ORDEM DOS MÉDICOS SECÇÃO REGIONAL DO NORTE COLÉGIO DA ESPECIALIDADE DE PSIQUIATRIA Ex.mo Sr. Presidente da CNE da OM Dr. Pedro Nunes Porto, 06 de Setembro de 20078 Em resposta à sua carta de 29 de Agosto de 2008 venho por este meio comunicar-lhe qual a opinião deste Colégio relativamente ao projecto de Decreto-Lei que cria, no âmbito da RNCCI, as unidades e equipas de cuidados continuados integrados de saúde mental. Antes de mais afirmar muito claramente a preocupação deste Colégio se este Decreto-Lei for por diante, em razão da sua desadequação quer em relação à Resolução do Conselho de Ministros nº 49/2008, quer em relação aos mais recentes avanços científicos e técnicos nesta matéria. Entendemos que este projecto de Decreto-Lei, em termos dos avanço técnico-científicos, está atrasado entre 15-20 anos e as consequências da sua implementação recairão sobre os doentes, nomeadamente na péssima assistência a que serão sujeitos. Tentaremos, ponto por ponto, sustentar esta preocupação apresentando uma crítica construtiva ao projecto em análise. Ponto 1. Estrutura geral do projecto de Decreto-Lei A. Exposição de motivos B. Disposições gerais a. Artigos 1 e 2 – Objecto e definições b. Artigos 3-5 – Objectivos das unidades, articulações e coordenação C. Tipologia a. Artigos 6-20 – Tipologia das diferentes unidades assistenciais (caracterização e serviços) D. Acesso, ingresso e mobilidade nas unidades (Artigos 21 e 22) E. Financiamento (Artº 23) F. Disposições transitórias e finais (Artigos 24-27) Ponto 2 – Justificação do projecto de Dec-Lei De um modo geral o texto aponta para o facto de com a criação da Rede Nacional de Cuidados Continuados (RNCC), pelo Decreto-Lei nº 101/2006, não terem sido incluídas as situações englobados na área da saúde mental (sobretudo em razão da sua especificidade), realçando o facto de ser absolutamente necessário “um investimento na promoção das condições adequadas à satisfação das necessidades das pessoas com patologias psiquiátricas de evolução prolongada, garantindo o seu acompanhamento fora das fases agudas da doença e promovendo a sua integração comunitária em alternativa à institucionalização”. Desde logo, este projecto de Decreto-Lei pretende preencher uma lacuna detectada na RNCC, o que é importante, focando-se no caso particular das pessoas com patologias mentais. Tão só peca, ao nível da justificação, por propor uma “integração comunitária” quando o fim primordial deste tipo de cuidados deverá ser sempre a INCLUSÃO SOCIAL, que é um conceito muito mais amplo e muito mais adequado à consideração dos valores modernos de cidadania a que estes doentes devem aspirar. Veremos mais adiante como esta distinção conceptual é fundamental para o tipo de serviços que se pretende instituir. Ponto 3 – Disposições gerais Desde logo, o Artigo 1º estabelece o objecto do presente diploma referindo que “O presente diploma cria, no âmbito da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) instituída pelo Decreto-Lei n.O101/2006, de 6 de Junho, as unidades e equipas de cuidados continuados integrados de saúde mental, destinadas as pessoas com doença mental grave de que resulte incapacidade psicossocial e que se encontrem em situação de dependência independentemente da idade, adiante designadas como pessoas com incapacidade psicossocial”, definindo o Artigo 2º o quadro conceptual a que se referem as diferentes situações em que os doentes poderão estar envolvidos neste âmbito. Note-se, antes de mais, o cuidado em se evitar designar as pessoas que irão ser os destinatários destas acções como doentes. É certo que pode ser apenas uma questão semântica, no entanto, parece-nos muito grave desligar, nesta proposta, a insuficiência social ou incapacidade psicossocial da doença, pois facilmente se podem transformar, abusivamente, situações do âmbito médico, em situações do âmbito social. A experiência noutros países deste tipo de questões “semânticas” foi desastrosa, pois atiraram doentes psiquiátricos exclusivamente para as mãos de assistentes sociais e psicólogos (ver, p. ex., a experiência brasileira com os CAPs). Questões de recursos e de financiamento são as que normalmente estão na base deste tipo de trocas “semânticas”. Assim, este Colégio entende que numa futura proposta de D-L sobre esta matéria haja completa clareza quanto aos destinatários da RNCCI no âmbito psiquiátrico – doentes que apresentam como sintoma ou como sequela da sua doença uma insuficiência social. Note-se, também, que apesar de no Artigo 3º referir que a promoção da autonomia das pessoas é um dos objectivos das unidades e das equipas, no Artigo 2º não é dada nenhuma definição do que se entende por autonomia. Parece-nos uma lacuna importante pois é o principal outcome deste tipo de projectos e, por isso, a principal variável que servirá para a avaliação da execução do próprio projecto. Não estando definida, o avaliador poderá ou encontrar dificuldades para a avaliação das acções desenvolvidas ou criar o seu próprio conceito, fragilizando o modelo de avaliação. Tendo em conta que é um projecto com custos elevados, torna-se fundamental que se exerça uma avaliação muito pormenorizada e cientificamente fundamentada para que não seja sujeita a desvios decorrentes de falhas nas definições da sua própria avaliação. Para além disso, definem-se Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental (CCISM) como “o conjunto de intervenções sequenciais de psiquiatria e saúde mental e de apoio social, decorrente da avaliação conjunta, centrado na reabilitação das pessoas com incapacidade psicossocial, entendida como o processo terapêutico e de apoio social, activo e contínuo que visa a promoção da autonomia e a melhoria da funcionalidade da pessoa em situações de dependência com vista a sua integração familiar e social” (o sublinhado é nosso). O principal mecanismo para definir o tipo de intervenções a que um doente será sujeito é aquilo a que foi chamado “avaliação conjunta”. Contudo não está definido a quem cabe esse papel determinante (em nenhuma parte do documento), nem tão pouco quais os procedimentos para essa avaliação. Parece-nos uma lacuna muito grave, pois não se pode deixar em claro ou ao sabor da miríade de técnicos a avaliação dos doentes com vista à definição do plano de intervenção e, sobretudo, as bases sobre as quais esse plano vai ser definido. Isto é, a quem compete indicar qual o plano de intervenção que vai ser aplicado a um doente particular a ser integrado na rede de cuidados continuados e qual o modelo de avaliação proposto? Esta interrogativa é tanto mais importante quanto falta, na definição de conceitos, a definição clara e objectiva de plano individualizado de cuidados (ver, p. ex., Ornelas, 2008, pgs 46-58 e 106-116), o qual constitui não só um dos aspectos mais actuais na definição de uma política de reabilitação psicossocial, centrada numa perspectiva de inclusão social, como constitui um excelente instrumento de avaliação da progressão evolutiva do doente e, em consequência, das próprias medidas implementadas. Isto é, este tipo de plano sendo, por definição, sujeito a revisão, flexível e variável em função da evolução de cada doente particular, constitui um índice de avaliação e de reajustamento do processo de reabilitação. Para além disso, este projecto de Decreto-Lei não considera, como está consignado na Resolução do Conselho de Ministros nº 49/2008 (p.1399 – II – Visão, valores e princípios), o conceito de recuperação (recovery). Sendo um dos conceitos que integra o modelo de avaliação neste tipo de cuidados, surpreendemo-nos face à sua ausência, tanto mais que já estava consignado na Resolução do Conselho de Ministros atrás referida. O artigo 4º pretende estabelecer o regime de articulação com os Serviços Locais de Saúde Mental, mas na verdade pouco mais faz do que afirmar essa articulação, deixando por definir os termos em que essa articulação se processa. Ponto 4 – Tipologia das Unidades Este projecto de Decreto-Lei define o tipo de unidades e respectivas equipas, a sua caracterização e o tipo de serviços que assegura. É aqui que este projecto enferma de uma das principais lacunas em termos de modelo de intervenção em saúde mental: ao querer desinstitucionalizar não está a fazer mais do que trans-institucionalizar (ver, p. ex., Marques-Teixeira, 2006). Senão vejamos: Unidades de convalescença (Artigo 7º e 8º) – qual a utilidade efectiva destas unidades? A substituição de uma unidade hospitalar (criando uma espécie de mini-enfermaria), numa lógica de esvaziamento dos serviços de psiquiatria dos Hospitais Gerais, multiplicando recursos numa época em que esses mesmos recursos escasseiam? Para além de desnecessárias, estas unidades constituirão o reforço do processo de estigmatização dos doentes com patologias mentais e, apesar do modelo preconizado na Resolução do Conselho de Ministros atrás referida, não são mais do que novas institucionalizações, o que vai ferir de morte esse mesmo modelo. Senão vejamos: Um doente pode passar até 90 dias numa unidade destas, após o período de internamento num serviço de Psiquiatria. Perguntámo-nos: qual a mais valia destas unidades, para além de serem mais alguns pequenos serviços de psiquiatria (não esquecer que o processo de tratamento de um doente com patologia mental em regime de internamento num serviço de Psiquiatria, engloba o tratamento médico e psicossocial) com os custos que isso acarreta? Porquê querer-se definir um modelo de reabilitação e integração social moldado em princípios que os proponentes criticam e que estão já ultrapassados? Na verdade, o que actualmente se preconiza é que o ‘início do processo de reabilitação psicossocial, na sequência de internamento hospitalar originado por situação clínica aguda, recorrência ou descompensação clínica’, seja feito no contexto natural do doente, na família e na comunidade, e não numa unidade especial de internamento. Mais do que criar unidades onerosas e replicativas dos serviços já existentes, o que deverá ser feito é definir claramente e captar recursos para apoiar e promover “o reforço das capacidades das famílias e outros cuidadores das pessoas com incapacidade psicossocial, habilitando-as a lidar com as situações daí decorrentes, facilitando e incentivando o acompanhamento familiar e promovendo a sua participação e envolvimento na prestação de cuidados”, conforme está preconizado no artigo 3º, alínea e) deste Projecto de Dec. Lei. Mesmo que o argumento dos proponentes possa ser o da necessidade de se libertarem camas de modo a ficarem cobertas as necessidades de internamento hospitalar que permitam a suficiente recuperação clínica dos doentes, então mais vale serem criados, entretanto, os restantes serviços de psiquiatria nos hospitais gerais, conforme o que está previsto na Resolução do Conselho de Ministros nº 49/2008. Unidades residenciais de média duração e reabilitação (Artigo 9º e 10º) – Designadas por Residências de Treino de Autonomia, constituem mais um exemplo da desactualização deste projecto de Decreto-Lei, indo contra as avaliações mais actuais do tipo de resultados destas unidades. Na verdade, são cada vez mais os argumentos contra este tipo de unidades centrados nos resultados das avaliações que sugerem uma efectividade limitada traduzida por uma baixa correlação entre as competências adquiridas neste contexto “protegido” e a sua aplicabilidade em contextos “naturais” (ver, p. ex., Ornelas, 2008; Marques-Teixeira, 2006). Há, actualmente, uma forte crítica relativa às hipotéticas vantagens da inclusão de doentes em estruturas intermédias de cuidados, nomeadamente pelos poucos ganhos em autonomia e integração psicossocial. Se este projecto de Decreto-Lei é projectado para o futuro e não apenas para uma hipotética reforma imediata do panorama da Psiquiatria e da Saúde Mental em Portugal, então mais vale (e tem uma relação custo-eficácia muito menor) promover-se o trabalho individualizado no domicílio, no emprego e na comunidade, favorecendo o contexto natural em que cada pessoa está inserida. Unidades residenciais de longa duração e manutenção (Artigo 11º -16º) – Estas, na nossa opinião, são, de entre as unidades propostas por este projecto de Decreto-Lei, uma das duas que são efectivamente necessárias e com urgência. Unidade sócio-ocupacional (Artigos 17º e 18º) – Sendo uma unidade útil e adequada às mais recentes indicações para a reabilitação de doentes com patologias mentais, pecam pelo facto de estarem concebidas segundo um modelo tradicional de ocupação desestruturada dos tempos livres e por estarem completamente desenquadradas de uma política de promoção da ocupação útil e de emprego apoiado. Na verdade, não está consignado neste projecto de D-L o conceito de “emprego apoiado”. Constitui mais uma surpresa desta proposta, tanto mais que está previsto na Resolução do Conselho de Ministros acima referida (“desenvolvimento de mecanismos que permitam promover o emprego apoiado de pessoas com doenças mentais como forma de as integrar no mercado de trabalho e facilitar o processo de reabilitação profissional”), mas que aqui não passa da visão tradicional e em desuso de “apoio sócio-ocupacional”; em desuso pois os seus resultados são escassos e muito limitados no tempo (ver, p. ex., Ornelas, 2008, pgs 129-138). Equipas de apoio domiciliário (Artigos 19º e 20º) – Estas unidades constituem o segundo grupo de unidades que deve ser implementado e valorizado nesta proposta pelo facto de serem as que melhor promovem a integração familiar e social deste tipo de doentes. Tão só, na ausência de um plano individualizado de cuidados (como atrás referimos) para pessoas com moderado e reduzido grau de incapacidade social, estas unidades podem não passar de equipamentos para o desenvolvimento de intervenções avulsas. Para que isto não aconteça, é absolutamente necessário que mais uma lacuna grave desta proposta seja colmatada: a inclusão da figura do terapeuta de referência que, à semelhança de outras figuras, está consignado na Resolução do Conselho de Ministros já referida. O terapeuta de referência é considerado, em vários países desenvolvidos, como uma figura chave para uma efectiva individualização dos cuidados e articulação dos recursos tendo em vista a recuperação e integração familiar, social e profissional das pessoas com doença mental grave e crónica. Incorrendo na falha que atrás assinalamos relativa ao processo de articulação entre estas unidades/equipas, bem como à clara definição de papéis, também aqui não é clara nem a sua definição, nem o processo de articulação destas equipas de apoio domiciliário no âmbito dos cuidados de saúde e as equipas de apoio domiciliário no âmbito do apoio social (ponto 1, Artº 23º, Capítulo VI). Ponto 5 – Acesso às unidades A alínea a) do Artº 21º prevê o acesso às unidades atrás definidas quer a doentes psiquiátricos adultos, quer a crianças e jovens com patologia psiquiátrica. A não referência em qualquer ponto do documento a unidades específicas para crianças e jovens, faz-nos deduzir que não estão previstas. Logo, sendo este acesso indiscriminado para doentes adultos ou para crianças e jovens, não havendo diferenciação de cuidados entre uns e outros, isto constitui uma grave lacuna, quer sob o ponto de vista técnico-científico, quer sob o ponto de vista sócio-clínico. A específica patologia e dificuldades de adaptação das crianças e jovens aos seus contextos implica a criação de unidades especializadas para estes casos (somente para as situações de grande incapacidade psicossocial), devendo ser criadas equipas de apoio domiciliário (constituídas por um pedopsiquiatra, um técnico de enfermagem em pedopsiquiatria, um técnico de pedopsicologia e um técnico de serviço social) especializadas no apoio, em contexto natural, destas situações. Ponto 6 – Comentários finais a) Sendo o principal objectivo desta proposta de projecto de D-L, a promoção das condições adequadas à satisfação das necessidades das pessoas com doenças mentais de evolução prolongada (assegurando o seu acompanhamento fora das fases agudas da doença e promovendo a sua integração comunitária em alternativa à institucionalização), não acreditamos que esse objectivo seja conseguido através do modelo de organização dos serviços aqui propostos. Na verdade, e como fomos demonstrando ao longo da exposição, para que esse objectivo seja concretizável é necessário que a maioria dos cuidados continuados se situe nos contextos naturais de vida das pessoas, como muitos autores têm referido (ver, p. ex., Lopez e Laviana, 2007; Ornelas, 2008; Resolução do Conselho de Ministros nº 49/2008). Ora, nesta proposta não é essa a orientação sugerida sendo, pelo contrário, proposta a criação de uma série de unidades onerosas, replicativas de serviços existentes e sem terem em conta as avaliações dos resultados desse tipo de unidades noutros países, já que se insiste na sua criação, mesmo sabendo-se da sua relativa efectividade. b) Competências de referenciação e de avaliação – Muito embora estejam definidas as competências de referenciação e de ingresso no sistema, essa definição mais não é do que apenas ilustrativa, deixando de lado qualquer referência ao modelo de avaliação com vista à integração dos doentes. Sem uma definição clara desse modelo desde já, o acesso dos doentes ao sistema fica dependente de subjectividades e de questões temporais de política, podendo criar injustiças já identificadas noutros sistemas semelhantes noutros países (ver, p. ex., Marques-Teixeira, 2006). c) A proposta, no seu conjunto, não favorece as práticas mais actuais de reabilitação que se orientam por modelos de prestação de cuidados baseados na evidência (efectivos e eficientes), apresentando medidas avulsas, pois não se baseiam nem no modelo de planos individualizados de cuidados, nem na figura pivot de todo este processo – terapeuta de referência – em relação à qual tem sido demonstrado ser a figura que poderá garantir a coordenação intersectorial eficaz (entre os domínios da saúde, dos serviços sociais, da educação, do emprego e da justiça). Só deste modo um plano integrado de cuidados poderá facilitar e não dificultar a prestação de cuidados a pessoas concretas. d) A não diferenciação entre os cuidados a prestar aos doentes adultos e às crianças e jovens com patologias psiquiátricas, constitui mais uma falha grave desta proposta, que não pode passar em claro. e) Todas estas críticas teriam sido evitadas se no desenho desta proposta tivesse sido considerada a experiência acumulada ao longo dos anos em outros países, onde avaliações sistemáticas têm sido feitas. Referências López, M. e Laviana, M. (2007). Rehabilitación, apoyo social y atención comunitaria a personas con transtorno mental grave. Propuestas desde Andalucía. Revista de la Asociación Española de Neuropsiquiatría , 27: 187-223. Marques-Teixeira, J. (2006). Re-estruturação dos Serviços de Saúde Mental. Saúde Mental, 8 (6): 7-10. Ornelas, J. (2008). Psicologia Comunitária. Lisboa: Fim de Século. Portugal (2008). Resolução do Conselho de Ministros nº 49/2008, Diário da República, 1ª Série, nº 47 – 6 de Março, pp. 13951409. Por tudo isto, Senhor Bastonário, este Colégio está muito apreensivo se esta proposta for avante, pois tememos que a assistência aos doentes psiquiátricos possa entrar numa fase de ruptura e o país possa sofrer as consequências de um grande investimento sem as respectivas recompensas. Com os melhores cumprimentos O Presidente da Direcção, João Marques-Teixeira