pela Constituição
da Organização Internacional do Trabalho, em 1919 e, de modo muito especial,
seguiu a contundente Declaração de Filadélfia, de 10 de maio de 1944, que fixou
de modo preciso os Direitos dos Trabalhadores, colocando o princípio básico
de que o trabalho não é uma mercadoria, incluindo esta grave advertência: a
penúria, seja onde for, constitui um perigo para a prosperidade geral.
1.4. De ser destacado, ainda, o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado na XXI Sessão da Assembléia Geral
das Nações Unidas, no dia 19 de dezembro de 1966, devidamente ratificado
pelo Brasil.
Este Pacto, no seu art.7º, afirma:
“Art. 7º - Os Estados-Partes do presente Pacto
reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de
condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem
especialmente:
a) uma remuneração que proporcione, no mínimo, a
todos os trabalhadores:
b) um salário eqüitativo e uma remuneração igual por
um trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; em
particular, as mulheres deverão ter a garantia de condições
de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a
mesma remuneração que eles por trabalho igual;
c) uma existência decente para eles e suas famílias, em
conformidade com as disposições do presente pacto;
d) a segurança e a higiene no trabalho;
e) igual oportunidade para todos de serem promovidos,
em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda,
sem outras considerações que as de tempo de trabalho e
capacidade;
86
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
f) o descanso, o lazer, a limitação razoável das horas
de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a
remuneração dos feriados.
E, no artigo 8º do mesmo Pacto, foi tratado o direito de toda pessoa
à organização e à filiação sindical, “sujeitando-se unicamente aos estatutos
da organização interessada, com o objetivo de promover e de proteger seus
interesses econômicos.”
Restou, também, assegurado o Direito de Greve.
1.5. Fica claro, portanto, que estes textos do Direito Internacional
expressamente reconhecem a dignidade do trabalho humano, que não é uma
mercadoria.
O homem não trabalha apenas para satisfazer suas necessidades
materiais de vestuário, casa e comida.
O trabalho, em verdade, se vincula ao homem enquanto pessoa,
reclamando também a satisfação de necessidades ligadas ao seu universo
espiritual.
Mas o ser humano é uma unidade, na qual o físico e o espiritual
estão em permanente interação.
Assim, por mais material que seja o trabalho, dependente apenas
de esforço físico, o trabalhador, em sua execução, não deixa de ser uma pessoa
humana.
Como o trabalhador não é uma máquina, como tal ele não pode ser
tratado.
Decorre daí a integração do Direito ao Trabalho, bem como do
Direito do Trabalho, como partes integrantes da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e do Pacto de 1966.
1.6. Considerando a realidade brasileira, a partir de outubro de
1988, esses Direitos Humanos passaram a integrar a Constituição Federal do
Brasil. Mas sua integração não se deu no título que cuida da Ordem Econômica
e Social, como nas Constituições de 1934 e de 1946; ou simplesmente na Ordem
Econômica, como na Constituição de 1937.
87
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Eles estão, desde o Título I, que trata dos Princípios Fundamentais,
afirmando que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos: a
soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. E, no art. 3º, está dito que
constituem objetivos fundamentais da República, construir uma sociedade livre,
justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem
de todos, sem discriminação de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
E, no Titulo II, especifica os Direitos e Garantias Fundamentais,
estando os Direitos Sociais, no Capítulo II, compreendendo os artigos 6º a 11º.
No artigo 6º, está declarado que são direitos sociais a educação,
a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
No art.7º, estão enumerados direitos dos trabalhadores urbanos e
rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social.
Da leitura do art. 7º, decorre a conclusão de que, substancialmente,
foram transformados em Direitos Fundamentais os Direitos Humanos dos
trabalhadores, constantes da Declaração Universal de 1948, bem assim do Pacto
de 1966.
Lastima-se, apenas, que não se tenha acolhido a norma da
Convenção 158 da OIT quanto à despedida imotivada dos trabalhadores, embora
o inciso I, do art. 7, não vede sua vigência no Brasil, ela continua trilhando
caminhos tortuosos, marcados por intermináveis filigranas jurídicas. No art. 8º, estão registrados os direitos básicos dos sindicatos,
destacando-se, v.g., o inciso VI, que torna obrigatória a participação dos
sindicatos nas negociações coletivas e o inciso III, que atribui ao sindicato a
defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive
em questões judiciais ou administrativas.
O art. 9º, garante o Direito de Greve, competindo aos trabalhadores
decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por
meio dele defender.
Ainda aqui, foram seguidas garantias dos Direitos Humanos dos
88
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Trabalhadores estabelecidos na Convenção de 1948 e no Pacto de 1966, além
do prescrito em normas de Convenções da Organização do Trabalho.
Lamenta-se, entretanto, o conflito do inciso II, do art. 8º, com a
Convenção nº 87/OIT, asseguradora da mais ampla liberdade sindical.
Mas, de qualquer forma, não há como se negar que o direito
ao trabalho e o direito do trabalho estão inseridos no universo do homemtrabalhador.
Como lembra o professor OSCAR ERMIDA URIARTE, “o trabalhador
tem duas classes de direitos humanos: os direitos trabalhistas específicos,
os que todos conhecemos e com os quais trabalhamos, e os demais direitos
do cidadão,(...) não específicos do trabalhador, mas que ele conserva, como
cidadão, na relação de trabalho.” (2)
1.7. Fica demonstrado, como está no ensinamento de FLÁVIA
PIOVESAN, que “a Constituição assume expressamente o conteúdo dos direitos
constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Ainda que
estes direitos não sejam enunciados sob forma de normas constitucionais,
mas sob forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o
valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o
catálogo de direitos fundamentais previsto no texto constitucional.”(3)
2 - Os Direitos Fundamentais e a Realidade Brasileira.
2.1. Apresentada a realidade de nossa ordem jurídica, segundo a
estruturação fixada pela Constituição – na garantia dos Direitos Humanos dos
Trabalhadores - deve ser apurado a maneira segundo a qual ela atua na vida dos
brasileiros, para assegurar que Paz seja, efetivamente, obra da Justiça.
Como pontua o Min. CARLOS AYRES BRITO, o justo à distância,
que é o justo abstrato, não é difícil de ser alcançado. O problema, continua
o Ministro, reside é no ponto de chegada, isto sim, e esse ponto jurídico de
chegada é o justo em concreto. O justo em carne-e-osso, pois a vida é muito
mais novidadeira do que vida pensada pelos legisladores. (4)
89
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
2.2. Aqui dois fatores importantes devem ser destacados; o primeiro
diz respeito á nossa história sócio-econômica, marcada pelos muitos séculos de
trabalho escravo, quando o trabalho não era fator de afirmação da dignidade
humana. Daí poder dizer MARCIO POCHMANN, que o trabalho valorizado não
é algo difundido no Brasil. De passado colonial e sustentado pela escravidão,
serve de obrigação para a sobrevivência da maior parte da população. Poucas
famílias desfrutam do trabalho como consequência de posição de poder e
riqueza. Somente com a industrialização nacional, a partir da Revolução de
30, que o Brasil começou- sem terminar ainda- o caminho da valorização do
trabalho. (5)
Nesta mesma linha se coloca EVALDO CABRAL DE MELLO, ao afirmar
que, segundo JOAQUIM NABUCO, a escravidão é a instituição que ilumina nosso
passado mais do que qualquer outra, acrescentando: “à partir dela, é que se
definiram entre nós a economia, a organização social e estrutura de classes, o
Estado e o poder político, a própria cultura”. (6)
O segundo fator a ser destacado é que, logo após a promulgação
da Constituição Social de 1988, foi derrubado o emblemático Muro de Berlim e
implodido o império Soviético.
E, segundo FUKUYAMA, em livro publicado em 1992, chegou-se ao
fim da história, porque “a vitória liberal contra o fascismo e o fim do mundo
comunista seriam a prova histórica de que não há nenhuma outra forma de
organização superior à economia de mercado e nenhum sistema político mais
perfeito do que a democracia liberal.” (7)
Diante disso, passou a ser sustentado entre nós que a Constituição
de 1988, com os Direitos Humanos por ela incorporados como Direitos
Fundamentais, cuidavam de um mundo que não mais existia. Agora, o Estado
deveria se afastar de interferência na vida econômica, pois esta se regeria por
leis inflexíveis; por consequência, o campo do contrato seria dominado pelo
“pacta sunt servanda”, tudo segundo ideologia do Laissez Faire.
A partir de então, os direitos humanos dos trabalhadores passaram
a ser tratados como a parte pobre da Economia. Pobre e descartável, como uma
simples mercadoria.
Assim, no final do Século XXI, corremos para o final do Século XIX!!!
90
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
As duas circunstâncias acima referidas fizeram com que os Direitos
Humanos assegurados pela Declaração de 1948 – e inseridas na Carta de 88- não
se efetivassem na realidade brasileira.
Aqui se acreditou que havíamos chegado ao Fim da História e
passamos a cumprir a linhas ditadas pelo neoliberalismo, com o afastamento do
Estado do dever de promover os Direitos Humanos dos Trabalhadores.
Como está afirmado por NORBERTO BOBBIO, enquanto os direitos
de liberdade nascem contra o superpoder do Estado - e, portanto, com o
objetivo de limitar o poder -, os direitos sociais exigem, para sua realização
prática, ou seja para a passagem da declaração puramente verbal à sua
proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do
Estado.” (8).
Essas colocações devem ser feitas, pois, como assinalado por
BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, “o debate sobre a concretização da
Constituição não pode desprezar as circunstâncias históricas nas quais ela se
insere.” (9).
E, como descrito acima, tem ficado difícil vislumbrar a aplicação do
comando do art.193 da Constituição Federal a preceituar que a ordem social
tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça
sociais.
Também tem se tornado quase impossível vislumbrar o
cumprimento do contido no art. 170/CF, ao garantir que a ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados alguns princípios, como o da função social da propriedade.
A Constituição estrutura a Ordem Social e a Ordem Econômica
segundo os princípios dos Direitos Fundamentais, que ela recebeu da Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Contudo entre a conceituação abstrata dos Direitos Fundamentais
e sua efetivação tem medeado distância abissal.
2.3. Mas é de ser remarcado que um fato novo está acontecendo no
mundo: o abalo do Império Norte-Americano.
91
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A ausência do Estado está liquidando o neoliberalismo, provocando
uma evocação de KEYNES, a justificar, como aconteceu no início dos anos 30 do
século passado, uma forte interferência do Estado para tentar salvar a economia
e para minorar a tragédia social provocada pelo desemprego.
Assim, ruíram os pilares do novo-pensar, pois não era verdade
que a economia segue regras inflexíveis, não sujeitas a ação estatal. Também
não era verdade que a lei trabalhista é que provocava o desemprego, pois nos
Estados Unidos não existem rígidas leis trabalhistas e lá passou a ser fantástico o
desemprego e a precarização de mínimas garantias sociais, especialmente com
relação à saúde e ao trabalho humano, como fruto do absenteísmo do Estado.
É tempo, portanto, de redescobrir a Constituição de 1988, que não
nasceu velha, como foi tão apregoado pelos “donos da verdade”, pois , na lição
de PAULO BONAVIDES, : “a constituição de 1988 é basicamente, em muitas de
suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social. Portanto, os
problemas constitucionais referentes a relações de poderes e exercícios de
direitos subjetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos
derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do Estado liberal, outra a Constituição do Estado social. A primeira é uma
Constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de valores
refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder.” (10)
Na estrutura da Constituição de 1988, segundo doutrina do ministro
EROS GRAU- a valorização do trabalho humano e o reconhecimento do valor
social do trabalho portam em si evidentes potencialidades transformadoras.
Por tal razão, ao analisar o art. 170/CF, concluiu com JOSÉ AFONSO DA SILVA,
que a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre
os demais valores da economia de mercado. (11)
3 - CONCLUSÃO
3.1. Em uma Conferência sobre Direitos Humanos, sob o patrocínio
da Ordem dos Advogados do Brasil, é necessária uma reflexão profunda sobre o
que pode ser feito para transformar em realidade concreta os Direitos Humanos
dos Trabalhadores, formalmente assegurados pela Declaração Universal de 1948
92
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
e incluídos como Direitos Fundamentais na Constituição do Brasil de 1988.
Os tempos de crise, como os de hoje, facilitam a reflexão sobre
os rumos do mundo em que vivemos, quando as tragédias sociais instigam a
procura de um Estado que crie condições assecuratórias da dignidade humana
de todos.
Como apontou ERIC HOBSBAWM : “Hoy, cuando el número de los
que no trabajan y de los que no recibem un salario crece sin Cesar, debemos
encontrar nuevas formas de distribucion de la riqueza nacional e internacional.
Es decir, debemos proveer tambien para uma parte de aquellos que, em nel
pasado, se habriam ganado su estipendio em el mercado de trabajo. Este es
el mayor problema que debemos afrontar. No es cuestión de incrementar la
produccion, que ya hemos resuelto satisfactoriamente. El verdadero problema
lo constituye el modo de repartir esa riqueza. (12)
E, como é sabido por todos, no final do século passado, a globalização
e o neoliberalismo reforçaram a concentração da riqueza e expandiram a miséria,
aumentando o desemprego, a informalidade e as muitas formas de trabalho
degradante, muito próximas do tempo da escravidão.
É preciso, repito, repensar o papel do Estado como efetivo
instrumento de promoção do bem comum.
Assim, como apontado pelo Conselheiro Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, OPHIR CAVALCANTE JÚNIOR, “a dimensão dos Direitos
Humanos não está ligada a uma visão meramente ideológica. Ela é muito mais.
É uma visão de sociedade, de Estado e de Governo e cabe a nós, sociedade civil,
dar a exata dimensão do que entendemos por Direitos Humanos, cobrando dos
Governantes o respeito à dignidade do ser humano na extensão mais ampla
possível.” (13)
3.2. Para tanto, é necessário tomar consciência do problema bem
assim conscientizarmo-nos de que nossa inação inviabiliza a efetivação dos
Direitos Humanos. E para conhecer a questão dos Direitos Humanos é necessário
apreender, no caso do Trabalho Humano, que. no Brasil, a escravidão terminou,
formalmente, há pouco mais de cem anos e que a preocupação com Direitos
Sociais começou com a Revolução de 1930, portanto, há menos de oitenta anos.
93
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Mas, em verdade, ainda convivemos com forte herança do passado,
no qual o trabalho humano não passava de descartável mercadoria, como se
pode observar nos poderes senhoriais do empregador numa relação de emprego.
3.3. Ensina o Min. ARNALDO SUSSEKIND, com toda sua autoridade,
que “relevante é que nossos magistrados não interpretem as normas
constitucionais em função da lei ordinária, porquanto a Lei Suprema é que
deve servir de guia para a interpretação e aplicação dos demais preceitos do
ordenamento jurídico.” (14)
E, para esta mudança de rumo, fundamental é o papel do advogado
que, no exercício de seu ofício, deve levar o magistrado a aplicar a lei sob a luz
da Constituição, para que esta tenha vida efetiva, na sua letra e no seu espírito.
Bibliografia
1. COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmacão Histórica dos Direitos Humanos. 5.
Edição. São Paulo: Saraiva,2007. p.227
2. URIARTE, Oscar Ermida. A Aplicação Judicial das Normas Constitucionais e
Internacionais Sobre Direitos Humanos Trabalhistas. Fórum Internacional sobre
Direitos Humanos e Direitos Sociais. Obra coletiva, quanto a evento realizado
no TST. São Paulo: Ltr, 2004. p. 283.
3. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional.
2.ed. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 85
4. BRITO, Carlos Ayres. O Elo que falta. Revista Latino-Americana de Estudos
Constitucionais, n.6, Julho/Dezembro 2005, p. 221-224.
5. POCHMANN, Marcio. Direito ao Trabalho: Da obrigação à conseqüência.
Práticas de Cidadania. Organizado por JAIME PINKY. São Paulo: Contexto, 2004.
p. 107.
94
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
6. MELLO, Evaldo Cabral de. O Abolicionismo. São Paulo: Nova Fronteira, 2000.
Publifolha. p. XIII
7. Confira-se José Luís Fiori, in 60 lições dos anos 90: Uma década de
neoliberalismo – especialmente a 4ª. Lição. Ed. Record, 2001. p. 21/24.
8. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Jameiro: Campus, 1992. p. 72
9. SANTOS, Boaventura de Souza. A Justiça Social e Justiça Histórica. Folha de
São Paulo, 26 de agosto de 2009.
10. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21.ed. São Paulo:
Malheiros, 2007. p. 371
11. GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 12.ed. São Paulo:
Malheiros, 2007. p. 199
12. HOBSBAWN, Eric. Entrevista sobre el siglo XXI. Barcelona: Editorial Crítica,
2000. p.112
13. CAVALCANTE JÚNIOR, Ophir. Informativo On-line OAB, 4 a 7 de setembro
2009.
14. SUSSEKIND, Arnaldo. Os Direitos Constitucionais Trabalhistas. In Direitos
Sociais na Constituição de 1988. São Paulo: Anamatra, Ltr, 2008. p.47
95
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
O EMERGIR DOLOROSO DA CONSCIÊNCIA UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS
Luis Henrique Beust*
Como soe acontecer na vida humana, individual ou coletiva, foi
através da calamidade que a consciência do mundo em relação aos direitos
humanos se elevou a novas alturas de compreensão, responsabilidade e
amadurecimento. A calamidade foi a Segunda Guerra Mundial, especialmente
a ação genocida promovida pelo nazismo no seio da Europa. A nova consciência
expressou-se na constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945,
e na sua proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948.
Até o Holocausto, prevalecia a idéia de que a proteção dos direitos humanos era
uma questão doméstica aos estados soberanos. O sacrifício de seis milhões de
judeus – dos quais mais de um milhão eram crianças menores de 15 anos -, assim
como de poloneses, ciganos, prisioneiros de guerra, homossexuais, oponentes
políticos e portadores de deficiências mentais e físicas, alertaram os líderes e
cidadãos do mundo para a responsabilidade coletiva de todos por todos. Em seu
famoso discurso ao Congresso americano em 1941 o presidente dos EUA, Franklin
Luis Henrique Beust - estudou Arquitetura e Urbanismo (UNISINOS) e História (UFRGS) no seu
estado natal, o Rio Grande do Sul. É pós-graduado em Planejamento do Desenvolvimento (Universidade de Londres); Gestão de Assentamentos Humanos (Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais, FLACSO-UNESCO) e Desenvolvimento Social pelo Mestrado Latino-Americano
de Desenvolvimento Social (Universidade NUR, Bolívia; Universidade Bolivariana, Chile; FUNDAEC, Colômbia). É membro da Sociedade para a Pesquisa do Desenvolvimento Adulto (EUA).
Membro do think-tank sobre Coexistência Pacífica e Construção de Comunidade do Fórum da
Condição Global (EUA). Coordenador do Conselho da Educação Global (EUA) na América Latina
e membro do Comitê Consultivo da Conferência Internacional sobre o Sofrimento e a Dor na
Sociedade Contemporânea (Israel). Consultor em Educação Moral para oito repúblicas da Ásia
Central, através do Novaya Era Institute, República do Casaquistão. Auditor internacional em
Direitos Humanos no Trabalho junto à Verité (EUA). Consultor em valores humanos e desenvolvimento humano junto ao Ministério de Educação do Brasil (MEC) e à ONU-PNUD (Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento). É Diretor do Instituto Anima Mundi, em São Paulo,
e também atua como docente em cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Há mais de
15 anos vem atuando como consultor em Educação para a Paz e Desenvolvimento Humano e
Social, oferecendo cursos e palestras em empresas, universidades e centros educacionais públicos e privados em mais de 30 países nas três Américas, Europa e Ásia. Atuou em centros como
a Universidade de Harvard (EUA) e o University College (Inglaterra), e em locais com a Grécia e
o Casaquistão, além de ter publicado vários títulos, inclusive poesias, tanto como autor como
tradutor. Tem desenvolvido programas educacionais dirigidos para pais e professores, no Brasil
e no exterior, dos quais já se beneficiaram dezenas de milhares de participantes. Também desenvolve atividades nas artes plásticas, com premiações em alguns salões oficiais.
*
97
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Delano Roosevelt vinculou a paz mundial à observância dos direitos humanos
“em todas as partes do mundo”. O mundo voltou sua atenção para a essencial
universalidade das liberdades pessoais. A destruição inaudita provocada pela
Segunda Grande Guerra e a total eliminação dos direitos humanos por uma das
nações mais cultas e tecnologicamente avançadas do planeta serviram de pano
de fundo para a constituição da ONU em 1945. A pressão advinda da vários
lados, especialmente da América Latina e de organizações não-governamentais
(ONGs), conseguiu garantir que a proteção aos direitos humanos fosse uma das
quatro metas prioritárias da Carta das Nações Unidas.
A Carta da ONU elevou os direitos humanos a um novo status legal
internacional, estabelecendo os primeiros passos para uma proteção genuína
dos direitos humanos no mundo todo, inclusive com a criação de instrumentos
para tanto, como a Comissão de Direitos Humanos, o único órgão subsidiário
da ONU a ser mencionado na Carta. A nova dimensão dos direitos humanos
patente na Carta implicava uma responsabilidade internacional compartilhada
por todos de garantir a observância e de promover os direitos humanos em
todas as partes.
Hoje a ONU é a única entidade supra governamental universalmente
reconhecida como legítima fonte de legislação relativa aos direitos humanos.
Dentro da estrutura da ONU, são o Conselho de Segurança e o Conselho de
Direitos Humanos (que veio a substituir a Comissão de Direitos Humanos em
2006) os dois órgãos principais a cuidar do tema, embora uma miríade de
comitês exista para zelar pela observância das diferentes convenções e tratados
relativos aos direitos humanos. Além disso, o Escritório do Alto Comissário das
Nações Unidas para os Direitos Humanos, parte da estrutura da Secretaria Geral
da ONU, assume um papel de liderança e agilidade na promoção e proteção
dos direitos humanos como delineados na Carta das Nações Unidas e nas leis
e tratados internacionais de direitos humanos. Apesar destes avanços, era
claro que a Carta das Nações Unidas, sozinha, não oferecia as garantias nem a
abrangência adequadas para a proteção dos direitos humanos. Pro essa razão,
desde sua formação, a Comissão de Direitos Humanos da ONU teve como
atribuição fundamental a elaboração de um instrumento que melhor definisse
e defendesse os direitos humanos numa escala internacional. Uma comissão
98
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de notáveis, com a colaboração de representantes de vários países e ONGs,
redigiu então o que viria a ser conhecida como a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH), proclamada pela Assembléia Geral da ONU em 10 de
dezembro de 1948.
Leis internacionais pelos direitos humanos: um caminho tortuoso
A DUDH, como todas as “declarações” da ONU, não tem força
juridicamente vinculativa sobre os países signatários, embora houvesse
uma proposta neste sentido quando de sua elaboração. Depois de inúmeras
negociações e ajustes, ela foi proclamada como “o ideal comum a ser atingido por
todos os povos e todas as nações”. Apesar disso, sua influência tem sido imensa
na elaboração de legislação internacional e nacional, e é considerada atualmente
um componente central de direito internacional consuetudinário, podendo ser
invocada, em determinadas circunstâncias, por judiciários nacionais, ou outros.
Segundo o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos,
a DUDH, “pela primeira vez na história, assentou direitos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais básicos que deveriam ser desfrutados por todos
os seres humanos”. A partir da DUDH, e de sua enumeração ampla das normas
substantivas relacionadas aos direitos humanos, uma série de convenções,
pactos e tratados internacionais e regionais – estes sim impositivos quando
firmadas e ratificadas pelos Estados – foram elaborados e postos em ação pelo
sistema da ONU e outros. Como o Conselho da Europa, a Organização dos
Estados Americanos e a União Africana. Sob a égide da ONU nasceram os dois
documentos fundamentais para implementar a DUDH: o Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos.
Sociais e Culturais (PIDESC), ambos aprovados em 1966 e em vigor desde 1976.
Esses dois Pactos, juntamente com a DUDH formam aquilo que é conhecido
como a Carta Universal dos Direitos Humanos. Eles definem e desenvolvem
mais detidamente os direitos elencados na DUDH, Tornando-os efetivamente
vinculativos para os Estados que os ratificam, como nas demais convenções e
pactos internacionais da ONU.
Essa obrigatoriedade demandada pelos tratados multilaterais
99
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
internacional significa que:
“[...] após a aprovação do tratado pelo Congresso Nacional e a
sua ratificação pelo Presidente da República, devem os três Poderes cumprir a
parte que lhes cabe no processo, nomeadamente: ao Legislativo cabe aprovar
as leis necessárias à concretização do tratado, abstendo-se de voltar as que lhe
sejam contrárias; ao Executivo fica a tarefa de bem e fielmente regulamentar os
tratados e cumpri-los no que lhe competir: ao Judiciário, por sua vez, incumbe o
papel de aplicar os tratados internamente, bem como as leis e os regulamentos
que lhe dão concretude, afastando-se da aplicação de leis nacionais que lhes
sejam contrários.”
Porém, as coisas não são tão simples. Um grande problema ao longo
do tempo foi que, muitas vezes, os Estados, depois de se fazerem signatários das
leis internacionais, não as ratificam. Os EUA, por exemplo, somente ratificaram
o PIDCP em 1992 (assim como o Brasil, mais de duas décadas depois de sua
aprovação pela ONU, em 1966. Por ocasião desta ratificação, o ex-presidente
dos EUA, Jimmy Carter, escreveu, em tom de celebração, que: “Por causa deste
ato histórico, os EUA removem seu nome da lista de países párias [...]”. Apesar
de a maioria dos países do mundo ter hoje em dia assinado e ratificado o PIDCP,
ainda restam 29 países que ou não fizeram nem uma coisa nem outra. Em relação
ao PIDESC, até hoje nem os EUA nem a África do Sul ratificaram o tratado.
Outro problema complexo é o direito reservado aos Estados de
aporem ressalvas, entendimentos e declarações interpretativas que criam
condições particulares para sua implementação dos tratados, por ocasião da
assinatura ou ratificação dos instrumentos jurídicos internacionais. Em muitos
casos, tais condicionantes constituem verdadeiras fraudes contra a comunidade
internacional. Em 1994, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Humanos
expressou: “Particularmente preocupantes são as muitas disseminadas
ressalvas formuladas, que essencialmente tornam ineficientes todos os direitos
do Pacto que exigiriam qualquer mudança na lei nacional a fim de se garantir a
observância das obrigações do Pacto. Desta forma, nenhum direito ou obrigação
internacional foram realmente aceitos.” Em 1992 por ocasião da ratificação
do PIDCP pelos EUA, Jimmy Carter advertia que “Agora que os EUA tomaram
este passo tão importante, entretanto, não devem criar dúvidas quanto à sua
100
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
dedicação e adesão ao Pacto selecionando hipocritamente a quais das provisões
manter-se-ão fieis”. Dito e feito. Os condicionantes levantados pelos EUA
chegaram a ser tão marotos que em 2006 o Comitê de Direitos Humanos da
ONU exortou-os a “interpretar o Pacto com boa fé, de acordo como o significado
usual a ser dado aos seus termos dentro de seu contexto” .
No contexto destas interpretações voluntariosas está à separação ou
privilégio dado aos diferentes direitos humanos arrolados na Carta Internacional
de Direitos Humanos conforme a melhor conveniência do Estado. De uma forma
geral, pode-se dizer que os países ocidentais têm privilegiado os direitos civis e
políticos, enquanto negligenciam os econômicos, sociais e culturais, enquanto
os países orientais, especialmente do bloco comunista (inclusive da ex-União
Soviética). Fazem o contrário. Isso, certamente, trai o espírito da DUDH, que
entende os direitos humanos dentro de um referencial de universalidade,
interdependência, indivisibilidade, igualdade e não discriminação. O PIDCP e o
PIDESC tinham, inicialmente, sido pensados como um só instrumento, porém
ele não se viabilizaria politicamente devido á objeção dos estados desenvolvidos
do Ocidente, o que forçou a promulgação de dois documentos, sob a alegação
de que direitos econômicos e sociais eram essencialmente objetos de aspiração
e planos de desenvolvimento, não “direitos”. Ainda assim, ambos os pactos, em
seus preâmbulos – enfatizando a doutrina da indivisibilidade e interdependência
dos direitos humanos patente na DUDH – afirmam que: [...] “o ideal do ser humano
livre, liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se criem
condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim
como de seus direitos econômicos, sociais e culturais.” Na declaração e Programa
de Ação de Viena (1993), resultado da Conferencia Mundial sobre os Direitos
Humanos, este princípio foi novamente reafirmado: “Todos os direitos humanos
são universais, indivisíveis interdependentes e inter-relacionados. A comunidade
internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa,
em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais
e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos
históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promoverem e proteger
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus
sistemas políticos, econômicos e culturais.” Hoje em dia são dez os tratados
101
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
internacionais mais importantes a defender os direitos humanos:
1.
Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de
Genocídio. De 1948, vigora desde 1951 e foi ratificada pelo Brasil em
1952.
2.
Convenção Internacional para Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial, aprovada em 1966, entrou em vigora
em 1969. O Brasil ratificou o documento em 1968.
3.
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,
aprovado em 1966, entrou em vigor em 1976, sendo ratificado pelo
Brasil em 1992. O Protocolo Opcional, de 1966 (em vigor desde 1976), e
o Segundo Protocolo Opcional visando Abolir a Pena de Morte, de 1989
(em vigor desde 1991) não foram ainda ratificados pelo Brasil.
4.
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, aprovado em 1966, em vigor desde 1976 e ratificado pelo
Brasil em 1992.
5.
Convenção para a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, aprovada em 1979, entrou em vigor
em 1981 e foi ratificada pelo Brasil em 1984. Seu Protocolo Opcional de
1999 passou a vigorar em 2000 e foi ratificado pelo Brasil em 2002.
6.
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos
e Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes. Aprovada em 1984,
em vigor desde 1987 e ratificada pelo Brasil em 1989. Seu Protocolo
Opcional de 2002vigora desde 2006 e foi ratificado pelo Brasil em 2007.
7.
Convenção sobre os Direitos da Criança. Aprovada em
1989, em vigor desde 1990 e ratificada pelo Brasil no mesmo ano. Seu
Protocolo Opcional (de 2000, em vigor desde 2002) sobre o Envolvimento
de Crianças em Conflitos Armados foi ratificado pelo Brasil em 2004.
O Protocolo Opcional sobre a Venda de Crianças, Prostituição Infantil e
Pornografia Infantil, de 2002, entrou em vigor em 2002 e foi ratificado
pelo Brasil em 2004.
8.
Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos
de todos os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias. Aprovada em
102
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
1990, em vigor desde 2003. Ainda não ratificada pelo Brasil. Atualmente,
praticamente apenas os países de origem das migrações são seus
signatários. Os países têm-se mantido alheias as suas determinações.
9.
Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com
Deficiência. Aprovada em 2006, passou a vigorar em 2008. Ratificada
pelo Brasil, promulgada no Senado Federal em 2008 com status de
Emenda Constitucional. Aguarda sanção presidencial e depósito da
ratificação na ONU. Seu Protocolo Opcional de 2006 está na mesma
situação.
10. Convenção Internacional para Proteger todas as Pessoas
de Desaparecimentos Forçados. DE 2006, ainda não entrou em vigor.
Dentro do sistema da ONU existem comitês responsáveis pelo
monitoramento de implementação e defesa dos direitos humanos conforme
expressos nos tratados internacionais. Atualmente são sete comitês que avaliam
a situação através dos relatórios dos Estados-Parte que ratificaram cada um dos
tratados, ou por meio de informações recebidas de ONGs, de agências da ONU,
de instituições acadêmicas ou da mídia. Alguns deles também podem se valer
de procedimentos investigativos, da análise de denúncias entre Estados, da
análise de denúncias individuais ou de petições individuais para casos pessoais
de desrespeito aos direitos humanos.
Diante de tudo isso, o fato é que a DUDH introduziu uma nova
era de tratados internacionais juridicamente vinculativos em defesa dos direitos
humanos. Este corpus abundante de leis internacionais, como tudo que é novo
no desenvolvimento da civilização, avança com altos e baixos, sujeito a marés de
ousadia e temor, de idealismo e obtusidade, de universalismo e etnocentrismo,
de fraternidade mundial e de nacionalismo desenfreado. Apesar de tudo isso,
a direção e o sentido do movimento não podem ser negados, a não ser por
uma absoluta miopia histórica: cada vez mais os povos e nações do planeta
se encontram sob uma mesma perspectiva de unidade na diversidade, onde
os direitos humanos fundamentais representam uma unidade almejada para
a diversidade essencial da vida humana. Mas os desafios ainda são grandes.
Imensos.
103
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Direitos Humanos universais numa ordem mundial paroquialista
Em seu artigo III, a DUDH afirma que “Todo ser humano tem direito
à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e, em seu artigo VI, que “Todo ser
humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa
perante a lei”. Apesar de estas afirmações parecerem auto-explicativas, elas
ainda são detalhadas em vários artigos e parágrafos do PIDCP.
Ainda assim, o mundo tem testemunhado inúmeras e apavorantes
violações destes direitos. Apenas no que diz respeito ao genocídio, o mais
evidente e arrogante ataque contra “a vida, a liberdade e a segurança pessoal”,
desde a proclamação da DUDH (1948) e da Convenção para a Prevenção e
Punição do Crime de Genocídio (1951), o mundo assistiu horrorizado, mas, na
maioria das vezes, convenientemente reativo, ao extermínio de minorias nos
“campos de extermínio” do Camboja, com uma estimativa de dois milhões de
mortes (25% da população na época), entre 1975 e 1979; a mais de quatro
décadas de genocídio (não declarado) chinês no Tibete, com a morte de mais
de um milhão de pessoas; ao assassinato em massa de mais de 200.000 civis
muçulmanos no Kosovo, entre 1992 e 1995 (“o maior fracasso do Ocidente
desde 1930”); ao tenebroso outono de 1994, quando pelo menos 800.000 tutsis
e hutus moderados foram dizimados a machadadas no genocídio em Ruanda; à
matança, em julho de 1995, de mais de 8.000 bósnios em Srebrenica, pelas forças
do exército sérvio na Bósnia-Hezergovina; à “catástrofe humana” que atinge
atualmente grupos não-árabes. Na região de Darfur, no Sudão, que já matou cerca
de 400.000 pessoas, a maioria pela fome e pelas doenças. Impossível imaginar
a dor e o sofrimento ocultos nestas estatísticas, especialmente quando se leva
em consideração que a morte é, nestes casos, o fim dado a uma seqüência de
violências que incluem o escárnio e a agressão física e moral, estupro, a tortura
e a amputação de membros aplicados também a mulheres e crianças.
A esses verdadeiros tsunamis contra o direito à vida, somam-se
outros tantos indizíveis sofrimentos impostos pela violação do direito à liberdade,
à segurança e ao reconhecimento perante a lei. No final de 2008, o número de
pessoas forçadas a abandonar seus lares por conflitos ou perseguições, segundo
104
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
relatório anual do Alto Comissariado das Nações para Refugiados (ACNUR),
montava em 42 milhões. Isto incluía o número de refugiados e solicitantes de
asilo (16 milhões) e de pessoas internamente deslocadas (26 milhões), que não
saíram das fronteiras de seus próprios países. Segundo a ONU, em finas de 2008,
80% dos refugiados do mundo encontram-se nas nações em desenvolvimento,
um terço dos quais vive em acampamentos (na África subsaariana, este índice
sobe para 70%), OACNUR identificou cerca de 6,6 milhões de apátridas em 58
nações. As mulheres e meninas representam a metade dos refugiados e 44% dos
refugiados e solicitantes de asilo são crianças com menos de 18 anos.
Basta de olhar para uma fotografia dos campos de refugiados
e das fazes de seus moradores para se ter uma idéia do sofrimento por eles
suportado dia após dia, por dias incontáveis. A esta barbárie contabilizadas,
somam-se os números aterradores e ocultos das crianças abusadas e vendidas,
dos trabalhadores escravos, dos que perdem o direito à vida por falta de comida,
de saneamento, de tratamento médico ou de amparo legal. O fato é que apesar
de todo o aparato internacional de defesa dos direitos humanos, as barbáries
continuam sendo praticadas, pois a atual ordem mundial não contempla um
eficaz monitoramento e ações preventivas supranacionais. Afinal, são os próprios
Estados os responsáveis por zelar pelos direitos humanos em seus territórios.
Essa carência de uma estrutura de governança mundial que
incorpore os princípios de universalidade, interdependência, indivisibilidade,
igualdade e não discriminação que caracterizam a DUDH e os pactos e tratados
nela inspirados é talvez a mais poderosa barreira estrutural para efetiva
implementação e observância dos direitos humanos em todas as terras.
Há também outra barreira, talvez ainda mais poderosa, relacionada
a ela, mas cujas raízes estão na consciência humana, não nas estruturas
organizacionais: trata-se de um obsoleto etnocentrismo, de um chauvinismo
arraigado, totalmente alheio à realidade contemporânea da “aldeia global”,
Neste paradigma ultrapassado, o paroquialismo impera e impede os mais
nobres avanços que podem emergir de um esforço combinado e unido de todos
os povos e nações.
105
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Unidade da humanidade: um princípio espiritual sustentando o direito à vida,
à liberdade, à segurança e ao reconhecimento legal
Charles Darwin, em 1882, escrevia:
“À medida que o homem avança na civilização, e pequenas
tribos se unem para formar comunidades maiores, a mais
simples razão dirá a cada indivíduo que ele deve estender
seus instintos e simpatias sociais a todos os membros da
mesma nação, embora não os conheça pessoalmente.
Uma vez alcançado este ponto, existe apenas uma barreira
artificial que impede suas simpatias de abraçarem os
homens de todas as raças e nações”.
Se Darwin contemplasse hoje estruturas como a União Européia,
perceberia que sua visão estava certa. Inimigos seculares foram capazes de
construir uma unidade jamais antes alcançada entre nações soberanas. Darwin
via isso como uma evidência do avanço da civilização. E entendia que a limitação
à fraternidade universal era uma mera “barreira artificial”. Essa barreira
artificial, segundo vários entendimentos, nada mais é do que o chauvinismo e
o etnocentrismo ensinados e promovidos em cada Estado grupo social, e que
induz as massas humanas a não estenderem seus afetos aos “Outros”.
Uma pessoa ou grupo social movido pelo etnocentrismo enxerga a
realidade conforme o seguinte modelo:
Percepção Imatura da Realidade
É fácil perceber que o etnocentrismo coloca o Nós no centro do
universo. Ao redor estão os vários Eles (o Outro). Alguns (os mais parecidos
com Nós) ainda podem ser tolerados ou respeitados. Porém, outros são
definitivamente indignos (vejam aqueles quadrados!), e outros ainda, claramente
perigosos (imagine-se ameaçado pela ponta daqueles triângulos).
Esta separação tem profundo efeito sobre sentimentos e
comportamentos. Mantemos laços de respeito (e, idealmente, de fraternidade
106
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
e amor) com quem incluímos no círculo do Nós, por piores que sejam tais
pessoas. Por outro lado, desprezamos e desrespeitamos (e, mesmo, odiamos)
que colocamos nos Eles, por melhores que sejam!
Por exemplo, se o alcoólatra é meu filho, é o pobre do meu filho,
que tem problema com bebida. Se for filho do vizinho, é o bêbado do filho do
vizinho, e ele é o problema! Esta divisão de sentimentos e afetos provocada pelo
etnocentrismo assume seu paroxismo na guerra. É certo que, no outro lado
da trincheira, há soldados muito mais parecidos comigo – em função de seus
valores, gostos, jeito de ser – do que muitos dos que lutam no meu exército.
Porém, devo matá-los, pois estão fora do círculo do Nós.
Entretanto, por mais poderosa que seja essa noção de Nós e de Eles,
ela não é fixa. Pode ser modificada pela inteligência e pela sabedoria. E, ao ser
modificada, altera também a forma como sentimos e como nos comportamos.
Por exemplo, podemos pensar em Nós, a nossa família, e Eles, os vizinhos. Ou
podemos pensar em Nós, os moradores da nossa rua. O que aconteceu com
Eles? Passaram a fazer parte de Nós, um Nós mais amplo, mas com laços e
interesses comuns.
Voltando ao nosso modelo de Nós e Eles, o que estas considerações
nos levam a compreender é que uma pessoa verdadeiramente sábia constrói a
realidade da seguinte forma:
Percepção Madura da Realidade
Ao redor de Nós não há Eles, apenas dimensões cada vez mais
amplas de Nós. Essa é a única percepção que pode servir de base ao respeito
universal aos direitos humanos, uma vez que se fundamenta num legítimo e
amplo sentimento de fraternidade universal.
Em 1986, o órgão máximo da Comunidade Bahá’í distribuiu uma
mensagem aos líderes e povos da terra intitulada “A Promessa da Paz Mundial”.
Nela dizia:
“A ordem mundial só pode ser fundada sobre uma consciência
inabalável da unidade da humanidade, uma verdade
espiritual que todas as ciências humanas confirmam. [...]
107
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
O reconhecimento desta verdade requer o abandono dos
preconceitos – de todos os tipos d preconceito – [...] Em
suma, de tudo aquilo que faz com que as pessoas considerem
superiores umas às outras.”
Em 1996, Gregory Stanton, presidente do Genocide Watch,
apresentou um documento para o Departamento de Estado dos EUA no qual
sugeria que o genocídio se desenvolve em oito estágios. Os três primeiros são:
1) Classificação: as pessoas são divididas entre “nós e eles”; 2) Simbolização: os
“outros” são marcados com símbolos que instigam o ódio; 3) Desumanização:
um grupo nega a humanidade do outro, que é igualado a animais, vermes,
insetos e enfermidades. Assim, o maior dos abusos contra os direitos humanos
começa com atitudes bastante corriqueiras, especialmente o primeiro estágio,
de classificar com rigidez e antagonismo de lealdade e afeto o “nós” e o “eles”.
Uma nova consciência, evidentemente, precisa nascer para
dar conta da necessidade universalizada dos direitos humanos no mundo
contemporâneo. Se analisarmos detidamente o andar da história, veremos que
dois paradigmas antagônicos dominaram as relações entre as gentes do planeta
até nossos dias: por um lado, tínhamos a unidade na igualdade, ou seja, os
que se consideravam iguais evitavam a violência (e, no limite, a guerra) entre
si, e, por outros, o conflito na diversidade – os diferentes se combatiam e se
odiavam. Esses dois modos de pensar e agir são evidentemente ultrapassados.
Um mundo unificado pela tecnologia e pelos interesses comuns precisa avançar
urgentemente em direção ao paradigma da unidade na diversidade. Sem esta
nova consciência a idéia da segurança coletiva é apenas uma ilusão.
Ervin Laszlo, direitos do Instituto das Nações Unidas para o
Treinamento e a Pesquisa, e um dos mais destacados humanistas e pensadores
contemporâneos, argumenta que o que impede a humanidade de atingir novas
alturas de bem estar e segurança são “limites internos”, entre os quais ele
destaca “a lealdade exclusiva e cega ao ‘meu país’”. No mesmo documento já
citado, a Promessa da Paz Mundial, lê-se:
“A aceitação da unidade da humanidade é o pré-requisito
fundamental para a reorganização e a administração do
108
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
mundo como um só país – como lar da humanidade. A
aceitação universal deste princípio espiritual é essencial [...]
Deveria, portanto, ser universalmente proclamado, ensinado
nas escolas e constantemente reafirmado com todas as
nações como preparação para a transformação orgânica da
estrutura da sociedade que isso implica.”
Essa necessidade de a educação se ocupar da construção de uma
responsabilidade e uma fraternidade mais amplas e mais segura foi destacada
por Theodor Adorno em seu extraordinário texto “A Educação após Auschwitz”.
Ele afirma que “a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas
para a educação. [...] Ela foi à barbárie contra a qual se dirige toda a educação”.
Poderá mesmo a educação, assim direcionada, criar o ambiente
moral e social que conduzam à fraternidade mundial e ao conseqüente respeito
e defesa dos direitos humanos? Na opinião categórica expressada por Sigmund
Freud em sua correspondência a Albert Einstein sobre a paz mundial, a resposta
é sim.
Einstein acreditava que a ordem mundial dependia do
“estabelecimento, pelos Estados Nacionais, de uma autoridade legislativa
e judiciária que resolvesse todos os conflitos entre eles. Todas as nações
comprometer-se-iam a aquiescer às decisões emitidas por este corpo legislativo,
a solicitar sua decisão em todas as disputas, a aceitar seu juízo sem reservas e
a pôr em prática quaisquer medidas julgadas necessárias para implementar seu
veredicto”.
Porém, ele tinha dúvida se seria possível erradicar a “psicose do
ódio e da destruição” que percebia nos seres humanos. Para evitar que os
apelos para o ódio e a destruição tivessem a capacidade de mobilizar as massas
humanas para a guerra, Freud explica que há apenas um caminho: criar laços
de afeto entre as pessoas, especialmente entre pessoas de grupos sociais ou
nações diferentes, pois o ser humano não mata quem aprendeu a gostar. Freud
diz que a esperança e a certeza de que isso é possível está dentro da própria
natureza humana, pois se há ódio, há também o amor. Ele escreveu a Einstein:
“Se a propensão para a guerra emana da pulsão de destruição,
temos bem perto seu oponente, Eros, para nos ajudar. Tudo
109
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
o que produz laços de afeto entre os homens nos serve como
antídoto da guerra”.
Freud diz ainda que “o psicólogo não precisa se sentir envergonhado
de aqui falar de amor, na mesma linguagem empregada pela religião: ama teu
próximo como a ti mesmo”.
Certamente os desafios colocados pela mundialização da
humanidade exigem uma nova consciência e o estabelecimento de novos
paradigmas. Tudo indica que eles precisam caminhar em direção a uma lealdade
mais ampla e a sentimentos de fraternidade mais universais. Muitos já vivem
nesta nova realidade de consciência. A educação pode levar as massas humanas
nesta direção. Não há limites para a abrangência que a fraternidade humana
pode alcançar. Ou, como escreveu Darwin, “existe apenas uma barreira artificial”
que impede as simpatias dos homens “de abraçarem os homens de todas as
raças e nações”.
Cabe a todos desconstruir essa barreira artificial com otimismo e
determinação.
110
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DA LEI, DO DELITO E DOS DIREITOS HUMANOS
Marcos Colares*
Creio que para muitos o texto do artigo 11 da Declaração Universal
dos Direitos Humanos – DUDH dispensa explicação ou comentário, estes também
não vêem porque as coisas poderiam se dar de outra maneira. Isso demonstra
que os seres humanos desenvolveram-se, mas nem sempre foi assim, nem o é
em todos os lugares do globo.
A história da humanidade é longa e heterogênea. Ao longo do
tempo fomos desenvolvendo culturas e modos de apreensão da realidade.
Numa perspectiva social o homem foi se aglutinando segundo fatores de ordem
familiar, religiosa, econômica, política, intelectual e tantos outros o quanto
tenha sido capaz a nossa inventividade de criar. Dessas conjugações de saberes
e interesses surgiram boa parte das instituições sociais que conhecemos hoje.
A idéia de delito tem um forte componente cultural. Certos valores,
como o direito a expressar o próprio desejo e o direito ao gozo, largamente
estudados por Freud e tão caros às sociedade ocidentais cosmopolitas, não têm
o mesmo apelo em todas as culturas. Assim, como enfatizou Émile Durkheim,
o delito é construído a partir de representações sociais historicamente
determinadas – o que representa crime para um povo em certo momento
necessariamente não precisa ter a mesma conotação para outros povos, sequer
necessita ter sito assim no passado ou continuar a ser no futuro. Por isso, é
relevante observar a necessidade da configuração de determinada ação ou
omissão como delituosa em determinado tempo e lugar.
Uma vez caracterizada certa atitude humana como delituosa ela
passará a ser passível de sanção para o grupo que a vê como delito. É natural que
haja certo incômodo em absorver como delituosas posturas diversas da nossa
cultura, mas é ai que reside a liberdade de autodeterminação dos povos. Os
documentos das Nações Unidas quer os de caráter principiológicos, quer aqueles
que indicam manifestações pragmáticas têm sido tolerantes com manifestações
MARCOS COLARES – Advogado, Sociólogo, Doutor em Educação, Mestre em Sociologia, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Diretor do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará.
*
111
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de caráter cultural, exceto aquelas que ofendem a dignidade da pessoa humana
ou lhe tiram a vida.
O princípio da presunção de inocência vem sendo adotado como
meio legitimo de proporcionar ao acusado meio para o oferecimento de defesa
em relação à acusação que lhe é imputada. A palavra réu e seu feminino, ré
tem sido entendida como sinônimas de culpado. Na verdade réu é aquele que
responde; no caso responde a um processo judicial. Talvez a antecipação da
condenação, tão comum nos regimes guiados pela força, seja a responsável pela
expressão popular: “cara de réu”, querendo significar, semblante de sofrimento.
Assim, é possível concluir que a Lei tem a função de determinar o
que é delituoso, indicar os meios para o indiciamento do réu e proporcionar-lhe
condição de defesa.
O fato de o julgamento ser público de que trata o artigo 11 da
DUDH, não tem a intenção de transformar este momento em espetáculo,
situação relatada em diversas crônicas – desde a Antiguidade – que narram os
momentos de aplicação de sansões físicas. O aspecto de publicidade em questão
vem se opor aos tribunais de exceção, onde não se busca a Justiça, mas um
simulacro, sem qualquer respeito ao direito de defesa do réu e à regularidade
de um processo judicial.
O papel do advogado na defesa dos direitos e garantias de seu
constituinte assume alto relevo na tentativa de consubstanciação dos Direitos
Humanos. Em várias situações advogados têm sido sancionados pela coragem
de defenderem seus constituintes contra o arbítrio e a intolerância. Nessas
ocasiões ocorre uma incongruência, posto que o advogado e seu constituinte
juridicamente não se confundem. Por outro lado, quando as instituições estão
corroídas pela vilania ou não superaram o patamar da vindita a existência de
julgamento assume foros de teatralidade; sem qualquer compromisso com o
ideal de Justiça.
Noutro enfoque, há de se observar que o aspecto cronológico da Lei
é de fundamental importância tanto para determinar a existência da cominação
quanto para determinar a sua medida. A atenção com dozemetria das penas
pode ser na encontrada na história da humanidade desde a Antiguidade; o
Código de Hamurabi, se opondo a violência da “lei do mais forte”, é exemplo
112
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
disso. Também vem da Antiguidade a preocupação com a demarcação temporal
do ato delituoso e de sua possível sansão; posto que assim já se expressavam os
brocados jurídicos de Justiniano, ao dizer: A estimação do delito passado nunca
aumenta com a ocorrência de fatos posteriores.
Pode-se afirmar que o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos fundamenta-se em três princípios: a anterioridade da lei penal, a
presunção de inocência e o direito de defesa do réu. Isto vale para qualquer
sociedade humana.
Num tempo de alta tecnologia da informação corremos o risco
de imaginarmos a existência de culturas superiores, para as quais as questões
aqui tratadas já estão plenamente resolvidas; triste engano: qualquer sociedade
pode ser vil. O caminho da Justiça se traça com respeito à dignidade da pessoa
humana e vigilância contra qualquer forma de abreviamento do devido processo
legal.
Tratar o réu com dignidade, proporcionar-lhe meios de defesa,
e aplicar-lhe estritamente a sanção prevista em Lei nos dignifica como seres
humanos e como sociedade organizada.
Por mais difícil que algumas vezes isso possa ser é preciso que se
preservem os Direitos Humanos dos réus, sem isso todo o nosso discurso será
vão.
113
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
IGUALDADE NA DIFERENÇA: eis a questão
Maria José de Figueirêdo Cavalcanti*
Introdução
O tema que se nos apresenta, carrega, em si, dificuldades semânticas
e doutrinárias de grande monta, ao trabalharmos com conceitos como o da
igualdade e o da diferença, principalmente o primeiro termo, o qual traz em si
prima facie, o pensamento de uma operação de mensuração, no que descamba
para uma unidade de medida comparada com uma entidade mensurada. Em
assim sendo, uma operação comparativa.
A diferença, por sua vez, dentro de uma teorética contemporânea
não comporta um aspecto de inferioridade e razão de discriminação pura e
simples, o que conotaria uma diferença-exclusão; porém, se reveste, sim,
de uma característica de fundamentação de direitos não-comparativos, pela
existência de uma diferença-especificidade, lastreada no conceito filosóficojurídico da pessoa humana, esta, integral e integrada na espécie humana, e nos
sistemas normativos que acolhem o princípio da igualdade e de sua efetividade
na materialização de seus postulados.
A semântica do vocábulo homem, vista em perspectiva diacrônicohistórica leva ao entendimento de que ser homem-mulher não é rigorosamente
ser a totalidade igualitária da humanidade; inversamente, criou-se, na visão
político-jurídica ocidental, um par de vocábulos que tem enfrentado os séculos,
qual seja, o de que o homem é o macho, sendo ele detentor de todas as
atividades do espaço público.
Ao longo dos tempos, algumas minorias entraram (aqui entendido
minorias de direitos) na seara dos anátemas sociais: além da mulher, o negro,
o indígena, o operário etc, pois na visão simplista da “diversidade descritiva”,
aquelas categorias eram crismadas como sendo de inexpressivo patamar social,
ou de natureza inferior, sofrendo o exame comparativo para a não-consecução
dos direitos, pelo antiigualitarismo vigente no perpassar dos sáculos.
*
Maria José de Figueirêdo Cavalcanti - Doutora em Direito Público pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Mestre em Administração Pública pela Escola Brasileira de Administração Pública e
de Empresas (EBAPE) da Fundação Getúlio Vargas. Professora/Consultora na área administrativa
e constitucional. Pesquisadora na área de Direitos Humanos e da Filosofia do Direito.
115
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Com um processo de reavaliação, espancando até a herança
aristotélica e as idéias iluministas, o mundo hodierno passa da visão monocular
sobre a problemática para um espectro dialógico e plural, ainda que ambivalente,
das questões sobre gênero, raça, etnia, status etc.
Na questão do gênero, têm-se discussões mais acaloradas,
portadoras de teses inéditas, tais como a “diferença-especificidade”, a “diferençaoriginária” e uma transposição do léxico político homem para o discurso
da totalidade homem-mulher, de forma absoluta, como absoluta é a pessoa
humana com todas as suas diferenças individuais específicas. E este tema, o do
gênero, ganha, aqui, relevo, para uma discussão mais detida.
O esforço desse lastro conceitual é enfrentado com as limitações de
espaço para os fins a que se destina este ensaio, e na trilha da incansável questão
da igualdade tão desejada e liame de uma justiça material a ser efetivada.
O tema, pois, deixa de ser lucífugo para embrenhar-se nas searas
das discussões travadas cristalinamente.
1. A Cultura Ocidental Arquetípica: da Antiguidade ao Iluminismo
Os fundamentos da cultura ocidental estão encravados no arquétipo
homem. Daí, homem, humanidade, humanismo, fulcrados os conceitos na
noção greco-latina de Antrhópos, Homo, Homem, Homme, Mensch, Man, o que
quer dizer que a humanidade tem como parâmetro a ascendência do homem,
“a relação do Homem com Deus”, “o lugar do Homem no Cosmos”, “a luta do
Homem com a Natureza”, nas palavras de Richard Tarnas.32
Ainda, Tarnas refere-se à cultura ocidental como sendo conduzida
por “um impulso heróico de forjar um ego humano racional e autônomo,
separando-o da unidade primordial com a Natureza. Todas as suas perspectivas
religiosas, científicas e filosóficas fundamentais foram influenciadas por essa
decisiva masculinidade...”.33
Por outro lado, o pensamento aristotélico a respeito da mulher é
Ver TARNAS, Richard. A Epopéia do pensamento ocidental – Para compreender as idéias que
moldaram nossa visão de mundo. Trad. Beatriz Sidou, 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000,
p. 467-468.
33
Ibidem, p. 468.
32
116
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
condizente com o sentimento de cidadania da polis grega.34
Ao estabelecer uma relação entre a polis e a família, assere Hannah
Arendt que a distinção entre a esfera de vida privada e a da política era da ordem
de um afastamento, pois as esferas não se interligavam até quando surge um
vetor – o da cidadania – no sentido de que era cidadão quem era o chefe da
família e o proprietário.35
Entre os romanos, havia a ascendência masculina no santuário da
família, pois o homem era o dominus e o pater famílias.
Assim, aduz Arendt, o que fez ver como sagrados os limites que
cercavam o lar não era o respeito pela propriedade privada, mas a razão de
que o dono da casa era aquele que participava dos “negócios do mundo”. E não
sendo o dominus, não seria, pois cidadão36.
Dentro desse contexto só havia iguais na polis; na família,
entretanto, permanecia uma “severa desigualdade”.37 Este é o locus das atividades
domésticas, onde o agente dessa esfera é considerado de forma inexpressiva,
como ser secundário, inferior e até incompleto, como veio a ser considerada a
mulher na Idade Média.
Faz-se necessário frisar que a regra comporta exceções. Dentre os
pré-socráticos, houve uma relação de igualdade, por exemplo, na sociedade
pitagórica, pois é sabido que em sua confraria, mulheres eram aceitas; sabido
igualmente que a esposa de Pitágoras, Teano, teria redigido um tratado sobre
a arte de vencer os ciúmes e, por igual, Myia, filha de Pitágoras e de Teano
escrevera uma Carta a Fílis, tratando dos deveres de uma jovem mãe.38
Na esteira de nosso raciocínio, mister rememorar que o Direito
Romano regeu as instituições e os costumes dos países germânicos e que
durante o século XVII foi esse Direito admitido na Universidade de Paris.
Ora, sabe-se que o Direito Romano, como dito antes, não favorecia
ARISTÓTELES refere-se à autoridade do marido sobre a mulher, qualquer que seja a idade
desta. Segue-se que à mulher compete pouco poder de deliberação e que “um modesto silêncio
é a honra da mulher”. Cfr. ARISTÓTELES. A Política. Trad. Roberto Leal Ferreira. 3ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 33-37.
35
Cfr. ARENDT, Hannah. A Condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 37 e segs.
36
Ibidem, p. 38-39.
37
Ibidem, p. 41.
38
Cfr. JACQUEMARD, Simone. Pitágoras e a harmonia das esferas. Trad. Edgard de Assis Carvalho
e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007, p. 116-117.
34
117
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
a condição da mulher. A influência romana sobre a França tornou-se extensa
e palpável: a centralização do Estado francês; a maioridade dos filhos; a
obrigatoriedade de a mulher, ao se casar, adotar o sobrenome do marido (do
apelido, como se dizia no Código Civil Brasileiro de l916, que tinha o correlato
francês como paradigma).39
É verdade que no decurso da História, estiveram presentes
mulheres-mito, como, e.g., Antígona, Proxágoras na Antiguidade Clássica;
Hildegard von Bingen, Joana D´Arc na Idade Média, e as incontáveis mulheres da
Modernidade e da Contemporaneidade, emprestando a sua inteligência à causa
da igualitarização dos direitos.
Foi o Cristianismo que brindou a enormes setores da população,
à época, com o sentido de fraternidade, dignidade e igualdade no seio de suas
comunidades, e a propugnar a liberdade, em grande número de casos, através
da influência de sua doutrina sobre os amos.
Assim é que, conforme opinião de Mário Curtis Giordani, o
Cristianismo que se tornara religião de Estado desde o reinado de Teodósio
I, também passa a constituir um “fator determinante da Civilização”, ao que
acrescento: constituiu-se igualmente em unidade de categoria de liberdade
no que viria a ser o estudo dos Direitos Humanos, dado o espírito de sua
doutrinação ao apregoar a fraternidade – ama ao próximo como a ti mesmo
–, inclusive ao difundir nas mais variadas esferas administrativas um sentido
de abrandamento ao uso de certos institutos, como, e.g., proibindo o abuso
do direito de propriedade (ius abutendi) e reelaborando o conceito de boa fé
(bona fides), dando a esta um cunho de autoconsciência no gerir institutos e
instituições dentro do arcabouço estatal.
Assim, é que na esteira do pensamento filosófico de Lima Vaz,
não se haverá de “medir os atos humanos por uma regra perfeita, num métron
absoluto, e que seria a idéia subsistente da justiça.” 40
A justiça, para esse filósofo, significa a disposição permanente do
acolhimento do outro.41
Para maiores informações sobre a matéria, ver PERNOUD, Régine. Idade Média – o que não
nos ensinaram. Trad. Maurício Brett Menezes. 2ª ed. (rev.). Rio de Janeiro: Agir, 1994, p. 101-108.
40
Cfr. VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia I – problemas de fronteira. 2ª ed. São Paulo:
Edições Loyola, 1998, p. 96.
41
Ibidem, p. 97
39
118
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Sob o aspecto fenomenológico, houve essa tentativa no século
das Luzes, precisamente durante a eclosão da Revolução Francesa. Mesmo
assim, imbuída dos vetores do Direito Romano, foi debalde essa experiência,
a considerar o desenvolvimento do movimento revolucionário, em meio a seus
paradoxos.
O que houve na tentativa de uma política de gênero foram os
clamores de mulheres revolucionárias e sobremodo o ponto de partida dado
por uma delas, em estabelecer um “direito diferente” que abraçasse a questão
da liberdade, da igualdade e da dignidade das mulheres.42
Atualmente, existem alguns dilemas: como proceder a igualdade de
gênero, ou de etnia, raça, orientação sexual etc? Sem a igualdade, o que resta da
cidadania? E como acasalar a teoria da igualdade com a teoria da diferença? A
liberdade concebida como um direito ou um espaço deve ser defendida apenas
contra os outros?
São inquirições que demandam olhares perscrutadores e analíticos
na direção da evolução dos princípios que de forma até ousada, porém
retardatária, entraram no sistema normativo constitucional brasileiro através de
uma “igualdade prescritiva” 43 e que reorientam hoje os estudos do Direito do
Estado, dos estatutos jurídicos civis e de todo o artefato jurídico que se propõe a
materializar um direito justo e a sua distribuição, com fundamento na dignidade
da pessoa humana.
2. As Teorias da Igualdade e da Diferença. O princípio da Dignidade da
Pessoa Humana.
Inúmeras são as teorias que tratam de dar cunho científico
Refiro-me à “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, elaborada por Olympe de Gouges,
em 1791, em resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, vindo a lume em 26
de agosto de 1789. Para um estudo mais alargado sobre essa personagem e sua Declaração,
remeto para o meu livro O Lado feminino da revolução francesa – uma outra revolução. Brasília/
São Paulo: EGP, 2003.
43
Tomo de empréstimo a expressão como utilizada por Letizia Gianformaggio, ou seja, a igualdade prescritiva como sendo algo a ser cotejado à igualdade descritiva, fazendo a diferença
fundamental entre um discurso formulado em termos de ser e um discurso utilizado em termos
de dever ser. Cfr. GIANFORMAGGIO, Letizia. Igualdade e Diferença: são realmente incompatíveis? In BONACCHI, Gabriella e GROPPI, Ângela (Orgs.). O Dilema da cidadania – direitos e deveres
das mulheres. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora UNESP, 1995, p. 268-269
42
119
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
à questão da igualdade, tema, aliás, discutido desde tempos imemoriais.
O novo despertar da consciência da igualdade nasce no
Iluminismo e a rebater a questão emoldurada no formalismo jurídico.
Daí, falar-se em igualdade formal e em igualdade substancial (conceito
este nascente já na contemporaneidade).
A igualdade substancial diz mais com a justiça chamada
animada, vale dizer, um processo de justiça corretiva, a qual, como o
próprio nome diz, se vale da apreciação mais acurada para uma correção,
diante de pólos díspares. Aqui, a igualdade é avaliativa.
As duas modalidades de igualdade mais costumeiramente
abordadas trazem a chancela do Estagirita, quando ou falam em igualdade
proporcional, ou, ainda, aquela jungida ao critério do merecimento - “A
cada um segundo o seu próprio mérito.”44
Por óbvio, estamos diante de conceitos descritivos. Dentro
do desenvolvimento das categorias jurídicas que enxergam o ser humano
como pessoa dotada de uma essência chamada dignidade, as teorias
referenciadas descambam para a vala da desigualdade, de vez que a
equação igualdade-desigualdade são faces de uma mesma moeda. Se
a igualdade-prescritiva não se realiza, estará instalada a desigualdade.
Assente que o suporte filosófico-político de nossa Lei Maior
agracia a dignidade da pessoa humana como fundamento da República
Brasileira (art. 1º, III), há que se fazer a ilação de que o cidadão ou o nãocidadão é dotado de dignidade e como tal é um ser plenificado em sua
ontologia e, portanto, deve ser visto em perspectiva de uma igualdade
avaliativa a ser acrescentada à igualdade descritiva e à igualdade
prescritiva.45
E isso deve se viabilizar, repito, em face das especificidades
da pessoa humana, que é igual a outra pessoa humana, porém não
idêntica.
Aqui perguntar-se-á, respondendo: quem é o modelo da
mulher? Quem é o paradigma do homem negro, ou do indígena? O
Cfr. ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. (rev.). Bauru-SP: EDIPRO, 2009,
p. 158-160, (1301, a e b), e p. 141, (1195, b, 30 em diante).
45
Aqui sigo de perto as pegadas do raciocínio teorético de GIANFORMAGGIO, Letizia, in op. cit.
44
120
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
homem, o homem branco? Não há paradigmas, pois a pessoa humana é
ontologicamente aquilo que ela é, sem paralelos.
De consequência, a diferença que torna os dados da
questão iguais promana da especificidade de cada pessoa humana,
cabendo, assim, visualizar o indivíduo pela avaliação descritiva (seleção
das situações que ensejam igualdade), pela avaliação prescritiva (o que
entrou como comando legal. fazendo a regra vigente) e pela igualdade
avaliativa, pois todos têm a mesma natureza e nesse sentido todos
são iguais. A distribuição dos bens materiais e imateriais é devida sem
obstáculos, menos ainda por razões de discriminação.
Para atingirmos aqui o ponto central que nos cerca, ou seja,
o da dignidade da pessoa humana, há que se dizer que se situa a questão
historicamente num mundo de especulação teológico-cristã, pois desde
a mais remota época em que se estuda a questão do ente humano e o
seu valor, há que se vislumbrar a temática no campo da elucubração dos
pensadores cristãos desde o alvorecer da Idade Média. E aqui também
se acha presente o especular a liberdade, pois os temas referentes ao
ser humano e a sua liberdade estiveram quase sempre conjugados.
A questão da dignidade da pessoa humana sempre foi
percorrida sob o filtro da religião católica quando se a associa como
sendo referente ao ente criado à imagem e semelhança de Deus. Podese aqui afirmar que tal estudo especulativo já conduz ao raciocínio da
pessoa humana, à qual é agregada uma dimensão de interioridade
e de unicidade, dentro das quais pratica a liberdade. Aqui a idéia de
vida interior está demarcada, como consciência de si. O ente criado é a
reprodução em imagem e semelhança de seu Criador.
No decurso dos séculos, aprimora-se a elucubração para
se distinguir nitidamente dentro dessa unicidade e interioridade a
existência de uma dignidade agregada à pessoa humana.
O Direito se impregnou desses conceitos e os trouxe para
o domínio da especulação do Direito Público não só na questão da
igualdade, como dentro do correlato tema – agora amplificado – dos
direitos humanos.
121
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Na sequência da laicização do Direito, essa unicidade de
alguma forma foi desestruturada , para dar lugar a dois mundos: a do
mundo exterior e a do mundo interior, em razão da cisão operada pelos
estudos da racionalidade e até do cogito, ergo sum, assim como se
construiu o postulado da igualdade em sinergia com o mundo laico.
Laicizado o Direito e publicizado o valor dignidade da pessoa
humana, há que se enveredar por outros caminhos, sobrevalorizando o
ente humano, extraindo de seus contornos as pechas e os preconceitos
que perduraram nos desvãos das mentalidades.
CONCLUSÃO
De tudo o que foi exposto infere-se que novas buscas
doutrinárias têm sido demandadas para fazer a afirmação de que
os diferentes são iguais, em face de que nos avanços doutrinários
e na prossecução do Direito em atingir o reduto da Justiça, as novas
mentalidades incorporaram o esforço teórico em dar fulcro a uma
matéria que nasce dos escombros do Iluminismo.
Desses escombros avulta uma crise do pensamento
jurídico, o qual moldado na cosmologia e no logos, faz com que as
realidades do agora em face dos esquemas clássicos requerem novas
interpretações, novas ações humanas e novas pautas éticas, até para
que, no revolvimento da História, se possa compreendê-la melhor.
A teoria do ente humano em sua trajetória, vislumbra
novos paradigmas doutrinários e no evolver da manifestação filosófica,
põe-se no fundo da questão da igualdade um novo sentido, qual seja,
o significado do ser diferente, em razão da presença do elemento
ontológico da diferenciação.
Se todos os entes humanos possuem ou são dotados
do mesmo substrato ôntico, a equação igualdade-diferença aí está
encapsulada, dentro de um sentido pleno de totalidade – cada pessoa
humana é feita de dignidade – e é ao mesmo tempo o outro, a outra,
dessa imensa heterogeneidade chamada espécie humana.
122
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Se a palavra nomos (lei) significa distribuir, possuir o que
foi distribuído e habitar, nas palavras de Hannah Arendt, para que se
imponha uma política de igualdade de gênero, de raça, de etnia e outras,
mister que não somente a lei (igualdade prescritiva) seja ditada, mas se
impõe uma outra igualdade – igualdade avaliativa – para que o nomos
não se desfigure apenas em uma moldura formal, sem exequibilidade e
sem efetividade.
Bibliografia
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ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2ª ed. (rev.) Bauru-SP:
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– uma outra revolução. Brasília/São Paulo: EGP, 2003.
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In Dilema da cidadania – direitos e deveres das mulheres. BONACCHI, Gabriella
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SALDANHA, Nelson. Da Teologia à metodologia. Secularização e crise no
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123
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
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São Paulo: Edições Loyola, 1998.
124
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
O DIREITO A MOBILIDADE HUMANA
Marina Silva**
Num contexto internacional de aumento no número de migrantes
no mundo e de tentativas cada vez mais duras de restringir seus deslocamentos,
o art. 13 da Declaração Universal dos Diretos Humanos tem sido cada dia mais
lembrado e citado, para fundamentar o direito à mobilidade humana.
De acordo com as Nações Unidas, em 2005, existiam 200 milhões
de imigrantes no mundo, mais do que o dobro do número de imigrantes em
1980. Chama a atenção que 60% dos imigrantes estão em países desenvolvidos,
contra 40% em países em desenvolvimento. Os latino-americanos e caribenhos
representam 13% desse total, ou seja, 25 milhões de pessoas. Os Estados Unidos
seguem sendo o maior país receptor do mundo, com 28,4 milhões de imigrantes,
de acordo com dados do Censo de 2000.
O Banco Mundial, em 2006, afirmou ser difícil imaginar a integração
econômica global sem o processo migratório, e que a migração internacional
ocuparia um lugar cada vez mais proeminente na agenda global futura. Cristalizavase assim o binômio “migrações & desenvolvimento”, bastante fundamentado na
percepção de que o boom dos fluxos migratórios se fez acompanhar por um
fluxo imenso de remessas de dinheiro desses migrantes para suas famílias, em
seus países de origem. Um exemplo disso foi a realização, em 2007, nas Nações
Unidas, do Diálogo de Alto Nível “Migrações e Desenvolvimento”.
Os movimentos populares, por outro lado, têm tomando posição
em defesa dos direitos humanos dos migrantes em eventos como o Fórum
Social das Migrações (2005 e 2006), a I Cúpula de Comunidades Migrantes
Latino-americanos (2007), o I Encontro Ibérico de Comunidades de Brasileiros
no Exterior (2002), o II Encontro de Brasileiros e Brasileiras na Europa (Bruxelas,
2007), entre outros.
É importante salientar que estas mobilizações vão muito além
de questões localizadas, parecendo apontar, antes disso, para a necessidade
de um novo mundo, onde os direitos fundamentais da pessoa humana sejam
*
Marina Silva - é Senadora da República pelo PSOL. Ex-ministra do Meio Ambiente (2003/2008).
Professora de História do ensino médio.
125
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
garantidos, independentemente de nacionalidade, raça ou credo.
Muitas vozes já se levantam no mundo apontando os migrantes
como sujeitos históricos de transformação social, arautos da cidadania universal.
Faz parte desse raciocínio a percepção de que o fenômeno das migrações
internacionais aponta para a necessidade de repensar-se o mundo não com
base na competitividade econômica e o fechamento das fronteiras, mas, sim, na
cidadania universal, na solidariedade e nas ações humanitárias.
Nesse contexto, a Declaração Universal de Direitos Humanos
aparece com um farol, com seu enfoque inclusivo.
O Direito de Ficar
Penso aqui no caso dos deslocados ou refugiados ambientais, que
são obrigados a sair de seus locais de origem ou mesmo de seus países, em função
de desastres climáticos, construção de grandes obras do desenvolvimento.
O aquecimento global provocará, com certeza, vagas de “migrantes
climáticos”; cientistas antecipam que os países pobres e em desenvolvimento
serão os mais vulneráveis.
Estima-se que 250 milhões de pessoas já estão, atualmente,
deslocadas, por causa do clima. Mais 50 milhões poderão seguir o mesmo
caminho até 2010.
De outro lado, os números
mais moderados e comprovados
do último Relatório Mundial da Anistia Internacional (2007) dão conta de
que em 87 países existem presos políticos; em 31 países pessoas continuam
“desaparecendo”; em 55, é praxe o exercício de “execuções extrajudiciais”; em
117, o uso da tortura é comum.
O relatório também tem estatísticas sobre as restrições ao direito
de ir e vir praticados em países onde os cidadãos são impedidos de entrar ou
permanecer, em nome de uma suposta segurança nacional, proibidos, apesar da
submissão a situações como as acima mencionadas em suas nações de origem,
de buscar o refúgio ou a denúncia.
O direito de ir e vir é resultante do principio da liberdade,
confirmando a natureza do homem de movimentar-se, deslocar-se de um lugar
126
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
a outro, dali saindo ou ali permanecendo o tempo que melhor lhe aprouver.
Trilhar livremente novos caminhos e ser senhor dos seus passos, eis um grande
desafio do homem do século XXI.
Gênesis 28, 15
“Vê! Eu estou contigo e te guardarei em toda parte
aonde fores e te farei voltar para esta terra, pois não te
abandonarei até eu ter cumprido tudo o que te disse”.
127
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
PAZ E GUERRA
Moacyr Scliar**
Comentando a famosa profecia em que o profeta Isaías descreve
metaforicamente um mundo de paz, diz Woody Allen: “Sim, o leão deitará com o
cordeiro. Mas duvido que o cordeiro consiga conciliar o sono.”
Este irônico ceticismo reflete a ambivalência de nosso mundo em
relação à paz. De um lado, trata-se de um anseio universal, um tema constante
nos textos das três grandes religiões monoteistas, o judaísmo, o cristianismo e o
islamismo. Judeus e muçulmanos usam praticamente a mesma saudação: “Shalom
aleikhem” e “Salam Aleikhum” ambas significando “A paz seja convosco”. E diz
Jesus, no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão
chamados os filhos de Deus”(Mateus, 5:2).
Não por coincidência, Isaías viveu num período de guerras e
sangrentos conflitos. As duas grandes potências da época, Egito e Assíria,
disputavam a hegemonia na região que hoje conhecemos como Oriente Médio,
com o sacrifício de inúmeras vidas. Não é de admirar, pois, que Isaías fale, até
como aspiração, de um mundo pacífico em que “Uma nação não levantará a
espada contra outra/ e não se adestrarão mais para a guerra”(Isaías, 2:4). A guerra
nos faz desejar mais ardentemente a paz. A guerra nos lembra, dolorosamente, a
necessidade da paz.
Mas aí voltamos ao comentário de Woody Allen. Por que, apesar
da profecia, não conseguirá o cordeiro conciliar o sono? Porque ele está ao lado
de um carnívoro. Não será o desejo do cordeiro pela paz que transformará esse
carnívoro num vegetariano. Trata-se, pois, de uma insônia que tem fundamento
e que soporífero algum resolverá. Da mesma maneira, apesar da admirável
mensagem ética das religiões, guerras continuaram se sucedendo, muitas vezes
travadas exatamente em nome da fé. Guerreiros zelosos fizeram, e fazem, correr
rios de sangue para convencer outras pessoas a aderir àquilo que consideravam e
consideram, a verdadeira crença. E a pergunta se impõe: afinal de contas, somos
lobos ou somos cordeiros? É a violência inevitável ou podemos viver pacificamente?
*
Moacyr Jaime Scliar - é um dos mais conhecidos escritores brasileiros da atualidade. Formado
em Medicina, trabalha como médico especialista em saúde pública é professor universitário.
129
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Este é um tema sobre o qual muito foi escrito. Mas existem duas
personalidades cuja manifestação é particularmente interessante: Albert
Einstein (1879-1955) e Sigmund Freud (1856-1939). Ambos tinham muita coisa
em comum. Ambos eram europeus, ambos de ascendência judaica (portanto
pertencentes a um grupo que pagou um alto preço durante a Segunda Guerra),
ambos eram figuras destacadas, não só em seu campo de ação, como do
ponto de vista do pensamento em geral. Ambos tiveram de emigrar por causa
do nazismo, Einstein para os Estados Unidos, Freud para a Inglaterra. Ambos
viveram as duas guerras mundiais. Assim, quando Einstein foi convidado pelo
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual da Liga das Nações a escolher
um interlocutor para trocar idéias acerca da política e da guerra, de imediato
ocorreu-lhe o nome de Freud. A correspondência entre eles foi publicada num
livreto chamado “Por que guerra?” que apareceu logo depois da ascensão de
Hitler ao poder, e que, por motivos óbvios, circulou de forma muito limitada.
Na primeira carta, datada de 29 de abril de 1931, Einstein convidava Freud a
aderir ao “grande objetivo de libertar o homem, interna e externamente, dos
perigos da guerra.” Este “interna e externamente” é muito importante. Einstein
reconhecia que a guerra não resulta só da exortação de ditadores, da demagogia
belicista; depende do eco que essas coisas despertam nas pessoas: “Líderes
políticos ou governos devem seu poder ou ao uso da força ou ao apoio das
massas.” Basta recordar as gigantescas demonstrações de apoio a Hitler para
concluir que Einstein sabia o que estava dizendo. Por outro lado, e como diria
numa carta posterior, “Não consigo penetrar nas zonas obscuras do sentimento
e da vontade humanos.” Bem, esta era a especialidade de Freud: explorar
aquele obscuro compartimento da mente que passou a ser conhecido como o
inconsciente, no qual são geradas as forças obscuras que muitas vezes governam
nosso comportamento. Freud dividia os instintos humanos em dois grupos,
aqueles que conservam e unem, e que são os instintos eróticos, e aqueles que
destroem e matam, os instintos agressivos ou destrutivos. A este respeito dizia:
“Não existe a possibilidade de ‘erradicar’ as más tendências (….) Um ser humano
é raramente apenas bom ou mau; usualmente ele é ‘bom’ num contexto, e
‘mau’ em outro.” Mas o ser humano aprende, diz Freud, a transformar instintos
egoístas em instintos sociais; este último faz com que sejamos amados, o
130
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
que, afirma o criador da psicanálise, é uma “vantagem” pela qual vale a pena
fazer sacrifícios. E aí vem a frase lapidar: “A civilização é alcançada através da
renúncia à satisfação dos instintos.” O que não se faz sem um preço: “A sociedade
civilizada, que exige boa conduta sem se preocupar com a base instintiva desta
conduta... empenhou-se, erroneamente, em impor padrões morais de grande
exigência, forçando assim seus membros a distanciar-se da disposição instintiva.”
O resultado é a neurose.
É, de certo modo, uma abordagem pessimista, mas que inclui um
elemento de realidade. Freud apoiaria Woody Allen: o cordeiro da profecia tem
sobradas razões para não dormir. Lobos não abdicam de seus instintos; eles não
têm regras morais, não têm leis, não têm psicanalistas a quem recorrer para
entender seus impulsos agressivos.
Estes
impulsos
agressivos
explicam
o
comportamento
aparentemente absurdo, quando não revoltante, de pessoas que sob outros
aspectos, são razoáveis, racionais. As premissas de Freud encontraram apoio em
dois experimentos famoso na recente história da psicologia. O primeiro deles
foi conduzido pelo psicólogo da Yale University, Stanley Milgram. Começou em
julho de 1961, três meses depois do julgamento, em Jerusalém, do criminoso
de guerra nazista Adolf Eichmann, que, em sua defesa, insistia em dizer que, ao
enviar os prisioneiros de campos de concentração para a morte estava apenas
“cumprindo as ordens” de seus superiores, o que levou Hannah Arendt a falar,
num ensaio famoso, na “banalidade do mal”. Milgram se propôs a averiguar uma
questão crucial: até onde uma pessoa pode ir quando está cumprindo ordens?
Para isto contratou pessoas que, mediante um gerador elétrico, deveriam dar
choques de crescente intensidade num “cobaio”. Na realidade, o gerador não
dava choque algum; o “cobaio”, vivido por um ator, simulava ser a vítima desses
supostos choques gritando de dor. O condutor do experimento, porém, mandava
que as pessoas continuassem acionando o aparelho, e aí as respostas variaram.
Alguns desistiam, inclusive abrindo mão do pagamento; outros mostravam sua
angústia rindo nervosamente; mas vários (26 de 40 participantes) chegaram ao
“limite” de 450 volts, mostrando que realmente a disposição de cumprir ordens
ultrapassava senso de compaixão. Por que? Discutindo seu próprio trabalho,
Milgram aventou duas hipóteses: a primeira é de que pessoas pouco habituadas
131
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
a tomar decisões transcendentes se submeterão ao grupo, a hierarquia; e
também que a pessoa, funcionando como instrumento de outros, não se
sente mais responsável pelas próprias ações, ou seja, o argumento usado por
Eichmann.
O segundo experimento foi conduzido em 1971 pelo professor de
psicologia Philip Zimbardo na Stanford University (California). Estudantes de
graduação foram escolhidos para, ao acaso, desempenhar os papéis de guardas e
prisioneiros, numa prisão simulada montada no porão da universidade. Os jovens
rapidamente adaptaram-se a seus papéis, a ponto de um terço dos “guardas” ter
exibido o que foi considerada uma conduta sádica, causando grande sofrimento
aos “prisioneiros”. O experimento, que ficou famoso, teve de ser encerrado em
seis dias. Zimbardo foi muito criticado por um trabalho considerado pouco ético
e pouco científico, muito difícil de ser replicado em outros locais.
Ou seja: todos temos dentro de nós, em nosso inconsciente,
um verdugo em potencial, que espera apenas um pretexto para torturar o
prisioneiro que, por essas ambivalências da natureza humana, também habita
o nosso íntimo.
Einstein tinha esperança de que Freud pudesse ajudar na tarefa de
exorcizar os demônios interiores que levam à guerra e à agressão: “O senhor,
disso estou convencido, estará mais apto a sugerir métodos educativos, fora da
esfera política, capaz de eliminar estes obstáculos.” Para Einstein era necessário
que cada nação abdicasse “em alguma medida” de sua soberania, de sua
liberdade de ação, em prol da segurança do mundo como um todo. Contudo,
era obrigado a reconhecer que “A ânsia de poder que caracteriza os detentores
do poder em cada nação recusará a limitação dessa soberania.”
A resposta de Freud, datada de setembro de 1932 e escrita em
Viena, obviamente não poderia ser muito otimista. Ele concordava com Einstein
ao dizer que “(...) Só há uma maneira de terminar com a guerra e esta maneira
é o estabelecimento, por consenso comum, de um organismo central de
controle que terá a última palavra em qualquer conflito de interesse.” Seria um
organismo de um lado judiciário, mas de outro, dotado de poder para exercer
“ação coercitiva”. Mas Freud colocava todas essas coisas no condicional, porque,
naquele momento, representavam apenas um sonho longínquo. Ele pergunta:
132
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
“Quanto tempo teremos de esperar para que a humanidade se torne pacifista?
Impossível dizer, mas tenho esperança de que estes dois fatores – a disposição
cultural do ser humano e a forma ameaçadora que as guerras do futuro podem
tomar – possam por um fim ao impulso bélico.” E concluía: “Tudo que trabalha
pelo desenvolvimento cultural trabalha também contra a guerra.”
Há uma conhecida experiência, que consiste em colocar peixes em
aquários de dimensões cada vez menores. À medida que o “espaço vital”diminui
os peixes cada vez mais se agridem com mordidas, o que fala a favor da
agressão inata que Freud mencionava. Mas há um detalhe importante aí: não
são os peixes que controlam o tamanho dos aquários, é a pessoa que faz o
experimento. Enquanto os seres humanos forem comandados por um desígnio
externo, os resultados mais absurdos podem ser esperados. Mas na medida em
que – graças à cultura, graças ao conhecimento – ampliam sua autonomia, o
bom senso e a racionalidade podem prevalecer. Por isso Freud acreditava na
cultura, e especificamente numa cultura da paz. Essa conclusão, que de certo
modo contraria o seu próprio raciocínio pessimista, é algo no qual vale a pena
depositar nossa esperança e investir nossos melhores esforços.
133
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
TODO SER HUMANO TEM DIREITO À VIDA, À LIBERDADE
E A SEGURANÇA PESSOAL
Paulo Vannuchi **
A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem como uma de
suas muitas virtudes a invejável concisão do texto. Ele resume, em enunciados
curtos, às vezes vazados de entonação poética, lições que a humanidade só
conseguiu assimilar ao custo de milênios de guerras, das quais o morticínio
nazista despontou como chocante atualização de uma barbárie que o mundo
julgava extinta.
No Brasil de 2008 e do sexagésimo aniversário desse documento
civilizador, a quantas anda o direito à vida? O que significa liberdade? A
segurança pessoal vem sendo respeitada?
Bom começo para tais respostas é lembrar o alerta de Hannah
Arendt a respeito daquele mágico artigo 1º prescrevendo que “livres e iguais
em dignidade e direitos nascem todos os seres humanos”. Não se trata de
uma descrição da realidade, argumenta a pensadora judia-alemã, e sim uma
afirmação programática.
A humanidade, reunida por suas representações nacionais num
ambiente de comoção perante o horror da guerra e do Holocausto – e também
petrificada pelas bombas de Hiroshima e Nagasaki – proclama, voluntária e
conscientemente, um compromisso no sentido de criarmos um mundo onde
sejamos todos livres e iguais.
Na mesma rota segue Norberto Bobbio quando sugere exercício
muito simples a quem queira ter um panorama sobre os direitos humanos na
atualidade: leia o texto da Declaração e, em seguida, olhe em seu redor.
Assim sendo, no Brasil de 2008 temos a comemorar que já
fomos capazes de percorrer 20 anos de institucionalidade democrática plena,
em processo de permanente consolidação e aperfeiçoamento, desde que
promulgada a Constituição Cidadã, de Ulysses Guimarães.
Os direitos humanos passaram a ser crescentemente internalizados
em nosso sistema normativo, o Brasil aderiu a quase todos os instrumentos
*
Paulo Vannuchi - Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR).
135
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
internacionais que a ONU e a OEA produziram para proteger esses direitos –
racismo, criança, mulher, tortura, pessoas com deficiência, desaparecimentos
forçados etc – e gozamos de visível reconhecimento nos foros internacionais
voltados ao tema.
No entanto, seguimos convivendo com um cotidiano de violações
que interpelam asperamente as autoridades públicas dos três poderes, nos
três entes federados, bem como a rica rede de organizações da sociedade civil,
entidades, instituições e ONGs que se dedicam à proteção dos direitos humanos
em seu conjunto ou defendem algum segmento vulnerável da população
brasileira.
O direito à vida emerge, com nitidez, como o componente mais
angular da Declaração Universal. Fundamentado no argumento teológico de que
o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, ou nas idéias racionalistas
e iluministas que evitam digressões sobre cosmogonia, esse direito é assentado
numa conclusão convergente: o ser humano é portador de dignidade intrínseca,
imanente, essencial. Como decorrência, tem-se que o direito à vida não pode
ser subjugado por qualquer norma jurídica ou política, despontando com
proeminência sobre todas elas.
A afirmação do direito à vida é comum aos dois grandes troncos
em que a Declaração de 1948 se desdobrou em 1966, quando do nascimento
dos Pactos dos Direitos Civis e Políticos, a primeira geração, e dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, segunda geração.
Antes disso, aparece reiterada explicitamente na Declaração
Universal, nos subseqüentes artigos 5º, repelindo a tortura, bem como nos
artigos 24 e 25, prescrevendo a necessidade de lazer, repouso, férias, saúde e
alimentação, com destaque para o registro de que a infância e a maternidade
gozarão de proteção especial.
Dentro desse enfoque analítico, não fica difícil constatar, no Brasil
de 2008, que o caminho a percorrer para assegurar plenamente o direito à vida
é ainda mais longo que a distância já vencida. Entre os avanços, cabe saudar o
fato insofismável de que, desde 2003, nosso País finalmente ouviu, após décadas
de insensibilidade das elites governantes, o grito de Josué de Castro clamando
pelo enfrentamento da fome.
136
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Caminhamos a passos largos para comemorar um marco histórico
fundamental na consolidação dos direitos humanos em nossa vida nacional, que
é a garantia de três refeições por dia a todos os brasileiros. Sem observar um
direito tão elementar, torna-se praticamente impensável obter a energia pessoal
necessária à conquista de todos os demais direitos. Estamos, sim, falando do
“direito a ter direitos”, da já mencionada Hannah Arendt.
Por outro lado, toda reflexão sobre o direito à vida evoca
imediatamente a questão da pena de morte, que segue sendo aplicada
rotineiramente no Brasil, não obstante sua rejeição pela legislação penal
referente aos períodos de paz.
A pena de morte extrajudicial é aplicada diariamente nas grandes
metrópoles brasileiras, seja pelas organizações criminosas que serão abordadas
no tratamento do direito à segurança pessoal, seja pelas polícias estaduais que
ainda resistem a assimilar o imperativo de que o crime só pode ser combatido
e derrotado dentro do estrito respeito à lei, e jamais pelo caminho tortuoso,
contaminador e ineficaz do crime.
Somente no âmbito do CDDPH – Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana, comissões especiais vêm investigando, nos últimos anos,
atividades de grupos de extermínio em nada menos que seis estados brasileiros.
E essas investigações revelam um cenário quase uniforme: alegação pelos
executivos estaduais de que os fatos remontam a administrações anteriores,
morosidade de juízes sempre sobrecarregados, inexistência de Defensorias
Públicas, precariedade de recursos humanos no Ministério Público, cumplicidade
corporativa dentro do aparelho policial. Muitas vezes, o simples medo de
enfrentar a violência organizada, por sentimentos que decorrem do zelo pela
própria vida.
O direito à liberdade é referido expressamente em 16 dos 30 artigos
da Declaração Universal, seja mediante emprego explícito da palavra ou de seus
derivados “livre” e “livremente”. Em outros 11 artigos, essas palavras estão
ausentes, mas nitidamente refletidas no veto ao trabalho escravo, na condenação
da tortura, no combate à discriminação, na exigência de tribunais justos ou de
regras para detenção, limitação das penas, proteção da privacidade, garantia de
asilo e de nacionalidade, proteção da propriedade. Nessa contagem meramente
137
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
aritmética, a Declaração Universal dos Direitos Humanos se configura como
verdadeira ode à liberdade.
A liberdade já foi definida por um filósofo alemão como “consciência
da necessidade” e cantada por Cecília Meirelles, no Romanceiro da Inconfidência,
como sendo “essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém
que explique, e ninguém que não a entenda”.
Observando e respeitando, com humildade, os vastos e inesgotáveis
significados dessas formulações filosóficas e poéticas, não incursionaremos
aqui pelas disjuntivas conceituais clássicas na história do pensamento político:
liberdade negativa versus liberdade positiva; liberdade de versus liberdade para,
liberdade liberal versus liberdade democrática.
Registraremos, tão somente, que os direitos de liberdade
constituem nossa melhor marca comparativa quando se remonta ao terrível
período de trevas implantado a partir de 1964, sobretudo após o Ato 5, de 40
anos atrás.
Como todos deveriam saber – sem jamais esquecer – superamos
há apenas duas décadas um regime tirânico que se notabilizou pela suspensão
dos direitos individuais, eliminação do habeas corpus, cassação de mandatos
eletivos, banimentos, exílio, ocupação militar de fábricas e universidades,
prisões, torturas, assassinato de opositores políticos, estupros, degolas,
desaparecimentos e ocultação de cadáveres.
E seria injusto, imperdoável mesmo, esquecer nesta publicação
a violência perpetrada contra Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Vitor Nunes
Leal, agredidos na vitaliciedade de ministros da Suprema Corte, em 16 de janeiro
de 1969, pela fúria repressiva de governantes ditatoriais.
Triste ironia da história, os poucos sobreviventes daquele regime
liberticida usufruem hoje, de forma oportunista e arrogante, a liberdade que
aboliram em seus tempos de poder, para escrever – agonizantes, raivosos e
isolados – artigos de imprensa protestando contra a anistia de João Goulart ou
contendo insultos pessoais contra autoridades públicas consagradas pelo voto
popular e contra aqueles que se empenham em sustentar o sagrado “Direito à
Memória e à Verdade”.
Se a liberdade de que a cidadania brasileira desfruta hoje é ainda
138
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
carente de necessários desenvolvimentos – por exemplo, democratização
dos meios de comunicação de massa, eliminação da supremacia do poder
econômico nas disputas eleitorais, implantação dos dispositivos de participação
direta previstos na Carta de 1988, muitos outros mais – não resta dúvida de
que o desafio mais central reside hoje no imperativo de combater as extremas
desigualdades econômicas e sociais que seguem presentes em nosso País.
Em linguagem clara: os direitos de liberdade correm o risco de
serem reduzidos a um exercício de retórica cínica quando não está assegurada
a igualdade de ponto de partida para o pleno exercício de todas as liberdades
democráticas.
Dissemos ponto de partida, e não igualdade de oportunidades.
A vaga da universidade está lá, é uma oportunidade igual para todos os
que disputam o vestibular.
Mas o ponto de partida para essa disputa é
absolutamente desigual entre o jovem que tem computador pessoal desde os
seis anos de idade e outro que nunca teve. Daí a exigência de agressivas políticas
afirmativas que tendam à harmonização desse ponto de partida pelo exercício
da eqüidade. E cabe lembrar, com Bobbio: mais que um simples sinônimo de
igualdade, equidade é uma palavra que deve ser interpretada como justiça do
caso concreto, envolvendo tratar desigualmente os desiguais, para produzir
igualdade.
Por fim, o direito à segurança pessoal coloca em pauta o tema que
talvez constitua um dos nós mais centrais na atual problemática dos direitos
humanos no Brasil: o direito à segurança pública. De uma vez por todas,
cabe afirmar, em alto e bom som, que a segurança pública é direito humano
de primeiríssima grandeza: direito de não sermos assaltados, roubados,
seqüestrados, assassinados ou alvos de balas perdidas.
Ao longo de décadas, os poderes públicos não souberam ou não
quiseram equacionar de modo consistente o enfrentamento da violência
criminal. Como resultado, as estatísticas negativas dispararam, especialmente
na periferia das grandes metrópoles brasileiras, onde o Rio de Janeiro desponta
como símbolo mais eloqüente, embora nem sempre carregando os piores
indicadores.
Superado o período ditatorial, em que ocorreu íntima associação
139
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
entre polícia e repressão política, uma das grandes prioridades nacionais nessa
área específica das políticas públicas é desbloquear a relação que ainda leva
policiais a verem os defensores de direitos humanos como se fossem inimigos,
e vice-versa.
O Pronasci – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
– se constitui na melhor chance já oferecida ao Brasil para enfrentar com eficácia
esse desafio prioritário. Seu livreto de apresentação inclui direitos humanos em
cada uma das páginas, com o diagnóstico adequado para a verdadeira reinvenção
da segurança que nosso País exige: formação policial de excelência, remuneração
condigna, proximidade e parceria com as comunidades, inteligência e prevenção
como ênfases, equipamento adequado, uso proporcional da força etc.
Acima de tudo: ali está o reconhecimento de que é indispensável
associar ação policial e presença permanente dos poderes públicos no
oferecimento de todos os elementos constitutivos de um Estado de bem-estar
social: escolas, centros de saúde, equipamentos esportivos, oportunidades
de produção e fruição cultural, participação política, proteção aos segmentos
vulneráveis.
De ponta a ponta, a implantação dessas mudanças revolucionárias
exigem um postulado muito claro: o crime só pode ser combatido com
eficiência nos marcos da lei. Quando o policial combate o crime empregando
criminosamente a tortura e outros tratamentos ilegais, nasce imediatamente
uma identidade pessoal entre bandido e agente do Estado. Ambos se percebem
igualmente marginais. E com tal proximidade no plano simbólico abre-se o
caminho para que o celular entre na cela, o dinheiro do assalto se transforme
em moto ou lancha do policial, a arma aprendida no DP volte a ser localizada no
arsenal do Comando Vermelho ou de outra quadrilha qualquer.
Aos operadores do Direito, em particular aos advogados que
desempenharam um papel tão relevante nas lutas históricas pela recuperação
da democracia nas décadas de 1970 e 1980, cabe um protagonismo fundamental
no percurso de longo prazo para que o Brasil, definitivamente, assimile todos os
preceitos civilizadores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dedicando
a merecida atenção aos três elementos angulares abordados em seu Artigo 3º.
Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o tráfico
dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.
140
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA TORTURA EM DOCUMENTOS NORMATIVOS
INTERNACIONAIS E BRASILEIROS
Pedro B. de Abreu Dallari*
No tratado constitutivo da Organização das Nações Unidas (ONU),
de 1945, fixou-se como um dos propósitos fundamentais para a entidade nascida
nos escombros da segunda guerra mundial “promover e estimular o respeito
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos” (art. 1°, 3)46.
Fruto dessa prioridade, em 10 de dezembro de 1948 vem à luz, no âmbito da
Assembléia Geral da própria ONU, a Declaração universal dos direitos humanos,
com a finalidade de propiciar uma “compreensão comum desses direitos e
liberdade”, de modo a respaldar o pleno cumprimento do compromisso dos
Estados-membros com a sua promoção47.
No rol de direitos fundamentais listados na Declaração universal, figura – na
forma do art. V – referência expressa à vedação da tortura:
ARTIGO V
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante.
Essa disposição de 1948 desdobrou-se, nas décadas subsequentes, em preceitos
normativos inscritos em documentos internacionais e, também, na legislação
dos Estados nacionais, aí incluído o Brasil. Isto com o objetivo de se promover
sua efetividade. O exame desses dispositivos correlatos dos principais diplomas
internacionais e brasileiros – cuja compilação se constitui no propósito deste
artigo – permite que se ateste a evolução do tratamento da matéria no âmbito
do Direito Internacional Público e a grande influência desse processo na
Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari é advogado e professor da Faculdade de Direito e do
Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Coordenou a Comissão de
Direitos Humanos da OAB de São Paulo (1998-2000) e integrou, na qualidade de membro titular,
a Comissão Nacional de Direitos Humanos, do Conselho Federal da OAB (2001-2006).
46
A Carta da Organização das Nações Unidas foi celebrada na cidade norte-americana de São
Francisco em 26 de junho de 1945, tendo sido promulgada no Brasil por via do Decreto n°
19.841, de 22 de outubro de 1945.
47
Resolução 217-A (III) da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948.
*
141
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
conformação da legislação do País.
Na esfera internacional, o Pacto internacional sobre direitos civis e políticos,
adotado pela ONU em 1966, acarretou a transposição daquela disposição
do art. V da Declaração universal – documento a princípio com caráter de
recomendação48 – para o corpo de um tratado, este documento apto a ensejar
a obrigatoriedade de sua observância pelos Estados que a ele se vinculassem.
Embora isto não tenha ocorrido de imediato com o Brasil, o que só veio a se
dar em 1992, a influência do Pacto já se fez sentir por ocasião da elaboração da
Constituição Federal de 1988, como se verá mais adiante49.
No art. 7 desse Pacto de 1966 em matéria de direitos civis e políticos50, assim
consta:
ARTIGO 7
Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou
tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido,
sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a
experiências médicas ou cientificas.
Essa rota estabelecendo uma lista de direitos e liberdades fundamentais
inicialmente em uma declaração para, mais à frente, convertê-los em disposições
obrigatórias de tratado internacional foi também observada na estruturação
do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Assim é que
a Declaração americana dos direitos e deveres do homem – aprovada em
conferência realizada em 194851, mesmo ano em que se deu a aprovação da
Declaração produzida pela ONU – ensejou a celebração, em 1969, da Convenção
americana sobre direitos humanos, tratado também conhecido por Pacto de São
As resoluções da Assembléia Geral da ONU não têm o condão de obrigar os Estados-membros;
tal efeito está presente apenas nas resoluções do Conselho de Segurança. Todavia, a importância da Declaração universal dos direitos humanos fez com que progressivamente fosse reconhecida doutrinariamente para o seu conteúdo a expressão de regras costumeiras ou mesmo de
princípios de direito.
49
O Pacto internacional sobre direitos civis e políticos foi aprovado pela Assembléia Geral da ONU
em 16 de dezembro de 1966 e sua promulgação no Brasil se deu apenas em 1992, através do
Decreto n° 592, de 6 de julho daquele ano.
50
Também em dezembro de 1966, no dia 19, a Assembléia Geral da ONU aprovou o Pacto internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, cuja promulgação no Brasil se deu simultaneamente à do outro Pacto, em 6 de julho de 1992, com a edição do Decreto n° 591.
51
A Declaração americana foi aprovada na IX Conferência Internacional Americana, que teve
lugar em Bogotá e na qual também se deu a aprovação da Carta da Organização dos Estados
Americanos, tratado de criação da OEA.
48
142
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
José da Costa Rica ou apenas Pacto de São José52.
Todavia, se no âmbito do sistema da ONU tanto a Declaração Universal como
o Pacto sobre direitos civis e políticos fazem referência explícita à proibição da
tortura, o mesmo não se dá no sistema interamericano. Com efeito, em 1948,
para a Declaração americana, não se utilizou o termo, apenas indicando-se que
toda pessoa tem “direito a um tratamento humano durante o tempo em que o
privarem da sua liberdade” (art. XXV), assim como “de que se lhe não inflijam
penas cruéis, infamantes ou inusitadas” (art. XXVI). Já em 1969, no entanto, fixouse no Pacto de São José regra explicitamente voltada à vedação da tortura. Assim
é que o art. 5 da Convenção americana sobre direitos humanos, consagrado
ao direito à integridade pessoal, contempla no item 2 preceito bastante
assemelhado àquele do art. 7 do Pacto da ONU, anteriormente reproduzido. É a
seguinte a redação do art. 5:
ARTIGO 5
Direito à Integridade Pessoal
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade
física, psíquica e moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou
tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada
da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade
inerente ao ser humano.
3. A pena não pode passar da pessoa do delinqüente.
4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo
em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento
adequado à sua condição de pessoas não condenadas.
5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser
separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a
maior rapidez possível, para seu tratamento.
6. As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade
essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.
Nas duas décadas subseqüentes, a abordagem do tema da tortura veio a ganhar
O texto da Declaração que veio a ser adotado pela Assembléia Geral da ONU foi elaborado
pelo V Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção da criminalidade e o tratamento dos criminosos, ocorrido em Genebra no mesmo ano de 1975.
52
143
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
ênfase no plano internacional, evoluindo do estágio inicial – consubstanciado
nos documentos examinados até aqui e no qual sua prática configura ilícito por
parte do Estado que não promove a devida vedação – para um quadro normativo
em que se preceitua para os Estados o compromisso com a responsabilização
criminal dos torturadores. Nesse sentido, sucederam-se a Declaração sobre a
proteção de todas as pessoas contra a tortura e outros tratamentos ou penas
cruéis, desumanos ou degradantes, aprovada pela Assembléia Geral da ONU
em 1975, a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes, adotada pelo mesmo órgão da ONU em 1984,
e a Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura, celebrada em
conferência realizada na cidade colombiana de Cartagena em 1985.
A Declaração de 1975 – proclamada pela Assembléia Geral da ONU por meio da
Resolução nº 3452 (XXX), aprovada na reunião de 9 de dezembro da 30ª sessão
anual do órgão53 – promoveu a definição da prática da tortura, descrevendo seus
elementos tipificadores (art. 1)54, e fixou para os Estados o dever de criminalizála, por meio de sua inserção nas respectivas legislações penais (art. 7)55. Essa
deliberação foi seguida de imediato e na mesma data pela aprovação de outra
resolução – a de nº 3453 (XXX) –, na qual a Assembléia Geral enunciou uma
série de medidas destinadas a promover a efetividade da Declaração, a serem
materializadas no âmbito da própria ONU, pela Comissão de Direitos Humanos
e pelo Comitê de Prevenção e Controle da Criminalidade, e no âmbito da
Organização Mundial de Saúde.
Adotada em 1984, nove anos após o advento da Declaração, a Convenção contra
O texto da Declaração que veio a ser adotado pela Assembléia Geral da ONU foi elaborado
pelo V Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção da criminalidade e o tratamento dos
criminosos, ocorrido em Genebra no mesmo ano de 1975.
54
O art. 1 da Declaração, para a qual não há versão oficial no idioma português, está disposto nos
seguintes termos: “1. For the purpose of this Declaration, torture means any act by which severe
pain or suffering, whether physical or mental, is intentional inflicted by or at the instigation of a
public official on a person for such purposes as obtaining from him or a third person information
or confession, punishing him for an act he has committed or is suspected of having vomited, or
intimidating him or other persons. It does not include pain or suffering arising only from, inherent in or incidental to, lawful sanctions to the extent consistent with the Standard Minimum
Rules for the Treatment of Prisoners. 2. Torture constitutes an aggravated and deliberated form
of cruel, inhuman or degrading treatment or punishment.”.
55
O art. 7 da Declaração tem a seguinte redação: “Each State shall ensure that all acts of torture
as defined in article 1 are offences under its criminal law. The same shall apply in regard to acts
which constitute participation in, complicity in, incitement to or an attempt to commit torture.”.
53
144
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes –
revestida da qualidade jurídica de tratado internacional e, portanto, como
visto anteriormente, apta a ensejar a obrigatoriedade de sua observância pelos
Estados-partes –, resultou justamente do progressivo acúmulo no tratamento do
assunto56. Tal perspectiva é constatável pelo exame do preâmbulo da Convenção,
em que as partes, após lembrarem o compromisso com a promoção dos diretos
humanos presente na Carta constitutiva da ONU, resgatam os antecedentes
relacionados especificamente ao tema da tortura e aqui mencionados:
Considerando a obrigação que incumbe os Estados, em virtude da
Carta, em particular do Artigo 55, de promover o respeito universal
e a observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais.
Levando em conta o Artigo 5 da Declaração Universal e a observância
dos Direitos do Homem e o Artigo 7 do Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos, que determinam que ninguém será sujeito
à tortura ou a pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante,
Levando também em conta a Declaração sobre a Proteção de Todas
as Pessoas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, aprovada pela Assembléia Geral em 9
de dezembro de 1975, [...]
Logo no art. 1 da Convenção contra a tortura a figura da tortura é objeto de
definição, para a qual se aproveitou consideravelmente a formulação constante
da Declaração de 1975. Assim é a íntegra desse art. 1, constante de dois
parágrafos:
ARTIGO 1
1. Para os fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa
qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos
ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a
fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou
A Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes
foi adotada pela Assembléia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1984, tendo sido promulgada
no Brasil apenas em 1991, por força do Decreto n° 40, de 15 de fevereiro.
56
145
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa
tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar
ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo
baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores
ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra
pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou
com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como
tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente
de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas
decorram.
2. O presente Artigo não será interpretado de maneira a restringir
qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que
contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.
Além de estabelecer para cada Estado-parte a obrigação de adotar “medidas
eficazes de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim
de impedir a prática de atos de tortura em qualquer território sob sua jurisdição”
(art. 2), a Convenção, incidindo sobre providência já indicada na Declaração,
consagrou a obrigatoriedade da criminalização da prática da tortura, conforme
assinalado no art. 4 do texto convencional, de seguinte redação:
ARTIGO 4
1. Cada Estado Parte assegurará que todos os atos de tortura sejam
considerados crimes segundo a sua legislação penal. O mesmo
aplicar-se-á à tentativa de tortura e a todo ato de qualquer pessoa
que constitua cumplicidade ou participação na tortura.
2. Cada Estado Parte punirá estes crimes com penas adequadas que
levem em conta a sua gravidade.
Cuidou-se, também, no corpo da Convenção, do estabelecimento de mecanismos
de monitoramento da observância das disposições pactuadas, determinando-se
a constituição de um Comitê contra a Tortura (art. 17), integrado por peritos
independentes e incumbido da atribuição de receber e examinar relatórios
sobre as medidas adotadas pelos Estados-partes (art. 19), assim como de tomar
conhecimento de informações relacionadas à ocorrência de tortura, sendo-lhe
conferida a competência para demandar do Estado infrator esclarecimentos e,
146
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
eventualmente, a adoção de providências (arts. 20 e 22)57.
No plano do sistema interamericano de direitos humanos, deu-se em 1985 –
quase que simultaneamente, portanto, à edição da Convenção emanada da
ONU, que é de 1984 – a celebração da Convenção interamericana para prevenir
e punir a tortura58, voltada ao aprofundamento do tratamento de matéria
já objetivada no art. 5 da Convenção americana sobre direitos humanos,
reproduzido anteriormente neste artigo.
E da mesma forma que a Convenção da ONU, a Convenção interamericana trata
de tipificar a prática da tortura, além de determinar aos Estados-partes sua
criminalização, conforme se depreende dos arts. 2, 3 e 6 de seu texto, a seguir
transcritos, tendo-se reservado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
a incumbência de monitorar o cumprimento do tratado (art. 17):
ARTIGO 2
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato
pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou
sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal,
como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida
preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á
também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos
tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua
capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou
angústia psíquica.
Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou
sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência
de medidas legais ou inerentes a elas, contato que não incluam a
realização dos atos ou aplicação dos métodos a que se refere este
Este sistema de monitoramento veio ainda a ser aprimorado com a adoção, em 18 de dezembro de 2002, do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que disciplina “um sistema de visitas regulares efetuadas por
órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua
liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” (art. 1). O Brasil é parte do Protocolo, que foi promulgado internamente por
meio do Decreto n° 6.085, de 19 de abril de 2007.
58
A Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura, concluída em 9 de dezembro de
1985, foi promulgada no Brasil pelo Decreto n° 98.386, de 9 de novembro de 1989.
57
147
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Artigo.
ARTIGO 3
Serão responsáveis pelo delito de tortura:
a) Os empregados ou funcionários públicos que, atuando nesse
caráter, ordenem sua comissão ou instiguem ou induzam a ela,
cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam;
b) As pessoas que, por instigação dos funcionários ou empregados
públicos a que se refere a alínea a, ordenem sua comissão,
instiguem ou induzam a ela, comentam-no diretamente ou nela
sejam cúmplices.
[...]
ARTIGO 6
Em conformidade com o disposto no artigo 1, os Estados Partes
tomarão medidas efetivas a fim de prevenir e punir a tortura no
âmbito de sua jurisdição.
Os Estados Partes segurar-se-ão de que todos os atos de tortura e
as tentativas de praticar atos dessa natureza sejam considerados
delitos em seu direito penal, estabelecendo penas severas para sua
punição, que levem em conta sua gravidade.
Os Estados Partes obrigam-se também a tomar medidas
efetivas para prevenir e punir outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes, no âmbito de sua jurisdição.
Esse crescente adensamento verificado no enquadramento jurídico da prática
da tortura acabou por se refletir no direito brasileiro, isto por via da Constituição
promulgada em 5 de outubro de 1988, muito embora o País, naquele momento,
ainda não figurasse como parte em qualquer dos tratados relacionados à
matéria e nem mesmo houvesse a tipificação da conduta na legislação penal
nacional. Assim é que o processo constituinte instalado em 1987, na esteira
do encerramento do longo período de ditadura militar, vai acarretar a inclusão
no texto da nova Carta Federal – mais especificamente no Capítulo I (Dos
direitos e deveres individuais e coletivos) do Título II (Dos direitos e garantias
fundamentais) – de disposição expressamente voltada à vedação da tortura.
Com efeito, assim preceitua o inciso III do art. 5° da Constituição da República:
148
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
ARTIGO 5º
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano
ou degradante;
[...]
E, logo em 1990, no contexto de elaboração dos diplomas jurídicos voltados
a dar operacionalidade à nova ordem constitucional, o Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho daquele ano) fez inserir no direito
brasileiro, pela primeira vez, regra destinada explicitamente a criminalizar
a prática da tortura59. No Título VII, que trata Dos crimes e das infrações
administrativas, o art. 233 instituiu tal previsão legal:
ARTIGO 233
Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou
vigilância a tortura:
Pena - reclusão de um a cinco anos.
§ 1º Se resultar lesão corporal grave:
Pena - reclusão de dois a oito anos.
§ 2º Se resultar lesão corporal gravíssima:
Pena - reclusão de quatro a doze anos.
§ 3º Se resultar morte:
Pena - reclusão de quinze a trinta anos.
Ainda no âmbito do processo de reconstrução do sistema jurídico nacional, outro
fato relevante relacionado à matéria aqui enfocada foi a decisão de vinculação
do País aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos aos quais
já se fez referência neste artigo. Dessa forma, no ano de 1989 o Brasil procedeu
à ratificação da Convenção interamericana para prevenir e punir a tortura60,
que havia sido celebrada em 1985, e da Convenção contra a tortura e outros
A título de registro, deve-se observar que figuras penais assemelhadas já se encontravam inscritas no ordenamento jurídico brasileiro anteriormente a 1990, como é o caso do crime de
maus-tratos (art. 136 do Código Penal) e do crime de ofensa à integridade corporal ou à saúde
(art. 209 do Código Penal Militar).
60
A Convenção interamericana foi ratificada em 20 de julho de 1989 e promulgada pelo Decreto
n° 98.386, de 9 de novembro de 1989.
59
149
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes61, esta de 1984. Já em
1992, deu-se a adesão aos dois Pactos da ONU de 1966 (Pacto internacional
sobre direitos civis e políticos62 e Pacto internacional sobre direitos econômicos,
sociais e culturais63) e à Convenção americana sobre direitos humanos (Pacto de
São José), de 196964.
A previsão do crime de tortura, inscrita no art. 233 do Estatuto da Criança e
do Adolescente, reforçada pelas disposições desse conjunto de tratados
internacionais então recém incorporados à ordem jurídica do País, levou o
Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão de 23 de junho de 1994, a declarar
a existência jurídica do crime de tortura no direito penal positivo brasileiro na
hipótese da vítima ser criança ou adolescente, apesar da posição contrária de
parte dos julgadores, que argumentaram no sentido da ausência, no corpo do
art. 233, de elementos suficientes para configurar o comportamento delituoso65.
É a seguinte a ementa do referido acórdão:
Tortura contra criança ou adolescente – existência jurídica desse
crime no direito penal positivo brasileiro – necessidade de sua
repressão – convenções internacionais subscritas pelo Brasil –
previsão típica constante do Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei nº 8.069/90, art. 233) – confirmação da constitucionalidade
dessa norma de tipificação penal – delito imputado a policiais
militares – infração penal que não se qualifica como crime militar
– competência da justiça comum do estado-membro – pedido
deferido em parte.
A relevância das normas internacionais para a fundamentação da decisão do
STF ficou realçada na fundamentação do acórdão, como pode ser facilmente
constatado na passagem que se segue:
A Convenção contra a tortura , adotada no âmbito da ONU, foi ratificada em 28 de setembro
de 1989 e promulgada pelo Decreto n° 40, de 15 de fevereiro de 1991.
62
A adesão ao Pacto sobre direitos civis e políticos se efetuou em 24 de janeiro de 1992 e sua
promulgação se deu pelo Decreto n° 592, de 6 de julho de 1992.
63
A adesão ao Pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais se efetuou em 24 de janeiro de
1992 e sua promulgação se deu pelo Decreto n° 591, de 6 de julho de 1992.
64
A adesão à Convenção se efetuou em 25 de setembro de 1992 e sua promulgação ocorreu por
via do Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992. Em 10 de dezembro de 1998, deu-se o depósito, pelo Brasil, da Declaração de aceitação da competência obrigatória da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, organismo jurisdicional instituído e regulado pela Convenção. A Declaração foi objeto de promulgação pelo Decreto n° 4.463, de 8 de novembro de 2002.
65
Hábeas Corpus n° 70389-5 – São Paulo, tendo sido relator designado para elaboração do acórdão o Ministro Celso de Mello.
61
150
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA – CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS.
O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou
adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu
na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da
Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da
Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU
(1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída
em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito
da OEA (1969). Mais do que isso, o legislador brasileiro, ao conferir
expressão típica a essa modalidade de infração delituosa, deu
aplicação efetiva ao texto da Constituição Federal que impõe ao
Poder Público a obrigação de proteger os menores contra toda a
forma de violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, in fine).
[Destaques conforme o texto original.]
Em 1997, afinal, com o advento da Lei n° 9.455, de 7 de abril – que “Define os
crimes de tortura e dá outras providências” –, a prática da tortura foi objeto de
diploma normativo específico, cujo art. 1° descreve as condutas delituosas e,
com ligeiro acréscimo introduzido em 2003 no respectivo § 4° , tem a seguinte
redação:
ARTIGO 1º
Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça,
causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima
ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com
emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico
ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de
caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou
151
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por
intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante
de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha
o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de
um a quatro anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima,
a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a
reclusão é de oito a dezesseis anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de
deficiência, adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos;
III - se o crime é cometido mediante seqüestro.
§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego
público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da
pena aplicada.
§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou
anistia.
§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do
§ 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.
Relativamente a esse enunciado do art. 1° da Lei n° 9.455/1997, cabe observar
que o legislador brasileiro seguramente se valeu de muitos dos elementos
emanados da legislação internacional. É de se destacar, todavia, que a regra
brasileira amplia as hipóteses de caracterização da ocorrência de tortura ao não
restringi-la a atos praticados por funcionário público ou outra pessoa no exercício
de funções públicas, como fazem as Convenções adotadas respectivamente pela
ONU e no plano interamericano.
Ainda sob o aspecto internacional, deve-se assinalar que o art. 2° da Lei n°
9.455/1997 admite a extraterritorialidade na incidência da norma brasileira:
ARTIGO 2º
O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha
sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira
ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.
Um comentário final acerca da Lei n° 9.455/1997 guarda relação com seu art. 4°,
152
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
que determinou a revogação do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente,
isto sob a justificativa de que as disposições da nova lei já abrangeriam aquelas
aplicáveis estritamente a menores de 18 anos. Tal estipulação, no entanto,
ensejou forte oposição por parte de entidades voltadas especificamente à
defesa dos direitos de crianças e adolescentes, que, por entenderem-no mais
rigoroso, advogam a restauração do art. 233.
Em que pese essa controvérsia – e outras que possam estar associadas à busca
do aperfeiçoamento do marco jurídico –, é inegável que a Lei n° 9.455/1997
resulta, como se procurou demonstrar, da consolidação de processo evolutivo
que, internacionalmente e no âmbito interno, buscou e vem buscando viabilizar o
combate a prática delituosa das mais odiosas. Tal processo ainda não se concluiu
e, mesmo em relação ao que já se produziu, a descrição que se procurou fazer
neste breve artigo acerca da evolução no enquadramento jurídico da tortura,
embora ampla, não é exaustiva. No Estatuto do Tribunal Penal Internacional, de
199866, por exemplo, em que se cuida de estabelecer jurisdição internacional em
matéria penal de caráter permanente, a tortura é listada entre os crimes contra
a humanidade (art. 7°, 1, f) e os crimes de guerra (art. 8°, 2, a, ii).
Ao avanço na elaboração normativa deve corresponder, todavia, um real
empenho no sentido de se dar efetividade a essas regras, revertendo-se o quadro
de permissividade que, em muitos quadrantes do planeta, ainda impera em
relação à prática de tortura e que acarreta a impunidade dos responsáveis. Cabe
registrar que tal situação caracteriza fortemente inclusive a realidade brasileira,
como ficou salientado em relatório apresentado em 2008 à Assembléia Geral
da ONU pelo Comitê contra a tortura, instituído pela Convenção da ONU de
1984, no qual se conclui que a tortura e tratamentos igualmente degradantes
continuam a se verificar por todo o País de forma generalizada e sistemática67.
Celebrado em Roma em 17 de julho de 1998, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi promulgado no Brasil por meio do Decreto n° 4.388, de 25 de setembro de 2002.
67
No relatório de atividades do Comitê contra a tortura submetido em 2008 à Assembléia Geral
da ONU se procede ao registro de investigação referente à prática de tortura no Brasil, concluída
em 2006 com o seguinte veredicto: “In its conclusions, the Committee noted that the Government of Brazil fully cooperated with the Committee’s visit, constantly expressed its awareness
and concern with the seriousness of the existing problems, as well as its political will to improve.
However, the Committee noted that tens of thousands of persons were still held in delegacias
and elsewhere in the penitentiary system where torture and similar ill-treatment continued to
be meted out on a widespread and systematic basis.” (Report of the Committee against Torture
- Thirty‑ninth session (5‑23 November 2007), Fortieth session (28 April‑16 May 2008). General Assembly Official Records, Sixty‑third session, Supplement No. 44 (A/63/44), pág. 100, fonte: www.
un.org).
66
153
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
TODAS AS PESSOAS NASCEM LIVRES E IGUAIS
EM DIGNIDADE E DIREITOS
Plínio Arruda Sampaio*
O Brasil que queremos é o Brasil Socialista. Esse Brasil não será
produtor de mercadorias, pois organizará sua economia para produzir os bens
de uso necessários a fim de que todos os brasileiros vivam com dignidade e
possam desenvolver plenamente suas potencialidades em todos os planos da
existência humana.
No mundo e no Brasil, a forma de organização desse modo de
produção surgirá das práticas de luta das massas populares no processo de
transformação da sociedade que as oprime.
Por isso, pode-se abreviar a exposição desse Brasil futuro sem
necessidade de entrar no exame de fórmulas técnicas abstratas e nem na
explicação detalhada sobre o tipo de socialismo que se está propondo.
É necessário, porém, tendo em vista o fracasso das experiências
socialistas do século XX, deixar claro que o socialismo do século XXI terá que
resolver as questões da democracia, do pluralismo, da participação popular, ou
seja, terá que organizar-se como um Estado Democrático de Direito.
O conceito desse tipo de estado é resultado de um longo processo
de aprimoramento das relações entre o Estado e seus cidadãos – a partir de três
princípios básicos: independência e autonomia dos três Poderes; apreciação de
toda e qualquer lesão ou ameaça a direito pelo Poder Judiciário; igualdade entre
o cidadão e o Estado perante o Juiz.
A construção do socialismo do século XXI e do Estado Democrático
de Direito são empresas históricas simultâneas. O objetivo deste texto é analisar
a principal ameaça que pesa, atualmente, sobre o Estado Democrático de
Direito: a criminalização da pobreza.
*
Plínio Soares de Arruda Sampaio- é um intelectual e ativista político brasileiro. Formado em Direito pela USP em 1954, militou na Juventude Universitária Católica, da qual foi presidente, e na
Ação Popular, organização de esquerda surgida a partir dos movimentos leigos da Ação Católica
Brasileira. Foi promotor público e atualmente preside a Associação Brasileira de Reforma Agrária
(ABRA), além de dirigir o semanário Correio da Cidadania
155
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Os pobres sempre foram criminalizados e criminalizar a pobreza foi
a primeira reação dos estados burgueses aos ataques às torres gêmeas de Nova
York e ao Pentágono, em 2001. Essa nova onda iniciou-se nos Estados Unidos,
está se alastrando rapidamente pelas democracias liberais do hemisfério Norte.
Os ataques de 11 de setembro de 2001 forneceram o pretexto
que a burguesia estadounidense necessitava para promover uma profunda
modificação no arcabouço jurídico do seu Estado, a fim de ajustá-lo à nova
institucionalidade que o capital monopolista deseja implantar em todo o mundo:
o Estado-Mercado, substituto do Estado-Nação.
O Patriot Act, primeiro de uma série de leis restritivas da liberdade
individual, autoriza os órgãos de segurança a deter pessoas; vasculhar escritórios
e residências; abrir correspondência; fazer escutas telefônicas; torturar e matar
terroristas e até pessoas suspeitas de prática de atividades terroristas.
Numa penada, essa legislação feriu princípios constitutivos do
Estado Democrático de Direito, pois afetou a tripartição dos Poderes; a exigência
de mandado judicial para diligências policiais restritivas de garantias individuais;
a presunção de inocência das pessoas até sentença condenatória de ultima
instância passada em julgado pela prática de crime definido previamente em lei,
após processo judicial contraditório, assegurado o pleno direito de defesa.
É fácil ver que a nova legislação alterou inteiramente a sistemática de
criminalização de condutas no Estado Democrático de Direito, pois passa a punir
pessoas pela sua condição pessoal e não pela conduta previamente tipificada
em uma lei prévia – retrocesso à legislação penal anterior ao Iluminismo. O
brasileiro executado no metro de Londres foi vítima de lei idêntica ao Patriot
Act, editada na Inglaterra, na sequência do exemplo estadunidense: o rapaz foi
fuzilado porque um agente da policia londrina confundiu-o com uma pessoa
suspeita de terrorismo.
Esse enorme retrocesso, que desfigura completamente a
democracia estadounidense, deve-se a dois fatores: primeiro, à necessidade
que a burguesia daquele país tem de manter seu povo sempre com a sensação
de que está sofrendo uma grande ameaça, a fim de legitimar seu poder e seu
gigantesco orçamento militar; e segundo, à necessidade de ameaçar os pobres,
a fim de que eles se submetam à nova disciplina do capital – disciplina esta
156
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
que significa aceitação de condições de trabalho mais restritivas e de serviços
públicos menos abrangentes.
Todos sabemos que as mudanças ocorridas nos países centrais do
sistema capitalista tendem a se propagar para os países periféricos, de modo
que não se pode tratar do “Brasil que queremos” sem discutir o problema da
criminalização da pobreza aqui.
A Constituição de 1988, no seu artigo 1o, constitui a República
brasileira como um Estado Democrático de Direito e, artigo 5o, estabelece
claramente os limites de atuação do Estado, ao especificar extensivamente os
direitos e deveres individuais e coletivos.
Contudo a inclusão desses direitos na Carta Magna não chegou a
conferir ao nosso país o status de um Estado Democrático de Direito, pois, como
todos sabemos que a Constituição não se aplica a todos os brasileiros.
Aqui, o pobre não precisa ser criminalizado para sentir a mão pesada
do Estado. Sempre sofreu – e continua sofrendo - diariamente, agressões dos
agentes da segurança pública, independentemente da conduta que tenha tido.
Assim sendo, a discussão da criminalização da pobreza no caso brasileiro precisa
transcender o estrito âmbito da legislação positiva.
Não é segredo para ninguém que, na maioria das delegacias
e cadeias do país, os pobres suspeitos da pratica de crime sempre estiveram
sujeitas à tortura. Os vinte anos de vigência do artigo 5o.da Constituição-“Cidadã”
não conseguiram acabar com essa prática vergonhosa.
Pelo contrário, nota-se, nos dias que correm, um agravamento
assustador, não somente desse tipo de abusos, mas até a execução sumária de
criminosos ou meros suspeitos. Quem não se recorda de uma cena televisada
do interior de um helicóptero da Polícia do Rio de Janeiro, na qual os políciais
atiram contra dois jovens em fuga desesperada por um terreno baldio?
Chacinas deste tipo tornaram-se tão frequentes que não provocam
mais comoção alguma na opinião pública. Policiais trocam tiros com delinquentes
sem a preocupação com a segurança dos transeuntes e fuzilam pessoas presas
em plena luz do dia.
O pouco empenho das autoridades superiores dessas corporações
e dos próprios governantes na apuração desses gravíssimos fatos assinala o grau
157
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de deterioração do tecido ético do Estado brasileiro.
Mas o capítulo novo na longa história de agressão do Estado
brasileiro às pessoas pobres - objeto desta reflexão - consiste na criminalização
das organizações que defendem os direitos dos pobres.
A falta de um Patriot Act para autorizar essa perseguição não deve
nos confundir: no Brasil, a criminalização das entidades devotadas à organização
e defesa dos direitos dos trabalhadores do campo e da cidade, bem como das
entidades de defesa dos direitos humanos está sendo feita de uma forma sutil,
pela ação conjugada do Executivo, do Judiciário e da mídia.
O primeiro aterroriza a população com suas razias policiais nas
favelas e nos morros; o segundo, pune fulminante e draconianamente as
organizações populares e seus líderes, e o terceiro produz um tipo de noticiário
tecnicamente preparado para incompatibilizar a opinião publica contra as
autoridades e as entidades que exigem o respeito aos direitos dos presos.
Criminalizar é o ato de tipificar em lei uma conduta passível de
pena, e, portanto, do ponto de vista da técnica jurídica, não há como falar em
criminalização da pobreza. Mas só uma visão muito positivista do direito deixa
de ver - nos “caveirões” que aterrorizam crianças e velhos nos morros do Rio
de Janeiro, e na omissão dos governantes diante dos abusos que suas políticas
cometem nos lugares em que vivem os pobres - uma pena imposta a uma
população, cujo único delito consiste em ser obrigada a conviver com bandos
delinqüentes em territórios por estes dominados.
Há igualmente criminalização da pobreza na gritante disparidade
de atuação do Poder Judiciário diante de ações interpostas contra pessoas
pobres e pessoas ricas.
Quando um grupo do MST ocupa uma terra, o mandado de despejo
é fulminante e seu cumprimento pela força policial inexorável e quase sempre
violento.
Mas quando um grande empresário constrói um edifício contra
todas as normas da municipalidade, a mesma Justiça demora anos e anos para
dar sentença, quase sempre termina aceitando o fato consumado.
Quando um militante do MST danifica um posto de pedágio durante
um protesto, o processo corre célere e a pena é elevada. Entretanto, o processo
158
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
contra um ex-governador tramita tão lentamente que termina prescrevendo.
Não há necessidade de alongar o relato de casos semelhantes numa
Conferência da OAB para afirmar, sem medo de contestação, que a atuação
da Justiça brasileira pune severamente os pobres e encontra mil maneiras de
poupar os ricos.
Contudo, o objetivo central desta análise é chamar atenção para
um novo tipo de atuação da Justiça em relação às greves, ocupações de terra,
fechamento de estradas, e outras manifestações mais contundentes do conflito
social existente na sociedade brasileira.
Pode-se classificá-la com uma forma velada, mas muito efetiva, de
criminalização da pobreza.
Ela se revela na velocidade da concessão de liminares; nas
reintegrações de posse; nos interditos proibitórios; quando os requerentes são
grandes empresários ou proprietários urbanos ou rurais.
Esta diferença de tratamento revela-se ainda nas multas que são
aplicadas em ações movidas por empresas privadas ou órgãos públicos contra
sindicatos e entidades da sociedade civil que promovem greves ou protestos
em defesa de presos ou de menores mantidos em instituições do Estado. As
exageradas quantias fixadas por alguns juízes revelam o propósito de asfixiar
financeiramente essas entidades, de modo a obrigá-las a cessar qualquer tipo
de pressão sobre o capital ou sobre o Estado.
A tendência mundial para a criminalização da pobreza tem no Brasil
formas veladas mas muito eficazes, evidencia que a burguesia brasileira não
aceita o princípio de que a democracia não elimina o conflito inerente a todo
tipo de sociedade de classes. Apenas cria normas para impedir que esse conflito
descambe na barbárie.
Atualmente, a noção de que o bandido não está protegido pela lei
tende a ser aceita como senso comum.
Urge mobilizar todas as forças da sociedade para reverter essa
noção letal para o Estado Democrático de Direito, pois, como dizia o grande Rui
Barbosa: “A lei que não protege o meu inimigo, não me serve”.
Nos anos de chumbo da ditadura, a OAB, emprestando sua voz sua
voz aos que não tinham voz, contribuiu decisivamente para o movimento que
159
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
galvanizou a opinião pública contra o arbítrio e a violência do Estado.
Hoje, a situação dos pobres caminha para o mesmo quadro de
arbítrio e violência. É hora da OAB emprestar novamente sua prestigiosa voz aos
que náo têm voz.
A casa dos advogados do Brasil tem a legitimidade necessária para
liderar um grande movimento de opinião pública contra o desrespeito aos
direitos e garantias individuais e coletivos. Será sua grande contribuição para
fazer a opinião pública avançar na direção do “Brasil que queremos”.
160
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
NOVOS TEMPOS, NOVOS RUMOS!
Renato Zerbini Ribeiro Leão*
“Considerando que o reconhecimento da dignidade
inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo.
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos
direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram
a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo
em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e
da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi
proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.
Considerando essencial que os direitos humanos sejam
protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja
compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a
opressão.
Considerando essencial promover o desenvolvimento de
relações amistosas entre as nações.
Considerando que os povos das Nações Unidas
reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos
fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana
e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que
decidiram promover o progresso social e melhores condições de
vida em uma liberdade mais ampla.
Considerando
que
os
Estados-Membros
se
comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações
Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades
fundamentais e a observância desses direitos e liberdades.
Considerando que uma compreensão comum desses
direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno
cumprimento desse compromisso.”
(Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos)
INTRÓITO
Os preâmbulos dos tratados internacionais são as justificações
éticas, históricas, morais, políticas e sociais da necessidade de existência desses
Doutor em Direito Internacional e Relações Internacionais. Professor Universitário de Direito
Internacional Público, Política Internacional e as Três Vertentes da Proteção Internacional da Pessoa Humana em Brasília. Coordenador Geral do Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE.
Advogado inscrito na seccional OAB/DF.
*
161
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
documentos normativos internacionais. São a fonte de inspiração civilizatória
das normas constituintes de um documento jurídico de Direito Internacional
Público. Em conseqüência, humanizam a fria letra da norma internacional e
revelam, resumidamente, o modo de se compreender o assunto em pauta no
tratado por parte da sociedade internacional da época.
O preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos possui
uma lógica existencial. A partir da proclamação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, todos os países do mundo,
inclusive aqueles que não atravessaram o largo processo histórico de formação
do Estado liberal e democrático moderno, dispõem de um código internacional
para decidir como se comportar e como julgar os demais. É um código que
não só se aplica no âmbito universal mas encerra também preceitos que têm
valor em áreas anteriormente não tomadas em conta nas Constituições dos
Estados ocidentais.68 Diferentemente de outras épocas, na atualidade as normas
internacionais proíbem qualquer “trato desumano ou degradante”. Houve
um tempo no qual a denúncia limitava-se a citar determinados governos, que
descuidavam dos interesses da população; hoje, pode-se acusá-los de violar as
normas internacionais, que prevêem, por exemplo, o direito à alimentação, o
direito a uma moradia digna, o direito ao meio ambiente sadio, etc.69 No nosso
início do século XXI impera o princípio de afirmação da dignidade humana.
O reconhecimento dos Direitos Humanos no cenário mundial
caminhou, às vezes discretamente, outras efusivamente, junto com o
desenvolvimento das Relações Internacionais. Entre o séc. XVII e começos do séc.
XX, as Relações Internacionais eram substancialmente mantidas entre entidades
de governo soberano em um território relativamente amplo e sobre a população
estabelecida nesse território. Cassese aponta como as três características
principais da comunidade internacional daquela época:70
ALBUQUERQUE MELLO, C. D. de. Curso de Direito Internacional Público. RJ/SP, Renovar, 2000.
(“A Declaração Universal dos Direitos Humanos não possui qualquer valor de obrigatoriedade
para os Estados. Ela não é um tratado, mas uma simples declaração, como indica o seu nome.
O seu valor é meramente moral. Ela indica as diretrizes a serem seguidas neste assunto pelos
Estados. (...) De qualquer modo pode-se afirmar que atualmente há uma espécie de consenso
em considerá-la um sistema internacional e, portanto, obrigatória.” p. 823).
69
CASSESE, Antônio. Los derechos humanos en el mundo contemporáneo. Barcelona, Ariel,
1993. pp. 7-57.
70
Id., ibid. p. 17-21.
68
162
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
1. Os Estados viviam em um estado de natureza.
2. Um cenário movido por um princípio que constituía a
conseqüência necessária das relações individualistas entre
os membros daquela sociedade anárquica, o princípio
da reciprocidade. Tal princípio significa basicamente que
as normas entre associados regiam-se principalmente
por acordos bilaterais ou, em certos casos, multilaterais;
entretanto, todos baseados nas recíprocas vantagens dos
contratantes.
3. Os povos e indivíduos carecem de peso. Os indivíduos
aparecem como sujeitos passivos do direito internacional,
ou seja, titulares apenas de obrigações internacionais,
contra os quais os soberanos poderiam e deveriam lutar
com todas suas forças.71
Naquela época os Direitos Humanos estavam confinados dentro
das fronteiras dos Estados pelo princípio da soberania estatal; no entanto,
quando deixam de ser considerados matérias de exclusiva jurisdição dos Estados
soberanos e “passam a estar inseridos entre as prerrogativas da sociedade
internacional, a sua defesa passa a ocorrer independente das limitações
territoriais impostas pelos Estados”.72 As características descritas anteriormente
mantiveram-se, basicamente, sem grandes transformações até a metade do
século XIX, durante o qual uma pequena chama viria lançar uma nova perspectiva
no cenário político e jurídico de então, qual seja, a teoria das nacionalidades
propugnada por Pasquale Stanislao Mancini. Esta expressava a importância das
diversas nações, “agrupações humanas unidas por uma língua e cultura comum,
por tradições e costumes comuns”.73Encarnava, ademais, os ideais das classes
dirigentes de certos países europeus e remetia suas conseqüências a um plano
Albuquerque Mello, C. D. Op. cit. (“A partir do século XIX começou a reação contra a subjetividade do indivíduo. Neste período predomina a soberania absoluta do Estado. Surge no DI o que
já foi denominado de uma aristocracia de Estados. O indivíduo somente atinge o mundo jurídico
internacional através do Estado.” p. 766-767).
72
Rodrigues, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos – a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria. RJ/SP, Renovar, 2000. p. 61.
73
CASSESE. Op. cit. p. 21.
71
163
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
metajurídico como ideal de ação política. 74
Canotilho, o grande constitucionalista português, considera
que os direitos do homem não se baseiam apenas em “grandezas invariáveis
jusnaturalisticamente formuladas”, pois é “patente a sua conexão com as
constelações histórico-sociais”. Ensina que “todos os teóricos do direito natural
racionalista se preocuparam com a justificação do Estado e com a legislação
do domínio”, esquecidos de que “a falta de liberdade política da burguesia
constituirá um dos incentivos principais a favor da luta pelos direitos do homem”.
Lembra ainda que um estudo histórico e jurídico criterioso, vinculando essas
duas vertentes de análise, é capaz de demonstrar que “a doutrina de Locke,
juntamente com a de Rousseau, concebia a liberdade como liberdade no Estadosociedade, como corpos políticos indiferenciados, ao contrário das doutrinas
fisiocráticas da ordem natural, conducentes à concepção exclusiva de uma
liberdade perante o Estado” e foi a evolução “desta doutrina que acabaria numa
Statuslehre de G. Jellinek, em que os direitos de liberdade, praticamente, já não
eram os de Rousseau ou de Locke, mas autovinculações jurídicas do Estado,
agora entendido como personalidade jurídica”.75
Os Direitos Humanos, tal como concebidos atualmente, conhecem
uma verdadeira mudança de rumo histórico no cenário produzido antes em
1917 e, posteriormente, em 1945, com o findar da Primeira Guerra Mundial e
a conclusão da Segunda. No segundo pós-guerra, assiste-se também a outro
grande fenômeno revolucionário da comunidade internacional: lança-se uma
doutrina jusnaturalista dos Direitos Humanos a fim de que seu conteúdo tenha
em conta as relações entre cada Estado e seus cidadãos e cidadãs.76
A origem das Nações Unidas77 está fortemente vinculada e
Mancini via a alguns Estados europeus reinar sobre várias nacionalidades, enquanto que outras nacionalidades estavam fragmentadas entre diversos Estados. Exemplo: Império Austríaco,
por um lado, e Alemanha e Itália, por outro.
75
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, Renovar,
1999. p. 359-361.
76
Para Guido Fassò “o jusnaturalismo despontou de novo depois da Segunda Guerra Mundial,
como reação ao estatismo dos regimes totalitários. Em grande parte o fenômeno se verificou
ainda no âmbito da cultura católica; mas também nos ambientes protestantes alemães e em
medida notável no mundo laico, a idéia do direito natural se apresentou de novo, sobretudo
como dique e limite ao poder do Estado.” In: BOBBIO, N. et alii. Dicionário de Política. Brasília,
Edunb, 1992. p. 659.
77
A Organização das Nações Unidas foi estabelecida em 26 de abril de 1945, na Conferência de
São Francisco.
74
164
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
influenciada pelo final da Segunda Guerra Mundial e pela ideologia de seus
vencedores. Em conseqüência, o Conselho de Segurança, máximo órgão de
decisão da ONU, esteve sob influência dos ideais dos países vencedores daquele
confronto bélico global, desde sua criação. Tal Conselho, representado pelos
cinco países vencedores da II GM, Estados Unidos da América, Inglaterra, França,
China e a, então, URSS 78, refletia o ideal político, social, econômico e militar
de cada uma daquelas potências. Basicamente, arena para um duelo entre as
grandes democracias ocidentais e os países da Europa socialista.
Os cinco grandes países, que representavam claramente duas
correntes ideológicas opostas fincadas diametralmente no seio da ONU,
marcariam a divisão precipitada e imprudente dos direitos humanos em civis
e políticos, por um lado, e econômicos, sociais e culturais, por outro. Uma
ovacionando a liberdade de expressão, pensamento e religião, as liberdades
individuais em geral, cultuando o neoliberalismo como o caminho inquestionável
do cenário econômico mundial; a outra, ainda que contrária aos direitos humanos
em um primeiro momento, defendendo os pilares socialistas, propondo direitos
de extrema importância, como é o caso do princípio de igualdade (ou seja,
a proibição de discriminações fundadas em raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política, nacionalidade, propriedade, etc), direito de associação, direito
a autodeterminação dos povos coloniais, dentre outros.
A União Soviética era contrária à discussão dos Direitos Humanos,
não só pelo autoritarismo do governo estalinista, mas, também, pelo peso do
pensamento marxista. O conceito tradicional dos Direitos Humanos formado na
tradição jusnaturalista assenta-se em três pilares:79
1. Esses Direitos são inerentes à pessoa humana e prescindem
de qualquer reconhecimento positivo (existem inclusive
quando negados pelo Estado).
2. A ordem natural que os sustenta é válida em todas as partes
e é imutável, prescindindo do contexto social do indivíduo.
3. Esses Direitos são próprios dos indivíduos enquanto tais,
não dos grupos sociais.
Naquele tempo a URSS significava União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Com a Perestroika, em 1982, desmantelou-se a União e o assento a ela reservado no Conselho de Segurança
das Nações Unidas, desde então, pertence à Rússia.
79
CASSESE. Op. cit. p. 39.
78
165
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Segundo Cassese, Marx simplesmente rejeita esses três princípios
e sustenta que os Direitos Humanos aclamados pela sociedade capitalista eram
uma simples manifestação da burguesia; uma simples expressão das exigências
dessa classe.80 Nesse sentido, os direitos e as liberdades têm apenas um valor
instrumental, servindo para subverter mais rapidamente a ordem existente.
Contrariamente, esses valores já não servem na sociedade comunista porque
esta realiza a integração entre o indivíduo e a comunidade. Marx proclamava
que a justiça social e a dignidade humana traziam elementos que transcendiam
as fronteiras do Estados como a consciência social de se fazer parte de uma
classe trabalhadora onde quer que se esteja.81 Ou seja, a doutrina dos Direitos
Humanos estava em conflito com a ideologia e a prática na URSS.82
Portanto, a ordem internacional em 1945, época do nascimento da
Organização das Nações Unidas, apresentava o domínio dos EUA no ocidente,
tanto no plano militar e econômico como na confirmação de um modelo cultural
vigoroso que ganhava uma esplendida difusão mundial. Na Europa do Leste,
Stalin colhendo os frutos da vitória, faz da URSS a segunda potência do planeta,
expandindo o regime soviético aos países daquela região.83 Por outro lado, a
decadência dos impérios coloniais e a emergência de novas superpotências
estabelecem as raízes da descolonização e a aparição do então chamado Terceiro
Mundo.84
CASSESE. Op. cit. p. 39. Entretanto, especialmente o jovem Marx enfatiza a noção de “emancipação humana”, em si mesma compatível com a noção filosófica de liberdade humana abrangida pela filosofia do
direito natural. Um exemplo é a seguinte passagem da “Questão Judaíca”: “A emancipação humana somente
está completa quando o homem real, individual, tiver absorvido em si mesmo o cidadão abstrato; quando
um homem individual, na sua vida cotidiana, no seu trabalho e em suas relações tiver se tornado um ser
da espécie...” In: TUCKER, Robert C. (org.). The Jewish Question. The Marx-Engels Reader. New York, W. W.
Norton, 1978. p. 46.
80
RODRIGUES. Op. cit. p. 63.
Cassese sustenta que, apesar do debate ideológico das potências da época, não se pode esquecer o enorme aporte libertador do pensamento de Marx no campo dos direitos econômicos e
sociais, ademais da contribuição geral à teoria dos direitos humanos proporcionada pelo “revisionismo” marxista.
83
Kennedy, Paul. Ascensão e queda das grandes potências: transformação econômica e
conflito militar de 1500 a 2000. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Campus, 1989. (“Assim as
exigências externas e internas da Guerra Fria podiam alimentar-se mutuamente, disfarçadas ambas pelo recurso aos princípios ideológicos. Liberalismo e comunismo, sendo idéias universais,
eram mutuamente exclusivos; isso permitia a cada um dos lados compreender, e retratar, todo
o mundo como uma arena na qual a luta ideológica não se podia separar da vantagem política
e de poder. Ou se estava com o bloco liderado pelos americanos, ou com o bloco soviético.
Não havia meio-termo; na era de Stalin e Joe McCarthy, era imprudente pensar que pudesse
haver. Era essa a realidade estratégica, a que não apenas os povos de uma Europa dividida, mas
também os da Ásia, Oriente Médio, África, América Latina e outros teriam de ajustar-se.” p. 356).
84
Kennedy assim explicava o terceiro mundo: “O desmoronamento (...)dos impérios no Extremo
81
82
166
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Nesse contexto, formatava-se o cenário de discussões político-
diplomáticas no seio da ONU, assim como se construía o caminho do
desenvolvimento, realização e aprovação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos e dos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos
Econômicos, Sociais e Cuturais, que, juntos, compõe a Carta Internacional de
Direitos Humanos.
Essa realidade histórica faz com que o Preâmbulo da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH) pugne pela afirmação do indivíduo
como sujeito do Direito Internacional Público (DIP). Trata-se, portanto, de uma
construção factual e jusfilosófica consubstanciadora de uma idéia fincada a
partir de uma lógica seqüencial sustentada nos sujeitos contemporâneos do DIP:
os Estados, as Organizações Internacionais e os Indivíduos. Isto é, os Estados,
mediante a celebração de um tratado internacional, criam as Organizações
Internacionais, em cujo seno e à luz do patrocínio dos Estados, facilitam o
surgimento dos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais emergem
o indivíduo como um sujeito de DIP, capaz de demandar seus Estados por violação
a uma das normas de um tratado internacional de direitos humanos. Trata-se,
inclusive, de um processo que se retroalimenta. Conseqüentemente, se poderia
afirmar que o Preâmbulo da DUDH é a consagração política da passagem de uma
sociedade internacional, sobretudo desde a óptica do DIP, de viés estatocêntrica,
para uma sociedade internacional que reposiciona o indivíduo no epicentro de
suas discussões.85
OS DIREITOS HUMANOS NAS GRANDES CONFERÊNCIAS QUE ANTECEDERAM A
CRIAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
Algumas personalidades políticas da época marcaram presença
nas Conferências de preparação para a criação da ONU e contribuíram para a
Oriente depois de 1941, a mobilização das economias e o recrutamento de mão-de-obra de outros territórios dependentes, durante a guerra, as influências ideológicas da Carta do Atlântico, e
o declínio da Europa – tudo isso se combinou para liberar as forças de transformação no que, na
década de 1950, foi chamado de terceiro mundo. (...)Mas ele era descrito como “terceiro” mundo
precisamente porque insistia na sua distinção dos blocos dominados pelos americanos e pelos
russos.” (Op. cit. p. 375).
85
Sobre isso consultar: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Recta Ratio nos Fundamentos
do Jus Gentium como Direito Internacional da Humanidade. Discurso de Posse na Academia Brasileira de Letras Jurídica – Cadeira N. 47. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
167
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
construção histórica dos direitos humanos naquela instituição supranacional.
Assim sendo, o discurso do presidente dos EUA , F. Roosevelt, de 26 de janeiro
de 1941 ante o Congresso norte-americano, representou um dos antecedentes
construtivos e normativos mais imediatos do direito internacional dos
direitos humanos, o qual serviria para dar o ritmo e inspirar outros tratados e
documentos internacionais da ONU, inclusive os que consubstanciam a Carta
Internacional de Direitos Humanos. Esse discurso exorta a construção de um
mundo sedimentado em quatro liberdades fundamentais: a liberdade da
palavra e expressão; liberdade de culto e crença religiosa; liberdade de desejar,
de estar livre da miséria e da necessidade e o direito de ser liberado do medo,
significando a redução de armamentos no cenário mundial.86
No campo dos Direitos Humanos, os reflexos da Declaração foram
tão impactantes que, durante a Sexta Sessão da Comissão de Direitos Humanos
da ONU, precisamente em 9 de maio de 1950, o representante da Iugoslávia
salientou que, para Roosevelt, sem direitos econômicos não poderia existir
sociedade livre. Assim mesmo, o Relator da terceira comissão da Assembléia
Geral sublinhou ante a sessão plenária da Organização, no dia 9 de dezembro
de 1948, no momento da aprovação da DUDH, que as palavras de Roosevelt
“traduziam sincera e nitidamente as aspirações do homem do século XX”.87
Outro documento, de que a história antecessora dos direitos
humanos na ONU guarda guarida especial, é a Carta Atlântica88, firmada
por Roosevelt e Churchill, em 14 de Agosto de 1941, cujos princípios seriam
interpretados como sendo a primeira formulação oficial dos objetivos da guerra
e os fundamentos da paz para os Aliados89. Cumpre destacar o lugar reservado
QUINTANA, Fernando. La ONU y la exégesis de los derechos humanos(una discusión teórica de la noción. Porto Alegre, UNIGRANRIO 1999. pp 35-36.
87
Documents Officiels de la Troisième Session de l´Assemblée Générale. In: Séances Plenières
de l´Assemblée Générale, Comptes Rendus Analytiques des séances. Première Partie: 180
séances plenières. Paris, Palais de Chaillot, 21Septembre – 12 Décembre, 1948. p. 853.
88
A Carta Atlântica, segundo Quintana, estabelece ademais a necessidade de uma colaboração
mais completa entre todas as nações, grandes e pequenas, com a finalidade de garantir a todas
uma melhor condição para a classe obreira, e a seguridade social. Assim mesmo, a Declaração
das Nações Unidas, que foi firmada em Washington, em 1º de janeiro de 1942, por vinte e seis
países em guerra contra os países do Eixo, e adere aos princípios contidos na Carta Atlântica,
eleva o estipulado no último documento ao nível do direito internacional.
89
Esse foi um momento histórico marcante, porque na oportunidade Roosevelt propõe uma
nova ordem internacional e, pela primeira vez, discutia-se o mundo pós-guerra, em situação de
conflito.
86
168
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
às liberdades individuais e aos direitos humanos e, definitivamente, as quatro
liberdades fundamentais de Roosevelt que aparecem contempladas ali. Diz o
Art. 6º da Carta:
Después de la destrucción final de la tiranía nazi, esperamos
verse establecer una paz que permitirá a todas las naciones
permanecer en seguridad al interior de sus propias fronteras,
y que garantizará a todos los hombres de todos los países
una existencia liberada del miedo y de la necesidad.90
Importa frisar que esse artigo foi defendido também pelo
representante da Austrália. No momento de seu país aderir ao documento,
sustentava que deveria ser reconhecido o direito de viver “liberado da
necessidade”. Por esse mesmo caminho veio a intervenção do representante de
Cuba, que propunha incluir no texto um outro dispositivo relativo ao direito à
alimentação.91
Um documento também de importância relevante na formação do
foro internacional dos direitos humanos na ONU que, embora proclamado na
pré-história desse órgão supra-estatal refletiu intensamente no êxito da Carta
Internacional de Direitos Humanos, foi a Declaração de Filadélfia.92 Proclamava,
entre outras coisas, o imperativo da justiça social, estabelecia uma nova
enumeração dos direitos do trabalhador, com as condições que permitem o seu
exercício, e previa o dever de realizar uma utilização mais completa e ampla dos
recursos produtivos do mundo.93
O objetivo principal das Conferências patrocinadas pelas potências
mundiais no período imediatamente anterior à criação da ONU foi, certamente,
a manutenção da paz e a segurança internacional, entretanto a vertente dos
direitos humanos jamais deixou de configurar como parte da essência de tais
documentos. A afirmação anterior pode ser comprovada, uma vez analisada a
Carta Atlântica, artículo 6º.
Id., ibid. p.37.
92
Adotada em 10 de maio de 1944 pela unanimidade dos membros da Organização Internacional do Trabalho.
93
A afirmação pode ser extraída dos considerandos da Declaração de Filadélfia.
90
91
169
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Conferência de Dumbarton Oaks,94 de outubro de 1944. Nela se propunha criar
uma organização que viesse a assegurar justamente a manutenção da paz e da
segurança internacional, e independentemente do conflito ideológico presente
na Conferência patrocinado pelas potências da época, a delegação norteamericana obteve o apoio necessário de seus participantes para incluir na Carta
das Nações Unidas uma menção expressa à promoção dos direitos humanos
como “meio de criar as condições de estabilidade e bem-estar necessários à
manutenção das relações pacíficas entre os Estados.”95 Em decorrência, estipula
o capítulo IX do Plano de Dumbarton Oaks:
En vistas de crear las condiciones de estabilidad y de bien-estar
necesarias para el mantenimiento de relaciones amigables y
pacíficas entre las naciones, la Organización deberá facilitar
la solución de los problemas humanitarios internacionales
de orden económico, social y otros, y promover el respeto de
los derechos humanos y de las libertades fundamentales. La
Asamblea general, y bajo su autoridad, un Consejo económico
y social, deberán estar encargados del cumplimiento de esta
función.96
A importância de Dumbarton Oaks é fundamental para o atual
estágio dos direitos humanos na ONU, porque foi daí que emergiram as idéias que
originariam a Comissão de Direitos Humanos tal como concebida atualmente,
sob a supervisão do Conselho Econômico e Social (ECOSOC). A Comissão teve
um papel decisivo na redação e codificação dos artigos que compõem os
documentos da Carta Internacional. Dizia a proposta:97
(...) el Consejo económico y social deberá instituir una
Resultou do acordo a que chegaram as quatro Potências na Conferência de Moscou (1943). As
discussões em Dumbarton Oaks deram-se em dois tempos: uma primeira fase, de 28 de agosto
a 28 de setembro, reunindo os representantes de EUA, Reino Unido e URSS; uma segunda fase,
de 29 de setembro a 7 de outubro, com os representantes da China, EUA e Reino Unido.
95
Carta das Nações Unidas. Capítulo I, Artigo 1º, Incisos 1, 2 e 3.
96
Déclaration de Dumbarton Oaks. Documents Nations Unies. In: Journal du Droit International
1940-1945. Tome 67-72, n. 1, París, 1945. Apud: Quintana. Op. cit. pp. 41-42.
97
Sessão D do Capítulo IX das propostas de Dumbarton Oaks.
94
170
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Comisión económica, una Comisión social y otras Comisiones
que considere pertinentes.
A Comissão de Direitos Humanos da ONU não aparece
explicitamente mencionada no texto, entretanto uma disposição deixa aberta a
possibilidade de que seja no futuro constituída. Assim, o documento aprovado
em Dumbarton Oaks estabelecia, explicitamente e pela primeira vez, um
compromisso internacional acerca da promoção dos direitos humanos.
A Conferência de Yalta, realizada entre os dias 4 e 11 de fevereiro
de 1945 na Criméia (URSS), também teve uma importância capital na construção
e sedimentação histórica dos direitos humanos na ONU. Nela Estados Unidos,
Reino Unido e URSS98 publicaram uma Declaração na qual elogiavam os resultados
obtidos em Dumbarton Oaks e convocaram uma Conferência das Nações Unidas
a ser realizada em São Francisco, a partir de 25 de abril de 1945, com o objetivo
principal de manter a paz e segurança internacionais.
Especificamente no tocante aos direitos humanos, a Conferência
de Yalta determinou através da “Declaração sobre a Europa Liberada” documento adotado - o estabelecimento de instituições democráticas e o
compromisso de que os países liberados, sempre que possível, estabeleceriam,
por meio de eleições livres, governos que fossem a expressão da vontade dos
povos, construindo uma ordem internacional inspirada nas leis da paz, da
segurança, da liberdade e do bem-estar da humanidade em sua totalidade.
O futuro dos Direitos Humanos teve na Conferência Interamericana
de Chapultepec99 um de seus precedentes mais destacados. Os objetivos do
conclave eram tratar problemas relativos à guerra e à paz. A Conferência abrigou
um fato histórico muito importante para a temática em discussão, que foi a
adoção de uma ata final contendo uma série de resoluções pilotos em matéria de
direitos humanos. Após mencionar que a Declaração das Nações Unidas de 1942
havia sancionado a necessidade de estabelecer a proteção internacional dos
direitos fundamentais, afirmava que era necessário não só enumerar, e/ou definir
Um dado histórico e político importante da Conferência de Yalta foi a decisão sobre a forma
de participação da URSS na ONU. Esta teria além do direito de veto, como membro permanente,
mais três assentos naquele Organismo Supranacional: Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia.
99
Realizada no México entre os dias 21 de fevereiro e 8 de março. Estiveram presentes 21 nações
americanas, com exceção da Argentina.
98
171
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
esses direitos, como também os deveres correspondentes, numa declaração a
ser adotada pelos Estados sob a forma de Convenção ou Pacto. Destaca-se sua
Resolução XLI, onde se estipulava que a paz mundial não poderia consolidar-se
enquanto os homens não pudessem exercer seus direitos fundamentais, sem
distinção de raça ou de religião; e, ainda, proclamava o princípio da igualdade de
direitos para todos os homens, qualquer que fosse sua raça ou religião.100
A contribuição interamericana à afirmação dos direitos humanos
na ONU também se assentou na reverberação do direito a um recurso eficaz
ante os tribunais nacionais. Este, desde uma perspectiva normativa material,
foi absorvido do artigo XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem (de abril de 1948) para o artigo 8 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (de dezembro de 1948). Aliás, aquela é precursora desta.101
Em solo europeu, como já não havia mais guerra, realizou-se
em Berlim, de 17 de julho a 2 de agosto de 1945, a Conferência de Potsdam.
Nela estavam presentes os novos líderes das potências: Harry Truman,
substituindo a Roosevelt (falecido em 12 de abril de 1945); Clement Attlee, em
representação do Reino Unido (Churchill perderá as eleições britânicas); e Stalin,
em representação da URSS. Ali, estabeleceu-se que os aliados dariam ao povo
alemão a oportunidade de preparar-se para a reconstrução de suas vidas sobre
uma base democrática e de cooperação pacífica à vida internacional.
OS DIREITOS HUMANOS NA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
A organização das Nações Unidas foi criada durante a Conferência
de San Francisco, realizada entre os dias 25 de abril e 26 de junho de 1945, nos
EUA. O tratado que forma o estatuto chamado Carta das Nações Unidas (ou Carta
de San Francisco) foi firmado em 26 de junho de 1945 e entrou em vigor em 24
de outubro daquele mesmo ano, no momento que foi ratificado pela URSS, EUA,
China, Reino Unido e França – as cinco potências – e pela maioria dos estados
Resolução XLI da Conferência Interamericana de Chapultepec.
Sobre este tema ler: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O legado da Declaração Universal e o futuro da Proteção Internacional dos Direitos Humanos em AMARAL JÚNIOR, Alberto e
PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.). O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos
do Homem. São Paulo: Edusp, 1999, p. 17.
100
101
172
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
fundadores da Organização Internacional, participantes da Conferência.102
Notou-se, desde que se efetivou a criação da ONU103, a formação
de quatro aglomerações bem definidas que mantinham uma forte influência
nas discussões, desenvolvimento e formação da doutrina dos direitos humanos
no seio daquela entidade. Um grupo de países ocidentais, que rapidamente
tomaram a liderança política da instituição e tinham nos Estados Unidos, França
e Inglaterra, seus mentores políticos e ideológicos, seguidos por muitos outros
países do Ocidente político, entre os quais figurava a Austrália. Um segundo
bloco formado pelos países da América Latina que agarraram, desde o início,
a causa dos direitos humanos, tomando muitas vezes, nesse campo, decisões
mais avançadas que a dos próprios países mais desenvolvidos do hemisfério.
O bloco dos países socialistas, em conformidade com seus princípios e idéias,
dotados de extremo cuidado político e desconfiança generalizada, aceitaram
colaborar no avanço dos direitos humanos. E os países asiáticos, com exceção
dos muçulmanos dirigidos pela Arábia Saudita e pelo Paquistão, pouca presença
tiveram nas discussões iniciais da matéria.104
Apesar das quatro aglomerações supracitadas, o grosso do
confronto político e ideológico deu-se entre o Ocidente e a Europa socialista.
Tal fato é verificável através dos debates travados durante os anos em estudo
(1945-1966) e confirmado pela composição encarregada de conciliar e elaborar
as diferentes propostas e teses que brotaram das discussões. O Comitê de
Redação, composto principalmente por membros da corrente ocidental e pela
URSS, estava assim constituído: Austrália, Chile, EUA, França, Gran- Bretanha,
Líbano e URSS.
As discussões então travadas nas Nações Unidas encarnavam o
contexto político e diplomático da Guerra-Fria.105A Carta das Nações Unidas, no
que diz respeito aos direitos humanos, contemplava dispositivos bem distantes
das expectativas e esperanças que haviam sido suscitadas pela declaração do
102
São membros originários da ONU aqueles Estados que firmaram e ratificaram a Carta das
Nações Unidas, logo depois da participação na Conferência de São Francisco ou, pelo menos,
firmaram a Declaração das Nações Unidas de 1942.
103
Naquele, então, os membros da ONU eram 58: 14 ocidentais, 20 latino americanos, 6 socialistas, 4 africanos e 14 asiáticos.
104
Sobre o assunto, ler Cassese. Op. cit. pp. 40-46.
105
Clima político-ideológico instaurado no cenário mundial imediatamente depois de terminada a II Grande Guerra, por parte das duas maiores potências do momento: EUA e URSS.
173
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Presidente Roosevelt de 1941. De fato, cada uma das potências vitoriosas da II
GM trazia, no momento de redação da Carta, problemas no campo dos direitos
humanos. Nos EUA, a discriminação racial; e, na URSS, a falta de liberdade e
expressão política.
Os dispositivos da Carta de San Francisco não permitem uma
definição clara e precisa dos direitos humanos. O documento limita-se a
mencionar a promoção e/ou desenvolvimento dos mesmos, considerados como
uma das metas da ONU, juntamente ao seu outro grande objetivo: a manutenção
da paz e segurança internacionais.106
A CARTA INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS DA ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS
A Carta Internacional de Direitos Humanos é um conjunto de
documentos conformado pela Declaração Universal de Direitos Humanos
(DUDH), pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), pelo Pacto
Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC) e por seus
protocolos e documentos adicionais. Em 1945 o mundo marcava-se claramente
dividido em duas correntes político-ideológicas que direcionavam o sistema
internacional a girar em torno de uma natureza bipolar, comandada pelos EUA,
por um lado, e pela URSS, por outro.
Os EUA guiavam os países capitalistas ocidentais que defendiam a
democracia liberal como o único regime político capaz de promover o respeito às
liberdades e direitos fundamentais, e o pleno desenvolvimento dos indivíduos,
tanto do ponto de vista econômico quanto político. A URSS comandava o bloco
socialista que tinha, na democracia social ou real,107 a chave para a eliminação
das desigualdades sociais e o meio para o estabelecimento da paz universal, já
que países socialistas não disputariam guerras entre si.108
O informe da Comissão Preparatória das Nações Unidas de 1945
foi que recomendou originariamente a criação de uma comissão de direitos
humanos, para redigir uma declaração internacional de direitos. A conclusão
Vide Art. 1° da Carta das Nações Unidas.
Com relação à discussão a respeito de “democracia e socialismo”, ler o verbete Democracia. In:
BOBBIO et alii. Dicionário de Política. Brasília, Edunb, 1992. pp. 324-325.
108
Sobre a temática tratada neste parágrafo, ler WIGHT, Martin. A política do poder. Brasília,
Edunb, 1985. pp. 175-192.
106
107
174
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
deste documento, a quarta e última etapa na obra de criação da ONU, teve,
como nas três etapas anteriores:109
1. Aprovação das propostas do Plano de Dumbarton Oaks
(adotadas em 1944) completadas por decisões tomadas na
Conferência de Yalta (fevereiro de 1945).
2. Firma da Carta das Nações Unidas em San Francisco, que
cria a ONU e institui a Comissão Preparatória (26 de junho
de 1945).
3. Reuniões de Londres (a partir de 16 de agosto de 1945)
patrocinadas pelo Comitê Executivo dessa Comissão,
encarregada de elaborar o informe.
O documento da Comissão Preparatória relativo ao Conselho
Econômico e Social (ECOSOC) estabelecia, em seu capítulo III, Seção 4, parágrafos
14 e 16, a criação da Comissão de Direitos Humanos, cujas atividades deveriam
estar orientadas para uma declaração internacional de direitos humanos.
Foi na Primeira Sessão do Conselho Econômico e Social que se
criou, por meio da resolução 5(I) de 16 de fevereiro de 1946, a Comissão Nuclear
de Direitos Humanos, a qual foi formada de nove membros designados com base
em sua capacidade pessoal.110
Depois de distintas argumentações e opiniões políticas acerca do
tema, a Comissão de Direitos Humanos reuniu-se pela primeira vez, entre os dias
27 de janeiro e 10 de fevereiro de 1947, em Lake Success, e estava constituída
pelos seguintes membros: Presidente, Sra. Roosevelt (EUA); Vice-Presidente,
P. C. Chang (China); Relator, Ch. Malik (Líbano), W. R. Hodgson (Austrália), O.
Ebeid (Egito), R. Cassin (França), H. Metha (Índia), G. Ghani (Iran), T. Kaminsky
(Bielorússia), C. P. Romulo (Filipinas), Ch. Dukes (Reino Unido), V. F. Tepliakov
(URSS), J. A Mora (Uruguai), Ribnikar (Iuguslávia), Lebeau (Bélgica) e Guardia
(Panamá).
Nessa sessão encarregou-se ao Presidente, Vice-Presidente e ao
QUINTANA. Op. cit. p.69.
Seus membros originários eram Paal Berg (Noruega), René Casin (França), Fernand Dehousse
(Bélgica), Victor Raúl Haya de la Torre (Peru), K.C.Neogi (Índia), Sra. Roosevelt (EUA), Jhon C.H. Wu
(China), e também por pessoas que os membros do ECOSOC, representando URSS e Iugoslávia,
designariam ao Secretário Geral da ONU. Posteriormente, C. L. Hsia substitui a C. H. Wu, como
representante de China; e D. Brkish e A. Borisov representam a Iugoslávia e URSS, respectivamente.
109
110
175
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Relator, com a ajuda do Secretariado das Nações Unidas, elaborarem um projeto
preliminar da Declaração Internacional de Direitos Humanos, a ser submetido à
discussão e aprovação de todos os integrantes da Comissão na Sessão seguinte,
de dezembro de 1947. Por não haver sido adotada uma devida repartição
geográfica na eleição dos membros do Grupo de Redação, essa decisão foi alvo
de críticas por parte do ECOSOC, e o procedimento para a elaboração do projeto
foi modificado, de acordo com a resolução 46(IV) do ECOSOC, de 28 de março de
1947.
Um novo Comitê, com base em uma repartição geográfica mais
eqüitativa, foi nomeado e reuniu-se em Lake Succes, de 11 de junho a 5 de
julho de 1947, dando início aos trabalhos de redação. Estava composto pelos
seguintes membros: Presidente, Eleanor Roosevelt (EUA); Vice-presidente, P.C.
Chang (China); Relator, Ch. Malik (Líbano), Ralph L. Harry (Austrália), M. Santa
Cruz (Chile), René Casin (França), Geoffrey Wilson (Reino Unido) e V. Koretsky
(URSS).
O Comitê adotou, por solicitação de seu Presidente, como
material inicial de trabalho, um anteprojeto de declaração de direitos preparado
pelo Secretariado da ONU (Divisão de Direitos Humanos da Secretaria Geral,
presidida pelo jurista canadense John P. Humprey), composto de um preâmbulo
e 48 artigos.111
Segundo integrantes da Divisão de Direitos Humanos, a principal
virtude do documento consistia na tentativa de “dar uma resposta positiva ao
interrogante de saber se era ou não possível chegar-se a um acordo sobre uma
norma universal em matéria de direitos humanos.”112
Uma longa e controversa discussão cercava a atmosfera da CDH e do
Comitê de Redação. Jurisconsultos internacionais e cientistas sociais ampliavam
o leque de discussões, baseados em distintos pensamentos ideológicos que se
assentavam no cenário mundial, a suscitarem indagações e questionamentos
acerca da liberdade do indivíduo perante as forças da coletividade, dos juízos
de valor na sociedade industrial, do fundamento jusnaturalista dos direitos
O documento continha quase todos os direitos mencionados em diversas constituições nacionais e outros dispositivos presentes no texto de declaração internacional em poder do Secretariado.
112
QUINTANA. Op. cit. p. 76.
111
176
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
consagrados, da inclusão dos direitos econômicos e sociais na futura declaração
de direitos, e até das relações entre direitos individuais e sociais, e de suas
diferenças na implementação de cada categoria de direito.113
O trabalho de redação da futura Declaração não se interrompia.
A partir de um primeiro documento elaborado por R. Casin e outros membros
do Comitê, composto por um preâmbulo e 43 artigos, o Comitê de Redação
submeteu à Segunda Sessão da Comissão de Direitos Humanos dois anteprojetos,
para que fossem discutidos e passados para uma versão final.
Durante a Segunda Sessão da Comissão de Direitos Humanos114,
ficou decidido115 denominar ao primeiro documento Declaração, ao segundo
documento Pacto e ao conjunto Carta, isto é, a expressão Carta Internacional
de Direitos Humanos seria dirigida à totalidade dos três documentos em
preparação. Criaram-se três grupos de trabalho para o exame em separado
dos documentos e, a partir dos informes desses grupos, a Comissão de Direitos
Humanos elaborou dois textos, um para a declaração e outro para o pacto, que
foram enviados aos governos para as devidas observações e sugestões.
Os dois documentos, a Declaração e o Pacto, com as devidas
propostas dos governos, foram, então, revisados na Segunda Sessão do Comitê
de Redação.116 A metodologia utilizada foi a da apreciação inicial do Pacto, seguida
da análise dos dois outros documentos que comporiam a Carta Internacional.
Tal processo não contou com o apoio dos representantes da URSS e do Líbano,
que gostariam de examinar primeiramente a Declaração, ou seja, começar pelos
princípios fundamentais, para depois, então, efetuar o estudo do Pacto e das
medidas de aplicação.117
Durante a Terceira Sessão da Comissão de Direitos Humanos,
realizada em Lake Succes, de 24 de maio a 18 de junho de 1948, revisou-se
apenas o projeto de Declaração, tomando em conta as emendas propostas pelos
distintos representantes, não havendo tempo hábil para a apreciação do Pacto
Esta discussão e análise histórica vem aprofundada em Trindade, Antônio A. Cançado. Tratado
de Direito Internacional de Direitos Humanos. Vol. I. Porto Alegre, Fabris, 1997. pp. 35-37.
114
Acontecida em Genebra, de 12 a 17 de dezembro de 1947.
115
Decidido a partir de uma proposta sírio-libanesa.
116
Realizada en Lake Succes, de 3 a 21 de maio de 1948.
117
A eleição interna no Comitê de Redação para a utilização da metodologia assinalada no texto
deu-se por 5 votos a favor, 1 em contra e 2 abstenções.
113
177
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
e das medidas de aplicação. A CIDH informou em seu relatório118 ao ECOSOC que
a Comissão não havia concluído integralmente a sua obrigação, ou seja, faltavalhe incluir o Pacto e as medidas de execução e/ou aplicação, propondo que essa
tarefa deveria ser finalizada na Quarta Sessão da Comissão, em 1949.
O ECOSOC enviou o projeto de declaração à Assembléia Geral, que
incumbiu a sua Terceira Comissão, encarregada de assuntos sociais, humanitários
e culturais (III CAG), de o analisar e formular propostas. A III CAG concluiu pelo
estudo apenas da Declaração, entendendo que não estava em condições de
fazer um exame mais profundo dos outros dois documentos. Ademais, aprovou
a iniciativa do representante do Haiti (E. Saint-Lot), que estabeleceu o caráter
universal do documento, bem como a emenda da França, que trocava a palavra
internacional pelo termo universal.
Assim, em 10 de dezembro de 1948, em sua Terceira Sessão
Ordinária, a Assembléia Geral da ONU, reunida em Paris (Palais de Chaillot), por
meio de sua Resolução 217 A (III), adotou a Declaração Universal de Direitos
Humanos, que obteve 48 votos favoráveis, 8 abstenções e nenhum voto
em contra.119A Declaração Universal legitimava a preocupação da sociedade
internacional com a promoção e a proteção dos direitos humanos, condenando
as violações maciças e persistentes, inclusive em conflitos armados, e elegendo
a eliminação da pobreza extrema e da exclusão social prioridades internacionais.
Portanto, tendo contraído essas obrigações perante a comunidade internacional,
os Estados não poderiam, como tampouco podem atualmente, alegar que a
matéria é de exclusiva jurisdição doméstica.120
O PREÂMBULO DA DUDH DE CARA À ATUALIDADE DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Nesse contexto, o preâmbulo da DUDH registra as realidades
O Relator era o representante do Líbano, Sr. Malik.
Votaram a favor: Birmânia, Canadá, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dinamarca,
República Dominicana, Equador, Egito, El Salvador, Etiópia, França, Grécia, Guatemala, Haiti, Islândia, Índia, Irã, Iraque, Líbano, Luxemburgo, México, Países Baixos, Nova Zelândia, Nicarágua,
Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Filipinas, Suiam, Suécia, Síria, Turquia, Reino Unido,
Estados Unidos da América, Venezuela, Afeganistão, Argentina, Austrália, Bolívia, Bélgica e Brasil.
Abstenções: Bielo-Rússia, Checoslováquia, Polônia, Arábia Saudita, Ucrânia, África do Sul, União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas e Iugoslávia.
120
RODRIGUES. Op. cit. p. 70.
118
119
178
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
éticas, históricas, morais, políticas, sociais e jurídicas que culminaram com a sua
proclamação. Consuma, assim mesmo, o espírito dos princípios gerais do direito
internacional público121 estipulados explicitamente nos primeiro e segundo
artigos da Carta de San Francisco. A comunhão destes com o registro daquelas
consolida esse preâmbulo como a fonte iluminadora do direito contemporâneo
da sociedade internacional. O preâmbulo constitui-se, então, como uma
consideração cogente de contornos histórico, político, social e jurídico que
marcam a civilização humana da contemporaneidade.
Ante uma rápida, mas não despercebida revisão histórica,
nesse início do século XXI, a pressão ideológica de outrora, expressada pelo
pensamento político-econômico e pelo poderio militar das máximas potências
vitoriosas da II Guerra Mundial, no período imediatamente posterior ao desfecho
daquele triste episódio da história humana, já não existe mais. Por essa razão,
o fenômeno catalisador da divisão inconseqüente das duas ramas dos direitos
humanos desapareceu. Hoje em dia, o caráter global e harmônico dos direitos
humanos ocupa o centro da discussão da agenda internacional. Entretanto,
apesar de tanto se falar em um suposto mundo globalizado, encontramo-nos
justamente no meio da luta do primado da razão de Humanidade sobre a razão
de Estado. Nela, pulula o fato inquestionável de que o conhecimento talvez
seja a forma mais eficaz de emancipação humana e a compreensão do mundo
no qual vivemos, tão complexo e dissimulado, está estritamente vinculado
ao conhecimento humano. São os limites deste que fomentarão o sentido de
solidariedade humana, de atenção cuidadosa à condição dos demais, porque,
em última análise, todos dependemos de todos e a sorte de cada um está
inexoravelmente ligada à sorte dos demais.
Sublimidademente, as democracias da contemporaneidade
necessitam de uma urgente atualização de cara as características das sociedades
atuais: mais informadas, educadas e próximas. Aos Estados urge a reconquista
da legitimidade representativa de suas classes políticas. Trata-se de um clamor
social: as pessoas estão “politicamente fartas” e já dão perigosos sinais, inclusive
em países onde o risco a democracia parecera fora de questão, a esse respeito.
121
São eles: igualdade soberana; autonomia, não-ingerência nos assuntos internos de outros
Estados; proibição do uso da força; resolução pacífica das controvérsias internacionais; cooperação internacional e respeito aos direitos humanos.
179
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Na América Latina, por exemplo, se um dia vivenciamos os golpes de Estado
patrocinados pelas ditaduras militares, hoje experimentamos os golpes de
Estado perpetuados por instituições civis, em tese, democráticas (vide, por
citar um exemplo, o caso hondurenho) e o vírus da possibilidade das reeleições
indefinidas. Na seara dos direitos humanos é impossível falar em democracia
onde se conculca os direitos fundamentais, se despreza o Estado de Direito,
se deprecia a política e a cidadania. Os Estados contemporâneos, fincados nas
premissas dos direitos humanos, dependem da ética, da moral e da justiça
social, para ademais dos princípios da modernidade (liberdade, igualdade e
fraternidade), estarem consagrados como legítimos perante sua cidadania. A
afirmação anterior é uma condicionante irrefutável do Estado contemporâneo.
Conseqüentemente, transpondo essas idéias ao conjunto de
Estados ou ao cenário internacional, inclusive contrariando ao afirmado por
muitos teóricos e juristas guardiães do status quo, me somo àqueles, que
como Ash,122 defendem o fato de que estamos imersos em uma nova ordem, ou
melhor dito, em uma desordem multipolar global, na qual se nota o término
do momento unipolar onde a supremacia do hegemon, que se empenha por
menoscabar as normas do direito internacional e do multilateralismo nas
Relações Internacionais, parecera invencível. E essa nova multipolaridade é
produto, ao menos, de quatro tendências:
1)
Ascensão ou ressurgimento de uma série de Estados que
prosperam ou renascem e cujos recursos energéticos
competem com os das potências tradicionais do Ocidente.
2)
O crescente poder dos atores não-estatais. Estes podem
ser muito distintos. Compreendem desde as ONGs, das
companhias energéticas e farmacêuticas, das regiões
chamadas “autonômicas” e grupos religiosos, e aterrizam
em movimentos como Hamás, Hezbolá e Al Quaeda. São
atores que ainda sem nenhuma investidura ou capacidade
oficiais, são perfeitamente capazes de mudar ou transformar
a agenda de um ou de muitos Estados, assim como de outros
sujeitos do Direito Internacional.
122
ASH, Timothy Garton. “El mundo, siete años después” em Jornal El País, diário, edição de Domingo, 14/09/2008, Seção Crónica: Opinión.
180
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
3)
As transformações na moeda de troca do poder. Os avanços
nas tecnologias que se podem empregar para a violência
oferecem a grupos reduzidos de pessoas a capacidade de
desafiar Estados poderosos. É um fato que os avances na
tecnologia da informação e nos meios globalizados fazem
com que o exército mais poderoso da história da humanidade
possa perder uma Guerra, não no campo de batalha cheio
de sangue e mentira, senão no terreno da opinião pública
mundial. Este fato se pode comprovar inclusive pelas
pesquisas realizadas nos países tradicionalmente favoráveis
às enganosas guerras recentes.
4)
Os desafios mesmos do Direito Internacional. Esses, talvez,
provêm da mente humana, fantasiados nos interesses dos
Estados mais poderosos. Quem saberá? Mas, o certo é que
observamos três grandes desafios do DI: a) sua fragmentação
à luz de seu vertiginoso crescimento e setorialização; b)
em conseqüência do anterior, a proliferação de jurisdições
internacionais; e, c) a geração de regimes internacionais
específicos como meio ambiente, direitos humanos, direito
do mar, comércio internacional e atualmente, como tudo
indica, o combate ao terrorismo.
Em suma, o que produzem todas essas tendências tão distintamente
combinadas é a diminuição do poder relativo dos Estados ocidentais. E, se
acrescentamos a essas tendências a terrível destruição ambiental em escala
planetária e o desperdício dos recursos naturais, o cenário é ainda mais
desesperador. E, no centro de tudo, imerso na dimensão mais ampla de sua
diversidade, está o ser humano: perdido, ilusionado, equivocado, mas, possuidor
de uma razão que o tem permitido sobreviver por milhares de anos. E nisso
reside a esperança: na razão humana. No fato de que o homem e a mulher, por
fim, descubram que a eternidade humana somente poderá ser conquistada por
eles mesmos: o ser-humano.
Não obstante, há que se destacar o importante rol que o indivíduo
181
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
passa a desempenhar na sociedade internacional a partir da segunda metade do
século XX. Este passa a ser não só um sujeito do Direito Internacional Público,
como também um ator transformador inquestionável da sociedade internacional.
A sociedade civil organizada assume um papel preponderante na agenda
internacional. A título de exemplo, cita-se o Fórum Social Mundial. Quando
este começou, o status quo esforçou-se por desqualificá-lo, apelidando-o com
diversos adjetivos: turba de utópicos, movimento legado dos hippies, herdeiros
de um socialismo ultrapassado, acadêmicos desairosos, etc.... Estes, somados a
tantas outras denominações que se lhe ocorria. Tudo isso, fundamentalmente,
porque o lema de Porto Alegre retroalimentava-se em um ideal romântico e
necessário: “outro mundo é possível!” Tal perspectiva ecoou da beira do Guaíba
– reverberando por Bamako, Caracas, Karachi, Nairóbi e Belém – e atingiu uma
parte considerável do planeta.
Paralelamente, na gélida suíça, o status quo discutia a economia
mundial, ou pelo menos aquela que segundo eles era a real, no Fórum Econômico
Mundial de Davos. E para estes, resultava muito apropriado que os de Porto Alegre,
expoentes da sociedade civil organizada e potenciais contestadores da situação
hegemônica, escolhessem levar adiante tal espaço contextual conspirador nos
trópicos: um rincão que exala pecado, luxúria e também criatividade. Desde
a perspectiva davosiana este seria um espaço mais apropriado para as idéias
carnavalescas e, portanto, carente de qualquer seriedade científica, política e
social.
O interessante desse paralelismo é que, a raiz da atual crise
financeira, os bem trajados de Davos pensam em adotar os remédios receitados
pelos maltrapilhos de Porto Alegre. Ou pelo menos, as fantasias de Porto
Alegre iluminaram as passarelas de Davos. Essa é a leitura que se depreende da
manifestação firmada em Berlim pelos principais líderes da União Européia datada
de 22 de fevereiro de 2009. Nesse dia foi acordado um plano através do qual se
exalta o combate imediato aos paraísos fiscais, através da criação de sanções
diretas aos Estados que os albergam. Este problema, tantas vezes tido como
postergável, é agora vitalmente considerado para se enfrentar o componente
financeiro da crise. Ademais, no auxílio às economias em dificuldade, o FMI
deverá movimentar-se de maneira rápida e eficaz para concretizar as ajudas
182
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
possíveis. Assim mesmo, a regulação dos mercados financeiros e a supervisão
de seu funcionamento, de forma verdadeiramente global, são urgentemente
necessárias. Tudo isso umbilicalmente vinculado ao estrito controle das agências
de qualificação creditícia. O protecionismo também foi fortemente condenado.
A UE, em seu conjunto, clama por solidariedade e coordenação. Porto Alegre,
por reiteradas vezes, já havia dito tudo isso. Ou seja, se desde o princípio Davos
houvesse escutado os brados do Guaíba, teríamos poupado quase dez anos
no desenvolvimento de estratégias para combater e contornar a atual crise
financeira.
Concomitantemente, nos EUA, até mesmo o pacote inicial de
combate à crise do Presidente Obama, apesar de seus contornos protecionistas,
propõe uma regulação dos bancos e das finanças, assim como um teto salarial
para os altos executivos privados. Ilumina-se um cenário a partir do qual os EUA
redirecionam-se para um modelo político socialmente moderno e sustentável
(sobretudo com relação à saúde, educação e energias alternativas) parecido
ao europeu. Buscarão, os EUA, relegitimar, de maneira inteligente, o seu poder
brando nas relações internacionais trás um brusco e sombrio passado? Pelo
menos, deveriam tentá-lo.
Aliás, justiça seja feita, foi o Presidente Lula quem propôs, em 25
de setembro de 2008, durante sua viagem oficial a Nova Iorque, a consolidação
de um palco de legalidade financeira internacional, através do qual emergiriam
regras comuns capazes de garantir uma maior transparência e a coordenação
dos órgãos nacionais e internacionais de supervisão financeira internacional.
Pois tudo leva a crer que os prejuízos dessa crise, inclusive os bancários, serão
“socializados” pela cidadania mundial. Por outro lado, é difícil visualizar aos
banqueiros compartilhando seus lucros. Essa idéia do Presidente Lula teve
importantes apoios de líderes internacionais como, por exemplo, de Gordon
Brown, primeiro ministro britânico, de José Luis Rodríguez Zapatero, presidente
espanhol, ademais dos líderes da Austrália, da Dinamarca, da Comissão Européia
e da União Africana. Quem sabe não foi ela a fonte inspiradora da reunião de
Berlim deste ano que tentou influenciar a Cúpula do G-20 ampliado realizada
aos 2 de abril de 2009 em Londres.
Parágrafo à parte e ressaltado: assusta o fato de apesar de tanto
183
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
desenvolvimento econômico, científico e tecnológico, o ser humano - ou a
grande maioria de sua elite política e financeira - ainda desprezar a educação
como ferramenta necessária de inclusão social, combate à pobreza e geração
de riqueza. Uma educação universal de qualidade é o meio mais rápido e
eficaz para se combater qualquer crise econômica e humana. Nesse sentido,
nossa geração já é capaz de legar um futuro mais harmônico e sustentável aos
nossos filhos e netos. Persistir em intencionalmente deixar passar despercebido
essa possibilidade de um futuro socialmente justo, ambientalmente seguro e
harmonicamente civilizável para toda a espécie humana em seu conjunto é um
ato falho de razoabilidade humana que esta e as anteriores gerações insistem
em perpetuar.
O fato é que o mundo de hoje nos amedronta. As sociedades
parecem perdidas com relação a seus valores e costumes. A solidariedade
humana é pontual e ocasional. As famílias se desintegram com uma facilidade
jamais vista. Os Estados cada vez mais enviam sinais de sua incapacidade para
atender as principais demandas da maioria de seus cidadãos. A cada dia são
propostas mais leis para fechar as fronteiras entre os Estados e para apartar
pessoas de diferentes raças e classes sociais. Os Estados, sobretudo os mais ricos,
endurecem suas normas nesse sentido com regularidade. Desde a perspectiva
multilateral, a agenda positiva da segunda metade do século passado vem
perdendo fôlego nesse início do século XXI, pois os espaços concedidos àqueles
Estados mais humildes se apequenam cotidianamente. Tudo isso não acontece
simplesmente porque as relações internacionais de hoje em dia estejam mais
complexas do que as de outros tempos, pois cada tempo tem sua complexidade
específica. O grande tema é que as relações internacionais deste início de
século estão revestidas da realidade da contemporaneidade. Uma realidade
cujos sintomas políticos, econômicos, sociais, jurídicos, estratégicos e militares
revelam suas características principais de interesses individualistas e poucos
solidários. Na contemporaneidade do multilateralismo desordenado global, a
ética e a moral comum esfumam-se meio a um individualismo exacerbado. Os
pilares dessa constatação contribuem para a fortaleza da atual crise. Um Estado
forte e presente, fincado em princípios da ética, da justiça social, da moral, dos
direitos humanos indivisíveis e universais, é a única perspectiva possível, pois.
184
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Com relação a atual crise que nos carcome, tudo indica que no
diagnóstico e na proposição de soluções possíveis para vencê-la, Porto Alegre
sobrepôs-se a Davos. Não importa: que ambos comunguem e conspirem em
prol de um mundo melhor! A soma de esforços e idéias resulta fundamental para
superar este frágil momento da espécie humana. Finalmente, quando se trata
do ser humano, a sorte de cada um de nós está inexoravelmente vinculada a dos
demais. Vencer esta crise é uma tarefa atinente a todos os atores da sociedade
mundial (sobretudo, sociedade civil, Estados e organizações internacionais),
que deverão trabalhar em conjunto para superá-la, construindo e legando um
cenário mais positivo (justo, solidário e sustentável) para as gerações vindouras.
São estes os principais desafios a que se deve fazer frente o Direito
e, sobretudo, os direitos humanos nesse inicio de século. É por essa realidade e
os desafios dela decorrentes que acreditamos na prevalência da razão Humana
sobre a razão de Estado. Se existe una crise universal, esta não é simplesmente
uma crise dos Estados ou dos seus valores, trata-se de una crise do ser humano
mesmo e que só nós poderemos superar, pois ainda que muitos e muitas tenhamos
esquecido, foi o Estado criado por nós como forma de organização social e não
o contrário. Buscar novos tempos e novos rumos significa encontrar-nos, a nós
mesmos, os seres humanos, no tempo e no espaço da afirmação da dignidade
humana pelos Direitos Humanos universais, indivisíveis e complementares.
Em conseqüência, os Direitos Humanos não desaparecerão por
fazer-se respeitar através de suas normas oriundas do Direito Internacional
Público e do multilateralismo. O risco do menoscabo das normas de Proteção
Internacional da Pessoa Humana123 reside justamente no pólo oposto da
afirmação anterior; ou seja, será o abrandamento da normativa oriunda do
Direito Internacional Público e das normas de convivência harmônica e pacífica
entre os Estados ante a falsa retórica bélica e unilateral, esta última despossuída
de qualquer razoabilidade humana, o fato capaz de fazer com que os Direitos
Humanos retrocedam.
Por isso, mas que nunca, considerar as premissas do Preâmbulo
da Declaração Universal dos Direitos Humanos como norte inquestionável do
caminho a ser trilhado pela sociedade internacional faz-se urgente e necessário.
Em sendo assim, a afirmação é sim: um outro mundo é possível!
123
Compreende: o Direito dos Conflitos Armados (Direito Humanitário), Direitos Humanos e Direito dos Refugiados.
185
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DIREITO A JULGAMENTO PÚBLICO, IMPARCIAL E JUSTO:
O FORATLECIMENTO DE UM DIÁLOGO HUMANO
Ricardo Brisolla Balestreri**
Direito a julgamento público, imparcial e justo: O fortalecimento de um diálogo
humano
O art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma uma
das dimensões da realização do direito por meio do tratamento em condições de
igualdade, de forma pública, por tribunal independente e imparcial e de forma
justa. Trata-se de uma dimensão fundamental que ao longo dos últimos anos
tem logrado grandes avanços e conquistas.
Se lançarmos o nosso olhar em uma perspectiva histórica,
perceberemos que em um capítulo não tão distante da nossa construção
civilizatória, a possibilidade de acesso à justiça não era assegurada a todos os
indivíduos e que os julgamentos não eram perante tribunais independentes.
Apenas alguns estamentos sociais ligados à nobreza tinham o direito de julgarem
e serem julgados por seus pares.
Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pela
primeira vez foram proclamadas as liberdades e os direitos fundamentais do
Homem (ou do homem moderno) de forma ecumênica mas,e nos dizeres de
Bobbio, somente depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos é que
podemos ter a certeza histórica de que a humanidade partilha de alguns valores
comuns.
Desde então, a possibilidade de acesso à justiça por todos os
Licenciado em História, especialista em Psicopedagogia Clínica e em Terapia de Família. Integra o Comitê Nacional de Educação para Direitos Humanos da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos/Presidência da República e o Comitê Nacional de Combate e Prevenção à Tortura no
Brasil. Atuou como especialista contratado pelo Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no Grupo de Arquitetura do Sistema Único de Segurança Pública(Susp/Senasp).
Participou, como Consultor Independente, do Núcleo de Acompanhamento da Execução do
Programa Nacional de Direitos Humanos, a convite do Ministério da Justiça. Presidiu a Anistia
Internacional-Seção Brasileira. Nos últimos anos esteve, a convite oficial, visitando e conhecendo experiências educativas e policiais na Noruega, Holanda e Estados Unidos. No Brasil, prestou
consultoria em formação de recursos humanos a governos, prefeituras, ONGs, Fundações e colaborou com a capacitação de professores, policiais federais, civis, militares, corpos de bombeiros e guardas municipais em diversos estados. Secretário Nacional de Segurança Pública.
*
187
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
cidadãos, da estruturação de um Estado não arbitrário e não tão somente autoexecutor de penas, de tribunais laico com poder autônomo, com a possibilidade
de dirimir conflitos na esfera pública mediante critérios e princípios legais
balizadores da justiça, vem se consolidando de forma permanente e cotidiana
na nossa sociedade.
Se guiarmos nosso olhar para os últimos sessenta anos,
perceberemos que a efetivação do direito prescrito no art. 10 da Declaração
vem se edificando por meio do surgimento de novos mecanismos de acesso,
como por exemplo a mediação de conflitos e a justiça itinerante e a criação de
novas de carreiras de Estado que advogam pelos interesses da sociedade e pela
possibilidade de acesso democrático à justiça - como o Ministério Público e a
Defensoria Pública. Veremos, ainda, que inúmeras redes sociais e de cidadania
estão sendo ativadas, na medida em que realizam direitos sociais de interesse
coletivo, que políticas públicas estão sendo implantadas no sentido de ampliar
e assegurar esse acesso, que reformas estão sendo realizadas no sentido de
dar mais celeridade aos ritos processuais e de criar mecanismos mais rápidos
e acessíveis para a resolução de conflitos, como os juizados especiais, e que o
próprios tribunais estão avançando na sua concepção de gestão, de forma a
assegurar uma melhor prestação do serviço no âmbito do Judiciário.
O que se percebe, portanto, é que ao longo das últimas décadas
um importante esforço está sendo realizado no sentido de ampliar o acesso
a justiça, de atualizar e de democratizar o processo decisório judicial e de dar
transparência e independência aos Tribunais.
A professora Eliane Botelho Junqueira chamou a atenção para o
grande despertar do interesse brasileiro, no início dos anos 80, por esta temática,
não só em decorrência de um movimento internacional de ampliação do acesso
a justiça, mas sim, internamente, do processo político-social que, então, se
iniciava nas pressões, alertando que:
“ainda que durante os anos 80 o Brasil, tanto em termos
da produção acadêmica como em termos das mudanças
jurídicas, também participe da discussão sobre direitos
coletivos e sobre a informalização das agências de resolução
188
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de conflitos, aqui estas discussões são provocadas não pela
crise do Estado de Bem Estar Social, como acontecia então
nos países centrais, mas sim pela exclusão da grande maioria
da população de direitos sociais básicos, entre os quais o
direito à moradia e à saúde.”
O que se percebia, nesse contexto, era um grande distanciamento
entre a população mais carente ou desprivilegiada e o Poder Judiciário,
considerado um dispositivo privado das elites e com bloqueios simbólicos de
acesso a mecanismos estatais de intermediação de conflitos.
Após a Constituição Federal de 88, consolidaram-se, ainda, novos
institutos de acesso ao Poder Judiciário - como o mandado de segurança coletivo
- que possibilitam, por exemplo, aos movimentos sociais, romper com os limites
formais da igualdade legal formal, aprofundar a democratização do acesso a
justiça e ampliar a cidadania.
Contudo, em um país com profundas desigualdades sociais como o
nosso, com ranços patrimonialistas, elitistas, machistas, racistas, homofóbicos e
discriminadores em diversos outros aspectos, ainda clama a urgência de avanços
nesse campo.
Boaventura de Sousa Santos sugere que a estratégia mais promissora
de reforma da justiça está na “procura dos cidadãos que têm consciência de seus
direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados.
Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem
esotérica, o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante,
os edifícios esmagadores, as labirínticas secretarias”.
Alguns modelos jurídicos começam a despontar, ainda que
minoritariamente, e agregam ao direito um germe pedagógico e emancipatório.
Esses modelos ampliam a noção de direito, assumindo sua tessitura aberta, de
constante devir, e sua prática dialógica. Tais modelos pressupõem uma relação
de alteridade, sem hierarquias, de efetiva escuta, de forma que o julgador (juiz
- autoridade localizada no Estado) a partir de uma pauta restrita (o código, a
lei), não se sobreponha em relação a sujeitos que não são reconhecidos em
suas identidades (ainda não reconhecidos plenamente como seres humanos e
cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por meio da realização de seus
189
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
direitos. É o caso da mediação, da chamada justiça restaurativa e dos modelos
de justiça comunitária. Essas experiências resgatam a humanidade do direito na
medida em que colocam o indivíduo na posição de sujeito e não de objeto numa
mediação judicial.
Nesse sentido, a juíza Gláucia Falsarelli Foley se refere ao conjunto de
movimentos necessários para impulsionar a universalização do acesso à Justiça,
pleiteando, assim, por uma Justiça sem jurisdição porque efetivamente operada
na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade. Ou, como
ela diz em outro lugar, para não perder de vista o seu potencial emancipatório.
Isso porque, completa, “desde já se verifica certa resistência à proposta de se
reconhecer, valorizar e estimular novos instrumentos para a democratização da
própria realização da justiça, restituindo à comunidade e aos seus cidadãos o
exercício da autonomia política, por meio da gestão dos próprios conflitos”.
Tudo isso mostra, como o faz Boaventura de Sousa Santos, o quanto
o “acesso à justiça é um fenômeno muito mais complexo do que à primeira
vista pode parecer, já que para além das condicionantes econômicas, sempre
mais óbvias, envolve condicionantes sociais e culturais resultantes de processos
de socialização e de interiorização de valores dominantes muito difíceis de
transformar”.
O trabalho acadêmico da promotora Luisa de Marillac apontou a
dimensão pedagógica do direito sob a ótica de resgate do humano, na relação
jurídica, que vem sendo sistematicamente sonegado pelas práticas jurídicas
burocráticas e tecnicistas centradas na atividade estatal. Segundo a autora:
“O direito, monopólio do Estado, transforma o conflito
em lide e retira das pessoas a possibilidade de aprender a
partir do conflito, de construir, com o outro, alternativas
de convívio. Esse desfalque não é, muitas vezes, sentido
conscientemente, presentes e fortes que são as crenças
produzidas de que uma decisão jurídica tem caráter de
superioridade, em razão da técnica e da verdade científica
de que se reveste. A consciência da ideologização do direito,
proposto pela crítica, levanta a questão, ao menos para os
juristas, do mito da cientificidade das decisões jurídicas.
190
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Para os destinatários do direito, no entanto, é preciso mais. É
preciso que as práticas jurídicas sejam reformuladas. Tal qual
o movimento crítico que denunciou a pompa e os antiquados
recursos pedagógicos dos cursos de direito, é preciso rever
– já com atraso – a pompa e os antiquados procedimentos
judiciais.
“Excelências”, “Meritíssimos” e “Doutores”
precisam abrir espaço para os seres humanos carentes de
comunicação, obscurecidos atrás de altos balcões e de mesas
imponentes. Esse desvelamento, de duas faces, rejuvenesce
o profissional do direito e dignifica as pessoas que recorrem
ao sistema judiciário.”
Segundo a autora, quando direito e educação se fundem, a partir
da discussão de igualdade e diferença, se percebe o quanto o direito tem
negligenciado sua dimensão pedagógica, não primando por práticas dialógicas e
horizontalizadas, que reconheçam o valor de todos os sujeitos envolvidos. Assim,
ultrapassando a noção do direito como técnica ou ciência neutra de regulação
social, e transcendendo o aspecto ideológico do discurso jurídico, revelado
pela teoria crítica, uma dimensão pedagógica do direito reivindica a prática da
autonomia. O diálogo – o encontro com o outro – aparece como meio propício
à devolução à sociedade, às pessoas, da consciência de seu poder de se dar a si
as próprias normas.
A dimensão pedagógica do direito, portanto, resgatando sua
humanidade, exige horizontalidade em suas práticas. Descobrir e avançar em
métodos e práticas que possibilitem esse processo horizontal e dialógico, que
auxilie na construção da autonomia, é tarefa ampla que somente pode se dar
pelo diálogo e compromisso dos novos teóricos e práticos do direito. Desafio
importante para os próximos sessenta anos da Declaração Universal, no sentido
de alargar o conceito de acesso à Justiça como o fortalecimento de um diálogo
humano.
Boaventura de Sousa Santos, uma vez mais, nos provoca a alargar
o conceito de acesso à Justiça e pensá-lo como um procedimento de tradução,
ou seja, como uma estratégia de mediação capaz de criar uma inteligibilidade
191
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o reconhecimento de
saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades dos sujeitos
que buscam superar os seus conflitos.
Esta mediação leva, por meio do trabalho de tradução, a criar
“condições para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos
num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício
de experiência”, mas que buscam criar sentidos e direções para práticas de
transformação social e de realização da justiça.
Fora desse contexto emancipatório, o que resta é a configuração
do acesso à justiça como objeto delimitado, mesmo considerados os dois níveis
de acesso: igualdade constitucional de acesso representado ao sistema judicial
para resolver conflitos e garantia e efetividade dos direitos no plano amplo de
todo o sistema jurídico.
Atingimos um estágio de desenvolvimento do Direito Humano que
não mais nos permite conformar-nos com uma realidade que não busque uma
ampliação da consciência de que todos os seres humanos são sujeitos de direito.
Assim, para que assegure-se um julgamento público, imparcial e
justo, que possa, de fato, emancipar os sujeitos e garantir a realização do que
se lhes é devido, imprescindível é levar-se em consideração o fortalecimento
do diálogo humano e da dimensão pedagógica do direito, traduzindo-se, em
tal campo, os valores dos direitos humanos e apontando-se para a construção
de uma sociedade mais democrática e igualitária no respeito e celebração das
diferenças.
192
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
DIREITO DO INDIVÍDUO EM RELAÇÃO
AO SEU GRUPO E AOS BENS
Romany Roland Cansanção Mota**
Relevante registrar que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos - DUDH é o documento traduzido no maior número de línguas no
mundo124. Esse fato, por si só, justifica a comemoração de seu sexagésimo
aniversário. Contudo, a vanguarderia Ordem dos Advogados do Brasil, guardiã
da cidania, celebra a efeméride realçando que 2008 é o ano em que realiza a XX
Conferência Nacional125; enquanto a Constituição Cidadã completa vinte anos de
promulgada.
Por certo muita coisa mudou desde que Austrasésilo de Athayde
se tornou o relator, pelo Brasil, do texto da Declaração Universal126, que arrola
os direitos básicos e as liberdades fundamentais que pertencem a todos os
seres humanos, sem distinção de raça, cor, sexo, idade, religião, opinião política,
origem nacional ou social ou qualquer outra.
A DUDH reconhece solenemente (a) a dignidade da pessoa
humana, (b) o ideal democrático; (c) o direito de resistência a opressão; e (d) a
concepção comum desses direitos; proclamando em seus trinta artigos direitos
civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.
É fácil vislumbrar a sistemática adotada para a redação da Carta
da Liberdade, Igualdade e Fraternidade (DUDH); senão vejamos: (a) princípios
gerais – artigos 1º e 2º; (b) direitos de ordem individual – artigos 3º a 11; (c)
direito do indivíduo em relação ao seu grupo e aos bens – artigos 12 a 17; (d)
direitos políticos, faculdades espirituais e liberdades públicas – artigos 18 a
21; (e) direitos econômicos, sociais e culturais – artigos 22 a 28; (f) deveres do
indivíduo com a comunidade (direitos de terceira geração); por fim, (g) o artigo
30 afirma que a interpretação de qualquer dispositivo contido na DUDH somente
pode ser feito em benefício dos direitos e das liberdades nela proclamados.
Os sessenta anos de DUDH marca, nos Estados Unidos, a eleição
Conselheiro Federal pela OAB/AL, ex-Presidente CNDH/OAB, 1998.
Guinness Book of World Records, - ed 2004 – (http://pt.wikipedia.org/wiki/)
125
A I Conferência Nacional da OAB foi em 1958; portanto, há 50 anos.
126
50 Anos da Declaração Universal de Direitos Humanos: conquistas e desafios, OAB, CNDH,
1998, p. 11.
*
124
193
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de Obama como o primeiro Presidente negro que travará luta pelo equilíbrio
financeiro mundial (Lincoln enfrentou a Guerra da Secessão que impediu a
divisão do país; enquanto Luter King enfrentou difícil luta racial, na defesa dos
direitos humanos – ambos vítimas de assasinatos); enquanto o mundo participa
cada vez mais das conquistas tecnológicas de países diversos e convive com a
vaidade científica de alguns; convém uma reflexão alargada no sentido de que a
chamada “globalização” não começou agora, como dizem alguns.
Contrariando a tese dos defensores da “tecnologia avançada” – que
é importante para todos – afirmamos, faz tempo, que a “globalização” formal,
surgiu, nasceu, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH.
Reconhecemos até que a “globalização” – de conteúdo moral
– através dos milênios pode ter surgido com a Maçonaria; pois, apesar dos
landmarks, a Ordem Maçônica sempre orientou a seus “iniciados a nada gravar
ou escrever”, em razão dos eventuais opositores; todavia, independente do fluxo
ou refluxo dos movimentos sociais, sempre defendeu a Liberdade, Igualdade e
Fraternidade.
Mais recentemente, no início do Século XX – 1917 – um grupo de
integrantes da Maçonaria fundou a Associação Internacional de Lions Clubes
sempre procurando universalizar a Igualdade entre os cidadãos em seus “clubes
de serviço” enquanto entidade de direito privado. O sucesso de tal instituição
foi tanto que hoje está presente em 204 países e a Associação de Lions Clubes
é considerada a melhor ONG do planeta127; enquanto a ONU é integrada por
aproximadamente 150 países-membros.
Não há negar, contudo, que no âmbito do Direito Internacional a
iniciativa da Terceira Assembléia da ONU que naquela época reuniu 58 países no
Pallais Chaillot em Paris e culminou com a proclamação da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, se consitui no marco formal inaugural da chamada
globalização; pois, como afirma Ricardo Balestreri128 “pela primeira vez um
paradigma solidário, fundado na igualdade de direitos, foi assumido de forma
praticamente consensual pelo conjunto de países”.
Nesse contexto de conteúdo moral universal que se incere como
Pesquisa do “Finantial Times” solicitada pela ONU
50 Anos da Declaração Universal de Direitos Humanos: conquistas e desafios, OAB, CNDH,
1998, p. 157
127
128
194
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
marco incial da globalização, a nacionalidade proclamada no artigo 15 que
dispõe: “I - Todo homem tem direito a uma nacionalidade; II - Ninguém será
arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de
nacionalidade”; há de merecer permanente reflexão, estudo e defesa.
Por sua amplitude, o tema nacionalidade, enseja oportunidade
para inúmeros aspectos, entre eles: conceitos; aquisição ( originária, derivada,
tácita); métodos de determinação – jus sanguinis, jus soli e misto (que combina
filiação com o lugar de nascimento) -; naturalização – Lei nº 818/49 -; tipos de
naturalização; perda da nacionalidade; situação do estrangeiro no Brasil – Lei nº
6.815/80....
De logo se percebe que nacionalidade tem importância para o Direito
Interno como Internacional; pois, se constitui num conjunto de prerrogativas
de Direitos Fundamentais, já que não são apenas comuns aos cidadãos de
determinado país; mas de todo ser humano do planeta, pugnando-se que a
humanidade possa concretizá-los objetivando os princípios de Liberdade,
Igualdade e Fraternidade. Por isso afirmamos que antes da globalização
tecnológica, financeira ou virtual, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
– DUDH se constitui no paradigma de globalização como expressão de contexto
moral.
Não podemos esquecer que pelo próprio conceito, nacionalidade
é “Substantivo abstrato, formado do radical latino “natio”, que significava
nascimento, do verbo latino “nascere”, nascer. Posteriormente, passou a
significar o conjunto dos nascidos de uma mesma linhagem. Em sentido jurídico,
é o vinculo permanente que liga uma pessoa física ou moral a uma nação, como
parte integrante de sua dimensão pessoal, quer dizer, de seu povo”
Nacionalidade pode ser entendida, ainda, como “de direitos e
deveres, públicos e privados, que atribuem ao indivíduo a qualidade de cidadão”
ou qualidade ou condição de nacional da pessoa ou coisa: nacionalidade da
mulher casada com estrangeiro; nacionalidade de um navio, de um rio”.
Não podemos esquecer, ainda, que naturalização é o é ato pelo qual
o cidadão estrangeiro renuncia à sua condição de cidadão de seu país e adota a
nacionalidade de outro país, ou ainda, ato gracioso pelo qual o governo de um
Estado concede ao estrangeiro nele domiciliado, que o requer, satisfazendo os
195
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
requisitos legais e renunciando à nacionalidade de origem, os mesmos direitos
e prerrogativas de que gozam os seus nacionais; e por fim, que é o meio mais
comum de perda da nacionalidade, visto que nela o indivíduo demonstra
claramente o seu desejo de mudar de nacionalidade.
Quando voltamos os olhos para a nacionalidade, contatamos que no
Brasil há três formas de aquisição de nacionalidade: a) pelo nascimento; b) pela
nacionalização; c) pela naturalização. É válido o registro de que são brasileiros
natos: a) todos os indivíduos nascidos no território nacional, ainda que de pais
estrangeiros, exceto se estes estiverem a serviço de seu país; b) os filhos de
brasileiros, nascidos no exterior, se os pais estiverem a serviço do Brasil; c) filhos
de brasileiro, ou brasileira, nascidos no exterior se vierem a residir no Brasil e
optarem pela nacionalidade brasileira dentro de quatro anos após atingirem a
maioridade.
Já a nacionalidade da pessoa física pode ser chamada de: a)
originária - quando decorre do fato do próprio nascimento; b) adquirida - a que se
verifica por vontade expressa do indivíduo capaz, que renuncia à nacionalidade
de origem; c) tácita - a que resulta da lei (vg. naturalização, casamento).
O indivíduo é sujeito do próprio Estado em razão de sua
nacionalidade; portanto, o povo, sem o qual o Estado não pode existir nada mais
é do que o “conjunto dos nacionais”. Todo o indivíduo deveria ter apenas uma
nacionalidade; mas encontramos pessoas sem nacionalidade – apátridas, ou
com mais de uma nacionalidade.
Por outro lado, convém registrar que em sentido estrito somente se
pode falar em nacionalidade em relação ao ser humano – pessoa física; mas, por
extensão é comum se fazer referência à nacionalidade de pessoa jurídica, sendo
comum hoje a expressão “pessoa jurídica nacional ou estrangeira”.
Desnecessário tecer maiores comentários sobre os métodos de
determinação da nacionalidade; pois, são auto-explicativas as referências aos
sistemas jus sanguinis, jus soli e o sistema misto; porém, convém registrar que
a aquisição automática de nacionalidade pode ser aplicada a cidadãos como
resultado do reconhecimento, da adoção ou legitimação.
Noutro norte, as condições gerais para que um estrangeiro se
naturalize brasileiro são: 1.º prova de que possui capacidade civil, segundo a
196
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
lei brasileira; 2.º residência continua no território nacional, pelo prazo mínimo
de cinco anos; 3.º saber ler e escrever a língua portuguesa; 4.º exercício de
profissão ou posse de bens suficientes à manutenção própria e da família; 5.º
bom procedimento; 6.º ausência de pronuncia ou condenação no Brasil; prova
de sanidade física. Os portugueses são dispensados da 4.ª condição, sendo-lhes
exigida apenas residência ininterrupta de um ano. A concessão é faculdade do
Presidente da República através de ato referendado pelo Ministério da Justiça.
Em linhas gerais, a naturalização pode ser a) individual - quando
relativa apenas a determinada pessoa; b) coletiva - a que incide sobre uma
população ou parte desta, em virtude de sua anexação à de outro Estado; c)
ordinária - aquela concedida ao estrangeiro que não goza dos mesmos direitos
concedidos aos naturais do país; d) extraordinária - a que atribui ao naturalizado
todos os direitos civis e políticos inerentes aos nacionais; e) tácita - adquirida
por uma lei especial, de caráter geral; f) expressa - aquela que é conferida por
decreto do governo do país a que o alienígena se radicou, mediante pedido
deste. Entre nós, adquire, tacitamente, a nacionalidade do país o estrangeiro
que nele reside, possui bens imóveis, for casado com brasileira ou tiver filho
brasileiro.
Já a perda da nacionalidade pode ocorrer, em síntese: a) por
mudança de nacionalidade; b) pelo casamento; c) pela naturalização; d) por
cessão ou anexação territorial; e) pela renúncia pura e simples; f) por algum
ato incompatível com a qualidade de nacional ou considerado como falta; g)
pela presunção de renuncia em conseqüência de residência prolongada em país
estrangeiro, sem intenção de regresso.
À guisa de conclusão, registrando que vários autores abordam o
tema129; pode-se afirmar que o direito de escolher sua nacionalidade é um dos
direitos primordiais do homem, desde que ele seja juridicamente capaz, e desde
que seja-lhe compensador fazer tal mudança, ou, conforme visto, convém que a
pessoa avalie se é-lhe proveitoso inclusive acumular títulos de nacionalidades.
Filiando-nos à corrente daqueles que entendem que Direitos
Humanos é o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano
129
ACCIOLY, Hildebrando Manual de Direito Internacional Publico. Ed. Saraiva. Pequena Enciclopedia de Moral e Civismo. Fernando Bastos de Ávila – MEC. Enciclopedia Saraiva do Direito.
Prof. R. Limongi França - Ed. Saraiva. NUNES, Pedro. Dicionário de Tecnologia Jurídica.
197
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção
contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de
vida e desenvolvimento da personalidade humana é que nessa comemoração
aos sessenta anos de proclamação da DUDH a Ordem dos Advogados do Brasil
oportuniza mais esta reflexão; a fim de que cada cidadão esteja apto a ser um
defensor permanente dos direitos humanos, contribuindo de forma efetiva para
a educação da humanidade.
Devemos todos recordar que são características dos direitos
humanos: (a) Imprescritibilidade - são imprescritíveis, ou seja, não se perdem
pelo decurso de prazo; (b) Inalienabilidade - não há possibilidade de transferência,
seja a título gratuito ou oneroso; (c) Irrenunciabilidade - não podem ser objeto de
renúncia (polêmica discussão: eutanásia, aborto e suicídio); (d) Inviolabilidade
- impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por
ato das autoridades públicas, sob pena de responsabilidade civil, administrativa
e criminal; (e) Universalidade - a abrangência desses direitos engloba todos
os indivíduos, independente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou
convicção político-filosófica; (f) Efetividade - a atuação do Poder Púbico deve
ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstas, com
mecanismos coercitivos; e (g) Indivisibilidade - porque não devem ser analisados
isoladamente. Por exemplo: o direito à vida, exige a segurança social (satisfação
dos direitos econômicos).
Lembrando que negar o direito a nacionalidade é uma forma de
tortura, congratulando-nos com a guardiã da cidadania nacional, a operosa
Ordem dos Advogados do Brasil e com seu battonier Cezar Brito e recordamos
Peter Gabriel ao afirmar: “quando se olha dentro dos olhos e se aperta as mãos
de alguém que foi torturado, é muito difícil virar as costas à divulgação dos
direitos humanos”.
198
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO
Sylvia Helena Steiner**
Após sete anos da entrada em vigor do Estatuto de Roma, e já
contando com 111 Estados Partes que o ratificaram, vejo que o Tribunal Penal
Internacional é ainda uma instituição pouco conhecida em nosso país. Na
condição de juíza brasileira junto ao Tribunal Penal Internacional, creio ser
importante uma vez mais aproveitar o espaço concedido pela Ordem dos
Advogados do Brasil para dizer algumas palavras sobre o papel do Tribunal
Penal Internacional, nos dias atuais, e sobre a importância da implementação do
Estatuto de Roma em nosso país.
O tema é extremamente amplo, e vejo-me obrigada a fazer
escolhas, já que seria impossível referir-me a todos os aspectos do Estatuto.
Assim, e apenas como uma exposição introdutória, nos limites pertinentes aos
temas selecionados para a presente obra, pretendo dizer, em poucas palavras, o
que é exatamente o Tribunal Penal Internacional.
Vou começar a falar um pouco sobre a história que conduziu a
comunidade internacional à criação do Tribunal Penal Internacional.
O Tribunal Penal Internacional não nasceu de um momento para
outro como fruto de idéias brilhantes de algumas mentes privilegiadas. Nasceu
como fruto de um longo processo histórico, um processo que podemos chamar
de internacionalização da proteção dos direitos fundamentais da pessoa
humana.
Costumo, juntamente com alguns outros autores, fixar as
primeiras sementes desse processo de internacionalização da proteção de
direitos fundamentais nos primeiros tratados, bilaterais e multilaterais, que
foram assinados no início do século XIX e que diziam respeito à eliminação da
escravatura e à coibição do tráfico de escravos.
Pela primeira vez, desde o ponto de vista do cenário internacional,
Estados se reuniram e contrataram compromissos que não envolviam os seus
interesses particulares, mas sim ações de terceiros Estados não-participantes
*
Sylvia Helena Steiner é Juíza do Tribunal Penal Internacional e Desembargadora Federal aposentada.
199
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
daqueles acordos, e que iriam sofrer as consequências desses tratados. Essa,
no meu entender, é a primeira semente desse processo de internacionalização
e é de uma importância fundamental porque, pela primeira vez, colocava-se
a comunidade internacional como parte legítima para defender interesses de
comunidades que não eram as de seus nacionais.
Pouco tempo depois, mas ainda em meados do século XIX, as
primeiras Convenções de Genebra, de 1864, vieram à luz para regular o direito
de guerra, também elegendo determinados grupos de pessoas como objeto de
proteção não só dos Estados, mas da comunidade internacional.
Portanto, essas são as duas mais importantes sementes plantadas
num determinado momento histórico e que representavam a outorga de
proteção internacional a toda uma categoria de entidades, de órgãos ou de
grupos de pessoas e, ao mesmo tempo, impunham uma limitação ao poder
soberano absoluto dos Estados, inclusive em relação à condução das hostilidades
em regiões de conflito.
Falar, em meados do século XIX, de limitação dos poderes absolutos
dos Estados frente à necessidade de preservação de um patamar mínimo de
ética no relacionamento desses Estados com grupos de indivíduos, e falar na
existência de certos direitos fundamentais inalienáveis de todo e qualquer ser
humano, que deveriam ser colocados, sob quaisquer circunstâncias, acima
das razões de Estado, foram os grandes avanços do Direito Internacional e as
sementes desse processo de internacionalização ao qual me referi.
Ao mesmo tempo, desenvolveram-se as idéias do direito dos povos
à autodeterminação, à proteção de todos contra os excessos praticados pelo
poder estatal, o direito à segurança das comunidades, inclusive em tempos e em
situações de conflito armado. Essas as idéias que foram plantadas.
O reconhecimento da existência de certos direitos fundamentais
e inalienáveis dos seres humanos, considerados individualmente ou como
coletividades, foram irremediavelmente integrados à nossa civilização e não há
como voltar atrás.
Também é um processo que não tem volta, um processo irreversível,
a idéia de que esses direitos inalienáveis merecem a proteção dos nossos
Estados como responsáveis pela proteção dos seus nacionais, mas que, quando
200
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
falham os nossos Estados, esses mesmos direitos têm de ser protegidos pela
comunidade internacional como um todo.
A Primeira Guerra Mundial marcou um retrocesso nesse processo
evolutivo do Direito Internacional. No entanto, já ao final daquele conflito, surgia,
pela primeira vez, a idéia da criação de um tribunal internacional destinado a
julgar os acusados da prática de violações às leis e aos costumes de guerra.
No entanto, por força ainda dos estreitos conceitos de soberania, dos
antigos institutos do Direito Internacional, como, por exemplo, o da extradição,
o Tribunal de Leipzig não alcançou seus objetivos, tendo em vista que lhe foi
negada a entrega dos principais acusados da prática de crimes naquela situação
de conflito.
Muito pouco tempo depois, a humanidade passa pelos horrores
da 2ª Guerra Mundial. Esses horrores, que assumiram proporções não apenas
numéricas, traduzidos no cometimento de atrocidades contra comunidades
inteiras, fizeram com que a comunidade internacional, de uma vez por todas,
decidisse que atos como os praticados durante o conflito armado não poderiam
mais ser considerados como violações de direitos fundamentais que pudessem
ser reprimidas ou punidas apenas pela legislação interna, ou pela vontade dos
Estados.
Foi neses momento que a comunidade internacional decidiu-se
pela instalação do Tribunal de Nuremberg. Sabemos todos nós as críticas que lhe
foram dirigidas — a maior parte delas, aliás, merecida. À época o tribunal, dentro
da ótica dos avanços do Direito Penal contemporâneo, poderia ser considerado
como um típico tribunal de exceção. Foi criado após os fatos, para julgamento de
crimes que não haviam sido até então tipificados, para julgamento dos vencidos
pelos vencedores, em afronta ao princípio da legalidade estrita dos delitos e das
penas. Conhecemos todas as críticas.
No entanto, desde o ponto de vista da evolução do Direito Penal
Internacional, um mérito não pode ser retirado ao Tribunal de Nuremberg:
o de ter sido um marco ao deixar gravada, de uma vez por todas e de forma
irreversível, a idéia de que a comunidade internacional tinha e tem o direito de
processar e julgar aqueles que cometem crimes que ponham em risco a paz e a
sobrevivência da própria humanidade.
201
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A humanidade, como vítima, passa a ter portanto legitimidade,
no campo do direito internacional, para exigir ou para proceder ao processo e
julgamento dos acusados da prática dos mais graves crimes contra a paz e contra
a sua própria segurança.
Logo após a 2ª Guerra Mundial, e com os trabalhos do Tribunal de
Nuremberg ainda em andamento, a Comissão de Direito Internacional da recém
criada ONU começa a estudar e a redigir o primeiro anteprojeto da criação de
um tribunal penal internacional permanente.
Entretanto, somente na década de 90 a idéia de criação de um
tribunal penal internacional foi reavivada pela instalação, por meio de resoluções
do Conselho de Segurança da ONU, dos dois tribunais ad hoc, um deles criado
para processo e julgamento dos acusados da prática de crimes no território da
extinta Iugoslávia130, e o Tribunal de Ruanda131, também criado para processo e
julgamento dos acusados da prática de crimes no território deste Estado.
Sem dúvida, os tribunais ad hoc já significaram um avanço muito
grande em relação ao Tribunal de Nuremberg e ao Tribunal de Tóquio, os tribunais
do pós-guerra. Já não há mais vencedores julgando os vencidos, mas tribunais
criados e instalados pelo órgão internacional que representa a comunidade
internacional como um todo, entidade que escolhe juízes representantes dos
diversos Estados e, portanto, com o peso e a responsabilidade da independência
e da imparcialidade. Os crimes já estão suficientemente definidos em diversos
tratados internacionais, como a Convenção sobre o Genocídio de 1948, as
Convenções de Genebra de 1949, a Convenção contra a Tortura de 1984, a
Convenção contra o Apartheid de 1973 . Portanto, estavam superadas a maior
parte das críticas que eram dirigidas aos tribunais do pós-guerra.
No entanto, persistia como crítica uma espécie, digamos assim, de
vício de origem. O Conselho de Segurança da ONU é em sua essência o órgão
político da Organização das Nações Unidas. Pela Carta das Nações Unidas, em
seu Capítulo VII, é o órgão responsável pela manutenção e pela restauração
da paz na comunidade internacional. No entanto, por sua função política,
evidentemente é um órgão dotado de seletividade. O Conselho de Segurança
da ONU, por intermédio de suas resoluções, determina a instalação de tribunais
130
131
S/Res/827- 25 May 1993
S/Res/955- 8 November 1994
202
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
ad hoc onde quer e quando quer. Trata-se de decisão política. Não faço, nesse
ponto, nenhuma crítica ao papel político que necessariamente deve ser exercido
por um órgão pertencente às Nações Unidas.
Foi em razão da instalação dos dois tribunais ad hoc que finalmente
ressurgiu o anteprojeto de criação de um tribunal penal internacional
permanente, abolindo-se assim toda e qualquer possível crítica quer quanto ao
seu funcionamento, quer quanto à sua origem, quer quanto à sua legitimidade
perante a comunidade internacional. O anteprojeto teve andamento e culminou
com a convocação da Conferência de Roma, em 1998. A partir daí, sabem todos
que a comunidade internacional, representada na ocasião por mais de uma
centena de Estados, assinou o Estatuto de Roma e criou, então, o Tribunal Penal
Internacional.
O tribunal não tem jurisdição retroativa. Só pode exercer sua
jurisdição sobre fatos ocorridos após sua entrada em vigor, em julho de 2002.
Para os Estados que ratificaram o Estatuto após essa data, a entrada em vigor se
dá a partir da ratificação. Os juízes são eleitos pelos representantes dos Estados
Partes e, portanto, pela própria comunidade internacional representada pela
Assembleia dos Estados Partes, e recebem um mandato por tempo certo, com
a responsabilidade da independência e da imparcialidade, inclusive em relação
aos países de que se originam.
O Tribunal foi criado por um tratado e, portanto, estabelecido
dentro dos parâmetros do Direito Internacional, na medida em que os Estados
a ele se submetem através do exercício voluntário de um dos seus atos típicos
de soberania: a ratificação. No Estatuto estão descritos os delitos e as penas,
respeitado integralmente o princípio da estrita legalidade dos delitos e das penas,
e estão reconhecidos todos os direitos fundamentais das pessoas acusadas.
Sem dúvida, o Estatuto de Roma traz um modelo daquilo que
o nosso sistema costumou apelidar de sistema garantista de Direito Penal e
Processual Penal.
Preserva o estatuto de Roma o princípio da legalidade dos
delitos ( artigo 22) e das penas ( artigo 23). O princípio da legalidade importa,
igualmente, na proibição do recurso à analogia, estando assim previsto, no
artigo 22, parágrafo 2, que “em caso de ambiguidade, a lei será interpretada em
203
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
favor da pessoa objeto de investigação, processo ou condenação”. O princípio
de necessidade vem treconhecido já no Preâmbulo do Estatuto, ao prever a
jurisdição do tribunal sobre os crimes mais graves. O artigo 17, parágrafo 1,
alínea “c”estabelece ainda um segundo patamar de gravidade, como uma das
condições de admissibilidade de um caso. A irretroatividade do Estatuto (artigo
11) 132, e a ultra-atividade de lei mais benéfica ( artigo 24 ) completam o quadro
de garantias penais.
No quadro das garantias processuais, os artigos 55 e 67 do Estatuto
estabelecem o rol de direitos processuais mínimos, aplicáveis desde a fase
de investigações. Para não alongarmos demais este tópico, basta citarmos a
presunção de inocência, o direito ao silêncio, a ser assistido por advogado de sua
escolha, o dever de o Tribunal arcar com as despesas da defesa em caso de réu
indigente, o direito à interpretação e à tradução das principais peças processuais,
o direito de repergunta às testemunhas de acusação, dentre outros. O ônus
da prova repousa integralmente sobre o Promotor, que é também obrigado a
investigar as provas dirimentes ou exculpatórias.
Cumpre sempre lembrar que o artigo 21 do Estatuto de Roma,
ao elencar as fontes de direito aplicável pelo tribunal, deixa expresso, em seu
parágrafo 3, que a aplicação e a interpretação de quaisquer das normas do
Estatuto, das Regras de Procedimento e dos Elementos dos Crimes, além das
demais fontes nele previstas, há de ser feita de forma compatível com os direitos
humanos internacionalmente reconhecidos.
O mais importante de tudo: o tribunal tem caráter complementar,
não se sobrepõe aos sistemas judiciais internos de nossos Estados. Ele não veio
para se sobrepor nem para substituir os sistemas judiciais internos dos nossos
Estados.
Esse tribunal, portanto, preserva o respeito à soberania dos Estados,
e coloca à disposição da comunidade internacional, como um todo, um sistema
complementar de jurisdição, de modelo garantista, que pode ser acionado
quando o sistema doméstico não queira ou não possa atuar de forma genuína.
Merece ainda destacar que o Estatuto de Roma não reconhece as
132
O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1 de julho de 2002. Portanto, somente crimes cometidos após essa data podem ser considerados como dentro da competência temporal do Tribunal Penal Internacional.
204
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
imunidades tradicionalmente acolhidas pelo direito internacional. Seu artigo
27 estabelece que o Estatuto aplica-se igualmente a todas as pessoas, sem
qualquer distinção derivada da posição oficial ocupada pelo suspeito da prática
de qualquer dos delitos ali descritos. Na luta contra a impunidade dos mais
graves crimes cometidos contra a paz e a sobrevivência da humanidade, não
se poderia excepcionar o processo e julgamento dos mais altos líeders políticos
e militares. A legalidade da exceção às regras de imunidade foi reconhecida
em recente julgado da Corte Internacional de Justiça, órgão judiciário máximo
das Nações Unidas, ao ressalvar a juurisdição exercida pelos tribunais penais
internacionais.133
O Tribunal Penal Internacional é portanto, sem dúvida alguma, o
passo mais avançado já dado na luta pela quebra do ciclo de violência e do ciclo
de impunidade no cenário internacional.
Diante desse quadro, poderíamos perguntar: por que mais e mais
Estados devem ratificar o Estatuto de Roma? As respostas poderiam ser muitas.
Repito o que disse anteriormente: não é minha intenção alongar em demasia
minha exposição. Tentarei alinhavar apenas dois aspectos que considero os mais
relevantes.
Diria primeiro que a paz é condição de sobrevivência de toda a
humanidade. Quando se fala em paz, não se fala de qualquer paz, não se fala
da Pax Romana, a paz imposta pelos vencedores aos vencidos. Também não se
fala da paz negociada à revelia das vítimas, aquela paz pela qual o poder e os
despojos simplesmente são divididos entre os que deixaram como rastro a vida
de milhares de pessoas, e em que as vítimas não têm voz nem vez. Essa paz é
passageira e não cala a voz das vítimas.
Falamos aqui da paz duradoura, aquela que concilia, aquela
que restaura a confiança da comunidade na Justiça. É a paz que decorre da
International Court of Justice, the case the Democratic Republic of Congo v. Belgium, Judgement of 14 February 2002. No seu parágrafo 61, a Corte estabelece que”( ...) the imunity from
jurisdiction enjoyed by incumbet Ministers of Foreign Affairs does not mean that they enjoy
impunity in respect to any crimes they might have committed, irrespective of their gravity. Jurisdictional immunity may wll bar pprosecution for a certain period or for certain offences; it
cannot exonerate the person to whom it applies from all criminal responsibility. Accordingly,
the immunities enjoyed under international law by an incumbent or former Minister of Foreign
Affairs do not represent a bar to criminal prosecution in certain circumsntances. The Court refers
to circumstances where (...) such persons are subject to criminal proceedings before certain international criminal courts, where they have jurisdiction.”
133
205
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
investigação independente dos fatos, da justa punição dos criminosos, e da
devida reparação às vítimas.
O compromisso dos Estados democráticos na busca dessa paz
passa necessariamente pelo compromisso da punição dos agressores e pelo
compromisso de reparação às vítimas.
E é nessa busca de paz que se insere o Tribunal Penal Internacional.
Poderia, talvez, como segundo argumento e de ordem mais
pragmática, lembrar que a adesão a um sistema internacional de justiça, como o
proposto pelo Tribunal Penal Internacional e pelo Estatuto de Roma, é a melhor
garantia de nossos Estados quanto ao respeito à sua tão invocada soberania.
O Tribunal Penal Internacional, como já dito, tem caráter
complementar. Não substitui e nem tem prevalência sobre a jurisdição interna
de nossos Estados, ao contrário dos Tribunais ad hoc — e isso muitos não
sabem. Quando ouvimos discussões sobre eventuais inconstitucionalidades ou
dificuldades de ordem legislativa que poderia trazer o Estatuto de Roma em
relação às nossas legislações internas, esquecemos-nos de ter em mente que
os tribunais ad hoc têm jurisdição prevalente sobre as jurisdições internas dos
Estados. É jurisdição imposta aos Estados pelo Conselho de Segurança da ONU,
sem que se pergunte previamente se os Estados estariam de acordo ou não com
as suas regras, de acordo ou não com as suas penas, de acordo ou não com o seu
sistema punitivo e com as suas regras de procedimento.
Os tribunais ad hoc, aos quais todos os Estados estão submetidos
pelo simples fato de pertencerem à Organização das Nações Unidas, consistem,
em tese, um “perigo” muito maior à soberania nacional do que o Tribunal Penal
Internacional, um tribunal com jurisdição complementar à qual nos submetemos
voluntariamente, através do ato de ratificação, que é ato típico de exercício da
soberania nacional.
Creio que, quanto a esse aspecto, nada mais precisaria ser dito.
Avanço um pouco mais para perguntar: se já ratificamos o Estatuto
de Roma134, porque temos de implementá-lo em nossa legislação interna, na
legislação penal do nosso Estado? Muitas seriam as respostas, mas vou ater-me
às que considero mais relevantes.
134
Ratificado e promulgado em.25/09/2002, pelo Decreto 4.388.
206
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A primeira delas:
Ao ratificar um tratado — e o Estatuto de Roma é um tratado —,
um Estado assume primeiramente uma obrigação essencial: a de cumprir com
os termos do tratado. É o princípio da boa-fé, do pacta sunt servanda, que é a
pedra angular do Direito Internacional, e sempre o foi em todos os tempos.
Ao ratificar o Estatuto de Roma um Estado assume, além da
obrigação de cumprir com as normas do Estatuto , duas obrigações: primeira,
a de processar e julgar aqueles acusados de cometer crimes de guerra, crime
de genocídio e crimes contra a humanidade — esta é a primeira e fundamental
obrigação que o Estado assume; segunda, a de cooperar com o Tribunal Penal
Internacional sempre que solicitado.
Vou falar umas poucas palavras sobre a primeira dessas obrigações
que assume o Estado: processar e julgar, através do seu Poder Judiciário, do seu
Ministério Público, das suas regras de procedimento, os acusados da prática dos
crimes mais graves contra a paz e a sobrevivência dos Estados.
A maior parte dos Estados já está comprometida, por diversos
tratados internacionais, a processar e a julgar, por exemplo, os acusados de
violações às leis e aos costumes de guerra.
A maior parte dos Estados, incluindo-se o nosso, já se comprometeu,
por meio da ratificação da Convenção contra o Genocídio, do pós-guerra, a
processar e a julgar os acusados da prática de genocídio135.
No entanto, tenho certeza de que a maior parte dos Estados não
poderia cumprir com essa obrigação porque, por força das nossas Constituições,
alguém só pode ser processado e julgado por um crime se esse crime estiver
descrito, tipificado, na legislação interna. E são poucos os Estados que
implementaram até agora as obrigações decorrentes da Convenção contra o
Genocídio ou das Convenções de Genebra e seus Protocolos.
Assim, para que possamos cumprir as obrigações decorrentes da
ratificação do Estatuto de Roma, temos de implementar, introduzir em nossa
legislação interna, a tipificação dos crimes e definir as penas a serem aplicadas
àqueles que praticarem os delitos previstos no Estatuto de Roma.
Por que isso é importante? Porque o fato de processarmos e
135
Além da ratificação da Convenção, o Brasil a promulgou através do Decreto 30.822/52.
207
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
julgarmos os acusados da prática desses delitos é nossa garantia contra a
ingerência do Tribunal Penal Internacional.
O Tribunal Penal Internacional, tendo caráter complementar,
respeita a jurisdição interna dos Estados. Na hipótese da prática de crimes
previstos no Estatuto de Roma dentro do nosso Estado ou por nossos nacionais,
se não tivermos legislação de implementação, o Estado poderá ser considerado,
nos termos do artigo 17 do Estatuto de Roma, como um Estado que não tem
meios para exercer genuinamente a sua jurisdição primária. Assim, estaria em
princípio autorizado o exercício complementar de jurisdição pelo Tribunal Penal
Internacional.
Portanto, a implementação é condição básica para o exercício da
jurisdição que chamamos de primária e para que o Tribunal Penal Internacional
não tenha que ser acionado para o exercício da sua jurisdição complementar.
Um segundo dado que considero importante ser lembrado é
o de que a implementação é condição necessária não só para o exercício da
jurisdição primária pelo Poder Judiciário dos Estados, nos termos do Estatuto
de Roma, mas também para o exercício da chamada jurisdição universal, à
qual nos submetemos — e poucos também o sabem — quando ratificamos as
Convenções de Genebra136 e seus Protocolos Adicionais137, quando ratificamos a
Convenção contra o Genocídio138, quando ratificamos a Convenção para a Punição
e Erradicação do Crime de Tortura139, apenas para dar exemplos.
A idéia de jurisdição universal não é nova. Desde que a Corte
Internacional Permanente de Justiça decidiu, no início do século passado, num
caso relativo à pirataria, que o pirata é inimigo da humanidade (hostis humani
generis – expressão já cunhada na antiguidade por Cícero), a idéia de que autores
de certos delitos podem ser julgados por qualquer Estado, independentemente
da sua nacionalidade ou da nacionalidade das vítimas, já é universalmente
aceita.
O princípio aut dedere, aut judicare nada mais significa do
que isso. Os Estados podem julgar os acusados de determinados crimes,
Em 29/06/57
Em 05/05/92
138
Em 14/05/52
139
Em 28/09/89
136
137
208
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
independentemente das limitações relativas ao território e à nacionalidade.
Podem, mas, se não querem fazê-lo, têm o dever de entregá-los a outro Estado
que os julgue. Esta a obrigação assumida: julgue, ou entregue a quem o faça.
Já está, portanto, assentado no Direito Internacional que o genocida,
o perpetrador de crimes contra a humanidade, o torturador, o criminoso de guerra,
são inimigos da humanidade. Em outras palavras, podemos dizer que nosso
Estado, no exercício da jurisdição universal, pode julgá-los, independentemente
de fatores como nacionalidade e território. Se não quisermos ou não pudermos
fazê-lo, entregue-se os suspeitos a outro Estado que o faça, ou entreguem-nos
ao Tribunal Penal Internacional.
Em conclusão, afirmo, sem sombra de qualquer dúvida, que a
ratificação e a implementação do Estatuto de Roma garantem a soberania de
nosso Estado, garantem a primazia de nossa jurisdição interna e permitem
ao nosso Estado o exercício da jurisdição universal. Além disso, e embora
não constitua condição de procedibilidade, facilita o cumprimento de nossa
obrigação de cooperar com o Tribunal, sempre que para isso formos solicitados.
Como Juíza no Tribunal Penal Internacional, posso dizer — e aqui
como testemunho pessoal — que o Tribunal tem exercido suas funções com
independência e imparcialidade; que seus juízes têm trabalhado arduamente
nos oito casos atualmente em andamento140, e têm dado total e completa
publicidade e transparência às rotinas de funcionamento da Corte..
Posso assegurar que o Tribunal, seus juízes e seus promotores
conhecem e resguardam as salvaguardas que lhes são atribuídas pelo Estatuto
de Roma e pelas regras de procedimento contra qualquer forma de pressão,
contra qualquer forma de ingerência, contra qualquer tentativa de desvio da sua
função como Tribunal independente e imparcial.
O Tribunal pretende o exercício de uma jurisdição universalista, e
140
Em fase de julgamento, os casos The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo (ICC-01/04-01/06)
e The Prosecutor v. Germain Katanga and Mathieu Ngudjolo Chui( ICC-01/04-01/07); aguardando
confirmação da decisão que remete o acusado a julgamento, The Prosecutor v. Jean Pierre Bemba
( 01/05-01/08) ; em fase de procedimento preliminar, The Prosecutor v. Bahar Idriss Abu Garda (
ICC-02/05-02/09); aguardando cumprimento dos mandados de prisão: The Prosecutor v.Joseph
Kony &others ( ICC-02/04-01/05); The Prosecutor v. Bosco Ntaganda ( ICC-01/04-02/06); The Prosecutor v. Ahmad Muhamad Harun & Ali Kushayb ( Icc-02/05-01/07); The Prosecutor v. Omar Al Bashir(
ICC-02/05-01/09). Todas as decisões e demais documentos de cada caso podem ser consultados
no site do tribunal: www.icc-cpi.int
209
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
seu caráter universalista se amplia tanto mais se amplie o número de Estados que
ratifiquem o Estatuto de Roma. Divide o Tribunal com os Estados a preocupação
pela independência e imparcialidade de suas decisões, pelas garantias do
processo eficiente e justo, e pela estrita legalidade.
Assim, com a ratificação do Estatuto de Roma e a implementação
da legislação interna, reforçam-se os mecanismos internos e internacionais
necessários para a quebra do ciclo vicioso de impunidade. Se em nosso direito
interno não abrimos mão de um Direito Penal, de um sistema punitivo eficiente
que tenha, ao mesmo tempo, um caráter preventivo e um caráter retributivo o que é inerente à idéia do justo - também não há por que não pretendermos
que no sistema internacional haja mecanismos eficientes de prevenção e de
retribuição necessários para devolver à humanidade o sentido do justo e, às
vítimas, respeito e reparação.
A Emenda Constitucional 45 reconheceu a constitucionalidade do
ato de ratificação do Estatuto de Roma, e assim o integrou, de forma definitiva,
à legislação interna. A ratificação portanto, seguida do reconhecimento
constitucional de que nosso país submete-se à jurisdição do tribunal, torna
superadas as discussões anteriores à ratificação do Estatuto, e que tanto
envolveram os juristas de nosso país. Entretanto, o princípio da legalidade, como
dito acima, exige a tipificação dos delitos e das penas correspondentes, para
que o país possa, em caso de prática de delitos em seu território ou por seus
nacionais, exercer sua jurisdição primária. Por tal razão, foi enviado ao Congresso
Nacional, onde tramita, o Projeto de Lei n. 4038/2008.
O PL define os crimes de genocídio, os crimes contra a humanidade e
os crimes de guerra e, seguindo o modelo legislativo interno, impõe em abstrato
penas mínima e máxima a cada uma das figuras delitusosa nele previstas. Na
definição dos delitos, respeita, ao máximo, a nomenclatura utilizada por nosso
Código Penal e pela legislação penal especial. Aliás, é importante ressaltar que o
PL em nada altera os códigos penal e processual penal, apenas dispondo sobre
determinados aspectos especiais em que a legislação ordinária seria inaplicável.
Por exemplo, descreve o PL as peculiaridades do regime de responsabilidade
penal dos chefes militares e de outros superiores hierárquicos, cria novas
causas de agravamento da pena, e exclui a prescrição como causa extintiva
de punibilidade. Em matéria processual, modificam-se, em relação aos delitos
previstos no PL, certos prazos procedimentais, as limitações ao número de
210
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
testemunhas, e determina-se novas regras de competência entre as justiças
federais comum e militar.
Por fim, o PL trata da cooperação entre nosso Estado e o Tribunal
Penal Internacional. Nos termos do PL, o pedido de cooperação feito pelo Tribunal
Penal Internacional não depende de homologação ou exequatur. Entre outros
pedidos, o Tribunal Penal Internacional poderá pedir a cooperação do Estado
para a prisão e entrega de um acusado que esteja ou que entre em território
nacional, para determinar atos de investigação, e de arresto ou sequestro de
bens.
Aqui, mais uma vez, ressalta a importância da implementação
interna do Estatuto de Roma. Nos termos do direito internacional, um Estado
Parte num tratado não pode negar cumprimento a uma obrigação assumida
com a ratificação sob o fundamento de não possuir, em sua legislação interna,
mecanismos que permitam a execução da obrigação. Da mesma forma, não
admite o direito internacional o descumprimento de uma obrigação assumida
com a ratificação de um tratado sob o fundamento de o tratado ser contrário a
disposições do direito interno141.
Vou finalizar esta breve exposição, e espero ter alcançado
o objetivo principal de dar a conhecer, àqueles que ainda não tiveram a
oportunidade de conhecer o TPI, as bases em que assenta a legitimidade do
Tribunal Penal Internacional, fruto de um lento e irreversível processo histórico
de universalização da proteção de direitos fundamentais de toda a humanidade.
Também espero ter dado a conhecer as normas básicas que regem essa nova
instituição. Enfim, espero que a comunidade política e jurídica de nosso país
convença-se da importência da implementação do Estatuto de Roma no seio
da legislação nacional, para que o país possa definitivamente preparar-se para
exercer seu papel na luta contra a impunidade.
­­­­­­­­­­­
­­­­­­­­­­­­­­
141
Na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, está expresso que « todo tratado em vigor
obriga as partes e deve ser cumprido de boa fé »( artigo 26) e que « uma parte não pode invocar
as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado »( artigo
27). Apesar de o nosso país ainda não ter ratificado a Convenção de Viena ( aparentemente o
pedido de autorizaçào para a ratificação tramita no Congresso desde 1992), o certo é que o país
ratificou a Convenção de Havana sobre Tratados, de 1929, que traz disposições semelhantes, em
seu conteúdo, às da Convenção de Viena. Lembre-se ainda que o princípio da boa fé é considerado norma de jus cogens, e portanto obriga a todos, independentemente da ratificação de um
tratado.
211
­­­­­­­­­­­­­­­
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
VERSO E REVERSO DA PROTEÇÃO INTEGRAL
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Vicente de Paula Faleiros**
Neste texto pretendemos abordar a questão dos direitos da criança
e do adolescente, considerando o processo histórico-social e de construção
da legislação para a infância em nosso país. Nosso pressuposto é de que a
desigualdade social, prevalecente no país, se expressou até mesmo nos direitos
formalmente estabelecidos, categorizando diferentemente os filhos da elite e os
pobres, o que só veio ser rompido com o Estatuto da Criança e do Adolescente
de 1990 e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996. A doutrina liberal
de direitos iguais nem sequer esteve presente na história dos direitos infantojuvenis no Brasil, caracterizando-se nosso marco legal como uma “esquizofrenia”
ou polarização normativa desigual142, com duas vertentes, uma proposta para
a elite e outra para os pobres, configurando-se a maioria da população como
exceção, não se fazendo dela uma prioridade de atendimento e nem para ela
uma política de inclusão. Nosso pressuposto é de que a maioria da população
não é a regra, e sim a exceção na definição histórica tradicional das políticas
sociais.
Direitos para uns, deveres para os outros.
Até o último quartel do século XX, para quem tinha a chance de ir
à escola, esta era, ao mesmo tempo, um dever, uma obrigação e uma forma de
ascensão social. Os pais desses afortunados sempre diziam aos filhos: “primeiro
Assistente social, PhD em sociologia, coordenador do CecriaCentro de Referências, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, professor da UCB e pesquisador da UnB
**
142
Além de uma dupla disposição de normas legais, podemos observar também no país uma
dupla aplicação da lei, que não cabe aqui desenvolvermos. Gisela Pankow (1983) assinala que
na nossa época nas relações inter-humanas, e mais especificamente no acesso ao poder, não se
trata mais de se respeitar o outro, mas de dominá-lo. Em lugar de uma comunicação que poderia
dar acesso à liberdade do outro, desenvolvemos uma forma arbitrária da lei que se chama a regra
do jogo. Se não se respeita essa regra fica-se excluído. (p.198). Roberto Schwars (2001) chama a
atenção para o fato de que o escravagismo era praticado num contexto de idéias e normas liberais, o que denomina de idéias fora de lugar. Assinala ainda que o favor e não o direito funciona
como mediação quase universal na política.
213
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
a obrigação, depois a diversão” e também “se não estudar não vai ser doutor”.
A obrigação de estudar, própria dos filhos da classe dominante, visava destinar
seus filhos a uma vida com distinção, no entanto com características marcantes
e diferentes para os gêneros masculino e feminino. Enquanto a mulher se
preparava para a vida doméstica e/ou religiosa, o homem se preparava para vida
pública143. Para o pobre, a obrigação era a do trabalho subalterno para ganhar
vida “dignamente”. O trabalho era o destino tanto da criança filha de escravos,
como o dos trabalhadores urbanos, migrantes e rurais.
Em 1890, segundo dados da Repartição de Estatística do Arquivo
do Estado de São Paulo (Moura, 1999) um quarto da mão de obra do setor
têxtil da capital, São Paulo, era de menores, chegando essa proporção a 30%
em 1910. Já no final do século XIX, Franco Vaz assinalava que existiam 19.067
matriculados para um total de 106.390 crianças no Distrito Federal, então Rio de
Janeiro (Faleiros, 1995), correspondendo os matriculados a apenas 17,9% das
crianças, isto na capital da República. Se para os filhos de trabalhadores o futuro
era o do trabalho nas fábricas, durante a escravidão o futuro dos pequenos
escravos era a escravidão. O futuro se anunciava subalterno. As crianças pobres
sempre participaram do mundo do trabalho, seja como operários, seja como
trabalhadores rurais, seja como vendedores e vendedoras de produtos na rua,
mas não participavam da vida escolar.
Na sociedade brasileira, a proposta republicana de escola para
todos fracassou, em comparação com o desenvolvimento da República em
outros países, como na França, que significou a escolarização em massa. A
proclamação da República no Brasil, no entanto, não significou uma mudança
na redução das desigualdades sociais.
As famílias pobres buscavam nos internatos e orfanatos filantrópicos
ou estatais e até mesmo nas casas de correção, muitas vezes, uma saída para um
modo de vida menos duro que o trabalho diário e explorado. Aliás, o internato
privado era também uma opção para as famílias abastadas, que buscavam o
colégio como forma de educação e de disciplinamento de seus filhos. A disciplina
e a ordem deveriam existir não somente nas famílias e internatos, mas também
143
Mauad (1999) assinala que nos colégios privados do final do século XIX as meninas aprendiam mitologia, inglês e francês, história antiga e moderna e “obras de agulha de todas as
qualidades”e saíam aos 14 anos para a igreja.
214
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
nas ruas. Franco Vaz nota ainda, que a lei 947 de 29/12/1902 autorizava o governo
a reorganizar a polícia, a criar colônias correcionais para reabilitação profissional
dos “vadios, capoeiras, meninos viciosos” julgados no Distrito Federal. Para os
vadios existia a correção, principalmente na visão higienista dos anos 20, que
buscava a formação de uma raça sadia e de uma ordem social disciplinada pelos
padrões da moralidade, principalmente para a mulher e para a família.
Podemos encontrar em Franco Vaz uma mescla de recomendações
de disciplina e de medidas higiênicas quando propõe: “implantação de
maternidades, regulamentação dos serviços de amas de leite, fiscalização e
multas por fornecer tóxicos às crianças, retirada do pátrio poder em caso de
desleixo, difusão de conhecimentos sobre a infância ( diante do “tratamento
impróprio dado pelas mães”), combate aos “monstros da tuberculose, da
sífilis e da varíola”, fundação da Casa de Expostos, asilos públicos e privados
para a infância como bureau ouvert, obrigação do ensino da higiene, criação de
institutos de proteção e subvenções à Santa Casa. Na ordem liberal oligárquica
reinante, já defendia uma intervenção mínima do Estado diante do problema da
chamada infância desvalida, mas nos moldes do paternalismo, do autoritarismo
e da reprodução da condição operária. A Lei de 1891 que regulamentou o
trabalho infantil foi, segundo Rui Barbosa, inócua, pois se limitava a definir uma
idade de trabalho que nunca foi respeitada. Em 1909, foram criadas 19 escolas
profissionais por Nilo Peçanha, destinadas à formação de aprendizes artífices
(para o trabalho, embora pudessem ser autônomos), e que foram implementadas
numa negociação política com as unidades da Federação. Assim, para os pobres
restava o trabalho, a repressão e a subalternidade.
Nesse período, a questão da educação estava articulada à
questão da disciplina e da higienização, aliando-se ao controle da saúde o
controle dos comportamentos, distinguindo-se os chamados normais dos
denominados anormais. Para Carvalho (1997), a “escola nova” de Lourenço Filho
se vinculou às mudanças que vieram no bojo da industrialização, apostando no
poder civilizatório da modernidade, para que a escola pudesse se organizar
como uma indústria, pressupondo-se inclusive uma atenção ao interesse do
aluno. Para os que não se integrassem no processo de aprendizagem dessa
sociedade emergente, ou seja a maioria, restava-lhes serem considerados
215
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
menores, incapazes, irregulares, devendo-se aplicar a eles o Código de Menores,
estabelecido de maneira formal em 1927.
O Código de Menores de 1927: tutela de pobres e desordeiros
O Código de 1927, estabelecido pelo Decreto n 17.943-A de 12 de
outubro desse ano, consolidou “as leis de assistência e proteção a menores”144
que foram se constituindo desde o início da República e visavam aos delinqüentes
e abandonados, ou seja aqueles que não tinham família ou não obedeciam à
ordem vigente. Estas duas categorias resumem a focalização dada, então, nas
políticas para a infância: os coitadinhos e os perigosos. Significou, no entanto,
uma maior intervenção do Estado na ordem familiar, estabelecendo-se uma
vigilância da autoridade pública, que se sobreponha à família para garantir a
higiene e a raça, principalmente dos que eram amamentados, os filhos da elite.
Por meio do Programa de Controle da Lactação e da Alimentação o governo
estabeleceu a inspeção das pessoas que tivessem crianças pequenas sob sua
guarda, mediante salário, além do controle das mulheres que viriam a se “alugar
como nutriz”. A autoridade pública podia impedir o abrigo de crianças em casas
consideradas perigosas, anti-higiênicas ou imorais. Os Estados e municípios
deviam organizar a vigilância sanitária e higiênica das creches, gotas de leite
ou instituições de puericultura com subsídios do Governo Federal. O Código
estabelecia várias categorias de crianças.
Os infantes expostos, abandonados em lugares públicos ou privados,
por sua vez, poderiam ser recolhidos com um registro secreto (sic!), para manter
o silêncio sobre a paternidade, em defesa da honra de alguém que fizera um
filho bastardo. Embora o Código tenha abolido o sistema das rodas, dispositivos
em forma de cilindro na parede das Santas Casas, que recolhiam para dentro
as crianças nele depositadas do lado de fora, seus dispositivos morais ficaram
mantidos. Havia também os abandonados que não tinham habitação certa ou
responsáveis que os assumissem, ou que vivessem em famílias consideradas
144
Para aprofundar a relação Estado/sociedade na Primeira República, ver Faleiros (1995), Rizzini (1995) e Marcílio (1998), dentre outros. Falava-se em 1912 de “infância criminosa” (projeto
n.94 de 17/7) e em 1924 (Lei 2.059) fala-se em “menores delinqüentes”. Marcílio (p.201) assinala
que já na segunda metade do século XIX as “instituições coloniais de proteção à infância desvalida (como Roda do Expostos), não mais respondiam às novas realidades e exigências do Brasil”.
216
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
“imorais”, além de abusivas pela crueldade, negligência ou exploração ou em
situações de perigo ou risco145. Os vadios eram os refratários a receberem
instrução ou a entregar-se a trabalho sério e útil, habitualmente a “vagar pelas
ruas” e logradouros públicos (Art. 28). Os mendigos “habitualmente pediam
esmolas”, enquanto que os considerados libertinos “convidavam companheiros
ou transeuntes para a prática de atos obscenos”, e os prostitutos “viviam da
prostituição de outro”. Para os delinqüentes menores de 14 anos, não existia
um devido processo legal, tendo como destino o internato. A condenação por
crime grave exigia estabelecimento especial para o internamento dos maiores
de 16 e menores de 18 anos. A idade de 18 a 21 anos constituía circunstância
atenuante e permitia sua separação dos condenados maiores. Para os menores
delinqüentes de 14 a 18 anos, ficava a critério do Juiz qualquer decisão a seu
respeito, fundando-a na personalidade moral do menor e na gravidade da
infração. Também por determinação do Juiz, podia-se aplicar a liberdade vigiada.
O Código proibiu o trabalho dos menores de 12 anos, e para os
menores de 14 anos havia proibição de trabalho se não tivessem completado a
instrução primária. A lei só parecia formal e igual para todos, pois deixava brechas
para o trabalho dos pobres, já que a autoridade competente poderia autorizar
o trabalho de menores de idade, sancionando a desigualdade perante a lei pela
própria autoridade. Na realidade, a indústria empregava menores a partir dos
12 anos com salários inferiores ao dos adultos e com longas jornadas. O Código
traduzia a formalização de uma lei para os pobres e perigosos, destinados ao
trabalho e a uma vida subalterna, agora sob o controle da Justiça de Menores
destinada à correção dos perigosos e à tutela dos coitados.
A ditadura de Vargas, institucionalizada em 1937, aprofundou
a visão de harmonia entre patrões e empregados, já formulada desde 1930,
acoplando o corporativismo ao controle estatal dos sindicatos e da vida
política. Para o controle da vida política nomeavam-se interventores de cima
para baixo. Na esfera da educação levou em conta um pacto com a Igreja
Católica, principalmente após a posse de Capanema em 1935 no Ministério da
Educação, para preservação e apoio ao ensino privado e combate ao marxismo.
Em 1936 Capanema propôs as bases do primeiro Plano Nacional de Educação,
O artigo 9 do Decreto 17.943-A de 12/10/1927 reza que a autoridade pública pode ordenar a
apreensão da criança quando sua casa for “perigosa ou anti-higiênica”.
145
217
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
com discussão sobre o “monopólio” do ensino pelo Estado, apoiado pelos
representantes da Escola Nova. O Plano foi aprovado pelo Conselho Nacional
de Educação, mas em 1937, com o fechamento do Parlamento, não foi aplicado.
Na visão então dominante, a criança, no ensino básico, era vista como “matéria
plástica, a que é possível aplicar todas as espécies de hábitos e atitudes” (In
SCHWARTZMAN, Simon et al.,1984, p.188), cuja educação ficava a cargo de
estados e municípios. No ensino secundário, predominava o ensino privado,
contando com 82,9% dos 629 estabelecimentos existentes no país em 1939.
No ensino secundário, Capanema defendia o ensino da moral, da ética e do
patriotismo, vendo-se o adolescente como servidor da ordem, com o ensino
controlado pelo estado.
Na era Vargas, a política para a infância pobre se confunde com o
sinistro SAM (Serviço Nacional de Assistência aos Menores) onde se praticava
a tutela do pobre/perigoso, aliada a uma brutal repressão. Foram criadas as
delegacias de menores para onde eram enviados os meninos encontrados na rua
e considerados suspeitos de vício e crime. Nos internatos do SAM, predominava
a ação “repressiva e o desleixo contra os internos, ao invés da ação educativa”,
ou seja, não havia qualquer proposta pedagógica nessas unidades, além de
condições e instalações de péssima qualidade para os internos.
Para manter uma raça saudável, principalmente para os filhos da elite,
criou-se o Departamento Nacional da Criança (DNCr), que se propôs combater
as “criadeiras”, mulheres que cuidavam de crianças e que eram consideradas
causadoras de doenças pela pobreza e falta de condições higiênicas. Estimulou a
amamentação materna e a vigilância dos lactários. O DNCr estimulou, também,
a implantação de creches, junto com a Legião Brasileira de Assistência, fundada
em 1943, formando os clubes de mães. Essa mesma política teve continuidade
até 1964.
Após a queda da ditadura de Vargas, em 1946 a Constituição
democrática de então definiu o ensino primário obrigatório para todos nas
escolas públicas, com determinação para uma nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (proposta em 1948) que só veio ser aprovada em 1961, cuja discussão
trouxe à tona a disputa entre o ensino privado e público. A lei afirmava que a
educação é direito de todos podendo ser assegurado pelo poder público e pela
218
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
iniciativa particular. Cabia ao estado fornecer recursos quando fosse provada a
insuficiência de meios (artigo 2º). O artigo 30 da referida lei punia o pai que não
colocasse o filho na escola, privando-o de emprego público mas, não recebia
punição se fosse pobre ou se houvesse insuficiência de escolas. Desta forma,
a própria Lei, isentava as crianças pobres da obrigatoriedade da escola, “por
comprovado estado de pobreza dos pais” ou por insuficiência de escolas”.
Ou seja, uma vez mais não se estabeleceu a norma igual de cidadania, pois a
maioria da população continuou a ser exceção, a viver em “estado de exceção”,
de exceção dos direitos, uma vez que a escola não era lugar para pobres, que
continuavam no seu lugar de origem e destino : o trabalho.
A ditadura de 1964 deu certo impulso ao ensino profissionalizante,
dicotomizando-o do ensino médio, mas não teve sucesso com a profissionalização
obrigatória, vindo-se a separar o ensino médio geral do ensino profissionalizante.
Este, por sua vez, foi implantado no Sistema “S” (SENAC, SENAI) sob o comando
direto dos patrões do comércio e da indústria. As classes médias altas e a elite
nunca se integraram ao ensino profissionalizante que ficou, mais uma vez
destinado às camadas pobres que conseguissem terminar o ensino fundamental
ou primário.
No contexto dessa ordem autoritária da ditadura baseada, ela
mesma, na negação dos direitos políticos (por exemplo o não direito de voto e
de candidatura), civis (por exemplo, não ter direito de ir e vir, de manifestação
e de associação) e sociais (pois eram restritos e definidos pela tecnocracia
dominante), aliada à repressão e à tortura dos opositores ao regime, é que
se promulga o Código de Menores de 1979, de acordo à doutrina da situação
irregular e com uma proposta repressiva. O termo situação irregular é conceitochave para se entender o Código de 1979.
Compreendia a privação das
condições de subsistência, de saúde e de instrução, por omissão dos pais ou
responsáveis, além da situação de maus-tratos e castigos, de perigo moral, de
falta de assistência legal, de desvio de conduta por inadaptação familiar ou
comunitária, e autoria de infração penal (Art. 2º). Pobreza, é assim, situação
irregular, ou seja considerada exceção, estado de exceção.
A prática da política para a criança e o adolescente em situação
irregular era operacionalizada pela FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-
219
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Estar do Menor), propondo-se a prevenção e a ação contra o processo de
marginalização146 do menor, ou seja, do que era considerado anormal. Essa
marginalização seria causada, segundo o próprio diretor da FUNABEM, Mário
Altenfeder, pela migração, pela urbanização e pelo esfacelamento da família,
acrescentando que “dentro desse sistema, programas específicos serão
montados para favelas e mocambos, para conjuntos habitacionais”. Mais uma
vez a maioria é considerada exceção, marginalizada, anormal, objeto de uma
ação corretiva e não de promoção da cidadania.
O Código de Menores reforçava o poder do Juiz, pois, segundo
a Lei, quando o Juiz desse uma sentença para que o menor fosse protegido,
assistido ou vigiado teria a certeza de haver uma unidade do sistema. Esse
sistema de repressão se fez articulado aos órgãos de segurança nacional, base
de sustentação do poder ditatorial. Consideradas em situação irregular, a
criança e o adolescente podiam ser internados por serem pobres, carentes ou
abandonados, sem ordem escrita da autoridade competente e sem flagrante
delito.
A doutrina da situação irregular, anterior ao ECA (Estatuto da
Criança e do Adolescente), era punitiva e tinha como conseqüência afastar a
criança e o adolescente pobres da convivência com a coletividade por serem
vistos como ameaça social. Prova disso era o fato de se atribuir à “vadiagem”, à
“atitude suspeita”, à “perambulância” ou a outras motivações do mesmo tipo,
70% dos casos de meninos e meninas apreendidos nas ruas. Também eram
internados os deficientes físicos e doentes mentais. Assim, a Lei 6.697 de 10 de
outubro de 1979, denominada Código de Menores, deu continuidade ao Código
de 1927, acentuando as disposições relativas ao abandono e à delinqüência,
já definidas como categorias no Código de 1927. Apesar de uma conotação de
“tratamento” relativa ao infrator, dentro dos estabelecimentos e no processo de
internamento predominava a mesma visão moralista, de inibição dos desvios e
de vícios na família ou na sociedade, sob a ordem da Justiça de Menores.
146
A marginalização é definida como “afastamento progressivo do processo normal ( sic!) de
desenvolvimento”. In FUNABEM, ANOS 20., PP. 199. É o conceito de normalidade social que predomina.
220
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A redemocratização do país e a cidadanização
O início da década de 1980 foi marcado pelo ressurgimento dos
movimentos sociais, impulsionando o processo de redemocratização do país,
trazendo para o debate político nacional o restabelecimento do Estado de Direito,
isto é o reconhecimento, pelo Estado, não só dos direitos civis e dos direitos
políticos, mas do direito a ter direitos, da garantia da cidadania. Nesse processo,
grupos e movimentos já, a partir da década de 1980, ganharam mais força e
começaram a se articular, gerando um amplo movimento em defesa dos direitos
da criança e do adolescente para colocá-los na Lei, como cidadãos e, portanto,
sujeitos de direitos. Dentre esses atores se destaca o DCI (Defesa da Criança
Internacional), constituído a partir de 1979, por ocasião do Ano Internacional
da Criança, como coordenador das organizações não-governamentais -ONG’sque participaram da elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos
da Criança, da ONU. O Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente -FDCA, começou a articular-se em 1987 e deu origem, em março de
1988, ao Fórum DCA; hoje existem Fóruns em todos os estados da Federação.
Aproveitando os processos de democratização da sociedade
brasileira e de elaboração constituinte, os diferentes grupos interessados
na defesa dos direitos infanto-juvenis propuseram-se a trabalhar, juntos, na
produção do conteúdo que deveria ser assegurado na Constituição Federal
relativo a esta área. Esse movimento foi bastante significativo e se manifestou
por meio de duas Campanhas: “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade
Nacional”, que teve, em 1986 o apoio do Ministério da Educação, e envolvia
mais de seiscentas instituições públicas, privadas e internacionais. Elaboraram
as Emendas Populares 064 e 096 “Criança-Prioridade Nacional”, conseguindo
arrecadar cerca de 250 mil assinaturas de apoio, emendas que foram traduzidas
nos artigos 227 e 228 da Constituição. Esses artigos consagram a doutrina da
proteção integral, assegurando à criança e ao adolescente ao mesmo tempo: os
direitos básicos fundamentais da pessoa humana e direitos especiais, como ser
ou pessoa em desenvolvimento.
O paradigma da proteção integral: direitos e deveres para todos
Nesse processo de luta, e já em acordo com o texto da Convenção
221
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, que viria a ser adotado na
Assembléia Geral das Nações Unidas de 20 de novembro de 1989147, foram
aprovados, em 1988, os referidos artigos 227 e 228 da Constituição Federal.
O Preâmbulo da Convenção ao invocar o reconhecimento: da dignidade e da
liberdade inerentes à pessoa humana; dos direitos iguais e inalienáveis de todos
os membros da família humana; de cuidados e proteção especiais que a criança
necessita em virtude de seu desenvolvimento; de um ambiente harmonioso de
desenvolvimento na família e na comunidade; do dever do Estado em garantir
esses direitos nas políticas públicas, estabelece os pilares do paradigma da
proteção integral.
Esse paradigma instituinte representa uma profunda ruptura com
o marco legal da maioria como exceção, com o as regras do jogo (ver nota
de rodapé número 1) de nossa tradição política e com a doutrina da situação
irregular. Assim se traduz essa proposta:
• Ruptura com a consideração da criança pobre como
“maioria em exceção”, considerando a criança e o adolescente como
sujeitos de direitos, como cidadãos de pleno no direito;
• Ruptura com a ordem autoritária sobre a criança,
tornando-a autora, protagonista de seu próprio destino e não objeto da
ordem, garantia da raça, semente do futuro, incapaz de decidir, enfim
como menor ;
• Ruptura com a tutela clientelista dos pobres e a política
dualista de educação para a elite e trabalho para os pobres, assegurando
direitos iguais e um sistema igual de garantias;
• Ruptura com a visão repressiva das instituições;
• Ruptura com
a política social excludente e
marginalizante, repressiva e clientelista;
• Ruptura com o desrespeito à dignidade
e com a
violência contra a criança e do adolescente.
O paradigma da proteção integral pode ser assim desglosado no
artigo 227 da Constituição Federal:
147
Esta Convenção foi também aprovada pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n°. 28 de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo Presidente da República através do
Decreto 99.710 de 21 de novembro de 1990
222
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
“é dever da família, da sociedade e do estado”, isto é dos
responsáveis pelo desenvolvimento da criança, nas suas relações com as redes
primárias e secundárias;
“assegurar”, ou seja, não apenas declarar, mas efetivar um
direito que pode ser exigido, que tem exigibilidade na Justiça;
“`a criança e ao adolescente”: e não ao menor, ao delinqüente, ao
abandonado, ao pobre, mas todas e todos com idade inferior a 18 anos148, sem
distinção de raça, de cor, de religião, de origem;
“com absoluta prioridade”: isto é com o necessária efetividade e
pronto atendimento do interesse da criança;
“o direito”: isto é o reconhecimento de sua cidadania e dos direitos
humanos, econômicos, sociais e culturais indivisíveis, próprios de todo Estado
de Direito;
“à vida, à saúde, à alimentação”: visando à garantia da vida e da
autonomia da existência;
“à educação, à cultura, ao lazer e à profissionalização”: ou seja à
formação, à aprendizagem continuada e à inserção nos valores e na fruição da
vida boa149 da sociedade onde vive;
“à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária”: com garantia do respeito à personalidade da criança, à sua palavra,
à dignidade de seu corpo e aos laços ou vínculos mais profundos e significativos
que a ligam ao convívio social, sendo a família e a comunidade;
“alem de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”: com proteção
especial, isto é impedindo que sejam objeto de outrem ou do comércio, do
crime, da ameaça e da violação de dos direitos acima enumerados, punindo-se
quem vier a violar esses direitos.
Esses direitos valem para todos os cidadãos e, portanto, são também
148
O Estatuto estabeleceu que o termo criança se refere a quem tem idade inferior a 12 anos e
o termo adolescente à faixa etária de 12 a 18 anos, com medidas diferençadas para cada idade,
no que tange ao processo penal.
149
Vida boa é o termo usado na filosofia política para designar a vida digna e feliz na satisfação
das necessidades individuais e históricas.
223
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
deveres das crianças e adolescentes a quem são exigidos o respeito aos direitos
assegurados à cidadania no seu conjunto. Direitos de uns são direitos de todos.
No artigo 228, fica definida a inimputabilidade penal até 18 anos
de idade, mas sujeitando os infratores a normas da legislação especial. Estes são
considerados, assim, inimputáveis mas não impuníveis150, podendo receber as
sanções da lei.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, fruto de um movimento de
mobilização e pressão social151 e da ação da Frente Parlamentar pela Criança, que
se constituiu logo após a promulgação da Constituição de 1988, foi aprovado em
25 de abril de 1990 no Senado Federal e, em 28 de junho de 1990, na Câmara
dos Deputados. Em 29 de junho de 1990 o projeto foi homologado pelo Senado
e sancionado pelo presidente da República no dia 13 de julho de 1990, passando
a vigorar no dia 14 de outubro desse mesmo ano como a primeira lei de acordo
com a Convenção Internacional pelos Direitos da Criança e do Adolescente.
A experiência acumulada em todo esse processo serviu aos movimentos
estaduais e municipais de defesa dos direitos da criança e do adolescente e, na
elaboração das constituições estaduais e leis orgânicas locais, foram também
assegurados os direitos da criança e do adolescente. O ECA, como veio a ser
chamada a Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, juntamente com essa legislação
adicional veio estabelecer um sistema de garantia dos direitos da criança,
também denominado de sistema de exigibilidade de direitos, de acordo com o
paradigma da proteção integral. Assim:
• Crianças e adolescentes são cidadãos protagonistas de sua
trajetória, de acordo com o seu desenvolvimento;
• Crianças e adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana e devem ter prioridade absoluta na família,
na sociedade e no Estado;
• A participação e controle social da sociedade são garantidos na
deliberação sobre as políticas da infância e da adolescência através dos
Conselhos de Direitos152, em todos os níveis de governo como órgãos
O Dicionário Aurélio define como impunível: “que não pode ou não deve ser castigado; não
punível”.
151
Ver FALEIROS, Vicente e PRANKE, Charles (coords), 2001.
152
É um órgão de caráter deliberativo, formulador das políticas públicas e controlador das
ações de atendimento à infância e à juventude no município.O Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente se configura como importante espaço democrático
de discussão, análise e formulação de políticas públicas de atendimento dos direitos da
150
224
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
paritários;
• São estabelecidos conselhos tutelares153 para zelar pelos direitos
da criança e do adolescente como instância socioeducacional colegiada
escolhida pela comunidade;
• É punida a violação dos direitos da criança e do adolescente;
• É estabelecida a prioridade para a convivência familiar e
comunitária da criança e adolescente;
•
É estabelecida a integração e articulação de ações
governamentais e não - governamentais na política de atendimento,
considerando-se tanto as políticas sociais, como os serviços especiais
dentro da municipalização;
• São criados os fundos dos direitos da criança e do adolescente
em todos os níveis vinculados aos respectivos conselhos de direitos;
• É propugnada integração operacional dos órgãos de
atendimento;
• Fica incluída, nas diretrizes da política de atendimento, a
mobilização da opinião pública no sentido da indispensável participação
dos diversos segmentos da sociedade (&IV do Art. 88 do ECA);
• É garantido o devido processo penal para o adolescente a quem
se atribua prática de ato infracional;
• É estabelecida a limitação dos poderes da autoridade judiciária;
• Fica definida a implementação de mecanismos de proteção dos
interesses difusos e coletivos;
• É estabelecido o fim da política de abrigamento, a não ser em
casos excepcionais (& único do Art. 99 do ECA), ou seja, política de
desinstitucionalização.
Estão estruturadas no ECA tanto a promoção, como a formulação,
o controle social como a defesa dos direitos da criança e do adolescente. A
promoção dos direitos é efetivada por meio de políticas públicas, incluindo a
criança e do adolescente, a partir de uma ação conjunta entre os poderes públicos e a
sociedade. Vale notar que a forma de participação da sociedade nos conselhos não substitui as diversas formas de participação popular existentes..
153
Os conselhos tutelares são uma das mais importante inovações do ECA.. Seus membros são
eleitos pela comunidade e devem conhecer a realidade local e suas redes de proteção. O Conselho Tutelar é um órgão público municipal permanente e autônomo, que tem como missão
institucional zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente e contribuir para
mudanças na forma de atendimento a estes direitos no município. Sua criação tem respaldo
legal no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei Municipal.
225
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
parceria com órgãos da sociedade, compreendendo a prevenção e o atendimento
a esses direitos com um diagnóstico da situação; formulação de um plano de
ação e um orçamento bem estabelecido e articulado; assim como um sistema
protetivo para toda a população infanto-juvenil e um sistema socioeducativo
para os adolescentes envolvidos com o ato infracional.
A dimensão de formulação e controle social implica um sistema
de deliberação, zelo e vigilância desses direitos por meio dos conselhos de
direitos, dos conselhos tutelares, dos fóruns e conferências, e movimentos
protagônicos infanto-juvenis e da sociedade. Em dezembro de 2003, realizou-se
a Vª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, cujo eixo foi
o Pacto pela Paz assinado na Quarta Conferência em 2000 por representantes
dos governos Federal e estaduais. Os eixos do Pacto fôramos direitos do artigo
227, acima citado: saúde; educação; cultura, esporte e lazer; assistência social;
proteção especial (violência sexual, e trabalho infantil); medidas socioeducativas;
conselhos de direitos, tutelares e fundo; mecanismos de exigibilidade dos
direitos e meios de comunicação.
A dimensão de defesa significa responsabilizar aqueles que
deveriam efetivar esses direitos e não o estão fazendo, implicando diversos
atores de âmbitos governamental e não-governamental, como as Secretarias de
Justiça, Secretaria de Segurança Pública, Ministério Público, Defensoria Pública,
Conselhos Tutelares, Centros de Defesa e associações legalmente constituídas
que possuam, entre seus fins institucionais, a defesa dos direitos da população
infanto-juvenil.
A nova institucionalização do Estatuto da Criança e do Adolescente
implica, não só uma garantia de direitos, mas também a democratização
e descentralização do Estado, num processo de participação da sociedade
na gestão pública, principalmente, através da implementação de conselhos
paritários, com poder deliberativo. O ECA estabelece, portanto, uma nova
relação de poder que traduz, na arena política, conflitos vigentes não só entre o
instituinte e o instituído, mas entre novos atores que entram em cena e aqueles
que detinham o poder hegemônico.
Esse processo de cidadania, participação e descentralização se
manifesta também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, promulgada em
1996. No quadro seguinte, fazemos um cotejo entre os dispositivos do ECA e os
da LDB, mostrando que ambas as leis se inspiram no movimento instituinte de
226
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
cidadanização expresso na Constituição de 1988.
O paradigma da proteção integral no ECA e na LDB
227
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Nos anos 90 acentuaram-se as mudanças nas relações econômicas
e de poder no contexto da mundialização produtiva, comercial e financeira do
capitalismo que, articuladas às políticas nacionais de redução do Estado, cortes
nos gastos públicos e privatização trouxeram, no seu bojo, o desemprego, a
exclusão social e a influência do narcotráfico e, ao mesmo tempo, favoreceram
uma política de focalização, deixando-se de implementar as políticas universais
de educação, saúde, assistência e outras que garantam a proteção integral.
Se, por um lado, o paradigma da proteção integral conseguiu
fazer avançar os direitos das crianças e adolescentes, com diminuição da
mortalidade infantil, maior acesso à escola, estabelecimento de um processo
de implementação da pré-escola, por outro, a mundialização, o neoliberalismo e
a exploração capitalista aprofundaram os desafios para que houvesse uma real
aproximação entre o Brasil real e o Brasil legal, no sentido de que a maioria
da população não fosse a exceção, mas regra na efetivação da cidadania. Esses
desafios estão sendo enfrentados nos Conselhos, nos Fóruns, nas Conferências,
na mídia154, nas organizações não governamentais e também por políticas
governamentais. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
e (CONANDA), criado em 1991 pela Lei 8.242 vem definindo diretrizes, que são
democraticamente discutidas, para tornar mais operacional esses sistema de
garantia de direitos. Ao mesmo tempo, na área da educação as conferências,
conselhos e fóruns têm levantado permanentemente a questão e as propostas
para uma educação cidadã e de qualidade. O Plano Nacional de Educação (Lei
10.172/91) é um avanço na garantia de direitos à educação.
A articulação entre a assistência social e o processo educativo vem
sendo promovida por meio da merenda escolar, da distribuição do livro didático,
do programa de erradicação do trabalho infantil e principalmente por meio
do Bolsa Escola, hoje Bolsa-Família155. Embora o valor reduzido da bolsa, esta
medida vem impulsionando o acesso e a permanência das crianças na escola,
facilitando a sobrevivência da família.
Com a importante participação da Agência de Notícias da Infância (ANDI)
A implementação do Programa Bolsa-família (Medida Provisória 132 de 20/10/2003) agrega
os programas Fome Zero (Lei 10.689/2003), Bolsa-Escola (Lei 10.219/2001), Auxílio-Gás (Decreto
4.102/2002) e Bolsa-Alimentação (Medida Provisória 2.206-1/2001), no sentido de assegurar um
alívio à pobreza, com cadastro geral dos pobres (Decreto3.877/2001) sem, contudo criar uma
nova agenda nas políticas sociais.
154
155
228
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A luta contra o trabalho de crianças e adolescentes vem sendo
feita por meio do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, com
envolvimento da Sociedade e num pacto federativo. O acesso à escola vem sendo
implementado com a ampliação de vagas, mas a qualidade da escola deixa a
desejar. Esta questão pode mudar com a valorização do professor (salário básico
digno) e com o FUNDEB.
Se é verdade que não se superou a desigualdade real, o Estatuto
da Criança e do Adolescente, a LDB, no entanto, não só se inscrevem na história
como um sistema de atendimento, mas como um projeto civilizatório, voltado
para a realização dos direitos humanos da criança como cidadã. A concepção de
criança não é mais a de um adulto em miniatura ou de um objeto sem vontade
própria, mas de um sujeito de direitos protagônico de seu desenvolvimento com
o dever do Estado, da família e da sociedade de protegê-la.
No período pós ECA a questão da punição de adolescentes
infratores tem sido objeto de discussões na sociedade, de apresentação de
projetos de lei reduzindo a idade penal, sobretudo quando da existência de
uma violência grave praticada por adolescentes. (Faleiros, 2004). A redução
idade penal é apresentada como um remédio sem considerar o processo do
crime e as condições da internação em unidades fechadas. Uma das principais
propostas para o atendimento de adolescente infratores foi a construção do
SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Sócioeducativo. Trata-se de uma
política pública com o objetivo de inclusão social e profissional do adolescente
em conflito com a lei. Esta política pressupõe a integração do Sistema de Justiça
e Segurança Pública com o Sistema Educacional, o Sistema Único de Saúde e o
SUAS – Sistema Único da Assistência Social. Essa política valoriza a educação dos
adolescentes e não a repressão, sem descuidar da responsabilização do infrator
pelos atos praticados e levando em conta a sua situação de sujeito de direitos e
deveres em desenvolvimento. Para tanto é necessário que as instituições tenham
condições de oferecer a formação necessária, o atendimento especializado e
uma gestão democrática.
É comum, no entanto, observar-se que as condições dessas
instituições não se adéquam aos propósitos do SINASE que exige a
responsabilidade do poder público, tanto do Judiciário como do Executivo, dos
229
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Conselhos de Direitos e Tutelares, da comunidade e da família.
Outro tema relevante na garantia dos direitos da criança e do
adolescente é a nova regulamentação da adoção.
A nova Lei de Adoção (Lei 12.010 de 03 de agosto de 2009) está
consoante com o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária,
aprovado em 2006 pelos Conselhos Nacionais de Assistência Social e de Direitos
da Criança e do Adolescente. O referido Plano tem como base o direito da
criança a uma família e a ruptura com as práticas de abrigamento, que deve
ser provisório e excepcional. O direito à família é a expressão mais significativa
do direito à proteção integral com garantia do desenvolvimento e do respeito
à criança como pessoa e como cidadã. No artigo 19 do Estatuto da Criança e
do Adolescente, ambos devem ser criados e educados no seio de sua família, e
excepcionalmente, em família substituta, por decisão judicial. Se for adotada a
criança tem os mesmos direitos dos filhos biológicos, sendo a mesma irrevogável,
diferentemente da guarda ou tutela, outras figuras jurídicas de proteção à
criança.
A adoção, nessa perspectiva, não é vista como um meio para
resolver problemas de herança (como o foi no passado) ou para atender
somente à necessidade do adotante. É a criança que está em primeiro lugar e
deve ser reconhecida em sua necessidade de família. Inverte-se o foco: passa-se
da perspectiva do adotante para a do adotado. A família é considerada em seus
vínculos biológicos e em seus vínculos afetivos.
Para proteger a criança a Lei busca assegurar uma política pública
para a convivência familiar, inclusive com a obrigação de dotação orçamentária.
Essa política, em primeiro lugar, deve prestar apoio à família desde a gestação
para que a escolha de doar um filho não seja em razão de pobreza ou de falta
de formação e conhecimento. Estabelece prazos para o abrigamento, quando
ocorrer, com um prazo máximo de dois anos, com agilização dos procedimentos
judiciais. A criança, quando possível, deve ser sempre ouvida e contar com
preparação adequada, com respeito à sua identidade social e cultural. A Lei dita
muito rigor para a adoção por estrangeiros.
A Lei estabelece ainda que serão criados cadastros estaduais e
nacional de crianças e adolescentes de serem adotados e de pessoas ou casais
230
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
habilitados à adoção, o que pode reduzir a defasagem entre a demanda ou
preferência dos adotantes por certo tipo de crianças e a realidade existente de
crianças com faixa etária acima de 4 anos e de cor negra ou parda.Os adotantes
podem conhecer melhor a realidade e re-elaborar suas pretensões, com apoio
psicossocial.
A criança adotada tem o direito de conhecer sua família de origem
e de ter acesso irrestrito ao processo de adoção quando completar 18 anos, o
que vai implicar em um diálogo amoroso entre o adotante e o adotado sobre
suas origens, o que vai facilitar a ruptura do silêncio sobre as origens da criança
para sua plena integração, inclusive com tios, avós e primos.
A política de adoção implica, pois medidas integradas e
interdisciplinares do Judiciário, do Executivo, das famílias e da comunidade
para que a criança possa se desenvolver com proteção integral, cidadania e
autonomia com vínculos familiares de afeto.
Uma terceira dimensão de mudanças no ECA foi a referente ao
combate à violência sexual contra crianças e adolescentes com destaque para
a lei 11.829 que penaliza a pornografia e a pedofilia, por todos os meios de
registro de imagens e armazenamento das mesmas, e também o assédio ou
aliciamento de crianças e adolescentes para fins sexuais. Essa lei está articulada
com as mudanças no código penal que redefine os crimes sexuais (Lei 12.015
de 7 de agosto de 2009). São tratados como crimes contra a dignidade sexual,
agravando-se as penas de estupro (não mais somente contra a mulher) se a
vitima é menor de 18 ou maior de 14 anos. O estupro de vulnerável (menor
de 14 anos) tem aumento de pena. Além disso, a Lei tipifica os crimes sexuais
contra vulnerável, definido que “induzir alguém menor de 14 anos a satisfazer
a lascívia de outrem” tem a pena de reclusão de 2 a 5 anos. Nos demais crimes
previstos no Título VI do Código Penal, referente aos crimes contra a dignidade
social, há aumento de pena quando praticada contra menores.
A legislação passou a contemplar uma reivindicação da sociedade
para mudar o paradigma referente aos crimes sexuais que considerava a mulher
em posição de inferiorização e numa perspectiva machista. Além disso tornou a
criança e o adolescente mais protegidos em razão da sua condição de pessoa em
desenvolvimento. A idade de 18 anos passou a ser um limite fundamental dessa
231
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
proteção pois pressupõe-se que a maturidade e a autonomia já se encontram
consolidadas nessa idade.
Na mesma lei o Estatuto da Criança e do Adolescente passou a
incluir o Art. 244-B que tipifica o crime de corromper ou facilitar a corrupção de
menor de 18 anos com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticála. A atuação do crime organizado envolve adolescentes e mesmo crianças na
prática de atos contrários à Lei.
À guisa de conclusão podemos salientar que os direitos da criança
e do adolescente se inscrevem na perspectiva dos direitos humanos que se
tornaram o horizonte de fundamentação de um pacto civilizatório diante da crise
dos valores provocada pela competitividade globalizada e pelo neoliberalismo.
A construção de uma sociedade pactuada pelos direitos humanos implica o
envolvimento do Estado, da sociedade e da família para que se reconheça e se
assegure o respeito e a dignidade de adultos e crianças.
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
LIBERDADE DE SER, PENSAR E CRER – DESAFIOS À INTOLERÂNCIA
Washington Araújo*
Em 10 de dezembro de 1948 o processo civilizatório estabeleceu
um novo marco em seu desenvolvimento – a promulgação pelas Nações Unidas
da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O pano de fundo era sombrio. O
horizonte ainda trazia consigo a névoa de uma guerra mundial que interrompeu
a vida de nada menos de 60.000.000 de seres humanos. Cidades inteiras como
as japonesas Hiroshima e Nagazaki evaporaram ante o impacto de duas bombas
atômicas. Os meses que se seguiram ao fim da guerra forneceram informações
sobre o elevado nível de degradação moral e espiritual a que chegou a espécie
humana. Foram descobertos os campos de concentração em massa e as
experiências macabras a que seres humanos foram submetidos. Hannah Arendt
ao cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, em Jerusalém, nos primeiros anos
de 1960, iria encontrar uma tese para explicar o inexplicável: o homem como
protagonista da banalização do mal.
Independente de existir ou não um diploma legal a verdade é que
a experiência do Sagrado permeia as civilizações e as sociedades humanas. É
parte integrante da cultura dos povos e a ela está conectada como a sombra se
projeta do corpo, como a pele protege o corpo humano. Mas haveria de fazer
parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos a afirmação inequívoca e
indubitável do que dispões seu artigo 18: “Toda pessoa tem direito à liberdade
de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar
de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em
público ou em particular.”
Atônito, aturdido, perplexo. É assim que o ser humano se vê
quando contempla os imensos desafios que jazem à sua frente. É a perplexidade
de existir em um mundo convulsionado, onde o que parece sólido há muito se
desmanchou no ar, em que a História, a sua história teve seu fim decretado
* Washington Araújo é graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UniCEUB), mestre em Comunicação Social (Cinema) pela Universidade de Brasília, professor do Curso de Pós-Graduação
do UniCEUB – Brasília e professor de Cursos de Extensão na Unilegis – Brasília.
235
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
nos estertores do século passado, no qual o equilíbrio – sempre tênue – entre
forças historicamente antagônicas como uniformidade e diversidade, capital e
trabalho, competição e cooperação, nacionalismo e cidadania mundial tem se
mostrado extremamente frágil e projeta para os anos vindouros razões para
preocupação. Uma preocupação planetária. É inegável que a maior parte dos
conflitos sangrentos de nossa História resultam da intolerância e do fanatismo
religioso. Na Idade Média conflitos ceifaram milhares de vidas. As Cruzadas
colocaram lado a lado o poder temporal dos reis e governantes com os símbolos
sagrados tanto do Cristianismo quanto do Islã. A descoberta do Novo Mundo em
1492 também se escreveu com a tinta rubra da fé que deveria se impor a ferro
a e a fogo e o resultado foram milhões de indígenas escravizados, torturados,
assassinados. Há seis décadas (1939/2009) a Europa foi palco da mais tenebrosa
cicatriz de nossa história espiritual – o extermínio de 6.000.000 de judeus sob o
jugo de Adolf Hitler e seus asseclas.
Não faz muito tempo assistíamos nas telas de nossa tevê o
genocídio dos curdos no Iraque e no Irã, o massacre dos sérvios e croatas nos
Bálcãs por motivo religioso. Permanece intocado o drama agônico de milhões
de tibetanos que, apartados de seu líder espiritual, o Dalai Lama, continuam
mantendo a muito custo a chama de sua fé acesa. No Irã sobrevivem 300.000
membros da religião bahá´í vítimas contumazes de governos intolerantes,
fanáticos e avessos completamente ao diálogo interreligioso. E enquanto digito
essas palavras estou, infelizmente, convencido de que grande número de seres
humanos são forçados a abdicar de suas crenças, são alvo de todo tipo de
perseguição movida sistematicamente pelos governos de plantão, em particular,
cidadãos de países que esposam ideologias totalitárias.
Os dons naturais que distinguem o gênero humano de todas
as outras formas de vida encontram-se resumidos naquilo a que se chama
espírito humano; o intelecto é a sua qualidade essencial. Esses dons permitiram
à humanidade construir civilizações e prosperar materialmente. Mas tais
realizações, por si só, nunca saciaram o espírito humano, cuja natureza misteriosa
o predispõe para a transcendência, para estender-se em direção a um domínio
invisível, à realidade suprema, àquela essência das essências incognoscível
chamada Deus. As religiões, trazidas à humanidade por uma série de luminares
236
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
espirituais, têm sido os principais elos de ligação entre a humanidade e essa
realidade suprema, e têm galvanizado e refinado a capacidade da humanidade
para alcançar o sucesso espiritual juntamente com o progresso social.
Nenhuma tentativa séria de endireitar os afazeres humanos e
de alcançar a paz mundial pode ignorar a religião. A sua percepção e prática
pelo homem são assuntos amplamente cobertos pela História. Um eminente
historiador descreveu a religião como «uma faculdade da natureza humana».
Que a perversão desta faculdade tenha contribuído em grande parte à confusão
que atualmente reina no mundo, e os conflitos existentes entre os indivíduos e no
seu íntimo, dificilmente pode ser negado. Ao mesmo tempo, nenhum observador
imparcial pode menosprezar a influência preponderante exercida pela religião
sobre as expressões vitais da civilização. Mais ainda, a sua indispensabilidade à
ordem social tem sido repetidamente demonstrada pelo seu efeito direto sobre
as leis da moralidade.
Falando da religião como força social, Bahá’u’lláh (1817-1892) disse:
«A religião é o maior de todos os meios para o estabelecimento da ordem no
mundo para o contentamento pacífico de todos os que nele habitam». Referindose ao eclipse ou à corrupção da religião, ele escreveu: «Se a lâmpada da religião
for obscurecida, reinarão o caos e a confusão, e as luzes da eqüidade, da justiça,
da tranqüilidade e da paz deixarão de brilhar». Enumerando as conseqüências
disso, as Escrituras Bahá’ís destacam o fato de que, «nestas circunstâncias, a
perversão da natureza humana, a degradação do comportamento humano, a
corrupção e a dissolução das suas instituições revelam-se em seus aspectos
mais repugnantes e revoltantes. O caráter humano é aviltado, a confiança é
abalada, os nervos da disciplina são relaxados, a voz da consciência humana
é silenciada, o sentido da decência e da vergonha é velado, os conceitos do
dever, da solidariedade, da reciprocidade e da lealdade são distorcidos, e os
próprios sentimentos de paz, alegria e esperança extinguem-se gradualmente.
Se, por conseguinte, a humanidade chegou a uma situação de conflitos
paralisantes, precisa então olhar para si mesma, para a sua própria negligência,
para os cantos de sereia a que tem dado ouvidos, para a fonte dos mal-entendidos
e da confusão perpetrada em nome da religião. Àqueles que se têm agarrado
cega e egoisticamente às suas ortodoxias particulares, e que impuseram aos
237
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
seus devotos interpretações errôneas e contraditórias dos pronunciamentos
dos Profetas de Deus, a esses cabe uma pesada responsabilidade por toda esta
confusão - uma confusão agravada pelas barreiras artificiais erguidas entre a fé e
a razão, a ciência e a religião. Isto porque, partindo-se de um exame imparcial dos
pronunciamentos feitos efetivamente pelos Fundadores das grandes religiões,
e levando-se em conta os meios sociais em que tiveram de cumprir as suas
missões, não se vislumbram fundamentos para as alegações e os preconceitos
que transformam as comunidades religiosas do mundo, e, conseqüentemente,
todos os afazeres humanos.
O ensinamento de que deveríamos tratar os outros tal como
gostaríamos de ser tratados, uma ética repetida de várias maneiras em todas as
grandes religiões, apóia esta última observação em dois aspectos particulares:
resume a atitude moral, o aspecto promotor da paz que emana dessas religiões,
independentemente do lugar ou da época em que tiveram a sua origem; e
implica também um aspecto de unidade que é a sua virtude essencial, uma
virtude que a humanidade, com a sua visão fragmentada da História, não tem
podido apreciar.
Se a humanidade tivesse visto os Educadores da sua infância
coletiva em seu verdadeiro caráter, como agentes de um processo civilizatório,
teria indubitavelmente colhido benefícios incalculavelmente maiores dos efeitos
cumulativos das suas sucessivas missões. Desafortunadamente, não o fez.
O ressurgimento da religiosidade fanática, que atualmente se
observa em muitas terras, não pode ser visto senão como um derradeiro
espasmo antes da sua extinção. A própria natureza dos fenômenos violentos
e destrutivos a ele associados é atestado eloqüente da falência espiritual que
representa. Efetivamente, uma das características mais estranhas e mais tristes
de irrupção atual do fanatismo religioso é o modo como, em cada caso, está
minando não só os valores espirituais conducentes à unidade da humanidade,
mas também aquelas vitórias morais únicas ganhas pela religião particular a que
pretende servir.
Por mais vital que tenha sido a sua força ao longo da História da
humanidade, e por mais dramático que seja o atual ressurgimento do fanatismo
religioso militante, a religião e as instituições religiosas, no decorrer das últimas
238
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
décadas, estão sendo considerados por um número crescente de pessoas como
irrelevantes em relação às principais preocupações do mundo moderno. Em
seu lugar, as pessoas voltaram-se ou para a procura hedonística da satisfação
material, ou para a devoção a ideologias fabricadas pelos homens com o objetivo
de salvar a sociedade dos males evidentes de que padece. Lamentavelmente,
muitas dessas ideologias, em vez de abraçarem o conceito de unidade da
humanidade e promoverem o aumento da concórdia entre os diversos povos,
manifestaram tendência a deificar o Estado, a sujeitar o resto da humanidade ao
domínio de uma nação, raça ou classe, a procurar suprimir toda a discussão e o
intercâmbio de idéias, ou a abandonar friamente milhões de seres humanos à
sorte de um sistema d mercado que, de forma mais que patente, esta agravando
as agruras em que se encontra a maioria da humanidade, ao mesmo tempo que
permite que pequenas parcelas vivam em condições de riqueza, com que nossos
antepassados dificilmente poderiam sonhar.
Como são trágicos os resultados da fés substitutas que os sábios
mundanos da nossa era criaram! Na desilusão maciça de populações inteiras que
foram ensinadas a venerar em seus altares, pode ler-se o veredicto irreversível
da História acerca do seu valor. Os frutos que essas doutrinas produziram, após
décadas de um exercício cada vez mais irrestrito do poder por aqueles que lhes
devem a sua ascensão no mundo dos homens, são as enfermidades sociais
e econômicas que invadem todas as regiões do mundo nos anos finais deste
século XX. Na base de todas essas aflições exteriores estão os danos espirituais,
refletidos na apatia que se apossou da massa dos povos de todas as nações e
na extinção da esperança nos corações de milhões de destituídos e angustiados.
Chegou o momento em que aqueles que pregam os dogmas
do materialismo, quer do Leste ou do Oeste, tanto o capitalismo quanto o
socialismo, terão de apresentar contas da tutela moral que têm presumido
exercer. Onde está o “novo mundo” prometido por essas ideologias? Onde
está a paz internacional a cujos ideais proclamaram a sua devoção? Onde
estão os avanços para novos domínios de progresso cultural, produzidos pelo
enaltecimento desta raça, daquela nação ou de determinada classe? Por que é
que a vasta maioria dos povos do mundo está se afundando cada vez mais na
fome e na miséria, quando os árbitros atuais dos afazeres humanos têm a sua
239
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
disposição riquezas incalculáveis, a uma escala jamais concebida pelos Faraós e
pelos Césares, e nem mesmo pelas potências imperialistas do século passado?
Muito em especial, é na glorificação das conquistas materiais simultaneamente origem e característica comum de todas essas ideologias - que
encontramos as raízes da falsa crença de que seres humanos são incorrigivelmente
egoístas e agressivos. E é aqui que o terreno tem que ser desobstruído para a
edificação de um novo mundo digno dos nossos descendentes.
A conclusão de que os ideais materialistas falharam, quando
examinados à luz da experiência, evoca um reconhecimento honesto de
que tem de ser feito agora um novo esforço para encontrar soluções para os
problemas angustiosos do planeta. As condições intoleráveis que predominam
na sociedade falam de fracasso comum de todos eles, circunstâncias que tende
a reforçar, em vez de aliviar, o entrincheiramento de parte a parte. Claramente,
há necessidade urgente de um esforço em comum para remediar tal estado
de coisas. O que é preciso, acima de tudo, é uma mudança de atitude. Irá a
humanidade continuar com a sua obstinação, apegada a conceitos superados e
suposições impraticáveis? Ou irão os seus dirigentes, independentemente das
suas ideologias, dar um passo à frente e, animados por uma vontade inabalável,
conferenciar uns com os outros, numa procura solidária de soluções apropriadas?
Aqueles que se interessam pelo futuro do gênero humano bem
podem ponderar este conselho: “Se os ideais há muito nutridos, se as instituições
honradas pelo tempo, se certas suposições sociais ou fórmulas religiosas já não
promovem o bem-estar geral da humanidade, se deixaram de corresponder às
necessidades de uma humanidade em constante evolução, que sejam, então,
repelidos e relegados ao limbo das doutrinas obsoletas e esquecidas. Por que
razão, num mundo sujeito à lei imutável da transformação e da decadência,
deveriam ficar isentos da deterioração que há necessariamente de alcançar
todas as instituições humanas? Afinal, a única finalidade das normas jurídicas,
das teorias políticas e econômicas, é a salvaguarda dos interesses da humanidade
em seu todo - e não é a humanidade que deve ser crucificada para a preservação
da integridade de qualquer lei ou doutrina particular”.
Há que se fazer também considerações sobre a percepção que temos
do mundo atual após o acelerado desenvolvimento dos meios de comunicação
240
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
e integração econômica e tecnológica. O processo conhecido como globalização
avançou célere no último quarto de século e a interdependência entre povos e
nações tornou-se fato consumado. Mas, à medida que passamos a nos enxergar
como um só mundo, como cidadãos de um único planeta vimos confrontados
por duas visões distintas – apreciar a rica diversidade humana ou menosprezar
esse padrão distintivo de nossa evolução rumo ao estabelecimento de uma
civilização universal. Em apoio à atitude positiva de inclusão de todos os seres
humanos no contexto de sermos membros de uma só família mundial e que
atende pelo nome de humanidade vimos o surgimento de um sem número de
organismos internacionais, multilaterais reunindo países, povos e culturas em
busca de objetivos comuns como, por exemplo, distribuição equitativa de bens
econômicos e políticas públicas para a justiça social, encurtamento do imenso
abismo que separa ricos de pobres. O contraponto tem surgido com igual vigor
– o surgimento de atitudes belicosas, pensamentos beligerantes acerca da
natureza humana, focos de intolerância étnica, racial, religiosa além do fomento
de filosofias fundamentalistas. Em outras palavras poderíamos afirmar que a
intolerância – seja de qual matiz for – apresenta-se como o maior obstáculo
ao estabelecimento de uma civilização firmada no respeito e na promoção
dos direitos fundamentais da pessoa humana pois a liberdade de ser, pensar
e crer bem pode ser considerada como a característica distintiva da condição
humana, uma característica que não pode, sob qualquer preceito ou instância,
ser diminuída ou vilipendiada sob pena de jogarmos na lata de lixo da História
todos os avanços até hoje conquistados.
Tendo estes pensamentos em mente pensei, então, no número
expressivo de vidas de seres humanos que são brutalmente interrompidas por
se recusar a abdicar de suas crenças. Levas de seres humanos condenadas pelo
ato de pensar. Gerações inteiras desperdiçadas em lutas inúteis onde brilham os
fogos fatídicos da intolerância. É que cada um de nós abriga no lado esquerdo
do peito uma usina de emoções, sentimentos, percepções, intuições. A mente
cria as leis, as salvaguardas, gera os mecanismo de proteção de direitos. Mas
é o coração que lhes concede o sopro do espírito, as brisas da alma, as digitais
do Sagrado. Foi assim que queria hoje escrever apenas com o coração. Nada de
dedos e muito menos de teclado.
241
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Queria escrever com ondas do mar, dessas em que a crista se
sobressai. Nada de lamentar o tempo perdido e muito menos fazer considerações
sobre o que ainda há de vir.
Queria escrever com o sentimento mais puro e por isso mesmo,
mais refinado e precioso. Nada de rebuscar lenha colocada na fornalha da
mente, sempre fumegante.
Queria escrever apenas com os olhos, olhos que vêem perfeição.
Nada de olhos que buscam a todo o momento aperfeiçoar o imperfeito.
Queria escrever tudo em tonalidades de azul, do escuro ao claro,
passando pelo meio, onde nuvens poderiam ser colocadas sem alterar um piscar
de olhos da paisagem.
Nada de cores muito sóbrias e sombrias e muito menos de furtacores.
Queria escrever com a luz decrescente do sol que se põe, as palavras
seriam fulgores arroxeados, as frases seriam claras como o luar depois das onze
da noite. Nada de luzes ofuscantes, holofotes exagerados, nada que faça arder a
pupila e canse a vista.
Queria escrever palavras em fogo líquido, sendo derramadas pouco
a pouco sobre minha consciência, deixando marcas e mais marcas. Nada de
coisas que queimam e machucam a sensibilidade.
Queria escrever sinais de fumaça sem usar parágrafos longos e sem
fazer uso de verbos intransitivos. Nada de sinais muito permanentes e muito
menos desses que demoram muito a se evaporar.
Queria escrever mil páginas com um só sopro, sopro de vida, sopro
de alma. Nada de lufadas criando sensações de desalinho e de desalento.
Queria escrever um bilhete que começasse assim: “Apesar de tudo,
nunca me afastei de ti.” Nada de bilhetes rebuscados, com vocativos e saudações
finais.
Queria escrever uma frase que começasse assim: “E amanheceu
em meu coração uma nova sensação, uma sensação de que faço parte do todo.”
Nada de frases banais e corriqueiras nem de pedaços de pensamento que o
tempo de encarregou de lhes dar cabo.
Queria escrever um poema sem nome, desses que se acerta com
242
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
o nome à medida que se vai lendo. Nada de poemas fabricados com as placas
duras e cinzentas do concreto que tanto se enraízam em Brasília.
Queria escrever um verso que pudesse ser lido de mil diferentes
maneiras. Nada de métrica nem de observação a teorias literárias.
Queria escrever apenas manchetes para jornais. Sem notas
explicativas e sem seções do tipo “entenda o caso”. A própria manchete daria
conta do recado.
Queria escrever uma palavra de consolo e esperança aos que
tombam, inocentes, nas guerras inúteis e sem sentido que povoam nossos
noticiários. Nada de lágrimas de luto nem de desespero incontido.
Queria - como o poeta - compor uma sinfonia que contivesse uma
pausa de mil compassos. Nada de novos ritmos, frenéticos, bem arrumadinhos
e muito menos delirantes.
Queria escrever algo duradouro como a criança escreve seu nome e
faz um desenho à beira-mar, inconsciente da onda que se aproxima, inexorável.
Nada de tratados verborrágicos nem de verbetes para aprisionar o senso comum.
Queria escrever traços que me lembrassem de todos os que amei,
amo e virei a amar. Nada de imagens fugidias que em nada marcaram minha
peregrinação pela vida.
Queria escrever a quem me alfabetizou que fiz bom uso da maioria
das letras do alfabeto. Nada de x, y ou z e muito menos de palavras que vagam
pelos dicionários sem qualquer senso de direção, desnorteadas em meio a
tantos milhares de verbetes.
Queria escrever como quem leva flores ao túmulo dos vencidos da
Terra. Nada de algazarra nem de piedosas intenções.
Queria escrever aos meus companheiros de viagem que continuem
o que deve ser continuado e que vivam cada dia como se fosse o seu último
dia. Nada de conselhos, provérbios populares, histórias que foram recolhidas na
terceira margem do rio da vida.
Queria escrever aos amigos que conheci ainda aos dezessete
anos, algo que começasse assim com a sentença forte do “a gente ainda nem
começou…” Nada de planos e projetos de caminhada a dois, a três ou a quatro e
muito menos de multidões desencantadas de futuros amigos.
243
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
Queria escrever um testamento que tivesse a leveza do vôo do bemte-vi, suspenso no ar como se presenciasse o milagre da insustentável leveza
do espírito. Nada de coisas materiais e imateriais e nada de nome de possíveis
herdeiros.
Queria escrever neste momento meu epitáfio: “Nasceu. Viveu.
Sonhou”. Nada de triste e profundo, nem muito menos algo que lembrasse que
passei por aqui.
Queria escrever para os meus mortos mais queridos e mais amados
e dizer o que não foi dito enquanto aqui estiveram. Nada de angústias, lamúrias,
lamentações.
Queria escrever o que não pode ser escrito. Mas que pode, muito
bem, ser sonhado, amado e vivido.
244
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
A EXAUSTIVA JORNADA DA HUMANIDADE
Xavier J M Plassat174*
O tráfico de seres humanos voltou a ser manchete na atualidade global
No Brasil, a recém estabelecida Política Nacional de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas adotou a definição do Protocolo de Palermo (Protocolo
Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas,
em especial Mulheres e Crianças) ao definir o tráfico de pessoas “como o
recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento
de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação
de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios
para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra
para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou
serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou
a remoção de órgãos”. (Decreto n° 5.948 de 26.10.2006).
Escravatura e tráfico são faces da mesma moeda
No relógio da história mundial, a proibição da escravatura é fato de
ultima hora. A prática da escravidão tem acompanhado a humanidade desde
seus princípios, como recordam documentos dos antigos impérios da Babilônia
ou papirus do Egito. Um estatuto legal para o escravo existe pelo menos a partir
de 1790 antes de JC e, por milhares de anos, permaneceu quase inquestionada a
existência de uma não-humanidade ao lado da real. No código antigo de Babilon,
se um farmacêutico cometia erro fatal em um paciente, devia ser castigado
Xavier J M Plassat - Frade dominicano, francês, 58 anos, formado em Ciências Políticas, Economia e Administração (Paris I). Na França, foi auditor financeiro a serviço das comissões de
fábrica (1976-1988). Desde 1989, é agente da CPT, no Tocantins, nas áreas de formação, organização e administração ligadas às lutas camponesas e à reforma agrária. Desde 1997, assume
a Coordenação da Campanha Nacional da CPT contra o Trabalho Escravo, a qual representa na
CONATRAE.
*
245
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
com corte das mãos, salvo se este fosse um escravo, caso em que só deveria
fornecer outro. Nas suas cartas, o apóstolo Paulo de Tarso tratou do assunto
com naturalidade ao conclamar que “aqueles que se encontram sob o jugo da
escravidão tratem seus patrões com todo o respeito, para que o nome de Deus
não seja blasfemado. Os que têm patrões que acreditam, não os desrespeitem,
porque são irmãos. Pelo contrário: sirvam a eles melhor ainda, pois aqueles que
se beneficiam de seus trabalhos são fiéis e irmãos amados.”(1Tm 6,2). O escravo
é homem? O próprio Aristóteles o rebaixa à condição de sub-homem quando
apresenta uma relação mestre/escravo mutuamente benéfica, à imagem
da relação alma/corpo... Na mãe das democracias, uns são chamados a ser
cidadãos, outros a laborar para prover às necessidades dos primeiros. Tida por
natural, a escravidão só suscita dúvida quando homens livres ‘por natureza’ são
capturados e, por fraude ou por guerra, caem na escravidão. Para vários autores,
a escravidão física foi tida como mal menor frente ao risco da escravidão moral
ou espiritual (do vício). Quem sabe, diria-se hoje, frente ao risco do desemprego
ou o perigo da delinquência: qualquer trabalho não é melhor do que nada? Não
faltaram ainda as justificações teológicas ou éticas: ao fim e ao cabo, a escravidão
decorre do pecado.
As vozes contrárias a essa estrutura fundante da organização
social de todos os tempos são raras exceções: tratar bem seu escravo é a
máxima ressalva, propor-lhe o exercício da virtude como caminho da verdadeira
liberdade é a estratégia. Aceitar sua sina como mal menor e quem sabe,
expressão da normalidade, é o mote. Isolado no século XVI, o dominicano
espanhol frei Bartolomeu de Las Casas será um destes francos e incansáveis
atiradores, incomodado pelo grito lançado na Ilha de La Espanhola pela
comunidade também dominicana de Antônio de Montesinos: “Estes, não são
homens? Com que direito os escravizais?” Durante o século do Iluminismo – que
viu filósofos se erguerem contra o absolutismo, o obscurantismo, a realeza e a
Igreja – registrou-se o recorde absoluto do tráfico negreiro entre a França e suas
colônias (Guadeloupe, Martinique, e sobretudo Santo Domingo, futuro Haíti):
1,1 milhão de escravos africanos, sendo 270 mil somente na década de 1780.
Quem destes filósofos levantou voz contra? Nem Rousseau, nem Montesquieu.
Apenas com Mirabeau e Diderot aparecerão críticas à desumanidade do sistema
246
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
do comércio triangular e perspectivas – ainda que remotas – para a emancipação
dos escravos.
Passados 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: o
número estimado de escravos que hoje existem mundo afora - entre 12,3 milhões
(estimativa da OIT, sendo 1,4 para exploração sexual) e 27 milhões (estimativa
da ONG americana Free the Slaves) - ultrapassa a quantidade acumulada de
população traficada da África para o outro lado do Atlântico em mais de três
séculos de comércio negreiro e, possivelmente, fica acima de qualquer outro
momento da história. A OIT estima em 170 milhões o número atual de migrantes
no mundo, metade deles ‘economicamente ativos’ e 2,7 milhões ‘traficados’,
sendo 15% destes a partir do Brasil: “vidas roubadas” (Binka Le Breton), “gente
descartável” (Kevin Bales)...
De 1550 a 1850, quando o tráfico, ilegal desde 1830, foi
definitivamente abolido, o Brasil importou cerca de 3,5 milhões de cativos
africanos, número que representa cerca de 40% dos Africanos arrancados às
terras de Angola, Congo, Mina ou Moçambique rumo ao Novo Mundo. Com uma
taxa média de mortalidade de 20% a 25% a bordo dos návios negreiros, mais um
milhão nunca chegaram ao litoral da Terra da Santa Cruz. Ano sim, ano não, 7
a 15.000 cativos entraram nos portos brasileiros onde seriam leiloados para ir
sustentar os ciclos sucessivos da cana, do ouro e do café. Entre 1850 e 1888 –
ano da lei Áurea: somente 60 anos antes da Declaração Universal – uma média
anual de 5.500 escravos foram traficados das regiões de depressão econômica
do Norte e Nordeste com destino aos novos pólos de desenvolvimento do Centro
e do Sul. Em 1819, da população total do Brasil (3,6 milhões), 30% são escravos.
Em 1872: 15% ainda.
E hoje? Os censos deixaram de contabilizar a população escrava no
Brasil, por suposto extinta com a Abolição legal. Ninguém também se preocupou
em conferir os destinos exatos dos ex-escravos que – pelo efeito calculado da
Lei de Terras aprovada just in time para afastá-los do acesso à terra (até então)
livre – foram fadados a ingressar no exército de reserva dos sem-terra e sememprego (a não ser voltando a servir nas terras dos seus antigos patrões). O
ciclo da borracha recorreu conhecidamente a novos escravos na forma moderna
do ‘sistema do barracão’, mas a idéia de que a escravidão havia finalmente sido
247
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
extinta no país passou a ser geralmente aceita.
No início dos anos 1970 porém, enquanto o regime militar deflagrava
seu ‘milagre econômico’, especificamente dando corpo ao sonho amazônico
(terra sem gente para gente sem terra), começaram a surgir denúncias de que
o velho conhecido trabalho escravo havia voltado a ser um dos ingredientes
convocados. O grito profético do bispo Pedro Casaldáliga e as primeiras
denúncias levantadas pela jovem Comissão Pastoral da Terra foram recebidos
como agressões anti-patrióticas. Revirar a montanha do negacionismo oficial foi
uma luta penosa. Uma peleja de 20 anos, associando figuras das mais diversas:
peões escravizados empreendendo ousadas fugas a despeito dos mil perigos
que os esperavam no caminho; sindicalistas e agentes de pastoral assumindo
despojada acolhida e metódicos levantamentos de depoimentos de vítimas,
em ambiente de completa insegurança; corajosas iniciativas de personalidades
ímpares do Ministério Público Federal e da OAB então reunidas, junto com a
Contag, a CPT e alguns poucos, no Fórum Nacional contra a Violência no Campo;
criteriosas denúncias levadas ao conhecimento das instâncias internacionais
competentes: sub-Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra (1983),
Assembléia Geral da OIT, em Genebra, Comissão de Direitos Humanos da OEA,
em Washington (1988).
Se o grito da cidadania não convencia as autoridades por dentro
do país, seu eco amplificado retumbaria desde Genebra, Washington ou San
José de Costa Rica. E assim foi: destacado em sucessivos relatórios do Comitê
dos Experts da OIT ou do próprio Secretário Geral da organização internacional,
citado a comparecer ou a justificar-se de tais vergonhosas alegações, o Estado
brasileiro, aos poucos, não teve mais como se furtar às evidências. Em 1995,
o presidente Fernando H. Cardoso, que havia dedicado anos a investigar ‘a
peonagem por dívida na Amazônia’, reconhece oficialmente o problema. Surgem
então os rudimentos de uma política de repressão ao trabalho forçado: GERTRAF
e Grupo Móvel de Fiscalização, então apresentado como a arma decisiva contra
um crime já conceituado em legislação nacional e convenções internacionais
(nela incorporadas pelo ato da ratificação).
Verifica-se rapidamente os limites desta inovação, pois libertar
escravos nunca erradicou a escravidão: é um passo obviamente indispensável
248
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
mas um passo apenas inicial em vista de uma ação mais abrangente que, nestes
anos, não chegou a ser elaborada. Só começaria a ser idealizada, a partir de
2002, de novo sob pressão interna e externa, no seio da Comissão Nacional de
Combate ao Trabalho Escravo. Enriquecido pelas propostas da sociedade civil
formalizadas na 1ª Conferência Interparticipativa de Açailândia (CDVDH, 2002),
este trabalho desembocaria no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo, lançado em março de 2003 pelo presidente Lula. Um marco decisivo,
pela solenidade do compromisso assumido e pelo caráter integrado: abordagem
multifocal (repressiva e preventiva) e compromisso de um conjunto abrangente
de instituições do Executivo, Judiciário, Legislativo e da sociedade civil. De lá para
cá foi louvado pela comunidade internacional o esforço do Brasil para tentar
acabar com o trabalho escravo: a política proposta pretendia cortar pela raiz
– inicialmente em 4 anos! - a cadeia sistêmica que, no Brasil moderno, produz
e reproduz o trabalho escravo. Que alicia populações assoladas pela ‘precisão’
a serviço de empregadores calculistas, obcecados pelo lucro a qualquer custo,
e inacessíveis ao rigor da lei. Ao tripé vicioso da impunidade, da ganância e da
miséria, a idéia era de contrapor o tripé virtuoso da fiscalização, da repressão e
da prevenção, articulando para isso ações do Estado e iniciativas da sociedade
civil. As carências do primeiro plano aprovado - ausência de ações de repressão
econômica, falta de ações concretas na área de prevenção bem como de políticas
efetivas de inclusão social - foram em parte sanadas na segunda edição do Plano,
lançada em setembro de 2008, de novo com forte tributo à contribuição da
sociedade civil (2ª Conferência de Açailândia, 2006) e ao trabalho da Comissão
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), criada em 2003.
São três os alicerces que sustentam o sistema da escravidão
moderna: a miséria, a ganância e a impunidade. Miséria de milhares de
famílias sem acesso a terra para trabalhar e produzir seu sustento, sem direito
à educação mínima ou à saúde. Dos peões escravizados, independente de
raça – porém em maioria afro-descendentes - a maioria é de analfabetos e indocumentados, quase todos sem terra. São legiões de migrantes arrancados da
sua terra natal, principalmente do Norte e Nordeste. Muitos são trabalhadores
rurais condenados à miséria nas periferias de nossas cidades, depois de terem
sido expulsos do campo ‘pelo progresso’. Miséria produzida pela ganância
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
de um punhado de pecuaristas e agro-negociantes que concentram terras e
recursos naturais, especuladores enriquecidos pela grilagem e a devastação da
floresta; plantadores de soja ou de cana em terras que já foram de posseiros
antigos e de populações tradicionais, desalojados pelo lucro ou a violência
brutal. Ganância incentivada pelo modelo vigente e encorajada pela ausência de
punição dissuasiva – em que pese a importância das condenações pecuniárias
impostas pela Justiça do Trabalho, ninguém foi para a cadeia e ninguém perdeu
a propriedade, instrumento do crime.
Qualquer esforço para combater o trabalho escravo deve encarar
esses três alicerces como os obstáculos a serem derrubados. Este é o objetivo da
Campanha conduzida pela CPT (De Olho Aberto para não Virar Escravo!). Junto
com vários parceiros - Centros de Direitos Humanos, Repórter Brasil, OIT, OAB,
Ministério Público, Justiça do Trabalho - a Campanha realiza um amplo trabalho
de prevenção e formação: divulgação nacional e internacional; sensibilização
dos públicos mais vulneráveis, combatendo a tendência à ‘naturalização’ do
trabalho degradante entre as próprias vítimas; incentivo à organização coletiva;
capacitação de lideranças sociais, formadores de opinião, professores para
multiplicar os efeitos de iniciativas necessariamente limitadas. Essa prevenção
seria ilusória se não articulada às lutas do campo em favor da reforma agrária
e de um modelo de agricultura camponesa sustentável, forma de resistência ao
avanço cego de um agronegócio predador, paradoxalmente a menina dos olhos
do mesmo poder público engajado na erradicação dos seus efeitos mais cruéis.
Uma luta que exige enfim uma efetiva ação repressiva e punitiva por parte do
poder executivo e do poder judiciário e o aprimoramento da legislação vigente.
Negar hoje a permanência de formas modernas de trabalho
escravo no Brasil ficou mais difícil. Exige ousada sutileza ou cínico exercício do
paradoxo. Dos 26.500 escravos oficialmente resgatados de janeiro de 2003 a
setembro de 2008 – 82% do total libertado em 14 anos de existência do Grupo
Móvel – 39% foram encontrados nos estados do Norte e 29% nos do CentroOeste, principalmente ao longo do chamado ‘arco do desmatamento’ que vai
do Maranhão ao Mato Grosso, passando pelo Pará e Tocantins – na pecuária
(40%) e na produção do carvão vegetal (9%), crescendo nos últimos anos os
casos encontrados no cerrado central – cana (26%), soja e demais lavouras
250
OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
(16%). Estima-se em 25 a 40.000 o número de trabalhadores que entram
anualmente no ciclo da escravidão temporária. As cadeias produtivas que
levam produtos do trabalho escravo até o consumidor final hoje são mais
conhecidas, graça a pesquisas criteriosas conduzidas pela ONG Repórter Brasil
com base nos mais de 500 empregadores sucessivamente incluídos na chamada
‘Lista Suja’ semestralmente publicada pelo Ministério do Trabalho (“Cadastro
de Empre­gadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas
à de escravo”, criado pela Portaria MTE 540/2004). Por meio de um Pacto
Nacional, empresas assumiram o compromisso de cortar qualquer negócio com
fornecedores envolvidos na prática do trabalho escravo. À pressão legal – já
reforçada pela habitual imposição feita ao infrator de indenizar os danos morais
individuais e/ou coletivos gerados pelo crime - veio se juntar a pressão comercial
e financeira, muitas vezes ainda mais implacável: quem sobrevive sem acesso ao
mercado ou ao financiamento?
Liberdade, dignidade...ou propriedade? Escolhe, pois a vida!
Mesmo assim, ainda sobram alguns irredutíveis torcedores do
trabalho escravo: aqueles que gastam sua energia em tentar desmoralizar o
combate contra esse crime muito mais do que em enfrentar seus conhecidos
protagonistas. Um significativo exemplo disso é a interminável saga no Congresso
brasileiro da proposta de emenda constitucional que dispõe sobre o confisco
da propriedade onde for encontrado trabalho escravo. Introduzida há 13 anos
e posteriormente apensada com textos de igual teor, a PEC 438/2001 recebeu
aprovação unânime dos Senadores em 2003 e da maioria dos Deputados, em
agosto de 2004, sete meses depois da chacina de Unaí, MG, contra três Auditores
Fiscais do Trabalho e seu motorista. Desde então o texto ficou enterrado. Não
voltou mais à pauta da Câmara para a segunda votação (exigida pelo fato do texto
inicial ter sofrido alteração) apesar de várias pressões da sociedade, por último
uma petição nacional, lançada pela Frente Nacional contra o Trabalho Escravo
(www.trabalhoescravo.org.br). Uma obstinada oposição à eventual adoção da
PEC do Trabalho Escravo reúne a centena de congressistas eleitos na chamada
Bancada Ruralista, parte deles da base governista. É porta-voz incansável do
agronegócio de monocultura exportadora que, mais uma vez, apresenta-se
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
como o trunfo da economia brasileira nos mercados globais.
Em tese, todos concordam: o trabalho escravo é abominável e deve
ser erradicado. Por definição a mais ‘interessada’, a Confederação Nacional da
Agricultura e da Pecuária - em breve presidida pela senadora Kátia Abreu, DEMTO, ilustra defensora das posições negacionistas – tem assento na CONATRAE
e assinou o Plano Nacional de Erradicação. Ela se posiciona contra o crime de
‘trabalho análogo ao de escravo’, mas logo afirma não identificar nenhum dos
seus perpetradores nas suas fileiras. E parte para o ataque: o conceito do trabalho
escravo é vago e absurdamente abrangente, e o direito à ampla defesa negado
aos incriminados arbitrariamente incluídos na Lista Suja por fiscais prepotentes.
Não há nas modernas fazendas filiadas à CNA um só trabalhador mantido à força
ou a correntes. No pior dos casos, há vestígios da forma antiga de se trabalhar
em nosso interior, como afirmou certa vez outro senador tocantinense, João
Ribeiro.
Vago, o conceito? Vejamos o entendimento de alguns dos melhores
conhecedores desta questão (cf Possibilidades jurídicas de combate escravidão
contemporânea, OIT, 2007):
Luis Antônio Camargo de Melo: “Na formulação atual do Art.149CP
- resultado da Lei 10.803, de 11.12.2003 - a condição análoga à de escravos
é o gênero, sendo suas espécies o trabalho forçado e o trabalho degradante,
enfatizando não apenas a supressão da liberdade individual do trabalhador,
mas, sobretudo, a garantia da dignidade deste mesmo trabalhador.”
A liberdade? Um valor exacerbado pela revolução industrial e
exaltado pela burguesa revolução francesa, na onda do laissez faire, laissez
passer, centrada no direito sagrado do indivíduo, contra as corporações e até as
livres associações.
“O trabalho livre como um valor social é algo relativamente recente.
Ocorre que por traz da liberdade do trabalhador, que o liberalismo pressupunha,
havia o interesse econômico da classe emergente: a burguesia. A liberdade de
trabalho foi instrumentalizada para propiciar a livre circulação de riquezas. Foi
somente a partir da 2ª Guerra Mundial que o eixo do ordenamento jurídico
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
passou para a dignidade da pessoa humana. O respeito à dignidade humana
pressupõe a indivisibilidade dos direitos humanos, tais como proclamados na
Declaração Universal da ONU de 1948. Sem a observância dos direitos sociais
não é possível a satisfação dos direitos civis e políticos. Os direitos sociais devem
garantir pelo menos um mínimo existencial. Um trabalhador sem condições
mínimas de trabalho está completamente cerceado em sua liberdade.” (Ricardo
José M. de Britto Pereira, in: O combate ao trabalho escravo na perspectiva do
constitucionalismo, 2008).
“Os incisos II, III e IV do art. 1º da Constituição Federal mencionam
a cidadania, a dignidade e os valores sociais do trabalho e da iniciativa privada
como fundamentos da própria República. A expressão do art. 149 CP abre para
um tipo penal amplo. Para quem vive em condições piores que a de um animal,
a liberdade não é mais do que um mito.
Trabalho forçado: “Para fins da Convenção 29 da OIT, com vigência
interna, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ desig­na ‘todo trabalho
ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer pena­lidade e para
o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade’. Conforme Luiz Guilherme
Belisário, ‘desse modo, trabalho forçado é aquele realizado sob ameaça,
justificando porque o legislador incluiu a vigilância ostensiva e o apoderamento
de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no
local de trabalho, como condu­tas incriminadoras do plágio, bem como o
cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
para retê-lo no local de trabalho. O trabalho forçado também se caracteriza
pela restrição de locomoção do trabalhador, em razão de dívida contraída com
o empregador ou preposto. Essa, sem dúvida, uma das práticas mais comuns da
escravidão contemporânea. A vítima, aliciada mediante promessas enganosas,
é recrutada para trabalhar em regiões distan­tes do seu domicílio ou residência,
trazendo consigo a dívida contraída com o “gato” seja pelo transporte ou pelo
adiantamento de salário concedido ao trabalhador para deixar guarnecida sua
família’.” (Camargo)
Condições degradantes: “Se o trabalhador presta serviços
exposto à falta de segurança e com riscos à sua saúde, temos o trabalho em
condições degradantes. Se as condições de traba­lho mais básicas são negadas
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
ao trabalhador, como o direito de trabalhar em jornada razoável e que proteja
sua saúde, garanta-lhe descanso e permita o convívio social, há trabalho em
condições degradantes. Se, para prestar o trabalho, o trabalhador tem limitações
na sua alimentação, na sua higiene e na sua moradia, caracteriza-se o traba­
lho em condições degradantes. Se o trabalhador não recebe o devido respeito
como ser humano, sendo, por exemplo, assediado moral ou sexualmente, existe
trabalho em condições degradantes.” (José Cláudio M. de Brito Filho, citado por
Camargo)
“A legislação brasileira pertinente não se limite mais a proteger
a liberdade individual, mas a dignidade da pessoa huma­na. É, sem dúvida,
um conceito mais amplo e mais apropriado à efetiva repressão das formas
contemporâneas de escravidão”, continua Camargo e, citando Raquel Dodge:
“Escravizar é grave, porque não se limita a constranger nem a coagir a pessoa,
limitando sua liberdade. Também isto. Escravizar é tornar o ser hu­mano uma
coisa, é retirar-lhe a humanidade, a condição de igual e a dignidade. Não só a
liberdade de locomoção é atingida e, às vezes, a possibilidade de locomoção
resta intacta. Guiar-se por esse sinal pode ser enganador. A redução à condição
análoga à de escravo atinge a liberdade do ser humano em sua acepção mais
essencial e também mais abrangente: a de poder ser. A essência da liberdade é
o livre arbítrio, é poder definir seu destino, tomar decisões, fazer escolhas, optar,
negar, recusar. Usar todas as suas faculdades. O escravo perde o domínio sobre
si, porque há outro que decide por ele. A negativa de salário e a desnutrição
calculadas no contexto de supressão da liberdade de escolha são sinais desta
atitude. Assim como a supressão de órgão humano e a submissão de mulheres
para fins de tráfico.”
Ricardo Pereira: “Os direitos fundamentais são, regra geral,
relativos. Estão sujeitos a juízos de ponderações por parte dos aplicadores do
direito. O direito de propriedade do empresário, por exemplo, não lhe confere o
direito de violar a intimidade e a privacidade dos trabalhadores. Mas há direitos
absolutos, como a proibição da tortura e da redução à condição análoga à de
escravo, pois o núcleo de proteção nestes casos não pode ser relativizado para
resguardar outros valores e direitos constitucionais.”
Segundo Rousseau, as palavras “escravidão” e “direito” se excluem
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OS DIREITOS HUMANOS DESAFIANDO O SÉCULO XXI
mutuamente. O direito de não ser escravo chega, portanto, a ser redundante:
é dizer o que já está dito. Trata-se de um daqueles direitos que não encontram
limites sequer diante de casos excepcionais. Em outras palavras: “são privilegiados
porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também
fundamentais” (Norberto Bobbio, citado por Márcio Túlio Viana)
“Se o desrespeito à função social da propriedade da terra já é,
segundo a Constituição, motivo suficiente para sua possível desapropriação,
o uso da propriedade como instrumento para escravizar o próximo é crime
absolutamente intolerável contra a dignidade e contra a vida. Nada mais
justo que os que praticam esse crime venham a perder sua propriedade, sem
compensação, para que o Estado lhe dê destinação apropriada, especificamente,
para a reforma agrária!” Entre a propriedade e a dignidade, a doutrina,
reafirmada neste pronunciamento recente da CNBB a respeito da PEC 438/2001,
nos orienta clara e biblicamente: “Escolhe, pois a vida!” (Nota da Presidência da
CNBB, 04.06.2008).
A nova abolição que sonhamos terá de ser mais radical que a
primeira – não só reprimindo o trabalho escravo, mas criando condições reais
de vida digna para todos. (Viana)
Não é diferente a lição do frei Bartolomeu de Las Casas: “Todos
os direitos para todos!”. Enquanto houver escravos entre nós, nenhum de nós
estará realmente livre.
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