O Manifesto do Samba Rock Por José Xavier Introdução O samba rock é dançado nas periferias da capital paulista desde meados dos anos 60. Essa cultura propagada por dançarinos entusiasmados ao longo de décadas vem aos poucos se tornando conhecida do grande público. O manifesto do samba rock organiza os principais elementos da história e da cultura do samba rock alinhavando ideias até então transmitidas de forma dispersa. Na base do “um fala uma coisa aqui, outro fala outra coisa ali” as pessoas foram formando ao longo dos anos uma visão fragmentada sobre o todo da cultura. O manifesto procura corrigir isso. Do surgimento da dança nos bailes dos anos 60 até os dias de hoje muita coisa aconteceu. O momento inicial, amador e espontâneo, foi gradativamente sendo substituído pela cena atual onde a necessidade de profissionalismo é cada vez maior. O samba rock que antes era uma cultura vinculada aos eventos de black music e samba, hoje trilha seus próprios caminhos como cultura independente. Ao dar nome às idéias e definir conceitos o manifesto do samba rock estabelece um vocabulário. A adoção desse vocabulário é importante para ajudar a aprofundar o diálogo sobre projetos de samba rock e facilitar seu alinhamento com a cultura. O manifesto se propõe a organizar e fortalecer a cultura do samba rock. Não é proposta desse manifesto contar toda a história em detalhes, mas o manifesto deixa claras as origens do samba rock e as principais fases de sua história. Origens A expressão samba rock surgiu para indicar a mistura da cultura brasileira (representada pelo samba) com a cultura internacional (representada pelo rock). Fazer um “samba rock” era misturar influências sonoras de lá e de cá, mas não necessariamente de samba e de rock apenas. Podia ser samba com jazz, forró com rock, black music, blues ou qualquer outra mistura. Fazer samba rock era simplesmente misturar. A dança do samba rock é herdeira do swing americano, uma dança acelerada que surgiu para se dançar jazz nos anos 30 e mais tarde foi usada também para dançar rock and roll. O brasileiro sambificou o swing incorporando ginga e dançando mais devagar e sem acrobacias, mas o swing introduziu seus giros no samba que se dançava junto. É dessa mistura que nasceu o samba rock que dançamos hoje e que no início nem se chamava samba rock e sim “rock”. Cabe esclarecer que rockabilly é um gênero musical (um rock mais country) e não uma dança. O que chamamos de “dança rockabilly” no Brasil é o swing jive, uma das numerosas variações da dança do swing americano. O swing jive é uma das maiores referências originadoras do samba rock. A dança do samba rock é o swing brasileiro surgido numa época de experimentação musical (sem fronteiras claras de gênero) e dançado com qualquer música que encaixasse em sua forma de dançar. Os músicos dos anos 60 e 70 experimentaram novos instrumentos, novas técnicas e sonoridades. Muitos deles, sem querer, acabaram fazendo música adequada para dançar samba rock. A dança do samba rock nasceu na periferia de São Paulo, no seio da comunidade afrodescendente. O interesse dos amantes da dança por músicas para dançar no baile, fez com que a procura por discos com músicas para samba rock aumentasse. A música tomou impulso na dança inicialmente. Artistas como Jorge Ben e Bebeto tiveram grande aceitação em São Paulo porque produziam música que dava pra dançar. A idéia de samba rock como gênero musical se fortalece com o surgimento das bandas de samba rock na virada do milênio. No rastro do legado dos precursores Jorge Ben, Trio Mocotó, Bebeto, Luis Vagner (entre outros não menos importantes) emerge uma música que continua a tradição da batida dançante e assume o rótulo de samba rock (um rótulo não assumido pelos anteriores que atribuíam outros nomes ao seu estilo de composição). Até surgirem as bandas, os bailes eram comandados por DJs que tocavam coletâneas de músicas para dançar samba rock. Nessas coletâneas havia faixas de jazz, rock, mambos, música instrumental, sambalanço, entre outros gêneros compatíveis com a dança. O primeiro álbum totalmente dedicado ao samba rock produzido por uma banda foi “Swing & Samba Rock” da banda Clube do Balanço, lançado em 2001. As 3 Dimensões O samba rock pode ser segmentado em 3 dimensões principais: 1. Dimensão Dança 2. Dimensão Música 3. Dimensão Cultura As Eras A história do samba rock é a história da evolução de cada uma das suas dimensões. Em cada uma delas houve diferentes eras (períodos). Na dimensão dança, temos a era do rock e a era do samba rock. No final da década de 90, enquanto tentava ensinar samba rock (que muitos ainda chamavam de rock) em escolas de dança, Inácio Loyola, o Moskito acabou por criar um outro jeito de dançar. Quando ele começou havia apenas um jeito, o que vinha sendo transmitido a mais de 30 anos na periferia de São Paulo. É quando ele tenta facilitar o aprendizado desse samba rock antigo para os alunos que por acaso acaba surgindo o samba rock moderno (dançado em linha reta e não ao redor da dama como era o original). Os anos de 1998 e 1999 são o divisor de águas dentro da dimensão dança, pois marcam o início de toda a evolução coreográfica que existe hoje a partir do samba rock moderno, como o samba rock estrela e os nós. Na dimensão música, temos a era dos DJs colecionadores e equipes e a era dos DJs produtores e das bandas. Os anos de 1999 e 2000 marcam o início dessa transição. As bandas tocando ao vivo deram vida nova aos eventos de samba rock. A sinergia das pistas de dança com a música ao vivo foi imediata. O surgimento de composições específicas para samba rock ajudou a fortalecer a identidade do mesmo como gênero. As bandas começaram uma nova fase porque até então o repertório de samba rock era de músicas de outros gêneros (jazz, samba, rock) que casualmente encaixavam na dança. Com a criação de músicas swingadas para dançar seguindo a linha dos mestres dos anos 70 começa a surgir um gênero samba rock. Podemos chamar a música feita para samba rock de samba rock de gênero. E a miscelânea de músicas que encaixam na dança de samba rock por encaixe (ou em inglês samba rock match). Sempre irão surgir novos samba rock matches. Um pagode lento é um samba rock match. O samba rock de gênero, porém, tem suas próprias características. Aqui cabe citar também um outro tipo de samba rock identificável no cenário atual: o samba rock de DJ. Músicas que não eram originalmente samba rocks podem ser transformadas pela habilidade dos DJs. Esse tipo de música não é de gênero e nem por encaixe. É música feita por DJs. Com o surgimento da tecnologia da música digitalizada no computador, muito do glamour dos colecionadores de vinil e das equipes se perdeu. Hoje a maioria das pessoas não sabe diferenciar o som do vinil do som digitalizado. Conta mais para elas a energia da banda e a criatividade dos DJs. É muito importante registrar aqui que até o surgimento das bandas, os bailes eram animados por equipes de DJs. Havia inclusive uma crença entre os DJs de que a presença de bandas atrapalharia o baile. O domínio dos DJs era absoluto no cenário dos bailes de nostalgia e samba rock até o início da transição. Na dimensão cultura, temos duas subdivisões: família e baile. Na subdivisão cultura de família há 3 eras: a era das famílias, a era dos professores e a era dos dançarinos. Na era das famílias se aprendia samba rock em casa. Na era dos professores a dança mudou (surgiu o samba rock moderno) e o ensino da dança foi para as escolas de dança. Na era dos dançarinos (que está começando) o conceito de família se amplia. Todo mundo pode fazer parte da família do samba rock e os próprios dançarinos iniciam as pessoas na dança. Na subdivisão cultura de baile há 2 eras: a era dos bailes black e a era dos bailes de samba rock. Durante 40 anos, o samba rock esteve sempre ao lado da black music (e do samba). A partir do ano 2000, começam a surgir eventos mais específicos de samba rock turbinados pela presença das bandas e da possibilidade de se aprender a dançar. Surge um novo público que não necessariamente se interessa por black music ou samba, mas curte samba rock. A virada do milênio marca o início do samba rock como cultura independente (da black music e do samba). Esse salto em muito se deve ao surgimento da banda Clube do Balanço e sua parceria com o professor Moskito. Essa união revolucionou a história do samba rock em todas as suas 3 dimensões. Porque além de música passou a haver também a dança (fora da periferia). Isso impulsionou o crescimento do interesse pela cultura. É importante citar também o apoio do histórico DJ Tony Hits que desde os anos 80 chamava artistas de pagode para cantar nos bailes em que discotecava, abrindo as portas desde aquela época para a presença do que hoje são as bandas no cenário das festas de samba rock. A resistência dos DJs às bandas era forte e graças à atuação de personagens como ele as portas se abriram e a cultura do samba rock evoluiu, podendo atingir um público maior. Os Elementos da Cultura A cultura do samba rock é composta por 6 elementos: 1. 2. 3. 4. 5. 6. Dançarinos Agentes culturais (DJs, Baileiros, Mentores e Músicos) Cultura de família Cultura de baile A experiência de samba rock O ciclo de vida Dançarinos – são as pessoas que dançam samba rock, os dançarinos amadores em torno dos quais gira toda a cultura. Os dançarinos reúnem-se em famílias. As famílias podem ser consangüíneas ou formadas por afinidade. Também podem ser famílias que se apresentam dançando ou sociais. Agentes Culturais – são a classe artística da cultura, pessoas com sensibilidade para tocar a alma de quem dança e promover a experiência de samba rock. São os DJs, baileiros, mentores (antes chamados professores) e músicos. Cultura de Família – é a tradição de aprender e ensinar samba rock em casa e entre amigos. É o sabor caseiro e cheio de gingado do samba rock. Cultura de Baile – é a experiência de samba rock amplificada pelo encontro de inúmeras famílias de samba rock num mesmo local. É ali, no baile que se vivencia o êxtase coletivo da dança. Experiência de Samba Rock – é o prazer inexplicável e sublime de dançar sentindo-se parte de uma grande família. Ciclo de Vida – são as relações econômicas que movimentam as engrenagens da cultura. Os 6 elementos no contexto da cultura O samba rock se desenvolveu em dois ambientes: o de baile e o de família. É uma cultura de dança familiar, dançada na pequena família e depois numa família maior (o baile). A sensação de estar em família é parte importante da experiência de samba rock. A cultura de família reúne os dançarinos fora dos bailes para se socializar e aprender novos passos. A cultura de família é essencial para o samba rock. Foi no seio da família que o samba rock foi transmitido ao longo das gerações. Cultura de família é reunir-se em casa, nos parques e demais equipamentos públicos de lazer para desenvolver a dança e estreitar os laços de amizade. Tirar as pessoas que não sabem ou sabem menos para dançar é essencial e faz parte de uma versão ampliada de cultura de família. No ambiente familiar, não temos vergonha de aprender a dançar. Temos vergonha de não saber dançar em locais públicos. Quando no local público você aborda alguém gentilmente e se propõe a ensinar um pouco, você está aproximando o espaço público do espaço familiar. Essa generosidade faz as pessoas se sentirem parte de uma “família maior”. Sentir-se parte é um componente importante da experiência de samba rock. A cultura de baile é a cultura do divertimento coletivo através da dança. O baile é o lugar onde a grande família do samba rock se encontra. É o lugar onde todos os elementos da cultura interagem simultaneamente. Cultura de baile é colocar todo mundo pra dançar. A cultura de baile incentiva a troca de parceiros entre as músicas e durante as músicas. Incentiva a brincadeira de dançar com mais de um parceiro ao mesmo tempo. Também incentiva a gentileza, o respeito, a higiene pessoal e a vaidade de se vestir com estilo para dançar. A cultura de baile reprova a violência e não estimula a sensualização exagerada, ambos elementos que descaracterizam o lado familiar da cultura. Sensualizar e seduzir com malandragem (sem vulgaridade), no entanto, é puro samba rock. A perfeita experiência de samba rock é o êxtase coletivo através da dança. Dançar samba rock é lavar a alma coletivamente. E esse é sempre o objetivo de todo e qualquer evento de samba rock. Samba rock também é capaz de gerar outro tipo de experiência sublime: a de tocar para os outros dançarem. Essa é a experiência de sintonia que os DJs e os músicos (que não estão na pista) têm. A cultura de baile e de família se observada leva à perfeita experiência de samba rock. Os DJs, as bandas e eventualmente os mentores atuam sob a curadoria dos baileiros visando proporcionar aos dançarinos e ao público uma experiência de samba rock. Para isso, o baileiro de samba rock cria eventos com conceito, alinhados a cultura de baile e de família. Com sua visão empresarial, o baileiro movimenta as engrenagens do ciclo de vida da cultura. Os mentores (atuais professores) pesquisam passos novos e aprimoram a didática da dança. Cabe a eles transmitir aos dançarinos a responsabilidade de ensinar e multiplicar a cultura tirando as pessoas para dançar. Os mentores procuram reunir dançarinos em comunidades através de encontros e reuniões sociais para incutir neles a cultura de família. Promover reuniões entre amigos com samba rock, treino de dança e baile é transmitir a cultura de família para os novos dançarinos. Os dançarinos devem tomar a iniciativa de colocar todo mundo pra dançar. Envolver as pessoas que não sabem na cultura de família, e assim além de levar a cultura para mais gente, consolidar a imagem do dançarino generoso de uma cultura inclusiva e familiar. Os DJs continuam sua pesquisa por músicas modernas que encaixem no samba rock e criando músicas. Isso não termina nunca. Releituras do antigo também fazem parte da renovação constante do repertório. O ciclo de vida da cultura é composto de dançarinos, agentes culturais (DJs, bandas, mentores e baileiros) e parceiros comerciais. Quando o dançarino paga para participar de um evento de samba rock, ele remunera diretamente os agentes culturais de samba rock. Quando o dançarino consome produtos dos parceiros comerciais, ele também fortalece o evento. E assim indiretamente fortalece nossos agentes culturais contribuindo para que o evento continue a ser lucrativo. Uma cultura vigorosa é aquela que mantém seus agentes culturais em constante processo criativo. No caso do samba rock significa DJs pesquisando e criando músicas novas; mentores criando novos passos e aprimorando sua didática; bandas compondo músicas novas; baileiros emplacando projetos que levam às pessoas a experiência de samba rock. O ciclo de vida da cultura do samba rock depende da remuneração de seus agentes culturais. Se há pouca remuneração, os agentes culturais são obrigados a se dispersar em projetos profissionais fora do samba rock e com isso o processo criativo de novas músicas, novos passos, novos projetos diminui. Essa diminuição leva ao enfraquecimento da cultura. Fortalecer o movimento é fortalecer o seu ciclo de vida. Dançar por dançar é usufruir da cultura. Quem quer fortalecer precisa apoiar o ciclo de vida. Isso pode ser feito trazendo mais gente para os eventos, ensinando as pessoas a dançar, divulgando a magia da cultura, o poder da experiência de samba rock. E de forma mais direta pagando para participar dos eventos e consumindo dentro do circuito do samba rock. O uso do convite VIP para si mesmo (e para membros da comunidade do samba rock) enfraquece o ciclo de Vida da cultura ao não remunerar os agentes culturais. Por isso o convite VIP deve ser usado para divulgar a cultura do samba rock a quem ainda não a conhece. Também pode ser usado para incentivar quem a freqüenta menos.