Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Ano Lectivo 2009/2010 Unidade Curricular de BIOQUÍMICA II Mestrado Integrado em MEDICINA 1º Ano ENSINO PRÁTICO E TEORICO-PRÁTICO 5ª AULA PRÁTICA Doseamento da concentração plasmática de ácido úrico ÁCIDO ÚRICO O homem é um animal ureotélico, uma vez que o ácido úrico é o produto final do catabolismo das bases púricas: adenina (6-aminopurina), guanina (2-amino-6-oxipurina), hipoxantina (6-oxipurina) e xantina (2,6-dioxipurina). Outras xantinas de origem exógena, como a cafeína, a teofilina e a teobromina (presentes, respectivamente, no café, no chá e no chocolate) dão origem ao ácido úrico. Tanto os nucleótidos púricos como os pirimídicos têm outras funções para além de serem precursores dos ácidos nucleicos, DNA e RNA. Assim, os nucleótidos de purina são fonte de energia (ex: ATP), participam na sinalização intra e extracelular (ex: cAMP e cGMP, que actuam como segundos mensageiros) ou funcionam como dadores de grupo metilo (Sadenosilmetionina). Os nucleótidos de pirimidina podem ser usados como intermediários de alta energia (ex: UDP-glucose, UDP-galactose, CDP-acilglicerol -síntese dos lípidos). Os nucleótidos são ésteres fosforilados dos nucleósidos em um ou mais grupos do açúcar. O nucleósido é uma base ligada a um açúcar (D-ribose ou 2-desoxirribose). O único açucar que se liga ao uracilo é a ribose e o único açucar que se liga à timina é o 2desoxirribose. Os nucleósidos púricos são: - Adenosina (adenina + D-ribose) e desoxiadenosina (2-desoxirribose em vez da ribose); - Guanosina (guanina + D-ribose) e desoxiguanosina (idem). Os nucleósidos pirimídicos são: - Citidina (citosina + D-ribose) - Uridina (uracilo + D-ribose) - Timidina (timina + 2-desoxirribose) As bases mais importantes: Pirimidinas: - Citosina (C): 2-oxi-4-aminopirimidina - Timina (T): 2,4-dioxi-5-metilpirimidina - Uracilo (U): 2,4-dioxipirimidina Purinas: - Adenina (A): 6-aminopurina - Guanina (G): 2-amino-6-oxipurina, e - Hipoxantina: 6-oxipurina - Xantina: 2,6-dioxipurina Outras xantinas: Cafeína, Teofilina, Teobromina 1 O produto final da biossíntese das bases púricas é o IMP, que é convertido em AMP e GMP. Os derivados das bases púricas não são incorporados directamente nos ácidos nucleicos ou coenzimas, mas através de intermediários. As purinas do nosso organismo têm fundamentalmente duas origens: i) catabolismo das nucleoproteínas endógenas e alimentares (reciclagem); ii) síntese de novo das purinas (purinossíntese de novo). iii) Na nossa alimentação existem alimentos ricos em purinas, nomeadamente as vísceras dos animais, a carne de animais jovens e os mariscos. Noutros alimentos, a concentração das purinas é baixa, como acontece nos ovos, leite e queijo. No organismo humano, a maioria das purinas ingeridas são convertidas em ácidos nucleicos. As nucleoproteínas ingeridas sofrem a acção de enzimas proteolíticas do intestino e ribonucleases e desoxirribonucleases do suco pancreático. As cadeias polinucleotídicas libertadas são o substrato de polinucleotidases e fosfoesterases, dando origem aos nucleótidos. Estes sofrem a acção de nucleotidases e fosfatases. As bases púricas podem, assim, ser absorvidas sob a forma de nucleósidos ou oxidadas a ácido úrico (Fig. 1). Da hipoxantina derivam a adenina, por aminação em C6, e a xantina, por oxidação em C2. A partir da xantina forma-se o ácido úrico, por oxidação em C2 e C8. A forma predominante do ácido úrico é determinada pelo pH do meio. O pK do protão do N9 é 5,75 e o do N1 é de 10,3. Assim: se pH< 5,75 predomina a forma não ionizada: ácido úrico; se pH = 5,75 [ácido úrico] = [urato de sódio]; se pH > 5,75 predomina a forma ionizada (urato em solução). No sangue (pH=7 e sendo o Na+ o catião mais abundante), o ácido úrico existe na forma de sal monossódico: urato de sódio. Como o sal de ácido úrico é muito pouco solúvel; quando a concentração de ácido úrico aumenta (concentração plasmática de ácido úrico > 7 mg/dl), este sal pode precipitar. Síntese de novo Purinas Dieta Ácidos nucleicos alimentares Degradação endógena Catabolismo das nucleoproteínas Nucleótidos Purina 2 Degradação 1/3 Intestino Uricólise Ácido úrico Ácido úrico CO2 + NH3 Excreção renal 2/3 (Bactérias) Excreção renal Filtração glomerular: 100% Reabsorção tubular proximal: 99% Secreção tubular distal: 50% Reabsorção tubular distal: 40% Excreção: 10% Figura 1- Origem e vias de eliminação do ácido úrico. Vias de eliminação do ácido úrico: - eliminação renal (2/3) - uricólise intestinal (1/3). A excreção renal de ácido úrico aumenta com o aumento da taxa de filtração glomerular e diminui (aumento da uricémia) na insuficiência renal crónica, com taxas de filtração glomerular < 20 ml/min/1,73m2 (N=120). Normalmente, só 30% do urato excretado é proveniente da dieta. 3 HIPERURICÉMIA O ácido úrico é o produto final do metabolismo das purinas, as quais podem ter duas origens: catabolismo das nucleoproteínas (endógenas ou alimentares), ou a síntese de novo, das purinas (Fig. 1). O excesso de ácido úrico pode originar doença, devido à sua deposição tecidular (ex. Gota) que corresponde à inflamação e consequente lesão, nos locais de acumulação. As fontes alimentares de purinas são várias: carnes de animais jovens, mariscos, anchovas, mioleiras, fígado, sardinhas, conservas, etc. As bebidas alcoólicas têm também papel importante na fisiopatologia da doença, por condicionarem aumento de produção e diminuição da excreção (bebidas alcoólicas em geral). A cerveja em particular, além deste mecanismo, tem um elevado teor de purinas. Após a sua produção, cerca de 2/3 do ácido úrico é eliminado pelo rim (250 a 750 mg/dia), sendo o restante, cerca de 1/3, eliminado pelo intestino. O ácido úrico serve também como uma forma de eliminação de azoto. No rim, após a filtração glomerular, 99% são reabsorvidos no túbulo proximal, sendo depois secretados 55% no túbulo contornado distal, ocorrendo aqui nova reabsorção de 40 %. No final, são excretados cerca de 10 % de todo o filtrado glomerular. De todos os uratos excretados, só 30 % pertencem à dieta, sendo os restantes de origem endógena. Normalmente a mulher pré-menopáusica tem taxas de excreção de ácido úrico superiores às do homem, sendo semelhantes nos dois sexos, após a menopausa. A hiperuricémia define-se pelo nível plasmático de ácido úrico acima de 7,0 mg/dl, e pode resultar de: (1) aumento na produção; (2) diminuição na eliminação (renal) ou (3) conjugação de ambas. Quimicamente, fala-se de hiperuricémia quando a concentração plasmática de urato excede os limites de solubilidade do urato monossódico. Sendo um produto final do metabolismo das purinas, o pH do meio influencia a solubilidade do ácido úrico, tal como referimos anteriormente. Sendo o sal de ácido úrico pouco solúvel, quando aumenta a sua concentração pode haver precipitação, o que ocorre habitualmente para valores plasmáticos superiores a 7,0 mg/dl. A hiperuricémia é mais frequente nos indivíduos de sexo masculino. A hiperuricémia pode ser classificada de acordo com a etiologia ou com o mecanismo fisiopatológico. 4 Etiologicamente, as hiperuricémias podem ser: 1. Primárias: • Idiopáticas (causa desconhecida); • Défice de hipoxantina-guanina fosfo-ribosiltransferase (HGPRT); • Aumento da actividade de fosfo-ribosilfosfatase. 2. Secundárias: • Insuficiência renal; • Doenças com elevado “turnover” celular (neoplasias, doenças; mieloproliferativas, crises blásticas, anemias hemolíticas, etc); • Sarcoidose; • Obesidade; • Intoxicação por chumbo; • Drogas (citotóxicos usados na quimioterapia para tratamento de neoplasias, diuréticos, pirazinamida, etambutol, etanol, etc). Quando ocorre uma subida dos valores séricos da uricémia, e ultrapassados os limites de solubilidade do urato plasmático, ocorre precipitação do mesmo. Os orgãos mais atingidos são habitualmente as articulações e o rim, podendo ser afectados outros locais como os lóbulos das orelhas. Nas articulações ocorre depósito de cristais de ácido úrico quando há hiperuricémia de longa duração. Após a sua fragmentação, são fagocitados pelos lisosomas, com lesão subsequente das membranas destes organelos e libertação para o espaço articular de mediadores de inflamação. Este facto origina um processo inflamatório, normalmente de tipo agudo. Classicamente, a primeira articulação a mostrar sinais de doença é a MTF (metatarso-falângica) do 1º dedo do pé (dor conhecida como podagra e muitas vezes acompanhada de febre, mas de origem química e não infecciosa). Posteriormente, outras articulações podem ser afectadas, como o joelho, os cotovelos, etc. Os tofos gotosos são sinais visíveis da doença e consistem em depósitos de ácido úrico no tecido celular sub-cutâneo. São encontrados nos lóbulos das orelhas, mas surgem frequentemente nas extremidades (mãos e pés). No rim, simultaneamente com a deposição de cristais de ácido úrico e consequente nefropatia úrica, há tendência para a formação de cálculos, o que pode originar crises de cólica renal. Acompanhando a deposição progressiva no rim, surge perda progressiva da função renal, a qual por seu lado, pode também ser causa de hiperuricémia. 5 Tratamento: O tratamento da hiperuricémia assenta em duas vertentes, a farmacológica e a dietética, podendo considerar-se o tratamento de fundo e o da crise. 1. Tratamento de fundo: MEDIDAS DIETÉTICAS: • Diminuição da ingestão de alimentos ricos em purinas • Reforço da hidratação oral • Ingestão de águas bicarbonatadas, ou mesmo toma de bicarbonatos, com controlo rigoroso do pH urinário, (úteis na medida em que favorecem a solubilização do ácido úrico, facilitando a sua eliminação). MEDIDAS FARMACOLÓGICAS: • Diminuição da síntese do ácido úrico: alopurinol (inibidor da xantina-oxidase; Fig. 2); • Aumento da excreção renal, com recurso a medicamentos que aumentem a excreção. Nos doentes que já apresentem uma taxa de excreção aumentada, são de pouca utilidade e naqueles que sofram de litíase (cálculos) renal úrica, a estratégia mais correcta é a inibição da síntese. • Nos casos em que existem tofos gotosos muito exuberantes, pode haver necessidade de cirurgia para a sua extracção. 2. TRATAMENTO DA CRISE: • Colchicina • Anti-inflamatórios (não esteroides) • Analgésicos • Repouso 6 GMP AMP Adenosina deaminase IMP Guanosina 5’-Nucleotidase Inosina Guanina Purina nucleósido fosforilase Hipoxantina Guanase Xantina oxidase Xantina Xantina oxidase Ácido Úrico Urina Figura 2- Degradação das purinas. O alopurinol inibe a síntese de ácido úrico, pois inibe a enzima xantina oxidase. 7 MÉTODOS DE DOSEAMENTO DO ÁCIDO ÚRICO: - Reagente de Folin e Denis – é um método baseado na coloração que o ácido produz após redução daquele reagente. Apesar de ser um método rápido, cómodo e aplicável ao sangue e urina, não é um método específico, uma vez que os derivados purínicos e os cromogéneos não uráticos falseiam o resultado, reagindo eles também com o reagente de Folin e Denis. - Método Enzimático – o ácido úrico é convertido em alantoína e peróxido de hidrogénio por acção da enzima uricase. Por acção da peroxidase, o H2O2 oxida o ácido 3,5- dicloro-2hidroxibenzenosulfónico e a 4-aminofenazona para formar a quinoneimina, um composto corado e detectado por espectrofotometria do visível: uricase 1) Ácido úrico + O2 + 2 H2O Alantoína + CO2 + H2O2 peroxidase 2) H2O2 + Ácido 3,5-dicloro-2-hidroxibenzenosulfónico + 4-aminofenazona N-(4antipiril)-3-cloro-5-sulfonato-p-benzo-quinoneimina. A determinação quantitativa da eliminação do ácido úrico na urina tem pouco valor clínico e só tem interesse se se conhece o valor das bases púricas da dieta ou se se estabelece uma dieta pobre em purinas (caso interesse quantificar a fracção endógena). 8 Unidade Curricular de BIOQUÍMICA II, Mestrado Integrado em MEDICINA, 2009/2010 PROTOCOLO DE BANCADA - 5ª AULA PRÁTICA Doseamento da concentração plasmática de ácido úrico (Uricémia) GRUPOS 1 a 4 Amostra: Soro ou plasma isolado de sangue colhido em heparina ou EDTA. Padrão: Ácido úrico 595 µM (10 mg/dl) Tampão: Hepes (50 mM), pH 7,0 + ácido 3,5-dicloro-2-hidroxibenzenosulfónico (4 mM) Reagente enzimático: 4-Aminofenazona (0,25 mM) + Peroxidase (1000 U/l) + Uricase (200 U/l) Solução de Trabalho (proteger da luz): Reconstituição do Reagente enzimático com a solução Tampão. Estabilidade: 5 dias a 15-25ºC ou 21 dias a 2-8ºC. Preparação dos tubos: Tubos Amostra Padrão Solução de trabalho 1 Padrão - 20 µl 1 ml 2 Amostra 20 µl - 1 ml 3 Branco - - 1 ml • Misturar e incubar durante 5 minutos a 37ºC ou 15 minutos à temperatura ambiente. • Ler a absorvância da amostra e do padrão, contra o branco (zero), a 520 nm. A intensidade de cor é estável durante 30 minutos. Linearidade: O método é linear até uma concentração de 20 mg% ou 1189 µM. Acima deste valor, as amostras deverão ser diluídas (1:2) com NaCl 0,9%. Cálculos: DO (amostra) [Ácido úrico] = X Concentração do Padrão DO (padrão) Valores referência: Mulheres: 2,4 – 5,7 mg% ou 142 – 339 µM. Homens: 3,4 – 7,0 mg% ou 202 – 416 µM. 1 NOTA: Concentrações de hemoglobina e bilirrubina até 100 mg% e 20 mg%, respectivamente, não afectam a determinação da concentração de ácido úrico. ATENÇÃO! Algumas soluções (ex. tampão para determinação da uricémia) contêm o conservante azida de sódio, que é tóxico. NOTAS IMPORTANTES SOBRE A AZIDA DE SÓDIO: - Evite ingerir ou o contacto com a pele ou mucosas. - No caso de contacto com a pele, lave imediatamente com bastante água. - No caso de contacto com os olhos e se ingerido, dirija-se ao Centro de Saúde ou Hospital mais próximo. - A azida de sódio reage facilmente com o chumbo ou cobre dos lavatórios/superfície de metal e forma compostos de azida altamente explosivos. - Os tubos contendo azida de sódio devem ser colocados em contentor próprio para resíduos perigosos. - Em caso de derrame, as superfícies de metal deverão ser lavadas com uma solução de 10% de hidróxido de sódio (NaOH) para descontaminação. 2