EM REVISTA Ano 20 Nº 65 Jan-Jun 15 Distribuição Dirigida Uma publicação do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – Sindifisco Nacional ISSN 1809-3426 Entrevista Cláudio Damasceno CARF: é preciso mudar Páginas 6 a 10 A PEC 186 é uma tentativa de garantir Justiça Fiscal. A proposta acrescenta dois parágrafos ao artigo 37 da Constituição, estabelecendo normas gerais aplicáveis à Administração Tributária da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dando-lhes autonomia administrativa. Esse projeto garante fiscalizações com eficiência e independência, alcançando assim, com maior eficácia os grandes segmentos da sociedade organizada, que, em geral, são mais refratários ao pagamento de tributos. A proposta visa a edificação de um sistema tributário com mais justiça fiscal e social, com a aplicação dos princípios constitucionais da isonomia, da universalidade, da capacidade contributiva, da essencialidade, além da solidariedade, que está subjacente a todos os princípios tributários. sumário 5 EDITORIAL 6 Entrevista 11 22 32 38 44 51 55 Cláudio Márcio Oliveira Damasceno ARTIGO O Contencioso Administrativo Fiscal Federal: A Atuação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) Oséas Coimbra Júnior, Alfredo Jorge Madeira Rosa, Álvaro Luchiezi Jr. ARTIGO O Contencioso Tributário Administrativo: Garantia Constitucional do Direito do Contraditório e da Ampla Defesa Efigênio de Freitas Júnior ARTIGO Auditoria Fiscal: Instrumento de Combate à Corrupção Pedro Onofre Fernandes ARTIGO A Receita Federal no Combate ao Crime Organizado e à Lavagem de Dinheiro Foch Simão Júnior ARTIGO Sistema de Apoio à Decisão Aplicado à Análise de Dados no SPED Social Sérgio Ribeiro Libório, Flávio Luis de Mello ARTIGO Os Efeitos Deletérios do Uso do Benefício Fiscal Como Ferramenta de Resistência à Guerra Fiscal Wertson Brasil de Souza ARTIGO Sonegador Fiscal: o Homicida da Cidadania Ivan Antonio Pellegrini Maia Tributação em Revista é uma publicação do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – Sindifisco Nacional. Diretoria executiva nacional (den) Presidente Cláudio Márcio Oliveira Damasceno 2ª Diretora-Adjunta de Defesa Profissional Yone de Oliveira Diretora-Adjunta de Relações Intersindicais Maria Urânia da Silva Costa 1º Vice-Presidente Lúcia Helena Nahas Diretor de Estudos Técnicos Pedro Onofre Fernandes Diretor de Relações Internacionais Fábio Galizia Ribeiro de Campos 2º Vice-Presidente Mário Pereira de Pinho Filho Diretor-Adjunto de Estudos Técnicos Alfredo Jorge Madeira Rosa Secretário-Geral Rogério Said Calil Diretora de Comunicação Social Letícia Cappellano Quadros dos Santos Diretor de Defesa da Justiça Fiscal e da Seguridade Social César Araújo Ramos Diretor-Secretário Antônio Gomes Campelo 1ª Diretora-Adjunta de Comunicação Regina Ferreira de Queiroz Diretor de Finanças Carlos César Coutinho Cathalat 2° Diretor-Adjunto de Comunicação Genidalto da Silva Paiva Diretor-Adjunto de Finanças Albino Dalla Vecchia Diretora de Assuntos de Aposentadoria e Pensões Clotilde Guimarães Diretor Suplente Oséas Coimbra Júnior Diretor-Adjunto de Administração José Raimundo Melo e Leite Diretor-Adjunto de Assuntos de Aposentadoria e Pensões Diego Augusto de Sá Conselho Fiscal Diretor de Assuntos Jurídicos Carlos Roberto Teixeira Diretora do Plano de Saúde Maria Antonieta Figueiredo Rodrigues 1º Diretor-Adjunto de Assuntos Jurídicos Rudimar Nunes Fraga Diretora-Adjunta do Plano de Saúde Tânia Regina Coutinho Lourenço 2º Diretor-Adjunto de Assuntos Jurídicos Sérgio Santiago da Rosa Diretor de Assuntos Parlamentares Célio Diniz Rocha Diretor de Defesa Profissional Carlos Rafael da Silva Diretor-Adjunto de Assuntos Parlamentares José Castelo Branco Bessa Filho 1º Diretor-Adjunto de Defesa Profissional Leonardo Picanço Cruz Diretor de Relações Intersindicais Hélio Roberto dos Santos Diretor de Administração Robson Canha Ferreira Diretor-Adjunto de Defesa da Justiça Fiscal e da Seguridade Social Henrique Gerhke Diretor de Políticas Sociais e Assuntos Especiais José Devanir de Oliveira Membros Efetivos Ivone Marques Monte Luiz Gonçalves Bomtempo Armando Domingos Barcelos Sampaio Membros Suplentes Pérsio Romel Macedo Ferreira Luiz Fernando da Conceição Martins Elias José Maluf Tributação em revista Conselho Editorial Pedro Onofre Fernandes; Alfredo Jorge Madeira Rosa; Lúcia Helena Nahas; Mário Pereira de Pinho Filho; Rogério Said Calil; Antônio Gomes Campelo Coordenação Executiva Álvaro Luchiezi Jr. Edição Álvaro Luchiezi Jr. Projeto Gráfico Erika Yoda Capa Núcleo Cinco Marketing e Comunicação Ltda.; Produção Editorial Publicação Dirigida. Acesso livre no seguinte endereço eletrônico http://www.sindifisconacional.org.br, link publicações. Para receber um exemplar da publicação, entre em contato pelo email: [email protected] Diagramação Núcleo Cinco Marketing e Comunicação Ltda.; Redação e correspondência SDS, Conjunto Baracat – 1º andar, salas 1 a 11 BrasíliaDF - CEP 70392-900 Fonefax: 61 3218-5255 Tiragem desta edição 2.800 mil exemplares Colaboração: Os artigos devem ser enviados para Tributação em Revista – Sindifisco Nacional, Departamento de Estudos Técnicos, SDS, Conjunto Baracat, salas 1 a 11, Brasília-DF, CEP 70.392-900 ou para o e-mail [email protected]. Os textos serão submetidos ao Conselho Editorial quanto à conveniência de publicá-los, poderão sofrer revisão e, se necessário, serão devolvidos ao autor com sugestões de mudanças ou solicitação de informações. Nenhuma modificação de estrutura ou conteúdo será feita sem consentimento do autor. As matérias publicadas por Tributação em Revista só poderão ser reproduzidas mediante autorização do Sindifisco Nacional. Os originais devem ser apresentados em disquetes, CD-ROM ou enviados por email, em arquivos do Word e Excel (tabelas), corpo 12, até 15 páginas e deverão conter: Página inicial abordando os principais tópicos do artigo; Notas e referências bibliográficas; Currículo do autor (máximo 5 linhas). e DITORIAL As investigações levadas a cabo pela Polícia Federal, pela Receita Federal do Brasil e outros órgãos de controle trouxeram à luz os desvios ocorridos nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), segunda instância administrativa de recursos fiscais federais. A isenção do julgador está hoje sendo questionada em desfavor do Estado Brasileiro, dos contribuintes e dos cidadãos em geral, beneficiários finais dos recursos objeto das decisões ali tomadas. A estimativa dos valores fraudados, divulgada amplamente pela imprensa, é de cerca de R$ 6 bilhões, podendo chegar a R$ 19 bilhões, considerados todos os processos sob investigação, o que caracteriza a maior fraude tributária já descoberta no Brasil. As fraudes, aliadas à corrupção, encontraram na estrutura e no modo de funcionamento do CARF, um ambiente profícuo para prosperar. Tributação em Revista dedica este número a uma reflexão sobre a constituição e a importância do CARF. Nas análises que se seguiram à repercussão da Operação Zelotes, as opiniões variaram desde sua manutenção à sua extinção; da total reformulação à simplificação de sua estrutura. O Ministério da Fazenda, depois de um período de suspensão das atividades do CARF, optou por reduzir-lhe o número de conselheiros e das turmas de julgamento. A entrevista do Presidente do Sindifisco Nacional, Auditor Fiscal Cláudio Damasceno, expressando sua opinião, deixa claro que o CARF necessita de mudanças estruturais profundas para evitar que interesses diversos e conflitantes continuem a se refletir nos resultados dos julgamentos, em prejuízo do interesse público. O artigo dos Auditores Fiscais Oséas Coimbra, Alfredo Madeira e do economista Álvaro Luchiezi Jr., além de descrever o funcionamento do CARF, tece críticas ao seu atual modelo, mostrando possibilidades diversas para o contencioso administrativo fiscal em nível federal. Ainda sobre contencioso administrativo fiscal, o Auditor Fiscal Efigênio de Freitas Jr. aborda em seu artigo o direito ao contraditório e à ampla defesa dos litigantes no âmbito do contencioso tributário com sede administrativa, desenvolvendo o tema do ponto de vista do Estado Democrático de Direito no Brasil e em outros países. Fraude e corrupção andam lado a lado. O artigo do Auditor Fiscal Pedro Onofre Fernandes apresentando a Auditoria Fiscal como instrumento de combate à corrupção, especialmente no Brasil, é bastante oportuno. Por sua vez, o Auditor Fiscal Foch Simão Jr. desenvolve a necessidade de combate à lavagem de dinheiro, outro crime assemelhado à fraude e corrupção, e que solapam o atendimento às nossas necessidades sociais. Três artigos completam este número. Sérgio Libório e Flávio Melo buscam uma solução para a análise de obrigações legais e identificação de não conformidades com foco no SPED Social, enquanto que o Auditor Fiscal da Receita de Minas Gerais, Wertson de Souza, avalia os efeitos danosos dos benefícios fiscais sobre as finanças públicas, para finalizar com a visão do Auditor Fiscal Ivan Maia em prol do maior rigor penal ao crime de sonegação. Com as reflexões aqui veiculadas, Tributação em Revista espera disseminar entre seus leitores a necessidade de continuar a debater o modelo do contencioso administrativo fiscal adotado no Brasil, buscando continuamente o seu aperfeiçoamento a fim conter os graves desvios que ora acometem essa instância de julgamento. TRIBUTAÇÃO em revista 5 e ntrevista Cláudio Márcio Oliveira Damasceno “O CARF deve ter um quadro composto exclusivamente por Auditores Fiscais. Esta é a melhor maneira de o Brasil se precaver contra crises como a atual” O CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais é um órgão colegiado e paritário que integra a estrutura do Ministério da Fazenda, com competência para julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos especiais, sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela RFB. A partir da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, para ele foram transferidas as atribuições e competências do 1º, 2º e 3º Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda e da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF). A partir da Operação Zelotes, conduzida pela Polícia Federal, as atribuições e competências do CARF foram colocadas sob suspeita. A instituição chegou mesmo a ter suas atividades paralisadas. Durante esse período seu Regimento Interno foi reformulado e trazido a conhecimento público por meio da Portaria MF No 343, de 9 de junho de 2015. O Sindifisco Nacional tem manifestado, por meio de artigos e da opinião de seu Presidente, Cláudio Damasceno, sua absoluta indignação pelos fatos até agora apurados a respeito do CARF pela “Operação Zelotes”. Os fatos apurados e divulgados até aqui colocam sob suspeição muitas decisões daquela instância recursal em desfavor da Fazenda Pública. Nesta entrevista Cláudio Damasceno, Presidente do Sindifisco Nacional, detalha essa indignação, desenvolvendo algumas ideias trabalhadas pelo sindicato em prol da moralização dos julgamentos administrativos. 6 TRIBUTAÇÃO em revista TR – Diante do resultado da Operação Zelotes e das denúncias envolvendo muitos membros do CARF, alguns setores da sociedade têm se pronunciado pela extinção do conselho. Esta é também a posição do Sindifisco Nacional ou é possível que algumas mudanças estruturais consigam recolocar o conselho nos trilhos, restituindo seu papel no contencioso administrativo tributário? CD - A permanecer da maneira como está estruturado e composto, a Diretoria do Sindifisco Nacional defende a extinção do CARF. Para que ele continue a funcionar sem os mesmos gravíssimos vícios é necessário que toda a sua composição e estrutura seja revista. Pouco adianta afastar conselheiros suspeitos, da mesma forma que nada resolveria a Fazenda Pública adotar critérios mais rígidos na seleção de currículos de tantos membros do Conselho. Qualificação jamais foi o problema. A questão de fundo é que se permite aos representantes dos contribuintes misturarem os interesses das suas bancas de Direito Tributário com a atuação no CARF. Sua arquitetura, mesmo com o novo regimento, está errada e comprometida. O Conselho deveria ser o foro máximo, supremo e não ponto de passagem, isso porque, ao contribuinte, caso seja derrotado no CARF, ainda é permitido recorrer ao Judiciário – e na primeira instância. Dirão que sobre o contencioso incidirão juros e correções, mas, com a protelação, o Estado não vê o pagamento do que lhe é devido. TR – Extinguir, então, é uma solução plausível? Extinguir o CARF parece uma solução radical para muitos, pois significaria a morte de uma boa ideia e o consequente entulhamento da Justiça de primeira instância com ações discutindo pendência tributária. Do ponto de vista constitucional não há nenhum impedimento, conforme ouvimos recentemente da Procuradora do Estado de Minas Geral e professora universitária, Raquel Carvalho, num seminário realizado pelo Sindifisco Nacional e pela Delegacia “A questão de fundo é que se permite aos representantes dos contribuintes misturarem os interesses das suas bancas de Direito Tributário com a atuação no CARF.” Sindical de Belo Horizonte. Se assim não serve, há alternativas. A mais inteligente seria acabar com a paridade da representação. Certo é que já existe uma instância recursal administrativa, as Delegacias Regionais de Julgamento, composta por Auditores Fiscais, servidores de Estado, verdadeiramente aptos para o exercício dessa tarefa. Em entrevista recente, um ex-secretário da RFB disse que a extinção do CARF é uma ideia tão absurda que não chega nem a estrar errada. Na realidade, absurdo é um órgão dessa importância existir com o atual formato, o qual, num cálculo inicial, permitiu o arrombamento dos cofres públicos em R$ 19 bilhões. Absurdo, de fato, é não discutir o CARF. Omissão diante disso não é erro, é crime. TR – À parte a hipótese de extinção, quais sugestões o Sindifisco Nacional faria no sentido e aprimorar o conselho? CD – Dentre diversas alterações, duas nos parecem estruturais. Sem elas, o CARF continuaria a ser a mesma instituição com os mesmos problemas trazidos à tona pela Operação Zelotes. A primeira é um quadro composto exclusivamente TRIBUTAÇÃO em revista 7 “Os compromissos dos dois representantes no CARF – contribuintes e Fazenda Nacional – são claramente opostos. Enquanto os primeiros são orientados para os interesses privados, o segundo, pela própria natureza da função que ocupa, defende o interesse público.” por Auditores Fiscais. Aliás, esta proposta foi aprovada na plenária nacional do Sindifisco Nacional, realizada no final do mês de junho em Brasília. Obviamente, para que ela se torne uma posição oficial do Sindifisco Nacional é preciso que seja aprovada pela nossa instância máxima, a Assembleia Nacional. Esta é a melhor maneira de o Brasil se precaver contra crises como a atual, causada pelo loteamento político e pelos lobbies. São as razões da derrocada da Petrobras e, não coincidentemente, do enfraquecimento do Conselho. O governo deve adotar, como regra definitiva, o preenchimento das lacunas funcionais pelos agentes do Estado, por dever de ofício regidos pelos princípios da legalidade, da moralidade, da razoabilidade e da impessoalidade – conforme compromisso assumido quando da investidura do cargo. Os Auditores Fiscais são dotados de experiência e conhecedores profundos da legislação tributária e do Sistema Tributário Nacional. O Código Tributário Nacional – CTN reconhece-o como autoridade administrativa, fiscal e aduaneira e pela sua experiência de atuação no contencioso, está plenamen- 8 TRIBUTAÇÃO em revista te capacitado para decidir em processos administrativos fiscais, ao contrário dos representantes do contribuinte de que em o regimento requer apenas a “idoneidade profissional”. É absolutamente necessário que o indicado em nome da sociedade tenha total conhecimento da legislação tributária, sobretudo o chamado Processo Administrativo Fiscal. E quem domina esse ferramental? O Auditor Fiscal. TR – As decisões tomadas no CARF pelos representantes dos contribuintes e pelos representantes da Fazenda Nacional têm, então, interesses diversos? Os compromissos dos dois representantes no CARF – contribuintes e Fazenda Nacional – são claramente opostos. Enquanto os primeiros são orientados para os interesses privados, o segundo, pela própria natureza da função que ocupa, defende o interesse público. E é este que deve prevalecer pois, afinal, os julgamentos que lá se realizam tratam dos recursos que o Estado recolhe do contribuinte e administra para o bem final do contribuinte. Não se trata, portanto, do interesse de determinados contribuintes, considerados individualmente, mas do conjunto de contribuintes. Acima deles está a lei, cuja interpretação deve ser isenta. Todos os instrumentos que a comprometem devem ser afastados a bem da própria coletividade. A Operação Zelotes mostra claramente que a representação do contribuinte serviu, lamentavelmente, para defender alguns e escolhidos contribuintes/clientes. Uma parte daqueles que representavam os contribuintes tinha atuação de agentes duplos. Ao invés de julgar recursos, intermediavam negociações mediante polpudo percentual do resultado final. O conselho assim constituído, com vestes democráticas, constitui-se, na verdade, em uma porta aberta a ilícitos, uma vez que os conselheiros indicados pelos “representantes dos contribuintes” não têm vínculo com o serviço público, não são remunerados no exercício dessa função julgadora e seguem exercendo suas atividades profissionais privadas. Qual a legitimidade de tais personagens, tendo em vista que, não raro, figuram como parte nos processos administrativo tributários? Isso significa que os Auditores Fiscais malhavam em ferro frio. Se de um lado trabalham a favor do interesse público, de outro isso era desfeito. Não adianta, nessas circunstâncias, haver uma instância recursal cujo funcionamento está estruturado para permitir o prejuízo do Estado, atuando a favor dos grandes sonegadores já que, como cinicamente admitiu um conselheiro em diálogo gravado pela Polícia Federal com autorização da Justiça, somente o “coitadinho” fica preso na rede de fiscalização. Nem é preciso mencionar o compromisso que os representantes do contribuinte têm, oposto ao da Fazenda Pública. A Operação Zelotes jogou uma luz tão intensa sobre isso que ficou óbvio qual time vinham defendendo – e não era o da coletividade. Esta, porém, é uma parte dos problemas do CARF, que sofre com a falta de transparência das sessões de julgamentos, com a excessiva verticalização e com a quantidade de instâncias revisionais – habitualmente usadas para protelar decisões ou vender facilidades. TR – E quais alterações na estrutura do CARF beneficiariam o Estado e em última instância o contribuinte? Bem, é aqui que comparece nossa segunda sugestão. O CARF não deve ser uma segunda instância ordinária. A primeira, as Delegacias de Recursos e Julgamentos (DRJ), é muitíssimo bem aparelhada, descentralizada e composta por competentes quadros da Receita Federal. O CARF, então, tinha de ser a instância definitiva mas não é, pois o contribuinte ainda pode demandar no Poder Judiciário, se derrotado. Trata-se de outro absurdo. É preciso ressaltar que o CARF é um órgão de Estado, vinculado ao Ministério da Fazenda, e não à Receita Federal. As decisões “Veja a incoerência: o Governo decidindo, muitas vezes contrariamente ao interesse público, com a participação de não membros do Governo. Isso, evidentemente, não apenas expõe a falha na estrutura do Conselho, como abre a porta à negociação escusa.” são paritárias; refletem o consenso fechado entre contribuinte e MF. Ou seja, o resultado final não representa a posição integral da União. Daí porque deveria ter permissão para o confronto na Justiça, o que, ressalte-se, não acontece. O Estado, aliás, é refém nesse processo. Ao contribuinte é constitucionalmente permitida a possibilidade de recorrer ao Judiciário; à União, não. E isto porque o CARF é um órgão da estrutura do Governo Federal e do qual, ironicamente, fazem parte, e de forma paritária, representantes dos contribuintes que não são Governo. Veja a incoerência: o Governo decidindo, muitas vezes contrariamente ao interesse público, com a participação de não membros do Governo. É uma disputa desequilibrada. Isso, evidentemente, não apenas expõe a falha na estrutura do Conselho, como abre a porta à negociação escusa. TR – Então, a Portaria 343, redefinindo a estrutura e composição do CARF, não traz uma nova luz ao funcionamento do conselho? TRIBUTAÇÃO em revista 9 será possível acelerar os julgamentos se o aumento de conselheiros por turma alongará as sessões, dimi- “Poderíamos comodamente apontar apenas as falhas no funcionamento do CARF, mas ofereceremos sugestões para que seja realmente um braço do Estado, trabalhando para o Estado.” nuindo o tempo para análise dos processos. O novo regimento ainda determina que os representantes dos contribuintes não acumulem função de julgadores com exercício da advocacia. Esta proibição não garante idoneidade moral, mesmo sob a lupa do recém-criado Comitê para Acompanhamento e Avaliação dos Conselheiros. Em resumo, o CARF deu uma “guinada de 360º”. Daí a importância de acompanhar a CPI. Primeiramente, para se ter a certeza de que empresas e personagens citados no relatório final sejam razão de inquérito pelo Ministério Público. E, em segundo, porque ficarão claras antigas e atuais fragilidades do Conselho, que exigirão mudanças verdadeiras e contundentes. CD - Nenhuma das sugestões que fizemos acima foi contemplada na Portaria 343, editada em 9 de junho de 2015, que trouxe o novo regimento do Conselho. A alteração de maior impacto, a redução do número de conselheiros – de 216 para 120 –, tem tudo para dar errado, pelo que já expus anteriormente. Ele continua a ser paritário, com representação dos contribuintes, julgando recursos voluntários e de ofício da primeira instância, as DRJ. TR – Como o Sindifisco Nacional vê a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), criada no Senado Federal, destinada a apurar as irregularidade no CARF? CD - Há muitas semelhanças entre o que aconteceu na Petrobras e no CARF. Empresários se uniram a apadrinhados políticos, colocados em pontos estratégicos das entranhas da estatal e do Conselho, para a obten- Veja que não se trata de criticar a paridade na repre- ção de vantagens. Há evidentes falhas estruturais em sentação. Ela em si não é um problema. Aliás, preten- ambos; a governança não se fez presente, apesar dos de trazer uma solução, democrática, equilibrando os sinais inequívocos. O resultado, todos já conhecem. pontos de vista. O problema, entretanto, é o desdo- O Sindifisco Nacional se colocou à disposição da CPI bramento das decisões tomadas em colegiados como para colaborar nos trabalhos. Participamos de uma o CARF, tal como tem acontecido e que acreditamos seção da CPI no início de julho e compareceremos continuará a acontecer, porque a paridade permanece tantas vezes quantas formos requisitados. Nosso in- no novo regimento. É disso que se trata. tuito é prover a Comissão de todas as informações No bojo dessa nova estrutura, caíram de 36 para 15 as se esclarecimentos que estiverem ao nosso alcance a turmas de julgamento, apesar do aumento no número fim de elucidar a prática criminosa que tem assolado de conselheiros em cada turma – de seis para oito. o CARF. Poderíamos comodamente apontar apenas Fica difícil de visualizar como será possível melhorar as falhas no funcionamento do CARF, mas oferece- a produtividade no CARF com menos turmas e jul- remos sugestões para que seja realmente um braço gadores. Assim também, será difícil identificar como do Estado, trabalhando para o Estado. 10 TRIBUTAÇÃO em revista A RTIGO O Contencioso Administrativo Fiscal Federal: A Atuação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) Oséas Coimbra Júnior1 Alfredo Jorge Madeira Rosa2 Álvaro Luchiezi Jr.3 1. Introdução O crédito tributário é constituído pela autoridade administrativa através do lançamento, atividade vinculada privativa das autoridades fiscais, na esfera federal representadas pelo Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil. Segundo o art. 142 do Código Tributário Nacional (CTN), o crédito tributário é o 1. Bacharel em Direito. Pós graduado em processo civil, direito e processo penal. Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil. Diretor Suplente do Sindifisco Nacional. Email: [email protected] 2. Economista. Bacharel em Direito. Pós graduado em Estatística Aplicada e MBA em Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria. Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil. Diretor-Adjunto de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional. Email: [email protected] 3. Economista e Mestre em Economia. Gerente de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional. Email: [email protected] “procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”. Ainda segundo o CTN, no art. 201, o crédito tributário é cobrado mediante o lançamento. Na medida em que o sujeito passivo discorde de sua cobrança, ele tem a faculdade de impugná-lo, administrativa ou judicialmente, suspendendo assim sua exigibilidade. Após a lavratura do auto de infração, na fase administrativa, o sujeito passivo recorre, em primeira instância, às Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ) e, em segunda, ao Conselho Administrativo de Recurso Fiscal (CARF). O recente episódio de julgamentos viciados em nível do CARF, investigados pela Polícia Federal, trouxe à tona a questão da necessidade de revisão da sua estrutura e composição. A repercussão dos fatos foi tão ampla que TRIBUTAÇÃO em revista 11 levou o Ministério da Fazenda, por meio da Portaria MF nº 197, de 23 de abril de 2015, a abrir consulta pública a fim de promover alterações no Regimento Interno do CARF, o que foi efetivado através da portaria MF 343/15. O presente estudo tem o objetivo de trazer ao debate que se instaura no País neste momento, a contribuição dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil sobre a questão da atuação do CARF, sua importância e validade. Assim, o estudo desenvolve-se a partir de um histórico da existência do órgão para a seguir descrever brevemente sua estrutura composição. Uma avaliação crítica dos principais pontos fracos da estrutura e composição do CARF é feita a seguir para culminar, na penúltima seção, com duas proposições sobre a continuidade do órgão. A última seção traz as conclusões do estudo. II – Histórico do CARF A Administração Tributária é a atividade do poder público que realiza a fiscalização e arrecadação tributárias4. Tem como principal objetivo aplicar a legislação pertinente aproveitando o máximo do potencial tributário do Estado. Faz parte do Sistema Tributário e o próprio conceito de sistema incorpora a administração. No que diz respeito à administração tributária da União, o Ministério da Fazenda é o órgão máximo e a ele subordina-se à Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), órgão responsável pela administração dos tributos de competência da União, inclusive os previdenciários, e pelos incidentes sobre o comércio exterior. Também auxilia na formulação da política tributária brasileira e atua no combate na prevenção (paralelismo) da sonegação fiscal, contrabando, descaminho, pirataria, fraude comercial, tráfico de drogas, de animais em extinção e outros atos ilícitos relacionados ao comércio internacional. Os julgamentos dos Autos de Infração são de competência, em primeira instância, das DRJ5, subordinadas ao 4. Harada, 2010 5. A Lei nº 8.748/93 criou 18 Delegacias especializadas em julgamentos de processos administrativos fiscais. 12 TRIBUTAÇÃO em revista Subsecretário de Tributação e Contencioso da Receita Federal do Brasil, e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) como órgão de segunda instância. A história do surgimento do CARF remonta a 1924 quando o Decreto nº 16.580 de 04 de setembro instituiu um Conselho de Contribuintes nos estados e no Distrito Federal para julgar recursos referentes ao Imposto de Renda. Em 1927, o Decreto no 5.157 de 12 de janeiro de 1927, estabeleceu que os recursos dos contribuintes relativos aos impostos de consumo seriam julgados por um conselho constituído paritariamente por representantes dos contribuintes e da Administração Pública. Em 1934, o Decreto nº 24.036 de 26 de março de 1934, extinguiu os conselhos existentes e criou o 1º e o 2º Conselho de Contribuintes, o primeiro para tratar de assuntos relativos ao imposto de renda, imposto do selo e imposto sobre vendas mercantis e o segundo para tratar do imposto de consumo, taxa de viação e os demais impostos, taxas e contribuições. O Decreto nº 54.767 de 30 de outubro 1964 criou o 3º Conselho de Contribuintes e o Decreto nº 70.235 de 06 de março de 1972 criou o 4º Conselho de Contribuintes. Com essa divisão, o 1º Conselho ocupou-se do Imposto de Renda, o 2º Conselho ficou encarregado do Imposto sobre Produtos Industrializados, o 3º Conselho dos tributos estaduais e municipais que competem à União nos Territórios e demais tributos federais e o 4º Conselho, do Imposto sobre Importação, Imposto sobre a Exportação e demais tributos aduaneiros, e infrações cambiais. O Decreto nº 79.630, de 29 de abril, extinguiu o 3º Conselho, transferindo suas atribuições para o 2º Conselho, com a consequente renomeação do 4º Conselho para 3º Conselho. Em 1979 o Decreto nº 83.304 criou a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) a fim de atender a previsão do Decreto nº 70.235 que previa a possibilidade de recurso especial dirigido ao Ministro da Fazenda contra as decisões dos Conselhos. A Medida Provisória nº 449, de 03 de dezembro de 2008, convertida na Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, unificou os Primeiro, Segundo e Terceiro Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda e a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), bem como suas respectivas câmaras e turmas, num único órgão, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o qual, segundo o art. 48 da referida lei, é um órgão “colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com competência para julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos especiais, sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil”. Para o CARF foram transferidas todas as atribuições e competências dos três conselhos e da Câmara Superior. A Lei nº 11.941/2009 ressalta o caráter de “órgão colegiado e paritário” do CARF, o qual também estava previsto no Regimento Interno dos Conselhos de Contribuintes. Assim, a paridade é um instituto que existe desde os Conselhos de Contribuintes. III – Estrutura, Composição e Objetivo do CARF O art. 25 da Lei nº 11.941/2009, que altera o art. 25 do Decreto 70.235/1972, determina que o CARF seja constituído por seções, definidas em número de três pelo seu regimento, especializadas por matéria, e constituídas por câmaras, havendo quatro câmaras em cada seção, estas integradas por turmas ordinárias e especiais6. Também compõe o CARF a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), formada por 3 (três) turmas. As seções do CARF correspondem aos conselhos da antiga estrutura e as câmaras correspondem aos órgãos homônimos dos antigos conselhos. As turmas das câmaras na nova estrutura não guardam correspondência direta com a antiga estrutura. Ou seja, a partir do CARF, com o surgimento das câmaras das turmas, o organograma tornou-se mais denso7. A CSRF julga recursos especiais contra decisão das Turmas Ordinárias. É constituída pelo Pleno, e por três turmas, sendo que, ao Pleno, compete a uniformização 6. As turmas especiais são temporárias, criadas ou extintas por ato do Ministro da Fazenda 7. A estrutura organizacional dos antigos conselhos não se repetiu no CARF. Os Conselhos de Contribuintes eram compostos de três Conselhos, subdivididos em Conselhos do Pleno, Câmaras, apoiados pelas respectivas Secretarias Executivas, compreendendo serviços de logística, apoio e documentação e biblioteca. de decisões divergentes, em tese, por meio de resolução. As turmas da CSRF são compostas pelos Presidentes e Vice-Presidentes das Câmaras das Seções de Julgamento do CARF, além do Presidente do CARF, respeitando-se a paridade em suas decisões. A presidência das turmas é exercida por Auditores Fiscais, sendo que a vice-presidência é ocupada por um conselheiro representante dos contribuintes. Quanto à composição, a Lei nº 11.941/2009 determina que o CARF e a CSRF serão compostos por representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, designados pelo Ministro da Fazenda para mandato definido em regimento, o qual o estipula em dois anos, permitindo-se recondução desde que o tempo total de exercício não exceda seis anos. O mandato dos conselheiros representantes da Fazenda Nacional cessa na data de sua aposentadoria. O regimento interno do CARF - RICARF, define em seu art. 28 que os conselheiros representantes da Fazenda serão indicados por meio de lista tríplice formulada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), e que os conselheiros representantes dos contribuintes serão indicados, também por meio de lista tríplice, formulada pelas confederações representativas das categorias econômicas em nível nacional e pelas centrais sindicais. Estas indicam os conselheiros representantes dos trabalhadores que compõem as câmaras que fazem o julgamento das contribuições previdenciárias. Os candidatos a conselheiros representantes da Fazenda Nacional são “Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, em exercício no cargo há pelo menos 5 anos” (inciso I, art. 29 do regimento)., enquanto que os candidatos a conselheiros representantes dos contribuintes serão “brasileiros natos ou naturalizados, com notório conhecimento técnico, registro no respectivo órgão de classe há, no mínimo, três anos e efetivo e comprovado exercício de atividades que demandem conhecimento nas áreas de direito tributário, de processo administrativo fiscal, de tributos federais e de contabilidade” (inciso II, art. 29 do regimento). O art. 32 do regimento determina que a seleção dos TRIBUTAÇÃO em revista 13 conselheiros será feita pelo Comitê de Acompanhamento, Avaliação e Seleção de Conselheiros (CSC), cuja Secretaria Executiva é vinculada à Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda. O organograma do CARF, mostrando a disposição da estrutura acima descrita, está indicado a seguir. IV – Críticas ao Atual Modelo do CARF A presente seção tece algumas considerações críticas a três elementos da atual estrutura do CARF e que estão na base do seu mau funcionamento: a paridade na representação; os recursos administrativos dentro do próprio CARF; e a impossibilidade de a Fazenda Nacional recorrer judicialmente das decisões do CARF que lhe são contrárias. IV .1 – Representação Paritária A natureza paritária do CARF, conforme determina a Lei nº 11.941/2009 e segundo especifica seu regimento, o qual prevê igual número de representantes da Fazenda e dos contribuintes na composição de suas Câmaras e Turmas, carrega em si o cerne dos vícios que assolam a instituição. A existência de julgadores que representem os contribuintes, faz com que eles atuem, de fato, representando os seus interesses. E representar os interesses do contribuinte – faltoso, diga-se – significa não pagar tributos, pagar menos tributos e, quando ele incorre em infrações, não pagar ou reduzir ao mínimo o pagamento de multas e juros. Em muitos casos os representantes dos contribuintes atuam, de fato, como seus advogados, defendendo em seus votos os pontos de vista do infrator que foi autuado por um Auditor Fiscal. Ora, não é lógico que votem contra o contribuinte pois assim fazendo estariam votando contra um cliente efetivo ou potencial. A esse respeito, diz o Procurador da República José Alfredo de Paula Silva, um dos integrantes da força-tarefa da Operação Zelotes, instaurada para investigar um esquema de corrupção no CARF: “(...) A figura do conselheiro privado no CARF é a porta de entrada para a corrupção”. E o mesmo Procurador vai além: “Quando o Brasil está sozinho no mundo, temos que fazer uma reflexão. Ou exportamos nosso modelo para o mundo ou precisamos rever nosso modelo”8. Nestas circunstâncias, é difícil de se imaginar que o resultado da apreciação dos casos ali julgados seja uma interpretação técnica do que prevê a lei. Esta é a abordagem que se espera de um julgador isento. Entretanto, diante do instituto da paridade, a isenção é apenas um recurso retórico, um sonho impossível. O único requisito para que o representante dos contribuintes venha a ser indicado é o da “idoneidade técnica” conforme prevê o inciso II do art. 29 do RICARF: 8. Souza, 2015. Figura 1 – Organograma do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais CARF Presidente CSRF (Pleno com 26 conselheiros) 1ª Seção de Julgamento 1ª Câmara 2ª Câmara 3ª Câmara 4ª Câmara Secretaria 1ª Turma 2ª Turma Turma Turma da da da Especial Especial 1ª Câmara 1ª Câmara 1ª Câmara 14 TRIBUTAÇÃO em revista 2ª Seção de Julgamento 1ª Câmara 2ª Câmara 3ª Câmara 4ª Câmara Secretaria 1ª Turma 2ª Turma Turma Turma da da da Especial Especial 1ª Câmara 1ª Câmara 1ª Câmara 3ª Seção de Julgamento 1ª Câmara 2ª Câmara 3ª Câmara 4ª Câmara Secretaria 1ª Turma 2ª Turma Turma Turma da da da Especial Especial 1ª Câmara 1ª Câmara 1ª Câmara Art. 29. A indicação de candidatos a conselheiro, recairá: (...) II - II - no caso de representantes dos Contribuintes, sobre brasileiros natos ou naturalizados, com formação superior completa, registro no respectivo órgão de classe há, no mínimo, 3 (três) anos, notório conhecimento técnico, e efetivo e comprovado exercício de atividades que demandem conhecimento nas áreas de direito tributário, processo administrativo fiscal e tributos federais. Já a presença de representantes da Fazenda Nacional no CARF define um compromisso em sentido bastante diverso daquele dos representantes dos contribuintes. O art. 29 do Regimento Interno do CARF determina ainda que: Art. 29. A indicação de candidatos a conselheiro, recairá: I - no caso de representantes da Fazenda Nacional, sobre Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, em exercício no cargo há pelo menos 5 (cinco) anos; Os Auditores Fiscais são dotados de experiência e conhecedores profundos da legislação tributária e do Sistema Tributário Nacional. O Código Tributário Nacional – CTN o reconhece como autoridade administrativa, fiscal e aduaneira e pela sua experiência de atuação no contencioso, está plenamente capacitado para decidir em processos administrativos fiscais, ao contrário dos representantes do contribuinte de que em o regimento requer apenas a “idoneidade profissional”. Além disso, o Auditor Fiscal, como servidor público, está comprometido com sua carreira e com a defesa da Administração Pública, sendo obrigado a observar os princípios que a norteiam, mormente: a) legalidade (agir sob regência da lei); b) moralidade (agir não apenas em conformidade com a lei, mas adicionar a Finalidade ao Princípio da Legalidade, agindo sobre bases éticas); c) motivação (seus atos são motivados pois representam interesses da coletividade, do povo, o titular da “coisa pública”); d) razoabilidade (correspondência entre a concepção abstrata na lei e os fatos concretos que aprecia, impondo limites à discricionariedade administrativa); e) impessoalidade (regência do interesse social, impossibilitando que este se subordine a interesses pessoais). O próprio princípio da moralidade, inscrito no art. 37 da Constituição Federal, norteia a ação do representante da Fazenda Nacional no CARF. Caso pratique comprovadamente atos de improbidade administrativa, perde a função pública, seus bens tornam-se indisponíveis para ressarcir o erário e tem seus direitos políticos suspensos, respondendo cível, administrativa, e penalmente pelos seus atos enquanto agente público. Os compromissos dos dois representantes no CARF – contribuintes e Fazenda Nacional – são claramente opostos. Enquanto os primeiros são orientados para os interesses privados, os segundos, pela própria natureza da função que ocupam, defendem o interesse público. E é este que deve prevalecer pois, afinal, os julgamentos que lá se realizam tratam dos recursos que o Estado recolhe do contribuinte e administra para o bem final do contribuinte. Não se trata, portanto, do interesse de determinados contribuintes, considerados individualmente, mas do conjunto de contribuintes. Acima deles está a lei, cuja interpretação deve ser isenta. Todos os instrumentos que a comprometem devem ser afastados a bem da própria coletividade. IV.2 – Possibilidades de Recursos Administrativos Diversos É da competência do CARF, conforme reza o art. 1º do Anexo II do seu Regimento Interno, analisar os recursos contra as decisões de primeira instância, ou seja, aquelas tomadas em nível das DRJ. Art. 1º O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de 1ª (primeira) instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB). O art. 1º supracitado também coloca no rol dos recursos analisáveis pelo CARF aqueles de natureza especial. Recursos voluntários são aqueles interpostos junto ao CARF pelo contribuinte que não concorda com a TRIBUTAÇÃO em revista 15 decisão proferida em primeira instância administrativa (DRJ), suspendendo a exigibilidade do crédito tributário, assim como a eficácia da decisão da qual o contribuinte recorreu. Também suspende o prazo prescricional para que a Fazenda Nacional entre com ação de execução fiscal contra o contribuinte. Enquanto o CARF analisa o recurso, o contribuinte está desobrigado de pagar o tributo e seus acréscimos legais bem como não será acionado judicialmente para que efetue o pagamento. Assim, mesmo que sem fundamento substantivo, mas em respeito ao mandado constitucional, o simples recurso ao CARF permite ao contribuinte faltoso o não desembolso imediato de recursos financeiros, os quais deveriam compor a arrecadação federal. Os recursos de ofício são interpostos pelo Presidente de Turma da DRJ, por meio de declaração na própria decisão, sempre que o valor exonerado for superior a um milhão de reais ou nos casos em que, cominada uma infração, não se aplicar pena de perdimento de mercadoria ou bens. Para que um caso seja analisado pelo CARF é preciso, então, que ele seja encaminhado por meio de um dos dois recursos acima. Contudo, as decisões do CARF também podem ser objeto de recurso dentro do próprio CARF. É o que preveem os art. 64, 65 e 67 do seu Regimento Interno. Art. 64. Contra as decisões proferidas pelos colegiados do CARF são cabíveis os seguintes recursos: I - Embargos de Declaração; e II - Recurso Especial. Parágrafo único. Das decisões dos colegiados não cabe pedido de reconsideração. Seção I Dos Embargos de Declaração Art. 65. Cabem embargos de declaração quando o acórdão contiver obscuridade, omissão ou contradição entre a decisão e os seus fundamentos, ou for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se a turma. (...) § 5º Somente os embargos de declaração opostos tempestivamente interrompem o prazo para a interposição de recurso especial. (...) Do Recurso Especial Art. 67. Compete à CSRF, por suas turmas, julgar recurso especial interposto contra decisão que der à lei tributária interpretação divergente da que lhe 16 TRIBUTAÇÃO em revista tenha dado outra câmara, turma de câmara, turma especial ou a própria CSRF. Assim, uma vez que uma decisão do CARF contrária ao contribuinte, emitida por meio de acórdão, é dada ao seu conhecimento, este poderá lançar mão do embargo de declaração como um primeiro instrumento protelatório, alegando “obscuridade, omissão ou contradição”. Dada a complexidade da legislação e dos próprios instrumentos jurídicos que a interpretam, bons advogados estarão sempre habilitados a encontrar uma razão mínima que justifique os embargos. Mas os embargos não constituem o único instrumento protelatório. Há também, e principalmente, a figura do Recurso Especial, dirigido à CSRF. Ele permite que o contribuinte discorde, junto ao conselho, de uma decisão do próprio conselho. Na prática, protela-se ainda mais a tomada de decisão. E esta não é a única consequência nefasta. A instância superior revisional, pela sua própria composição, está, ela também, sujeita às diversas pressões vindas do contribuinte para que se faça a revisão de uma decisão que lhe foi desfavorável. Abre-se mais espaço para a manipulação de resultados. IV.3 – Impossibilidade de Recurso ao Judiciário pela Fazenda Nacional. O CARF é um órgão colegiado, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, conforme explicita a alínea g), inciso III do art. 2º ao Anexo I do Decreto no 7.482 de 16 de maio de 2011, o qual aprova a estrutura regimental do Ministério da Fazenda. In verbis, Art. 2º O Ministério da Fazenda tem a seguinte estrutura organizacional: (...) III - órgãos colegiados: (...) g) Conselho Administrativo de Recursos Fiscais; (...) Embora o sujeito passivo tenha a prerrogativa de recorrer à Justiça, ao discordar do resultado de uma decisão do CARF que lhe seja contrária, essa prerroga- tiva, na prática, não é concedida à Fazenda Nacional. E isso devido ao fato de que a Fazenda não pode recorrer de uma decisão dela própria já que o CARF é um órgão de sua estrutura. Uma possibilidade em sentido contrário abriu-se com o Parecer/PGFN/CRJ nº 1.087/20049. Este instrumento foi exarado em resposta a uma indagação do Coordenador-Geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional acerca de uma decisão de mérito do então Conselho de Contribuintes. Argumenta o parecer que o referido conselho, transformado no CARF, tem, desde a sua origem “certo viés pró-contribuinte”. Segue o parecer caracterizando as decisões tomadas no âmbito do conselho como atos administrativos os quais podem ser invalidados tanto na esfera administrativa como na Judiciária, “por erro, culpa, dolo ou interesses escusos de seus agentes”. E que, embora a doutrina afirme que o controle judicial dos atos administrativos deva ser um controle de legalidade, seu controle jurisdicional, com base no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, deve “ser amplo e irrestrito, sempre que haja lesão ou ameaça de direito”10. Assevera o parecer, após argumentar com base na jurisprudência e na doutrina, que: “no processo administrativo fiscal PAF, a decisão final proferida pelo Conselho de Contribuintes, contrária ao Fisco, não impede a União (Fazenda Nacional) de recorrer ao Poder Judiciário, em face da inexistência, no direito positivo, de norma proibitiva.” Finalmente, conclui o parecer que a Administração Pública pode levar à apreciação do Poder Judiciário decisões do Conselho de Contribuintes (CARF, desde 2009) em casos de “quanto à sua legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato”. Essa conclusão levou a PGFN a editar a Portaria PGFN nº 820, de 25 de outubro de 2004, definindo os limites em que a procuradoria pode recorrer ao Poder Judiciário das ações julgadas contra a Fazenda Nacional: 9. Este parecer foi aprovado pelo Ministro da Fazenda em despacho de 17 de agosto de 2004, publicado do DOU de 23 de agosto de 2004. 10. Inciso XXXV, art. 5º da Constituição Federal: “XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; Art. 2º As decisões dos Conselhos de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais podem ser submetidas à apreciação do Poder Judiciário desde que expressa ou implicitamente afastem a aplicabilidade de leis ou decretos e, cumulativa ou alternativamente: I versem sobre valores superiores a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais); II cuidem de matéria cuja relevância temática recomende a sua apreciação na esfera judicial; e III possam causar grave lesão ao patrimônio público. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplicasse somente a decisões proferidas dentro do prazo de cinco anos, contados da data da respectiva publicação no Diário Oficial da União. Como contraponto ao argumento da PGFN, outros autores11 defendem que a previsão constitucional acima citada tem como objetivo proteger o cidadão contra abusos originados pela Administração Pública. Portanto, a regra destinar-se-ia a amparar o cidadão e não o Estado. Embora haja a possibilidade de a PGFN recorrer judicialmente a favor da Fazenda Nacional apenas nos casos acima previstos, isso efetivamente não ocorre. Processos acima de R$ 50 milhões não perfazem sequer 5% do total, embora constituam com certeza ao menos dois terços do montante em valor discutido no CARF. E a PGFN deverá identificar, dentre eles, aqueles casos que possam causar “grave lesão ao patrimônio público”. Veja tabela 1 na página seguinte. Cumpre salientar que as recentes investigações envolvendo as decisões do CARF mostram a existência de vício profundo nas decisões que conduzem a enormes danos à Fazenda Nacional e ao contribuinte, destinatário final dos recursos tributários. Embora o CARF esteja colocado na estrutura do Ministério da Fazenda, este apenas o abriga. Ele não é um órgão de governo. As decisões dele emanadas são paritárias, refletindo a posição conjunta de contribuintes e de governo. Ou seja, não refletem um posicionamento exclusivo da Administração Pública. O Ministério da Fazenda apenas referenda suas decisões. E não poderia ser diferente pois enquanto órgão colegiado ele tem, na meta11. Vide Feres, 2005. Silva, 2013, faz um apanhado bastante amplo das posições doutrinárias e jurisprudenciais a favor e contrárias ao posicionamento da PGFN. TRIBUTAÇÃO em revista 17 Tabela 1 CARF: Estoque de Processos por Faixa de Valores Posição em 28/02/2015 Quantidade Faixas de Valores Nº Acima de R$ 100 milhões Entre R$ 100 mil e R$ 10 milhões Abaixo de R$ 100 mil Soma % 780 Entre R$ 10 milhões e R$ 100 milhões Valor Em R$ % 1% 357.330.756.678 67% 4.295 4% 125.762.492.386 23% 13.190 12% 43.607.045.580 8% 93.698 84% 9.315.652.397 2% 111.963 100% 536.015.947.041 100% Fonte: CARF/ e-Processo Elaboração: Departamento de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional de de sua composição, representantes dos contribuintes. Assim, numa reformulação do CARF que se venha a colocar em curso, não haverá que impedir a Fazenda Nacional de recorrer judicialmente quando se sentir prejudicada numa decisão que favoreça o sujeito passivo. A bem do interesse final e maior do contribuinte, e da ampla defesa da coisa pública, deve ser facultada à Fazenda Nacional recorrer judicialmente de todas as decisões nas quais ela julgue que o interesse público foi indevidamente sobreposto pelo interesse privado. V – Proposições para uma Reformulação Geral do Contencioso Administrativo Fiscal em Nível Federal A seção anterior analisou três pontos fracos existentes na estruturação do CARF, os quais concorrem para que as suas decisões sejam enfraquecidas, sujeitando-as a desvios não apenas de natureza técnica, mas, principalmente, ética. Comprometem, assim o interesse e o erário públicos. Com o intuito de resgatar a legitimidade dos julgamentos no CARF, apresentamos, a seguir, a título de sugestão, duas propostas de reestruturação da composição e funcionamento do Conselho. V.1 – Extinção do CARF e Fortalecimento das DRJ As Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ), órgãos vinculados à RFB e subordinadas ao Subsecretário de Tributação e Contencioso são responsáveis pelo julgamento, em primeira instância, dacontestação do sujeito passivo a quaisquer lançamentos 18 TRIBUTAÇÃO em revista tributários executados pelo Fisco. Precede hierarquicamente ao CARF. Foram criadas pela pelo art. 2º da Lei nº 8.748 de 9 de dezembro de 1993. São compostas por turmas ordinárias e especiais de julgamento, cuja quantidade pode variar por cada delegacia. Integram as turmas das delegacias 5 a 7 julgadores que serão dirigidos por um presidente nomeado pelo Secretário da Receita Federal. O período máximo do mandato do julgador é de três anos e estão admitidas reconduções. Todos os julgadores devem ser ocupantes do cargo de Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil. No tocante à estrutura, as DRJ são unidades descentralizadas de execução, dispostas nas 10 regiões fiscais e, atualmente, perfazem 14 delegacias, a saber: Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Juiz de Fora, Porto Alegre, Recife, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo12. Conforme a Portaria RFB n° 2.466, de 28 de dezembro de 2010, as DRJ tem jurisdição em todo o território nacional. Logo, as delegacias podem julgar, também, os lançamentos realizados fora de suas fronteiras13. No que se refere ao processo administrativo fiscal, o contribuinte, a partir do recebimento do auto de infração tem o prazo de 30 dias corridos para requerer a im- 12. Informação constante na página da internet da RFF (http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/julgamento-administrativo) em maio de 2015. Quando da sua criação, a Lei no 8.748 de 9 de dezembro de 1993 definiu dezoito DRJ. 13. Valadão, 2012. pugnação, parcial ou de todos os itens, e encaminhá-la à Delegacia da Receita Federal, para julgamento da DRJ designada. Inicia-se, assim, a fase contenciosa administrativa. A exigibilidade do crédito tributário pelo contribuinte será suspensa, assim como o prazo prescricional, desde que feita seguindo os parâmetros de casos e prazos estabelecidos em lei. Se o julgamento na DRJ for favorável ao contribuinte, a DRJ reconhece a improcedência da cobrança e procede à exoneração do crédito tributário. Se for desfavorável ao contribuinte, e ele discordar, pode recorrer ao CARF por meio de um recurso voluntário. É importante ressaltar que nos casos favoráveis ao contribuinte cujo valor da exoneração exceda o limite de alçada de um milhão de reais14, a autoridade de primeira instância sempre recorrerá com um recurso de ofício ao CARF. A descrição acima da constituição e funcionamento das DRJ dá-lhes a necessária solidez para responder em única instância administrativa pelo julgamento administrativo dentro do Procedimento Administrativo Fiscal (PAF). É importante ressaltar que os julgadores são Auditores Fiscais da RFB. A interpretação, em nível administrativo, da legislação tributária, não é feita por leigos no assunto, mas sim por autoridades administrativas dotadas da formação, especialização técnica e da experiência necessárias para o desempenho dessa atividade. funcionamento, não com o caráter democratizante acima mencionado, mas com a finalidade de, mostrando-se mais alinhada com a cultura judicial nacional, também permitir a uniformização de procedimentos de julgamentos. O CARF assim concebido também seria composto exclusivamente por Auditores Fiscais, mas atuando num órgão único, hierarquicamente superior. Este órgão, mais enxuto em sua composição do que o atual, teria em sua missão, dentre outros mandatos, o de promover, por meio de seus julgamentos, a uniformização das decisões tomadas em primeira instância (DRJ). Por mais rigorosos que sejam os critérios para a indicação dos representantes dos contribuintes , estes não têm os mesmos requisitos técnicos, o que torna o seu julgamento perigosamente político e influenciável. Não há muito sentido que um colegiado com a responsabilidade de exonerar o crédito tributário tenha em sua composição não especialistas na matéria e decida de forma paritária. Por melhor que seja sua formação e experiência, ela não se iguala a quem trabalha ao longo de anos com o assunto, como os Auditores Fiscais. Um outro elemento de seu mandato deveria ser a celeridade nas decisões. Assim, nessa estrutura a possibilidade de diversos recursos não deveria existir, ao contrário do que existe hoje, onde a CSRF julga recursos contra as decisões do CARF e de si mesma! V.2 – Manutenção do CARF Composto Apenas por Auditores Fiscais. A cultura jurídica brasileira está solidamente sedimentada no instituto do recurso fato que em muitos casos, tributários ou não, é responsável pela demora no julgamento e pelo aumento dos custos de transação. A existência de uma única instância de julgamento do contencioso tributário federal centrada nas DRJ tornaria o PAF mais célere e menos oneroso. Contudo, uma segunda instância de julgamento, nos moldes do CARF, poderia se constituir numa estrutura de VI – Conclusão Por todos os fatos expostos acima, em especial as deficiências inerentes ao modelo posto de CARF, fica evidente a necessidade de uma profunda reformulação. O modelo atual, mesmo após a tímida reforma recentemente promovida e implementada pela Portaria MF 343/2015, ainda não atacou a característica que demostrou ser a grande responsável pelos maiores problemas expostos nas recentes investigações realizadas em conjunto pela Receita Federal do Brasil, Corregedoria do Ministério da Fazenda, Polícia Federal do Brasil e Ministério Público Federal. O modelo paritário brasileiro, sem eco em importantes e consolidados tribunais adminis- 14. Segundo a Portaria MF nº 3, de 3 de janeiro de 2008. TRIBUTAÇÃO em revista 19 trativos estrangeiros, fragiliza sobremaneira princípios basilares como o da impessoalidade e o da moralidade. Esta fragilidade demonstra-nos que talvez seja momento cursos possíveis na esfera administrativa passa a ter forte viés meramente protelatório. Além da quantidade de recursos administrativos de repensarmos essa paridade. Neste sentido, o caminho tanto pode ser um modelo de maior ruptura, com extinção do CARF e fortalecimento das DRJ, como em um modelo no qual o CARF – a exemplo dos demais tribunais administrativos – seria formado apenas por Auditores Fiscais, atuando como uma instância uniformizadora de jurisprudência administrativa tributária. Atacada a questão essencial da paridade, ainda há pontos a serem melhorados, como os já abordados diversos recursos possíveis na esfera administrativa. Considerando-se que em nosso modelo judicial o contribuinte sempre poderá se socorrer do Judiciário após eventual decisão administrativa desfavorável, a quantidade de re- possíveis, carece de razoabilidade também o fato da Fazenda Pública não ter garantido essa possibilidade de socorro ao Judiciário, pois quando essa obtém decisão desfavorável na esfera administrativa, é abstraído o fato de que nossa esfera “Administrativa” é 50% composta por membros de fora da Administração Pública. Todavia, ao se resolver a questão da paridade, reflexamente também resta resolvida esta última questão levantada. Em um modelo composto apenas por Auditores Fiscal as decisões administrativas realmente seriam decisões 100% da Administração, e não faria sentido a Administração Tributária querer recorrer ao Judiciário após ela mesma ter decidido em desfavor de si própria. REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto nº 70.235 de 06 de março de 1972. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 07 mar. 1972. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/D70235cons.htm. Acesso em 15 mai 2015. BRASIL. Decreto nº 8.441 de 29 de abril de 2015. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 30 abr. 2015. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8441.htm. Acesso em 15 mai 2015. BRASIL. Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 out. 1966. Disponível em http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em 15 mai 2015. BRASIL. Lei 11.941, de 27 de maio de 2009. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 mai. 2009. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11941.htm . Acesso em 15 mai 2015. 20 TRIBUTAÇÃO em revista BRASIL. Portaria MF nº 256, de 22 de junho de 2009. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 jun. 2009. Disponível em http://www18.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Portarias/2009/MinisteriodaFazenda/portmf256.htm. Acesso em 15 mai 2015. BRASIL. Portaria MF nº 41, de 17 de fevereiro de 2009. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 19 fev. 2009. Disponível em http://www.fazenda.gov.br/institucional/legislacao/2009/portaria41. Acesso em 15 mai 2015. BRASIL. Portaria PGFN nº 820 de 25 de outubro de 2004. Disciplina, no âmbito da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, a submissão de decisões dos Conselhos de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais à apreciação do Poder Judiciário. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 29 out. 2004. Disponível em: http://www.portaltributario.com.br/legislacao/portariapgfn820.htm. Acesso em 15 mai 2015. DAMASCENO, Cláudio. Ou o CARF muda, ou fecha as portas. Brasil Econômico, São Paulo, 12 mai 2015. REFERÊNCIAS Entenda a Operação Zelotes da Polícia Federal. Folha de São Paulo. São Paulo, 1º abr. 2015. Mercado. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ mercado/2015/04/1611246-entenda-a-operacao-zelotes-da-policia-federal.shtml. Acesso em 22 mai 2015. FERES, Pedro L. O. Justiça não pode revisar ações favoráveis ao fisco. Consultor Jurídico. São Paulo, 09 set 2005. 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A aproximação das ideias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de di- 1. Mestrando em Direito Público no Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Público. Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil. E-mail: [email protected] 22 TRIBUTAÇÃO em revista reito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático. No Brasil, prossegue Barroso, o renascimento do direito constitucional ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988, que foi capaz de promover, de maneira bem-sucedida, a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritário, intolerante e, em geral, violento para um Estado democrático de direito. MENDES e BRANCO (2011, p. 153), seguindo trilha semelhante, apontam que o avanço do direito constitucional na atualidade, em grande parte, deve-se à afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção da dignidade da pessoa e da visão que a Constituição é o local adequado para positivar as normas asseguradoras dessas pretensões. Apontam ainda que a importância dos direitos fundamentais pode ser percebida no preâmbulo da Constituição Federal/88, no ponto em que se proclama que a “Assembleia Nacional Constituinte teve como inspiração básica dos seus trabalhos ‘instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança.’” Referida inspiração ganhou concretude no artigo 1º da Carta de 88 ao dispor que “a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito” com fundamentos e objetivos concretos (arts. 1º e 3º). No campo tributário, como ensina GODOI (1999, p. 257, 258), a justiça tributária é a especificação da justiça constitucional, e esta, por sua vez, adquire com o Estado Democrático de Direito uma dimensão fundamental, o qual aponta para a eliminação das desigualdades fáticas ilegítimas, que impedem o livre exercício das liberdades individuais. Já a capacidade contributiva, é a medida geral da igualdade constitucional, critério que como razão prima facie deve presidir a repartição da carga tributária e cuja vinculação íntima com o princípio da igualdade faz nascer para o contribuinte um direito de contribuir segundo a própria capacidade econômica. Se no Estado Democrático de Direito é imperioso eliminar as desigualdades fáticas ilegítimas, que impedem o livre exercício das liberdades individuais, bem como garantir ao contribuinte o direito de contribuir segundo a própria capacidade econômica, de igual forma o direito ao contraditório e ampla defesa deve ter especial tratamento, porquanto, além de inserto na Constituição, representa a garantia de um processo em que o contribuinte poderá, legitimamente, defender-se com todos os meios de provas admitidos no ordenamento jurídico. É nesse contexto do Estado Democrático de Direito – que significa a exigência de reger-se pelo Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e às garantias fundamentais – que este estudo irá analisar, no âmbito do contencioso tributário em sede administrativa, a materialidade do art. 5º, inciso LV, da CF/88 que inovou ao estabelecer que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 2. Do Estado Absolutista ao Estado Democrático de Direito O Estado Absolutista foi um regime político em que se deu a transição do Estado medieval (Feudal) para o Estado Moderno. Segundo BONAVIDES (2003, p. 21), o surgimento desse novo Estado ocorreu mediante um contrato firmado entre o homem e o Estado, o qual teve como principal fundamento a soberania. É nesse contexto que o autor assenta que “o homem perdia a liberdade, mas ganhava, em troca, a certeza da conservação.” Nesse período a figura do próprio Estado chega a confundir-se com a figura do monarca, cuja legitimidade era tida como advinda da tradição (santidade) para governar. Superado o Absolutismo, a idade contemporânea inicia-se com o Estado Liberal. Forte nas ideias dos principais pensadores liberais do século XVIII – Adam Smith, John Locke e Rousseau – o Estado Liberal caracterizava-se pela proteção às liberdades individuais, à propriedade privada, ao livre mercado, limitação do poder estatal, ausência de coerção ao indivíduo e também pela igualdade (formal). Não obstante o Estado Liberal fosse um Estado de Direito, a intervenção do Estado na defesa dos direitos individuais era mínima; limitava-se ao oferecimento, em tese, de igualdade formal aos cidadãos, haja vista não ter gerado nenhuma melhora na condição de vida se comparado com o Estado Medieval, cujo regime era o Absolutismo. Segundo DI PIETRO (2011, p. 9), no século XIX iniciaram as reações ao Estado Liberal por causa das graves consequências no âmbito econômico e social, com as grandes empresas transformando-se em monopólios e aniquilando as de pequeno porte, dando origem a uma nova classe em condições de doença, miséria, e ignorância – o proletariado –, cuja quantidade só fazia aumentar ante a não intervenção estatal. Diante da insuficiência dos princípios liberais para reparar o enorme estado de desigualdade então existente surge o Estado Social que vai promover alteração no conteúdo e aplicação das leis de forma a se alcançar uma TRIBUTAÇÃO em revista 23 igualdade, agora, material, com vistas a provocar uma redefinição dos clássicos direitos de 1ª geração (direitos naturais, vida, liberdade, propriedade) ou uma materialização adequando-os à necessidade dos direitos de 2ª geração (direitos coletivos e sociais). (HABERMAS, apud TAVARES e SANTOS, 2013, p. 36). Com o fim da Segunda Guerra Mundial, iniciam-se as crises de legitimidade do Estado Social culminando com o surgimento do paradigma do Estado Democrático que inova ao incorporar a democracia participativa que legitima todos os atos estatais. (HABERMAS, apud TAVARES e SANTOS, 2013, p. 36). Nesse novo paradigma são consagrados os direitos de 3ª geração (direitos ou interesses difusos), e os de 1ª e 2ª passam por um processo de releitura e adequação ao novo modelo. O “Estado passa a ser questionado e fiscalizado a partir da organização da sociedade civil, que exige sua constante participação no debate tanto das coisas públicas como de seus interesses fundamentais.” (PELLEGRINI, 2004, p. 7) Em síntese, “O Estado Democrático de Direito é a soma e o entrelaçamento do constitucionalismo, república, participação popular direta, separação de poderes, legalidade e direitos (individuais e políticos) ” (SUNDFELD, 2010, p. 54). É nesse contexto do Estado Democrático de Direito que os direitos e garantias individuais, ou, direito fundamentais, ganham força, materializam-se. No caso específico deste estudo destacamos o princípio do contraditório, inovação trazida pela Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso LV, que estabelecer que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Segundo NERY JÚNIOR (2004, p. 169), a inovação foi profunda porquanto permitiu que o princípio alcançasse expressamente os processos civil e administrativo, já que na constituição anterior a previsão expressa garantia do contraditório somente para o processo penal (art. 153, § 16, CF 1969), não obstante houvesse a manifestação da doutrina de que tal princípio se aplicava 24 TRIBUTAÇÃO em revista também ao processo civil e ao administrativo. No mesmo sentido, MENDES e BRANCO (2011, p. 493) apontam que as dúvidas existentes, seja na doutrina ou na jurisprudência, no tocante à dimensão do direito de defesa foram extintas; portanto, é inequívoco que tal garantia contempla, no seu âmbito de proteção, os processos judiciais ou administrativos. No direito constitucional comparado, apreciando o “Anspruch auf rechtliches Gehör” (pretensão à tutela jurídica), a Corte Constitucional alemã aponta que essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar. Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5a, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: - direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrários os atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; - direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; - direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de ânimo (Aufnähmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas. (MENDES & BRANCO, 2011, p. 494). Ao discorrer sobre o devido processo legal, MORAES (2005, p. 93) acentua que esse princípio configura dupla proteção ao indivíduo: i) “no âmbito material de proteção ao direito de liberdade”, ii) bem como no âmbito formal, “ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa”. Acentua ainda como corolários desse princípio a ampla defesa e o contraditório tal qual expresso no art. 5º, LV da CF/88 e os define da seguinte forma: Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor. (MORAES, 2005, p. 93). Conforme NERY JÚNIOR (2004, p. 170), o princípio do contraditório constitui-se em manifestação fundamental do princípio do estado de direito, bem como guarda íntima ligação com o princípio da igualdade das partes e o do direito de ação, uma vez que a constituição, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, “quer significar que tanto o direito de ação quanto o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório”. 3. O Contencioso Administrativo Tributário no Brasil A Administração pública no Brasil, no exercício de sua competência constitucional deve sempre buscar a realização da justiça, finalidade que legitima sua atuação. Com efeito, os órgãos internos na Administração devem realizar o controle de seus atos. Trata-se na verdade, de estabelecer controles “desde dentro”, ou seja, incidentes na própria intimidade da Administração ao longo da formação da sua vontade, em vez de contentar com controles operados de fora pelo Judiciário, e, portanto, só utilizados ex post fato. (NEDER e LÓPEZ, 2010, p. 23) Na busca da justiça administrativa, vale dizer, na prevenção e solução de conflitos de caráter administrativo, existem dois sistemas principais: o francês, que estabelece jurisdição dupla (Judiciário e Executivo); e o sistema inglês, em que a jurisdição é una e prerrogativa do Judiciário. O Sistema de dupla jurisdição, que surgiu na França no século XVIII, caracteriza-se pelo fato de a função jurisdicional ser compartilhada com a Administração, que acumula as funções executivas tradicionais e também tem o poder de julgar. Contrapõe-se a esse sistema o chamado “sistema common law”, presente nos Estados Unidos e países Britânico, em que a solução das controvérsias entre os particulares e a Administração é competência do Poder Judiciário, configurando a chamada jurisdição única. No ordenamento jurídico brasileiro prevalece o modelo de jurisdição única, segundo o qual existe a reserva absoluta de jurisdição do Judiciário, tendo em vista que o art. 5º, XXXV da CF/88 estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. É com base nessa unicidade de jurisdição que o artigo 87, do Decreto nº 7.574, de 29/09/2011, com suporte no art. 38 da Lei nº 6.830, de 22/09/1980, dispõe que “a existência ou propositura, pelo sujeito passivo, de ação judicial com o mesmo objeto do lançamento importa em renúncia ou em desistência ao litígio nas instâncias administrativas”. Ressalva, porém, que, no caso de haver matéria distinta no bojo do processo administrativo, este terá prosseguimento em relação à matéria diferenciada. Afinal, se a última palavra é a do Judiciário, no caso de duplicidade de questionamento – na esfera Administrativa e Judicial – não faz sentido o feito continuar sua tramitação no âmbito administrativo. Segundo NEDER e LÓPEZ (2010, p. 24), a legitimidade dos tribunais administrativos tem origem no art. 5º, incisos XXXIV, “a” e LV, da CF/88, que asseguram a todos o direito de peticionar aos Poderes Públicos, bem como equipara o processo administrativo ao processo judicial ao protegê-lo com as mesmas garantias2. Ao empregar as expressões “litigantes” e “processo administrativo” com a garantia do “contraditório” e da “ampla defesa”, o texto constitucional “explicita a existência, antes controversa, de “lide administrativa” e confere competência ao processo administrativo para prevenção de conflitos de interes- 2. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...) XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; TRIBUTAÇÃO em revista 25 ses que envolvam a Administração Pública”. Para MACHADO (1994, p. 303), o contencioso administrativo faz reduzir a presença da Administração Pública em feitos judiciais e “funciona como um filtro”. Em matéria tributária, ATALIBA apud NEDER e LÓPEZ (2010, p. 25), seguindo a mesma linha, leciona que: Diversas razões recomendam que se crie um sistema de eliminação célere e eficaz desses conflitos, tendo em vista a harmonia Fisco-contribuinte e os interesses públicos em jogo. Se todas as divergências forem submetidas ao Poder Judiciário, este submergirá sob o peso de um acúmulo insuportável de questões a julgar. Além disso – e também por isso – tardarão muito as soluções, em detrimento das partes envolvidas. Daí a razão pela qual, em quase todos os países, se criaram organismos e sistemas para reduzir o número de causas instauradas perante o Poder Judiciário. No âmbito dos tributos federais, o processo administrativo fiscal regula-se pelas normas do Decreto nº 70.235, de 06/03/1972, norma específica, recepcionada pela CF/88 como lei ordinária, cuja origem foi o Decreto-lei nº 822, de 05/09/1969. Subsidiariamente, aplica-se o disposto na Lei nº 9.784, de 29/01/1999, norma geral, que regula o processo administrativo na esfera da Administração Pública Federal. Tratando-se de exceção à regra geral, a aplicação do rito previsto no Decreto nº 70.235/72 está condicionada à expressa previsão na norma processual administrativa. Vale dizer, se o litígio não está abarcado pelas regras especiais do indigitado Decreto, aplicam-se as regras processuais gerais previstas na Lei nº 9.784/99. O rito especial definido pelo Decreto nº 70.235/72 decorre, sobretudo, da necessidade de especialização dos julgadores administrativos no trato das lides de natureza fiscal. Nesse sentido, a Administração atribuiu competência de julgamento a órgãos administrativos especializados. Delegacias da Receita Federal de Julgamento - DRJ, em primeira instância; e Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, em segunda instância; este último constituído por Seções e pela Câmara Superior de Recursos Fiscais. Todos incumbidos de solucionar os litígios 26 TRIBUTAÇÃO em revista fiscais gerados a partir da provocação do sujeito passivo. O contraditório e a ampla defesa no âmbito do contencioso fiscal administrativo podem ser exercidos pelo contribuinte nas matérias3 sujeitas ao Decreto nº 70.235/72 mediante os seguintes recursos: I – Impugnação (recurso de 1ª instância): interposta pelo contribuinte, no prazo de 30 (trinta) dias, perante o órgão da Administração Tributária que emitiu o ato administrativo impugnado, sendo a petição encaminhada à Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento-DRJ (arts. 15 a 17 do Decreto nº 70.235/72); II – Recurso Voluntário (recurso de 2ª instância): interposto contra decisão proferida em primeira instância, no prazo de 30 (trinta) dias, a ser apreciado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (art. 37 do Decreto nº 70.235/72); III – Recurso Especial à Câmara Superior de Recursos Fiscais: interposto perante o CARF, no prazo de 15 (quinze) dias da ciência do acórdão, em face de decisão que der à lei tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra Câmara, turma de Câmara, turma especial ou a própria Câmara Superior de Recursos Fiscais (art. 37 do Decreto nº 70.235/72); IV – Embargos de Declaração: interposto, no prazo de 5 (cinco) dias, contra as decisões proferidas pelo CARF quando o acórdão contiver obscuridade, omissão ou contradição entre a decisão e seus fundamentos ou for omitido ponto sobre o qual deveria pronunciar-se a turma (art. 64/65 da Portaria MF nº 265, de 22/06/2009, - Regimento Interno do CARF). As matérias não abarcadas pelo referido Decreto deverão seguir o rito processual da Lei nº 9.784/99 que, nos termos dos arts. 56 e 59, estabelece que “o recurso será dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual, se não a reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade superior”. A regra geral, ao contrário do Decreto nº 70.235/99, é o recurso hierárquico que 3. Matérias sujeitas ao rito do Decreto nº 70235/72, conferir art. 233 da Portaria MF n. 203 de 14 de maio de 2012. deve ser interposto no prazo de dez dias, contado a partir da ciência ou divulgação oficial da decisão recorrida. Estão sujeitos à Lei nº 9.784/99 os processos fiscais relacionados a compensação tributária não declarada, pedido de parcelamento de débitos, de registro especial na área de IPI que são apreciados, primeiramente, pelos Delegados ou Inspetores da Receita Federal do Brasil, e os recursos interpostos dessas decisões, pelos Superintendentes da respectiva região fiscal, dentre outros não abarcados pelo Decreto. Verifica-se, pois, que é garantido ao contribuinte o contraditório e a ampla defesa, seja com suporte na norma específica – Decreto nº 70.235/72 –, seja na norma geral – Lei nº 9.784/99. 4. O Contencioso Administrativo em Outros Países Tendo em vista a finalidade deste estudo, faremos uma breve análise do contencioso administrativo fiscal nos Estados Unidos, Espanha, Venezuela e Guatemala. Vejamos. 4.1 Estados Unidos4 Caso o contribuinte não esteja de acordo com o posicionamento do Internal Revenue Service (IRS)5 acerca do montante de impostos que lhe é exigido poderá interpor recurso interno mediante o Oficial de Apelações do IRS. O Escritório de Apelações, único nível de apelação administrativa dentro do IRS, é separado e é independente do Escritório do IRS que emitiu o ato impugnado. Os Oficiais de Apelações podem revogar, total ou parcialmente, o lançamento efetuado com base em circunstâncias e fatos individuais. As conferências com o Escritório de Apelações são informais, e realizam-se por correspondência, telefone ou uma reunião pessoal. O Escritório de Apelações pode resolver a maioria das diferenças sem julgamentos cus- 4. ESAF apud ALINK, Matthijs e VÂO KOMMER, Víctor: Manual para as Administrações Tributárias – Estrutura Organizacional e Gerência das Administrações Tributárias, Países Baixos, CIAT - Ministério de Finanças dos Países Baixos, julho 2000. 5. IRS - Internal Revenue Service (Receita Federal dos Estados Unidos da América) tosos e que requerem muito tempo ante os tribunais. A discordância com a decisão do IRS marca o início do processo. Em seguida o contribuinte recebe um documento denominado: “Seus Direitos de Apelação e Como Preparar um Protesto se Você Está em Desacordo”, além de outras informações e instruções, podendo escolher as seguintes opções: i) solicitar uma reunião ou conferência telefônica com o supervisor de quem emitiu a decisão recorrida. Se ainda estiver em desacordo, pode apelar ante o Escritório de Apelações do IRS; ii) ao solicitar uma conferência de apelações pode ser que o contribuinte também tenha que apresentar uma contestação formal por escrito ou uma solicitação de pequenas causas (os procedimentos de solicitação de pequenas causas se aplicam quando o montante tributário em desacordo não excede a US$ 25,000 em nenhum período tributário); iii) caso não esteja de acordo com a decisão do Escritório de Apelações, ou se decidir não apelar dentro do IRS, pode levar seu caso para o Tribunal Tributário dos Estados Unidos, o Tribunal de Reclamações Federais dos Estados Unidos ou um Tribunal Distrital dos Estados Unidos, logo depois de satisfazer certos requerimentos de procedimento e jurisdicionais; iv) na hipótese de o Tribunal Tributário determinar que o contribuinte apresentou o caso com a intenção de provocar demora, ou que a posição do contribuinte é superficial ou infundada, o Tribunal pode aplicar uma multa de até US$ 25.000. 4.2 Espanha6 O ordenamento jurídico espanhol garante ao contribuinte, como meio de defesa jurídica para tentar fazer valer seus direitos, a possibilidade de propor recursos ou reclamações na via administrativa quando se encontrar em desacordo com algum ato ou decisão editada em 6. ESAF apud PEDROCHE VERMELHO, Luis: A difusão dos deveres e direitos dos contribuintes e os órgãos e procedimentos para a atenção de suas reclamações, Tema 2.1, XXXIX Assembléia Geral, Buenos Aires – Argentina, CIAT, 18-21 abril 2005. TRIBUTAÇÃO em revista 27 um procedimento administrativo de natureza tributária, bem como, esgotada a via administrativa, a possibilidade de ir à jurisdição litigioso-administrativa. Na esfera administrativa tem-se a via ordinária de recurso ou reclamação e os procedimentos especiais de revisão. A via ordinária de recurso ou reclamação é procedimento normal para revisar os atos administrativos por solicitação do interessado e inclui o recurso de reposição e as reclamações econômico-administrativas: I – Recurso de reposição: procedimento administrativo ordinário de caráter opcional e prévio à reclamação econômico-administrativa, que permite a revisão da legalidade dos atos editados pela Administração Tributária pelo mesmo órgão que editou o ato. II – Reclamações na via econômico-administrativa: procedimento ordinário administrativo que permite a impugnação dos seguintes atos editados pela Administração Tributária: i) atos que, provisória ou definitivamente, reconhecem ou denegam um direito ou declaram uma obrigação ou um dever; ii) atos de trâmite que decidem, direta ou indiretamente, o mérito do assunto ou ponham término ao procedimento; iii) determinados atos em matéria de aplicação dos tributos; iv) atos que impõem sanções. As reclamações econômico-administrativas são de conhecimento exclusivo dos órgãos econômico-administrativos. Órgãos integrados ao Ministério de Economia e Fazenda através da Secretaria de Estado de Fazenda e Orçamentos, alheios à Agência Tributária, e atuam com independência funcional no exercício de suas competências. III – Procedimentos especiais de revisão: procedimentos, excepcionais e restritos, submetidos a limitações específicas e geralmente se iniciam de ofício embora, em algumas ocasiões, também podem iniciar-se por solicitação do interessado. A Lei Geral tributária espanhola os distingue nas seguintes classes: i) revisão de atos nulos de pleno direito: procedimento especial, por iniciativa da própria Administração ou do interessado, que busca a declaração da nulidade de pleno direito de atos e decisões (dos órgãos econômi- 28 TRIBUTAÇÃO em revista co-administrativos), que tenham posto fim à via administrativa ou que não tenham sido recorridos no prazo, nas hipóteses previstas pela Lei; ii) declaração de violação de atos anuláveis: faculdade da Administração Tributária de declarar lesivos para o interesse público, atos e decisões favoráveis ao interessado que incorram em vícios de legalidade não constitutivos de nulidade de pleno direito e, posteriormente, impugná-los ante a jurisdição do contencioso administrativo; iii) retificação de erros materiais, de fato ou aritméticos: procedimento adotado pelo órgão ou organismo, dentro do prazo prescricional, que tiver editado o ato ou a resolução objeto da reclamação, para retificar – de ofício ou por solicitação do interessando – erros materiais, de fato ou aritméticos; iv) devolução de receitas indevidas: procedimento especial, de ofício ou por solicitação interessado, que permite o reconhecimento do direito à devolução de receitas indevidas; v) revogação dos atos de aplicação dos tributos e de imposição de sanções ditados pela Administração em benefício dos interessados: a Administração Tributária, mediante autorização expressa na lei, poderá revogar seus atos em benefício dos interessados. A lei que regula esse procedimento assenta que o poder de revogação tem caráter discricionário para a Administração Tributária e aplica-se somente a atos onerosos. 4.3 Venezuela7 O contribuinte pode interpor recursos administrativos em face da Administração ou procedimentos litigiosos tributários, em face do Poder Judicial: I – Recurso Hierárquico: para impugnar atos da Administração Tributária de efeitos particulares, que lancem tributos, apliquem sanções ou afetem de qualquer forma os direitos dos contribuintes. Deverá ser interpos- 7. ESAF apud Código Orgânico Tributário da República Bolivariana da Venezuela (publicado em 17/10/2001) e LOIRO DO EGUI, Maritza: Recursos de apelação na Administração Tributária venezuelana; em: Conferência Técnica do CIAT; Parem, CIAT, 1989. p.181-189. to ante o órgão do qual emanou o ato que se impugna; II – Recurso de Revisão: recurso extraordinário interposto quando não houver outro recurso disponível por ter sido confirmada a decisão administrativa. Deve ser interposto por quem tem interesse legítimo e somente contra aqueles atos administrativos confirmados que se encontram em casos específicos, a saber: i) novas provas não disponíveis à época da tramitação do expediente; ii) decisão com base em documentos ou testemunhos declarados falsos, por sentença judicial definitivamente confirmada; iii) decisão com base em suborno, violência, compra ou outra manifestação fraudulenta comprovados judicialmente; III – Recurso Contencioso Tributário: recurso para os órgãos jurisdicionais competentes, com o objetivo de revisar os atos da Administração Tributária nos seguintes casos: i) contra os mesmos atos que podem ser objeto de impugnações mediante o recurso hierárquico, sem necessidade do prévio exercício do referido recurso; ii) vencido o prazo legal para julgamento do recurso hierárquico sem decisão da Administração; iii) contra as resoluções que deneguem total ou parcialmente o recurso hierárquico. O recurso pode ser interposto diretamente no tribunal competente; perante um juiz com competência territorial no domicílio fiscal do recorrente ou perante o órgão da Administração Tributária da qual emanou o ato, sendo que nestes dois últimos casos, o recurso deverá ser remetido ao tribunal competente dentro dos cinco dias seguintes; IV – Ação de Amparo: procede quando a Administração Tributária incorre em demoras excessivas ao decidir petições dos interessados, e elas causem prejuízos não reparáveis pelos meios processuais estabelecidos na legislação tributária. Pode ser interposto por qualquer pessoa afetada ante o Tribunal competente, explicando as gestões realizadas e o prejuízo que ocasionou a demora. O Tribunal tem amplos poderes para exigir que a Administração decida o feito, bem como para fixar prazo breve e peremptório para a resposta. No Brasil a ação semelhante seria o mandado de segurança, principalmente nos casos em que o contribuinte alega o descumprimento do art. 24, da Lei nº 11.547, de 19/11/2007 que dispõe sobre a obrigatoriedade de que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos, c/c o art. 5º, o inciso LXXVIII, da CF/88, que estabelece que “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” 4.4 Guatemala8 As resoluções da Administração Tributária podem ser revogadas de ofício ou por solicitação da parte. Neste último caso, poderá interpor os seguintes recursos: I – Recurso de anulação: interposto ante o funcionário que editou a decisão ou praticou a retificação de ofício, dentro do prazo de dez dias úteis, contados a partir do dia seguinte ao da última notificação. Se não for interposto o recurso dentro do prazo citado, a decisão será definitiva. Se o recurso for deferido, o expediente será encaminhado ao Ministério de Finanças Públicas (MFP), dentro do prazo de cinco dias. Se denegado, deverá ser fundamentada a rejeição. O MFP, por sua vez, decidirá confirmando, modificando, revogando ou anulando a decisão recorrida, dentro do prazo de trinta dias úteis após o recurso ter sido enviado a sua consideração. Transcorrido o prazo de trinta dias úteis, contados a partir da data em que as atuações se encontrem em estado de resolver, sem que se edite a decisão correspondente, ter-se-á por esgotada a instância administrativa e por resolvido desfavoravelmente o recurso de anulação ou de restituição (silêncio administrativo), para os efeitos de que o interessado possa interpor somente o recurso do contencioso administrativo. II – Recurso de reposição: interposto contra as reso- 8. Curso ofertado pela Escola de Administração Fazendária. Programa de Desenvolvimento de Dirigentes Fazendários - PDFAZ. Módulo II - Administração Tributária. Unidade 9: Os Processos Substantivos da Administração Tributária: Os Recursos Administrativos. TRIBUTAÇÃO em revista 29 luções originárias do Ministério de Finanças Públicas, e tramita dentro dos prazos e na forma estabelecida para o recurso de anulação, no que for aplicável; III – Recurso Contencioso Administrativo: interposto ante a Sala, Tribunal do Contencioso Administrativo integrada por Magistrados especializados em matéria Tributária, contra as resoluções dos recursos de anulação e de reposição editadas pela Administração Tributária e o MFP. O prazo para interposição é de trinta dias úteis, contados a partir do dia útil seguinte à data em que se fez a última notificação da resolução do recurso de anulação ou de reposição. Como visto nos modelos elencados acima, não obstante as peculiaridades de cada país, forçoso concluir que o direito ao contraditório e ampla defesa é garantido ao contribuinte. Vale dizer, aos contribuintes são disponibilizados meios de questionarem os atos emanados das Administrações Tributária com os quais discordem. 5. Conclusão No Estado Liberal, em que predominava o Estado de direito, o Estado deveria intervir o mínimo possível na esfera privada do indivíduo. Ocorre que a mera previsão em textos constitucionais dos princípios da igualdade, liberdade e propriedade não foram suficientes para que tais direitos fossem materialmente garantidos. Ante as demandas sociais, cujo Estado Liberal mostrou-se completamente incapaz de responder, bem como a acumulação de capitais e de propriedade em mãos de poucos, ocorre a superação do Estado de Direito pelo Estado social, o qual foi a base para transição para o Estado Democrático de Direito. No Estado Democrático o Estado passa a ser questionado e fiscalizado a partir da organização da sociedade civil e pelos cidadãos, os quais exigem participação no debate das coisas públicas, bem como de seus interesses fundamentais. É nesse contexto – de exigência de concretude, de materialização dos direitos fundamentais –, que destacamos a inovação trazida pela Carta de 1988 ao definir que aos litigantes, em processo administrativo, são 30 TRIBUTAÇÃO em revista assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Trata-se de inovação porque as Cartas anteriores reconheciam tal direito somente no âmbito do processo penal; a despeito de parte da doutrina e jurisprudência entenderem de forma diversa. Pois bem, se com a nova Carta à lide administrativa é garantido o direito ao contraditório e ampla defesa, no âmbito tributário os regramentos para o exercício desses direitos encontram-se no Decreto, com força de lei, nº 70.235/72 e na Lei nº 9.784/99. Aquele, norma específica, define as regras inerentes aos recursos que podem ser interpostos pelos contribuintes que se insurgirem contra atos emanados do Poder Público Federal na esfera tributária. Esta, por sua vez, atuando de forma subsidiária, abarca toda e qualquer matéria, também no âmbito federal, que não esteja regulada pelo Decreto. Não seria condizente com o Estado Democrático de Direito, nem tampouco com a CF/88, se o contencioso administrativo não dispusesse de regramento que permitisse ao contribuinte exercer plenamente o seu direito de defesa. Conforme visto ao longo deste estudo, ao contribuinte são disponibilizados vários recursos para que possa demonstrar sua inconformidade com o ato emanado do Poder Público. E mesmo encerrada a fase administrativa, caso a inconformidade ainda persista, o contribuinte ainda poderá recorrer ao Poder Judiciário. Poder-se-ia, no ponto, lançar a crítica de que tal procedimento torna as lides tributárias extremamente morosas. Entendemos que, mediante a ponderação de valores, o legislador optou pela ampliação do contraditório e ampla defesa. Isso é fruto do Estado Democrático de Direito, como salienta PELLEGRINI (2004, p. 12), pois ao mesmo tempo em que o contribuinte é destinatário de normas garantidoras ou realizadoras de direitos fundamentais, é também autor, tendo em vista que participa da vida pública e dos processos de formação de opinião e vontade, notadamente por meio dos direitos políticos no qual se funda o processo legislativo de formulação de direitos, com os quais os cidadãos se reconhecem reciprocamente. Isso não quer dizer que o contencioso tributário admi- nistrativo não carece de reformas ou que não possa ser melhor sistematizado com vistas a garantir maior celeridade no julgamento dos feitos. Pelo contrário, o sistema pode e deve ser melhorado sempre. Isso faz parte do próprio dinamismo do direito, o qual está em constante evolução. Por fim, importa dizer ainda que o recurso administra- tivo além de legítimo meio de defesa do cidadão contribuinte frente à Administração Pública, o que representa a materialização do direito fundamental ao contraditório e ampla defesa expresso na CF/88, funciona também como um facilitador das tarefas administrativas ao permitir a detecção de erros e eventuais falhas. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE) Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 9, março/abril/maio, 2007. Disponível em: <http:// www.direitodoestado.com.br/artigo/luis-roberto-arroso/neoconstitucionalismo-e-constitucionalizacao-do-direitoo-triunfo-tardio-do-direito-constitucional-no-brasil >. Acesso em: 08.12.2013. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. 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Mandado de Segurança em Matéria Tributária. São Paulo: RT, 1994. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 28. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. MARINS, James. Princípios Fundamentais do Direito Processual Tributário. São Paulo: Dialética, 1998. TRIBUTAÇÃO em revista 31 A RTIGO Auditoria Fiscal: Instrumento de Combate à Corrupção Pedro Onofre Fernandes1 1. Introdução A receita pública, composta principalmente por tributos, serve para financiar as atividades do Estado, que necessita de recursos para cumprir com suas obrigações de prestação de serviços essenciais à população. Os tributos que pagamos para o Estado devem ser considerados não apenas como mais uma obrigação do cidadão, mas sim, uma forma de solidariedade de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Um país como o Brasil, que é marcado pelo alto grau de pobreza e desigualdade social, só conseguirá avanços para a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária se utilizar o sistema tributário como instrumento 1. Administrador. Contador. Mestre em Administração Contábil-Financeira. Auditor Fiscal da RFB e Diretor de Estudos Técnicos do Sindifisco Nacional. Email: [email protected] 32 TRIBUTAÇÃO em revista de distribuição de renda e redistribuição de riqueza. O pagamento de tributos é fundamental para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Todo um conjunto de serviços – segurança, educação, saúde, previdência e assistência social, transporte e comunicações, entre outros – depende e continuará dependendo, em larga escala, da ação do Estado. Se a receita tributária for insuficiente, corre-se o risco de que esses serviços essenciais não sejam prestados na medida necessária ou venham a ser financiados, em parte, por mecanismos alternativos menos convenientes, como a inflação e o endividamento externo. A corrupção é nefasta porque desvia esse recurso público para atender a interesses privados em detrimento do atendimento às necessidades sociais sacrificando assim, a camada mais pobre da população que, por sua vez, é mais dependente dos serviços públicos. A corrupção é um complexo fenômeno social, político e econômico que está presente em todos os países do mundo. A corrupção representa um crime contra a socie- dade, pois subtrai da camada mais carente da população recursos públicos que seriam aplicados em seu benefício. O Brasil é tido por nós, brasileiros, e também em função de estudos externos, por estrangeiros, como um país com alto grau de corrupção. O objetivo deste trabalho é contextualizar a corrupção no Brasil apresentando conceitos, possíveis causas, tipificação como crime e proposição da auditoria fiscal como instrumento efetivo ao combate da corrupção na forma de sonegação fiscal. 2. O que é Corrupção Existem diversas interpretações para explicar o significado do termo corrupção. Podemos identificar duas grandes vertentes: uma é considerar a corrupção no seu aspecto moral, que tende a vê-la como um rompimento das virtudes do indivíduo; e a outra a corrupção política que é fruto das regras próprias do mundo político sem maiores relações com a moral individual. Um dos principais defensores da chamada corrupção moral foi Santo Agostinho, que colocava a moralidade religiosa acima da conduta política. Boff2 cita Santo Agostinho e o filósofo Kant para definir corrupção. Santo Agostinho explica a etimologia da palavra: corrupção é ter um coração (cor) rompido (ruptus) e pervertido. Cita o Gênesis: “a tendência do coração é desviante desde a mais tenra idade” (8,21). O filósofo Kant fazia a mesma constatação ao dizer: “somos um lenho torto do qual não se podem tirar tábuas retas”. Pode-se, portanto, afirmar que existe em nós uma força que nos incita ao desvio que é a corrupção. Ela deve ser controlada e superada a partir de valores morais e éticos, ou então, pela coerção. A corrupção pode ser entendida, assim, como uma tendência natural do ser humano, cujas estruturas sociais, devido à escassez de recursos, são estabelecidas de forma desigual e muitas vezes, injusta. A maioria das pessoas pode aceder à corrupção, desde que exista a oportunidade e a possibilidade de ganho compense o risco a ser incorrido. Em contraposição à visão da corrupção como um caráter relacionado à moral individual, temos a visão da corrupção como decorrência da fraqueza das leis e instituições políticas e a falta de comprometimento dos cidadãos em relação à coisa pública. Maquiavel3 é um ilustre defensor dessa linha de pensamento sobre a corrupção. A corrupção é entendida como a incapacidade do homem de se dedicar ao bem comum, priorizando sempre interesses privados em detrimento de interesses da coletividade. Conclui, através do estudo dos antigos e da intimidade com os poderosos da época, que os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Para ele, a instalação da corrupção num Estado implica na ausência dos meios que permitem a consecução da finalidade do Estado prejudicando a plenitude da vida civil. Como se vê, o conceito de corrupção é amplo. De maneira geral, pode-se dizer que a corrupção tem a ver com a apropriação indevida de recursos públicos. Assim, considera-se corrupção qualquer tipo de favorecimento que não esteja de acordo com a lei. São exemplos de corrupção as práticas de suborno e de propina, a fraude, a apropriação indébita, a sonegação fiscal ou qualquer outro desvio de recursos públicos. Além disso, pode envolver casos de nepotismo, extorsão, tráfico de influência, utilização de informação privilegiada para fins pessoais, compra e venda de sentenças judiciais, entre diversas outras práticas. 3. A Corrupção no Brasil e no Mundo A ONG Transparência Internacional4 pesquisa anualmente o grau de percepção da corrupção no mundo. São dadas notas aos países de 0 (zero) a 100 (cem) num grau decrescente de corrupção, ou seja, altíssima corrupção (zero) ou nenhuma corrupção (cem). No ano de 2014 foram pesquisados 175 países. Os países menos corruptos foram, pela ordem, Dinamarca e Nova Zelândia com notas 92 e 91, respectivamente; Fin- 3. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.2007 2. BOFF, Leonardo. Corrupção: crime contra a sociedade. http://www.nossasalvador.org.br/site/colunas/247-corrupcao-crime-contra-a-sociedade 4. Corruption perceptions index 2014. http://www.transparency.org/cpi2014/results TRIBUTAÇÃO em revista 33 lândia com nota 89; Suécia com nota 87 e Suíça e Noruega com notas 86. Com a nota abaixo de 50 encontram-se 120 países, ou seja, 68% do universo pesquisado. O Brasil está classificado em 69º lugar, com a nota 43. Na América do Sul encontram-se à frente do Brasil o Uruguai e o Chile, ambos no 21º lugar, com nota 73. Os países com o maior grau de percepção de corrupção, segundo a pesquisa, são a Coréia do Norte e a Somália, com a nota 8 seguidos pelo Sudão, com nota 11. Não existe país totalmente corrupto ou sem nenhuma corrupção, todavia, estatisticamente, os países mais desenvolvidos têm um nível de corrupção menor porque sua população, política e culturalmente mais desenvolvida, é mais consciente de seus direitos e obrigações e assim exerce uma vigilância maior sobre as instituições e sobre o fluxo de recursos públicos. Essa vigilância consiste, em sua essência, em leis rígidas e controle eficaz quanto à sua aplicação e obediência, com recursos materiais e humanos suficientes para garantir a identificação e punição àqueles que se desviarem da conduta esperada. A Assembléia-Geral da ONU, ao reconhecer a necessidade de enfrentamento à corrupção nos países-membros, aprovou, em 29 de setembro de 2003, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção que estabelece regras anticorrupção obrigatórias aos países signatários. A data de assinatura da Convenção - 9 de dezembro ficou definida como o “Dia Internacional contra a Corrupção”. O Brasil aderiu à Convenção em 2005. 4. Sonegação Fiscal A sonegação fiscal consiste na adoção de procedimentos que violam diretamente a legislação tributária com o objetivo de suprimir ou reduzir tributo. O pagamento do tributo consiste na entrega compulsória de recursos ao governo a fim de que ele financie as atividades assumidas para si e consideradas próprias do Estado, voltadas para o bem-estar social como a educação, saúde, segurança, transporte, etc. A sonegação fiscal está dentro do conceito de corrupção porque representa a apropriação indevida de recursos públicos por parte do contribuinte que age de forma de- 34 TRIBUTAÇÃO em revista liberada, voluntária e consciente em busca da omissão do cumprimento da obrigação devida. A Lei nº 8.137/90 enumera as condutas tipificadas como crimes contra a ordem tributária em seus artigos 1º e 2º, a seguir resumidos: Constitui crime suprimir ou reduzir tributo ou qualquer acessório, mediante as seguintes condutas ou procedimentos: • Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; • Fraudar a fiscalização tributária inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; • Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; • Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou atualizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; • Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Caracteriza a mesma infração a falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de dez dias, que pode ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência; • Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributos; • Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; • Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; • Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento; • Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública. A referida Lei afirma ainda que constitui crime funcional contra a ordem tributária: • Extraviar livro oficial, processo fiscal ou qualquer documento, de que tenha a guarda em razão da função; sonegá-lo, ou inutilizá-lo, total ou parcialmente, acarretando pagamento indevido ou inexato de tributo; • Exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou cobrá-lo parcialmente. • Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração fazendária, valendo-se da qualidade de funcionário público. A Lei nº 9.249/95, em seu artigo 34 dispõe que se extingue a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, quando o agente promover o pagamento do tributo, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia. A jurisprudência, contudo, afirma que o pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário. A extinção da responsabilidade criminal pelo pagamento do tributo sonegado é um estímulo do legislador ao sonegador para que ele continue sonegando. O raciocínio lógico do sonegador o leva a correr o risco e sonegar. Se não for descoberto pela fiscalização, o que muitas vezes ocorre, gozará do recurso sonegado. Caso seja descoberto, pagará o valor lançado e será inocentado. O próprio Estado contribui para a degeneração da percepção do risco pelo infrator. A extinção de punibilidade a contribuintes inadimplentes dá aos demais a visão de tolerância do Estado com essa prática e estimula a continuidade do exercício de sonegação fiscal. Esses devedores sabem que adiante haverá programas de parcelamento que os beneficiarão e, ainda, serão eximidos de qualquer responsabi- lidade, que não a única e exclusiva de quitar seus débitos, em um longo e complacente prazo para seu pagamento. 5. Auditoria Fiscal A auditoria fiscal é um ramo da auditoria externa, praticada habitualmente pelo governo, com o intuito de verificar o cumprimento das obrigações tributárias por parte dos contribuintes. Nas suas respectivas esferas (municipal, estadual ou federal), objetiva verificar a regularidade no recolhimento dos tributos (impostos, taxas e contribuições) pelo contribuinte, por meio de procedimentos específicos da atividade. Ela é adotada também, pelas próprias empresas, através de auditores internos ou externos, objetivando a identificação de eventuais contingências ou com a finalidade de apresentar sugestões de planejamento tributário com o fito de reduzir a carga tributária a que está sujeita a empresa, dentro das possibilidades legais. Uma das possíveis causas que estimula a sonegação fiscal é a quase certeza da impunidade. Além da complacente legislação tributária e dos periódicos programas governamentais em benefício dos inadimplentes de tributos, as Administrações Tributárias Brasileiras não têm os recursos humanos e materiais necessários para uma ação eficiente e eficaz contra os sonegadores. Para a fiscalização dos tributos federais o quantitativo de auditores fiscais é de 5,3 auditores fiscais por 100.000 habitantes. Considerando-se os tributos federais e estaduais, tem-se pouco mais de 10 auditores fiscais para cada 100.000 habitantes. Para países com menor grau de percepção de corrupção5 essa proporção ultrapassa a 100 auditores por 100.000 habitantes. A Dinamarca e a Nova Zelândia, países com o menor grau de corrupção dentre 175 países pesquisados, têm mais de 140 auditores fiscais para cada 100.000 habitantes6. Além do número reduzido de auditores fiscais, grande parte desse contingente está alocada em atividades-meio, 5. The Global Competitiveness Report 2014–2015 http://www3.weforum.org/docs/WEF_GlobalCompetitivenessReport_2014-15.pdf 6. Forum on Tax Administration. Tax Administration 2013: Comparative Information on OECD and Other Advanced and Emerging Economies. http://www.oecd.org/tax/administration/tax-administration-series.htm TRIBUTAÇÃO em revista 35 não exercendo diretamente a função de fiscalização. Além do combate à sonegação fiscal, os auditores fiscais da Receita Federal do Brasil combatem o contrabando, o descaminho, a pirataria, a fraude comercial, o tráfico de drogas e animais em extinção e outros atos ilícitos relacionados ao comércio internacional. Os avanços do conhecimento na área de informática muito têm contribuído com o aprimoramento dos procedimentos de controle e análise de dados do contribuinte. Todavia, a presença física do auditor fiscal aliada a conhecimentos específicos dos procedimentos próprios da função são insubstituíveis para garantir o sucesso da atividade fiscal. Na auditoria fiscal aplicam-se a mesmas normas e regras que orientam a auditoria em geral. Assim, o auditor fiscal necessita planejar adequadamente seu trabalho, avaliar o sistema de controle interno, proceder à revisão analítica das contas patrimoniais e de resultados e colher, por teste, evidências comprobatórias das informações contábeis espelhadas nas demonstrações para, a partir da avaliação das mesmas, formar sua convicção quanto à aplicação da melhor técnica contábil e do cumprimento ou não, pelo contribuinte, da legislação tributária. A qualidade do trabalho de auditoria fiscal executado está diretamente relacionada com o conhecimento, pelo auditor fiscal, da legislação específica atinente a cada caso e da correta aplicação das técnicas de auditoria. 6. Conclusão A corrupção compromete a manutenção do estado democrático de direito, pois é um ilícito que subtrai do cida- dão, direitos fundamentais como o direito ao trabalho, à moradia, à educação, à saúde, à segurança pública, enfim, direitos que lhe assegure uma vida digna e que são atribuições sociais obrigatórias por parte do Estado. A corrupção no Brasil tem sido marcante, tanto na esfera pública quanto na privada. Na esfera pública, os atos dos agentes públicos frente à Administração Pública, servindo-se do exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública para a obtenção ilegal de ganhos particulares em detrimento do patrimônio público. Na esfera privada, não menos grave, nota-se o esforço do indivíduo em burlar a lei em benefício próprio, lesando o patrimônio público, como ocorre com a sonegação fiscal. O combate à corrupção é dever de todos e passa por ações preventivas e por medidas repressivas. A auditoria fiscal atende a esses dois quesitos. Ela é preventiva ao avaliar os controles internos e também ao demonstrar a presença fiscal. Ela é repressiva ao identificar o ilícito cominando as respectivas sanções, sem prejuízo da ação penal cabível. Assim, considerando todas as ponderações até aqui expostas, estamos convictos de que a auditoria fiscal é um importante instrumento de combate à corrupção. Todavia, para que ela seja eficaz deve-se ter um contingente efetivo de auditores fiscais suficiente para atender satisfatoriamente à demanda preventiva e repressiva em todo o território nacional; um quadro de auditores fiscais exercendo em toda a sua plenitude as atribuições e prerrogativas do cargo, com recursos e formação continuada necessária para garantir a correta e eficiente aplicação de técnicas e procedimentos de vanguarda em auditoria fiscal. REFERÊNCIAS ANDRADE, Thiago Xavier de. As possíveis causas da corrupção brasileira. Âmbito Jurídico. n. 117, ano XVI, out. 2013. 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Acesso em 28 jul 2015 TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Corruption Perceptions Index 2014. Disponível em: http:// www.transparency.org/cpi2014/results. Acesso em 21 jul 2015. UNODC - United Nations Office on Drugs and Crime. UNODC e corrupção. Disponível em: http:// www.unodc.org/southerncone/pt/corrupcao/index. html. Acesso em 18 ago 2014. WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Competitiveness Report 2014–2015. Disponível em: http://www3.weforum.org/docs/WEF_GlobalCompetitivenessReport_2014-15.pdf. Acesso em 31 jul 2015. TRIBUTAÇÃO em revista 37 A RTIGO A Receita Federal no Combate ao Crime Organizado e à Lavagem de Dinheiro Foch Simão Júnior1 1. Introdução Nenhum órgão do governo mantém mais informações sobre os cidadãos do que a Secretaria da Receita Federal, RFB. Os arquivos do fisco são um repositório quase infinito de registros financeiros de todos os brasileiros envolvendo grandes corporações, associações privadas e grupos políticos. A fim de averiguar a veracidade dos fatos econômicos que servem de base de cálculo tributário, os cidadãos são obrigados a demonstrar os fatos contábeis da suas movimentações financeiras, detalhando os ganhos e as despesas de suas atividades diárias, abrangendo além dos indivíduos e empresas as organizações de caridade e políticas em seus registros tangíveis, cobrindo as mais diversas transações. 1. Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil. Engenheiro Civil, Mestre em Engenharia e Mestre em Adm. Pública. E-mail: [email protected] 38 TRIBUTAÇÃO em revista Outrossim, a Secretaria da Receita Federal, RFB, é detentora dos mais amplos poderes de investigação visando ao cumprimento dos ditames da legislação fiscal, podendo, legalmente, investigar qualquer brasileiro sem mandado judicial e sem a devida motivação. Igualmente, a RFB pode exigir a produção de registros e documentos em conformidade com a sua própria autoridade quando estabelecidos com a finalidade de apuração dos resultados fiscais. Desta forma, a RFB pode ser considerada um dos instrumentos mais poderoso do Estado, com capacidade abrangente de recolher informações de outra forma inalcançáveis por qualquer outra instituição através dos diversos meios legais. No combate ao crime organizado, o Estado tem a capacidade de acionar o aparelho impositivo com base em critérios econômico-financeiros para coletar informações sobre grupos delinqüentes através de uma abordagem de “força tarefa”, coordenando as ações com outras instituições na apuração das atividades de militantes e organizações suspeitas de operações criminosas ou similares na busca de dados de inteligência com o simples propósito de assegurar que os requisitos tributários por parte de tais organizações estejam sendo cumpridos. A criação de uma equipe especial de combate à ilícitos é um mecanismo que visa aproveitar o caráter descentralizado e não ostensivo da RFB. O seu objetivo é o de reunir informações sobre os grupos suspeitos e indivíduos envolvidos em transações, em tese, ilícitas em todo o território nacional e até mesmo em operações transnacionais com a realização de auditorias pelo corpo fiscal da RFB. A capacidade de auditar organizações ou indivíduos é particularmente eficaz contra as instituições de cunho fiscalmente evasivo que se declaram isentas de impostos ou aquelas envolvidas com atividades político-partidárias que se mostram difíceis de alcançar. A criação de uma equipe especial de combate à ilícitos penais da RFB tem o objetivo de investigação fiscal com a apuração minuciosa das movimentações financeiras e a busca criteriosa dos indícios de lavagem de dinheiro. Desta forma, além da investigação de crimes fiscais, a RFB tem a capacidade única de apuração de fontes financeiras ilegais relacionadas com crimes de motivações diversas, utilizando-se das leis tributárias e aproveitando as investigações financeiras para os membros do alto escalão das organizações criminosas. 2. O Novo Paradigma Nas últimas décadas o panorama econômico mundial sofreu uma grande alteração sendo remodelado de forma contundente com a introdução de novos atores, cujas economias cresceram de forma nunca imaginada ou prevista. Atualmente, a economia dos países emergentes já é parte significativa dos mercados comerciais e financeiros do mundo. As transformações políticas e econômicas na década de 90, com o término da Guerra Fria e a redução da máquina administrativa de diversos Estados, acabaram por gerar uma permeabilidade de fronteiras físicas entre os países, levando à falência dos controles administrativos sobre a circulação de bens comerciais e financeiros. As reformas derivadas das políticas de expansão comercial denominadas de “abertura econômica” enfraqueceram de tal forma os controles de fronteiras e de transações financeiras que possibilitou a rápida ampliação das atividades rentistas de grupos privados e de organizações para-estatais que passaram a operar conjunta ou especificamente nas diversas atividades do crime organizado. Este novo reordenamento e a ação de convergência das economias terminaram por acelerar o aumento dos desequilíbrios globais gerando uma crise financeira que foi capaz de abalar os alicerces da ordem econômica vigente. TRIBUTAÇÃO em revista 39 A economia globalizada totalmente redesenhada pela presença ativa das economias emergentes da Ásia e América Latina foi dotada de grande mobilidade nas trocas de ativos e bens, onde prevalecem as economias de escala baseadas principalmente no crescimento da produção com a redução dos custos e na diversificação dos produtos das empresas visando diluir os custos fixos. Neste ambiente de transformações efervescentes a economia das redes de inovação reduzindo os custos de distribuição e de colaboração passaram a ser cada vez mais importantes. A quase ausência de controles de mercado e a liberdade de movimento dos fluxos financeiros tornaram a lavagem de dinheiro mais fácil do que nunca. Onde outrora havia uma forte presença do Estado no controle de fluxos financeiros e na entrada e saída de mercadorias foram adotadas práticas débeis de fiscalização por parte dos Bancos Centrais, Receitas Federais, Alfândegas e Bolsa de Valores que chegam as raias da negligência criminosa. Países com leis de sigilo bancário tornaram passíveis de serem valhacoutos de instituições criminosas, com o advento leis débeis de controle bancários, tornando possível depositar anonimamente dinheiro com origem fraudulenta no exterior e depois transferi-lo para o país para o uso em atividades lícitas. A lavagem de dinheiro acontece em quase todos os países do mundo e um único esquema tipicamente envolve a transferência de dinheiro através de várias operações econômicas a fim de esconder as origens ilícitas dos valores abrangidos. Na prática, o que se busca na ação de lavagem é disfarçar a origem do dinheiro obtido através de atividades ilegais, fazendo-o parecer que foi obtido a partir fontes legais a fim de poder utilizá-lo nas mais diversas modalidades de aplicação na economia formal. As atividades criminosas em face da globalização dos meios financeiros e comerciais expandiram-se além das fronteiras dos Estados-Nação. Atualmente, as interações do crime organizado abrangem diversos países que são utilizados como fontes de insumo ou como destino de consumo. Um indício patente da rápida expansão dos crimes transnacionais é o incessante aumento da lavagem de dinheiro denunciado pelo Grupo de Ação Financeira, FATF- GAFI, 40 TRIBUTAÇÃO em revista organização intergovernamental, com sede em Paris. Esta organização foi criada em 1989 por iniciativa do G-72 com o objetivo de desenvolver e promover políticas nacionais e internacionais de prevenção à lavagem de dinheiro3, a partir da percepção de que proliferação das atividades financeiras perpetradas por organizações criminosas transnacionais tem sido significativas e as suas conseqüências extremamente graves no consenso da economia global. Adotando modelos de gestão modernos o crime organizado vale-se de redes de apoio constituídas de empresas formais utilizando o sistema financeiro e o de comércio internacional para realizar operações e negócios. Na última década, as operações derivadas têm envolvido a transferência e exportação de tecnologia, produtos, software, serviços ou conhecimentos utilizados nas indústrias químicas, nucleares ou biológicas relacionadas com programas de armas, valendo-se da evolução do complexo internacional de logística, o que representa uma ameaça significativa para a segurança global. Mais comum do que a opinião pública tem conhecimento, as práticas de financiamento para a circulação de itens sensíveis e demais ações ilícitas buscam o lucro em grande escala com a aquisição e revenda dos produtos e serviços transacionados irregularmente. Estas atividades não são compartimentadas como comumente se supõem, elas também podem encontrar os seus caminhos nas mãos de terroristas dispostos a empregar armas de destruição maciça em suas ações. É importante ressaltar que há uma tendência crescente na criminalização dos interesses de Estado, uma vez que este desempenha um papel central nas relações internacionais, com a participação de alguns membros de governos nessa rede de apoio às atividades ilícitas. 3. A Lavagem de Dinheiro O processo onde há a legalização de fundos decorrentes de atividades ilícitas decorrente entre outras do trafi- 2. O G 7, grupo dos Sete, é um grupo internacional que reúne os sete países mais industrializados e economicamente desenvolvidos do mundo. 3. FATF- GAFI - PROLIFERATION FINANCING REPORT, Paris, 2008. co de drogas, da corrupção, do comércio ilegal de armas, terrorismo, fraude fiscal é denominado de “lavagem de dinheiro”4 a qual pode ocorrer de maneiras diversas. Alguns artifícios são bastante conhecidos como a mescla o dinheiro ilegal com os capitais legais de uma empresa apresentando-o como receita operacional. Outro estratagema é a utilização das empresas de fachada que geram receitas operacionais fictícias apenas para justificar os capitais de origem criminosa. Deve-se destacar que neste conjunto de operações há muitas vezes a cumplicidade de funcionários de instituições financeiras que omitem das autoridades responsáveis as transações efetuadas. No âmago da questão o processo básico de lavagem de dinheiro pode ser definido em três etapas: 1. Aplicação - Nesta fase, o lavador insere o dinheiro sujo em uma instituição financeira legítima, muitas vezes sob a forma de depósitos bancários em dinheiro através da segmentação das quantias em volumes reduzidos. Esta é a etapa mais arriscada do processo de lavagem porque grandes quantias de dinheiro são bastante visíveis, e os bancos são obrigados a comunicar transações de alto valor. 2. Pulverização - Envolve o envio do dinheiro através de várias transações financeiras para mudar sua forma e torná-lo difícil de seguir. Esta etapa pode consistir de várias transferências de banco para banco, transferências bancárias entre contas diferentes em diferentes nomes em diferentes países, fazendo depósitos e retiradas de maneira a variar continuamente a quantidade de dinheiro nas contas, com mudança de moeda e aquisição de itens de alto valor (barcos, casas, carros, diamantes) para mudar a formatação do dinheiro. Esta é a etapa é a mais complexa em qualquer esquema de lavagem de dinheiro, sendo executada com o fito de tornar difícil a determinação da origem do dinheiro sujo. 3. Integração - Na fase de integração, o dinheiro volta a entrar na economia formal com a aparência legítima, parecendo vir de uma transação legal. Isso pode envolver a transferência definitiva para a conta de uma empresa local em que o lavador está “investindo” em troca de uma parte dos lucros, com a interposição de vários artifícios como a da venda de um iate comprado durante a fase de pulverização ou a da compra de cota acionária de uma empresa de propriedade do lavador. Neste ponto, o criminoso pode usar o dinheiro sem ser detectado. É muito difícil denunciar um lavador durante a fase de integração se não houver a coleta de provas documentais durante as fases anteriores. 4. Segundo a lenda a denominação advém das ações do mafioso estadunidense Al Capone que teria comprado em 1928, em Chicago, uma cadeia de lavanderias da marca Sanitary Cleaning Shops para justificar os seus ganhos com o contrabando ilegal de bebidas alcoólicas. TRIBUTAÇÃO em revista 41 Existem muitas técnicas de lavagem de dinheiro que as autoridades conhecem e provavelmente inúmeras outras que ainda virão a ser descobertas. A maioria dos esquemas de lavagem de dinheiro envolve alguma combinação de métodos já sobejamente conhecidos, como a utilização do mercado de câmbio negro um sistema de muito utilizado no curso da “lavagem” com o emprego da evasão de divisas através de porte físico, por trocas de crédito ou transações mercantis. A variedade de instrumentos disponíveis para lavadores torna este um crime de difícil detecção. Nesta perspectiva, a utilização das habilidades inerentes aos agentes da RFB poderia ser empregada na apuração das operações perpetradas nas diversas etapas da “lavagem”, ou seja, aplicação, pulverização e integração. A apuração criminal de uma dada ocorrência delituosa é só o início da cadeia econômica ilícita, esta fase está exclusivamente disposta à jurisdição das polícias judiciárias. Entretanto, uma vez que o objetivo do crime organizado é o lucro fácil, as etapas posteriores ao fato criminoso são de competência da apuração fiscal tendo em vista a flexibilidade e a efetividade da legislação tributária que permite a livre ação das autoridades na atribuição de apuração das transações econômico-financeira dos indivíduos e das empresas envolvidas. A lavagem de dinheiro é um passo crucial para o sucesso das atividades criminosas no roubo de bens, contrabando, descaminho, tráfico de drogas, tráfico de armas, seqüestros, terrorismo, desvio de dinheiro público, crimes do colarinho branco etc. A ação conjunta das instituições de Estado na investigação da lavagem de dinheiro e na identificação de estruturas financeiras subjacentes que as fazem funcionar é o único meio que o Estado tem para ser bem sucedido no combate ao crime organizado e à criminalidade em geral. A comunidade internacional já vem combatendo a lavagem de dinheiro através de vários meios, incluindo entre outros a criação da Força-Tarefa de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI), e as divisões antilavagem de dinheiro das Nações Unidas, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, utilizando-se nesse processo as mais diversas instituições dos países membro. 42 TRIBUTAÇÃO em revista 4. Conclusão Um grande empecilho ao desempenho eficaz e eficiente na execução das políticas públicas no Brasil dá-se em virtude da situação de conflito entre instituições que possuem de certa forma atividades concorrentes, o que impede o desenvolvimento cooperativo das suas atividades fins. Portanto, a questão da eficácia na aplicação de políticas públicas reside no nível de conflitividade preexistente em um determinado setor de ação do Estado, ou seja, o nível de cooperação interinstitucional possível entre os agentes. A ausência total ou parcial de uma atividade institucional conjunta de forma constante e eficaz deve-se ao perfil difuso de determinadas instituições e à aparência abstrata destas perante a sociedade civil. Este fenômeno ocorre em face da ausência ou do parco conhecimento do público dos valores e da função das instituições públicas e da ignorância do seu papel na harmonização, estabilidade e desenvolvimento da Nação. As instituições nacionais são relevantes para sociedade quando percebidas a partir dos seus membros como organizações promotoras do bem estar coletivo. A tarefa de definir as demandas da sociedade civil se constitui em uma das dificuldades no estabelecimento de políticas públicas eficientes quando na realidade existem instituições com baixo grau de organização ou institucionalmente não organizadas, cujo desempenho de suas atividades não são percebidos pelo cidadão ou seus efeitos são dispersos nas mais diversas formas de registros fora do alcance coletivo em face das restrições institucionais. Evidentemente, cabe ao Estado, de forma geral, o combate ao crime organizado nacional e transnacional, uma vez que as ações criminosas dentro das suas fronteiras têm laços estreitos com organizações situadas nos mais diversos pontos do planeta. De forma geral, as ações criminosas estão intimamente interligadas em redes constituídas de agentes operacionais, receptadores e financiadores. Não há como reduzir a criminalidade local sem a coibição a todas as formas de ilícitos sejam eles domésticos ou que ultrapassam os limites territoriais do país afetado. O combate à delinqüência pode se dar através da legislação nacional e acordos internacionais, com o auxílio de organizações multinacionais e das instituições dos demais países, mas a questão básica da coerção legal ao crime organizado está localizada nas instituições públicas encarregadas ou correlatas a esta função no âmbito do território nacional, em seu grau de competência e eficácia. Ao repensar a atuação das instituições de Estado no combate à criminalidade, deve-se ter em mente que, dentro da organização do Estado, as atividades públicas estão claramente separadas das atividades privadas e estas duas dimensões não podem se confundir nas condições políticas e de mercado. Cada vez que o Estado se abstrai, de alguma forma, das suas funções de polícia, o setor privado, por algum meio, ocupa esta função. Esta substituição oportunista não se dá na forma de serviço público, mas sim com o intuito de maximizar lucros. Nesta perspectiva, dependendo dos princípios morais vigentes em sociedades nas quais os meios justificam os fins, teremos o estabelecimento de uma plutocracia, isto é, um sistema político onde os grupos financeiros ditam as políticas públicas através do abuso das influências políticas, econômicas ou até mesmo pessoais com o fito de ter uma participação mais ativa em decisões governamentais. Embora esta seja uma atividade polêmica, ela é largamente utilizada na elaboração de legislação conivente com as aspirações dos setores financeiros hegemônicos em detrimento dos anseios e dos direitos da maioria dos cidadãos. REFERÊNCIAS DEPARTMENT OF THE TREASURY. Financial Investigation. Washington DC. 1998. FINANCIAL ACTION TASK FORCE (FATF). International Standards On Combating Money Laundering And Financing Of Terrorism & Ploriferation. Paris. FATF Secretariat. 2012. INTERNAL REVENUE SERVICE. Criminal Enforcement. Disponível em: http://www.irs.gov/uac/Criminal-Enforcement-1. Acesso em: abril de 2014. MANNING, George. A Financial Investigation and Forensic Accounting. 3º ed. Nova Iorque. CRC Press. 2011. TRIBUTAÇÃO em revista 43 A RTIGO Sistema de Apoio à Decisão Aplicado à Análise de Dados no SPED Social Sérgio Ribeiro Libório1 Flávio Luis de Mello2 1. Introdução A atuação do fisco vem despertando cada vez mais interesse das organizações com sua proposta tecnológica de análise instantânea de declarações e cruzamento massivo de informações. Assim, multas vêm sendo aplicadas não apenas pelo envio fora do prazo ou o envio de dados incorretos, mas agora também pela identificação de informações inexatas, incompletas ou omitidas. Dessa forma, o presente trabalho tem por objetivo propor uma solução para a análise de obrigações legais e identificação de não conformidades com foco no SPED Social. Procura, assim, abordar a utilização de análise de dados aplicada às obrigações fiscais com o intuito de garantir o envio de informações exatas, completas e consistentes através da detecção de anomalias, visando garantir a qualidade dos dados disponibilizados à fiscalização. A implementação explanada no presente trabalho foi realizada através de uma ferramenta open source com recursos de mineração de dados tendo como base as etapas do KDD (Knowledge Discovery in Databases). Este artigo está estruturado da seguinte forma: a Seção 2 discorre sobre os conceitos acerca dos Sistemas de Apoio à Decisão (SAD) e o processo KDD. Na Seção 3 são abordadas Análise e Qualidade de Dados. O EFD-Social é apresentado na Seção 4. Na Seção 5, é realizada uma implementação segundo o processo KDD. Por fim, na Seção 6 são apresentadas as conclusões do presente trabalho, além dos trabalhos propostos que envolvem o tema. 2. Sistemas de Apoio à Decisão 1. Analista de Sistemas com MBA em Tecnologia da Informação Empresarial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduado em Ciência da Computação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, email: [email protected] 2. Doutor em Ciências com ênfase em Computação e Sistemas, Professor Adjunto do Departamento de Eletrônica e Computação, Escola Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, e-mail: [email protected] 44 TRIBUTAÇÃO em revista 2.1. Conceito Sistemas de Apoio à Decisão (SAD) é uma classe de Sistemas de Informação que apoia atividades de tomada de decisão. São sistemas e subsistemas computadorizados e interativos destinados a auxiliar os tomadores de decisão no uso de tecnologias de comunicação, dados, documentos, conhecimento e / ou modelos para completar as tarefas do processo de decisão. Um SAD pode apresentar informações de forma gráfica, além da possibilidade de incluir um Sistema Especialista ou recursos da Inteligência Artificial. Pode ser destinado a executivos de negócios ou algum outro grupo de trabalhadores do conhecimento (POWER, 2013). 2.2. Knowledge Discovery in Databases (KDD) KDD corresponde ao processo de Descoberta de Conhecimento em Bases de Dados, representando um processo não trivial, interativo e iterativo, para identificar padrões compreensíveis, válidos, novos e potencialmente úteis a partir de grandes conjuntos de dados. O KDD pode ser utilizado tendo em vista dois objetivos de alto nível (FAYYAD, 1996): (a) Verificação: o sistema verifica a hipótese do usuário; (b) Descoberta: o sistema encontra novos padrões, podendo ser subdividido em: (I) Predição: o sistema extrai padrões de dados ou um modelo de conhecimento, a partir de um histórico já existente, que permita prever os valores de determinados atributos em novas situações; (II) Descrição: o sistema encontra padrões para serem representados de uma maneira compreensível pelos usuários. O processo KDD é geralmente descrito em cinco etapas: I) Seleção dos Dados - Durante esta etapa, uma amostra de dados ou um subconjunto de variáveis (atributos) é selecionado. Os dados podem ser obtidos de diversas fontes: banco de dados relacionais ou transacionais, data warehouses, planilhas, Web, etc (HAN, 2006). II) Pré-Processamento - Esta é uma etapa muito importante, pois a qualidade dos dados é algo determinante para obter eficiência dos algoritmos de mineração de dados. Esta é a etapa durante a qual podem ser realizadas as operações básicas a seguir (FAYYAD, 1996): (a) Remoção de ruído ou outliers (dados discrepantes); (b) Coleta de informações necessárias para modelar o ruído; (c) Decisão das estratégias para lidar com campos com dados faltando; (d) Decisão das questões sobre os dados, como tipos dos dados, esquema e mapeamento de valores ausentes e desconhecidos. III) Transformação dos Dados - Durante esta etapa ocorre a descoberta de variáveis relevantes de acordo com os objetivos do processo de KDD. Técnicas de redução de dados (e.g.: Feature Selection e métodos de transformação) podem reduzir o número efetivo de variáveis que serão consideradas na construção do modelo. IV) Mineração de Dados - Refere-se à extração de conhecimento a partir de grandes quantidades de dados, contando com algumas tarefas de Mineração de Dados (MD) muito usadas na busca e descoberta de conhecimento: classificação, estimativa, predição, agrupamento (Clusterização) e associação. A escolha da tarefa de MD corresponde ao objetivo de KDD definido para solucionar o problema em questão. Além disso, escolhe-se, também, nesta etapa, os métodos de mineração de dados a serem aplicados, os algoritmos que os implementam e seus parâmetros. Para cada tarefa de MD existem vários métodos que podem ser aplicados aos dados, alguns são: árvores de decisão, regras de decisão, regressão não-linear, redes neurais, métodos baseados em casos, modelos baseados em aprendizagem relacional (GALVÃO, 2008). Assim, a definição da técnica a ser utilizada no processo de KDD depende da tarefa específica de MD e dos dados disponíveis para a análise. Por fim, esta etapa é concluída com a geração de padrões em uma forma particular de representação (e.g.: regras de classificação, árvores de decisão, modelos de regressão, previsões, clustering). V) Avaliação dos Resultados - É durante esta etapa que ocorre a interpretação dos resultados da mineração de dados. Utiliza-se a visualização de modelos, padrões extraídos e dados desses modelos. A apresentação dos padrões descobertos pode variar de acordo com o uso e o tipo de conhecimento a ser extraído, podendo ser representados por regras, tabelas, crosstabs, gráficos de pizza ou de barra, árvores de decisão entre outros, porém, o conhecimento descoberto é mais fácil de ser entendido quando representado por um alto nível de abstração (HAN, 2006). É possível voltar a qualquer uma das etapas anteriores para TRIBUTAÇÃO em revista 45 uma nova iteração. Por fim, termina-se o processo com a geração de conhecimento, podendo este ser utilizado diretamente, incorporado a outro sistema para futuras tomadas de decisão ou simplesmente documentado para disseminação às partes interessadas (FAYYAD, 1996). 3. Análise de Dados 3.1. Conceito Análise de dados é o processo pelo qual se dá ordem, estrutura e significado aos dados. Este consiste na transformação dos dados coletados em conclusões e/ou lições, úteis e credíveis. A partir dos tópicos estabelecidos processam-se os dados, procurando tendências, diferenças e variações na informação obtida. Os processos, técnicas e ferramentas utilizadas são baseados em certos pressupostos e como tal tem limitações (GIL, 2010). É a tentativa de evidenciar as relações existentes entre o fenômeno estudado e outros fatores (LAKATOS, 2003). 3.2. Qualidade de Dados Várias técnicas de análise de dados suportam determinado grau de imperfeição nas informações. No entanto, para que seja possível obter resultados mais apurados, é importante a utilização de ações que visam melhorar a qualidade dos dados. Assim, detecção e correção de problemas relacionados à qualidade da informação são essenciais. Tal etapa é conhecida como limpeza dos dados. Problemas na coleta correspondem a erros com relação à omissão de objetos de dados ou valores de atributos, ou a inclusão inapropriada de um objeto de dados. Erros de medição referem-se a quaisquer problemas resultantes do processo de medição, i.e., valor registrado diferente do valor real. Além disso, diversos problemas podem ser identificados em dados armazenados previamente, destacando-se (TAN, 2009): Outliers - Objetos que, de alguma forma, apresentam características diferentes da maioria ou ainda atributos que apresentam valores incomuns com relação aos valores típicos para este. Não devem ser confundidos com 46 TRIBUTAÇÃO em revista erros, pois, dependendo do foco da análise, estas informações são muito importantes (e.g.: detecção de anomalias). Valores Ausentes - Diversas estratégias podem ser utilizadas para lidar com valores ausentes, a seguir algumas: (a) Eliminar objetos ou atributos - uma estratégia simples e eficaz é a eliminação de objetos com valores ausentes. Entretanto, deve-se levar em conta que estes objetos, mesmo com valores ausentes, possuem informações que podem ser relevantes. (b) Estimar valores ausentes - em muitos casos, dados ausentes podem ser estimados confiavelmente, através de valores semelhantes: valores dos atributos mais próximos ou, para atributos contínuos, a média, ou, para atributos categorizados, o valor com maior frequência. Valores Inconsistentes - Valores inconsistentes são normalmente inseridos durante a aquisição, principalmente digitação (e.g.: CEP não pertencente à cidade informada; altura, peso ou idade com valores negativos; CPF/CNPJ com dígito verificador inválido). Dados Duplicados - Um conjunto de dados pode incluir objetos duplos e, para detectar e eliminar tais objetos, duas questões devem ser observadas. Primeiro, havendo dois objetos que realmente representam um único, então os valores dos atributos correspondentes podem diferir e estes, se diferentes, devem ser ajustados. Segundo, deve-se tomar cuidado para não combinar acidentalmente objetos semelhantes (e.g.: pessoas homônimas). 3.3. Classificação de Dados O método de análise de dados por classificação consiste em avaliar uma determinada característica nos dados e atribuir uma classe definida à priori. É possível associar os dados a classes (ou conceitos) através de dois processos (CÔRTES, 2002): (a) Discriminação: Resultado obtido através da atribuição de um valor a um atributo no registro em função de um ou mais atributos do mesmo (e.g.: os funcionários da empresa podem ser classificados através do atributo grau de instrução em nível médio e superior). (b) Caracterização: Corresponde à sumarização de um atributo de estudo por uma característica de um ou mais atributos (e.g.: os funcionários da empresa podem ser classificados utilizando-se o atributo salário anual, isso, através da identificação de faixas da agregação de seus salários em: alta, média e baixa). Existem várias técnicas de classificação, a saber (CÔRTES, 2002): árvores de decisão, classificação bayesiana, backpropagation (Redes Neurais Artificiais), análise de vizinhança (k-Nearest Neighbor), casos baseados em raciocínio, algoritmos genéticos e lógica fuzzy. 4. SPED Social Esta nova obrigação acessória, com início em 2014, consiste na escrituração digital da folha de pagamento e das obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais relativas a todo e qualquer vínculo trabalhista contratado no Brasil. Trata-se de um avanço na informatização da relação entre o fisco e os contribuintes e faz parte do Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) (LOLLIO, 2013). O eSocial, ou EFD-Social, como também é chamado, é um projeto do governo federal que vai unificar o envio de informações pelo empregador em relação aos seus empregados e englobará todos os contribuintes em geral (ESOCIAL, 2013). A apresentação ao fisco de declaração, demonstrativo ou escrituração digital com informações inexatas, incompletas ou omitidas, provocam penalidades. De acordo com a Lei 12.766/2012, as penalidades acarretam multas, caso a empresa apresente tais obrigações fora do prazo ou ainda pelo envio de dados incorretos. Para evitar problemas deste tipo as corporações devem investir na qualidade de seus dados para entregar o SPED da forma correta. Cada vez mais, as companhias terão de alocar recursos para melhorar a sua análise de dados, garantindo, assim, o envio de informações exatas, completas e consistentes. Definição do Problema: Com o advento do EFD-Social e sua complexa estrutura de informações, além das várias fontes de dados da empresa, percebe-se que a possibilidade de envio de informações com não conformidades pode ocorrer e com isso o risco de penalidades. Solução Proposta: Visando garantir a qualidade dos dados enviados ao fisco, nota-se com clareza a necessidade de ferramentas que auxiliem na análise de dados, possibilitando a detecção de anomalias nos dados para identificação e correção de não conformidades. Na próxima seção, uma ferramenta de apoio à decisão com recursos de Data Mining será utilizada com o intuito de permitir a detecção de anomalias nos dados, possibilitando, assim, a correção das informações e, por conseguinte, a garantia da qualidade antes do envio ao fisco. 5. Implementação e Resultados Nas seções anteriores foi defendida a necessidade de análise de obrigações legais e identificação de não conformidades no que dizem respeito às demandas do SPED Social. Neste trabalho, o foco é a utilização da análise computacional de dados aplicada às obrigações fiscais a fim de prover informações exatas, completas e consistentes através da detecção de anomalias. Sob esta ótica, será apresentada uma prova de conceito sobre a viabilidade de construção de um processo computacional destinado a atender às demandas desta problemática. Neste sentido, foi utilizado para a prova de conceito o tema relacionado com a jornada de trabalho de empregados de uma empresa do ramo petrolífero. Entretanto, o tema e o ramo de atividade da empresa não restringem a aplicabilidade da proposta aqui descrita, podendo a mesma ser empregada como catalisadora de ações para garantir a qualidade dos dados disponibilizados à fiscalização. A implementação, que será vista nesta seção, foi realizada utilizando as funcionalidades de um software livre chamado Weka (WEKA, 2013), amplamente utilizado em mineração de dados. O ambiente Weka contém uma coleção de ferramentas de visualização e algoritmos para análise de dados e modelagem preditiva, juntamente com interfaces gráficas para facilitar o acesso a estas funcionalidades. Esta aplicação suporta várias tarefas padrão de mineração de dados, mais especificamente, de pré-processamento de dados, agrupamento, classificação, regressão, visualização e seleção de recursos. Seleção dos Dados: A fase inicial do KDD corresponde seleção da massa de dados de acordo com o domínio do TRIBUTAÇÃO em revista 47 objetivo definido, que neste caso, é a detecção de anomalias nos dados do EFD-Social, sendo aqui consideradas, especificamente, as informações relativas à jornada de trabalho dos funcionários. Após análise na base de dados, foram selecionados 4.653 registros identificando as jornadas dos empregados ativos em julho de 2013. Os registros foram então convertidos para o padrão utilizado no software Weka. Os atributos relevantes ao processo de mineração de dados estão elencados na Tabela 1. Pré-processamento: O total de registros foi reduzido para 4.576 com intuito de eliminar tuplas nulas, valores considerados inconsistentes ou errados, valores definidos como ruído e diminuir redundâncias. Foram removidos 77 registros com mais de 9 dias de folga, representando empregados de férias (ruído). Foi utilizado o filtro RemoveWithValues do Weka (Configuração: -S 10.0 -C 5 -L 5 -V). Transformação dos Dados: Os registros foram convertidos durante esta fase, com todos os atributos sendo transformados para nominal através do filtro NumericToNominal. Esta transformação se faz necessário para facilitar a utilização, na etapa de Data Mining do processo KDD, do classificador J48 (Árvore de Decisão). Análise dos Dados: Esta etapa do processo KDD corresponde à mineração de dados propriamente dita, sendo utilizado o algoritmo C4.5 de indução de árvores de decisão (Classificador J48 do Weka, configura- ção: J48 -U -M 2) para classificar os registros segundo o atributo HORAS. Foram realizados vários testes com diferentes configurações dos parâmetros do classificador, com melhores resultados para árvore não podada (unpruned J48). Resultados: Após o processamento do arquivo pelo Weka e a obtenção dos padrões gerados na execução da mineração de dados, o modelo (gráfico da árvore de decisão – Figura 1) e as classificações foram levados à apreciação dos especialistas de domínio da organização, para análise e avaliação da qualidade das regras obtidas. Além disso, também foram levados à apreciação dos especialistas os registros não classificados, i.e., registros que apresentaram erro na tentativa de classificação segundo o modelo obtido. Assim, a árvore gerada também foi confrontada com as anomalias detectadas e o arquivo de origem (Tabela 2) e, segundo os especialistas ouvidos, o modelo foi considerado consistente. Ainda segundo os especialistas, do total de 17 registros enquadrados como anomalias, todos representavam inconsistências (e.g.: THM e dias de folga/trabalho incompatíveis com a jornada diária do empregado) sendo estes encaminhados para correção no cadastro de pessoal (com as medidas sugeridas pelos especialistas - Tabela 2), demonstrando, dessa forma, que o método adotado evidenciou-se adequado à empresa, permitindo a detecção/correção de não conformidades de forma proativa. Tabela 1 – Atributos submetidos à mineração de dados Atributo Descrição Valores Encontrados na Seleção de Dados THM Total de horas por mês 120, 180 e 200 TIPO Tipo de horário Flexível, Fixo e Turno CICLO Ciclo de dias da jornada de trabalho 7, 28, 30 e 31 DIAS_TRABALHO Dias de trabalho 4 a 6 e 20 a 26 FOLGAS Dias de folga 1, 2, 3, 5, 6, 8 e 9 HORAS Horas de trabalho diário 04:00, 06:00, 07:12, 08:00 e 10:00 48 TRIBUTAÇÃO em revista Figura 1 – Árvore de decisão gerada THM =120 =180 =200 ÁRVORE SIMPLIFICADA ANOMALIAS DETECTADAS THM = 120: 04-00 (1.0) THM = 180 I FOLGAS = 1: 06-00 (3.0) I FOLGAS = 2: 06-00 (21.0/6.0) I FOLGAS = 5: 06-00 (5.0) I FOLGAS = 6: 06-00 (6.0) I FOLGAS = 8: 07-12 (7.0) I FOLGAS = 9: 07-12 (62.0) THM = 200 I TRAB = 4: 10-00 (12.0/8.0) I TRAB = 5: 08:00 (4454.0/3.0) I TRAB = 6: 08-00 (4.0) I TRAB = 23: 08-00 (1.0) inst#,actual,predicted,error,prediction 2 717, 3: 0 7-12, 4 :10 - 0 0,+, 0 . 3 3 3 2 720,2:0 8 - 0 0, 4:10 - 0 0,+,0.333 2 721, 5:0 6 - 0 0, 4:10 - 0 0,+,0. 333 2 7 2 4 , 3: 07-12, 4:10 - 0 0,+,0. 333 2 725,2:0 8 - 0 0, 4:10 - 0 0,+,0.333 2 7 26, 3: 07-12, 4:10 - 0 0,+,0 . 3 3 3 2 72 7, 5:0 6 - 0 0, 4:10 - 0 0,+,0. 333 2 728,2:0 8 - 0 0, 4:10 - 0 0,+,0.333 3217, 4:10 - 0 0, 2: 0 8 - 0 0,+,0.9 9 9 3218, 4:10 - 0 0, 2: 0 8 - 0 0,+,0.9 9 9 3219, 4:10 - 0 0, 2: 0 8 - 0 0,+,0.9 9 9 4 5 07, 3: 07-12, 5: 0 6 - 0 0,+,0 . 714 4 52 2, 3: 07-12, 5: 0 6 - 0 0,+,0. 714 4 562,2:0 8 - 0 0, 5:0 6 - 0 0,+,0. 714 4 567,2:0 8 - 0 0, 5:0 6 - 0 0,+,0. 714 4 5 69, 3: 07-12, 5: 0 6 - 0 0,+,0. 714 4 5 74 , 3: 07-12, 5: 0 6 - 0 0,+,0. 714 04-00(1.0) FOLGAS =1 =2 =3 =5 TRAB =6 =8 =9 06-00(3.0) 06-00(21.0/6.0) 07-12(0.0) 06-00(5.0) 06-00(6.0) 07-12(7.0) 07-12(62.0) =4 =5 =6 =20 =21 =22 =23 =24 =25 =26 10-00(12.0/8.0) 08-00(4454.0/3.0) 08-00(4.0) 08-00(0.0) 08-00(0.0) 08-00(0.0) 08-00(1.0) 08-00(0.0) 08-00(0.0) 08-00(0.0) 6. Conclusão e Trabalhos Futuros O EFD-Social representa a nova onda neste moderno cenário tecnológico promovido pelo fisco com o SPED, englobando desde o empregador doméstico às grandes corporações. Tal situação determina mudanças drásticas para as empresas. Isso se mostra claro, tendo em mente a Lei 12.766/2012 e a percepção de pesadas penalidades sendo aplicadas. Nesse sentido, o presente trabalho procurou demonstrar que existem ferramentas capazes de auxiliar as empresas nesse desafio. Indo além, demonstrou a implementação de uma solução para análise de dados do SPED Social visando garantir o envio de informações exatas, completas e consistentes através de mecanismos de detecção de anomalias nos dados, isto é, procura garantir a qualidade dos dados fiscais. Verifica-se que é mandatório o aprofundamento neste tema para permitir que as empresas se tornem pioneiras na detecção e correção de não conformidades antes do envio de informações à fiscalização, pois arcar com multas e penalidades cada vez mais pesadas pode levar tais empresas à perda de competitividade e, consequentemente, a sua extinção. Assim, o maior erro de todos é deixar a empresa ficar para trás, à deriva nesse inevitável e irreversível cenário do setor fiscal. Com relação aos trabalhos futuros, algumas propostas são: (a) Aprofundar o estudo sobre técnicas de Qualidade de Dados; (b) Utilizar Qualidade de Dados nos sistemas corporativos da empresa desde a coleta, com avaliações periódicas nas bases já existentes; (c) Aprofundar o estudo sobre técnicas de detecção de anomalias; (d) Implementar técnicas de detecção de anomalias no Cadastro de Pessoal e Folha de Pagamento; (e) Aplicar o estudo de detecção de anomalias para identificação de fraudes em Apuração de Frequência e Folha de Pagamento. TRIBUTAÇÃO em revista 49 Tabela 2 – Anomalias detectadas X Arquivo de origem X Medidas adotadas inst actual predicted THM TIPO CICLO TRAB FOLGAS HORAS MEDIDAS ADOTADAS (OBS. ESPECIALISTAS) error prediction MATR 2717 3:07-12 4:10-00 + 0.333 304148 200 N 7 4 3 "07-12" Correção de Jornada para 10:00 2720 2:08-00 4:10-00 + 0.333 218861 4 3 "08-00" Correção de Jornada para 10:00 + 0.333 306492 200 N 200 N 7 2721 5:06-00 4:10-00 7 4 3 "06-00" Correção de Jornada para 10:00 2724 3:07-12 4:10-00 + 0.333 303822 200 N 7 4 3 "07-12" Correção de Jornada para 10:00 2725 2:08-00 4:10-00 + 0.333 805023 200 N 7 4 3 "08-00" Correção de Jornada para 10:00 2726 3:07-12 4:10-00 + 0.333 805000 200 N 7 4 3 "07-12" Correção de Jornada para 10:00 2727 5:06-00 4:10-00 + 0.333 109183 200 N 7 4 3 "06-00" Correção de Jornada para 10:00 2728 2:08-00 4:10-00 + 0.333 306013 200 N 7 4 3 "08-00" Correção de Jornada para 10:00 3217 4:10-00 2:08-00 + 0.999 503149 200 N 7 5 2 "10-00" Correção de Jornada para 08:00 3218 4:10-00 2:08-00 + 0.999 504804 200 N 7 5 2 "10-00" Correção de Jornada para 08:00 3219 4:10-00 2:08-00 + 0.999 505898 200 N 7 5 2 "10-00" Correção de Jornada para 08:00 4507 3:07-12 5:06-00 + 0.714 216474 180 T 7 5 2 "07-12" 4522 3:07-12 5:06-00 + 0.714 411095 180 N 7 5 2 "07-12" 4562 2:08-00 5:06-00 + 0.714 706856 180 N 7 5 2 "08-00" 4567 2:08-00 5:06-00 + 0.714 19097 180 N 7 5 2 "08-00" 4569 3:07-12 5:06-00 + 0.714 507658 180 N 7 5 2 "07-12" 4574 3:07-12 5:06-00 + 0.714 30759 180 N 7 5 2 "07-12" Correção de Jornada para 06:00 e 6 dias de trabalho Correção de Jornada para 06:00 e 6 dias de trabalho Correção de Jornada para 06:00 e 6 dias de trabalho Correção de Jornada para 06:00 e 6 dias de trabalho Correção de Jornada para 06:00 e 6 dias de trabalho Correção de Jornada para 06:00 e 6 dias de trabalho REFERÊNCIAS CÔRTES, S. C., et. al., “Mineração de dados – funcionalidades, técnicas e abordagens”, ftp://ftp.inf.puc-rio.br/pub/docs/techreports/02_10_cortes.pdf, 2002, (Acesso em 13 Julho 2013). ESOCIAL, “Portal do eSocial”, http://www.esocial.gov. br/, 2013, (Acesso em 03 Julho 2013). FAYYAD, U. M., PIATETSKY-SHAPIRO, G., SMYTH, P., Advances in knowledge discovery and data mining, Menlo Park, Califórnia, USA, AAAI/MIT Press., 1996. HAN, J., KAMBER, M., Data mining: concepts and techniques, 2ª ed., USA, Morgan Kaufmann, 2006. LAKATOS, E. M., MARCONI, M. A., Fundamentos de metodologia científica, 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2003. LOLLIO, D., “Sped social contra a sonegação”, http:// www.dci.com.br/sao-paulo/sped-social-contra-a-sonegacao-id353290.html, 2013, (Acesso em 03 Julho 2013). POWER, D., “Types of decision support systems (DSS)”. http://www.gdrc.org/decision/dss-types.html, 2013, (Acesso em 02 Julho 2013). GALVÃO, N. D., MARIN, H. 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O objetivo deste ensaio é lançar alguns elementos que possibilitem a reflexão sobre os efeitos danosos que a política desenfreada de concessão de benefícios fiscais, praticada pelos entes federados, tem causado no conjunto das finanças públicas e na ambiência administrativa com a in- 1. Auditor Fiscal da Receita Estadual de MG. Diretor do Sindifisco-MG. Mestre em Administração pela UFMG. Especialista em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro. Email: wertson. [email protected] trodução de práticas e condutas estranhas aos corpos técnicos que atuam na área de fiscalização e controle de tributos, em especial os auditores fiscais de receitas tributárias. 2. Benefício Fiscal e Guerra Fiscal Normalmente, quando se concede um benefício fiscal, este vem justificado na esteira da guerra fiscal instalada entre os entes federativos, mormente entre os estados e o DF, em que pese haver renúncia fiscal da União que afeta estados e municípios e também guerra fiscal entre municípios e entre esses e os estados com o mesmo fito de garantir sua estabilidade arrecadatória, quando o ideal é nobre. Uma análise da tabela abaixo permite afirmar que ,ao longo do tempo, apesar dos esforços de muitos estados em manter ou aumentar sua arrecadação e em incrementar sua economia via ferramenta da desoneração fiscal, não houve alteração substancial do peso da participação percentual das regiões brasileiras no PIB com a concessão de benefícios fiscais. TRIBUTAÇÃO em revista 51 Tabela 1- Participação percentual das grandes regiões no Produto Interno Bruto 2002-2012 Participação percentual no Produto Interno Bruto(%) Grandes Regiões 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Brasil 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 Norte 4,7 4,8 4,9 5,0 5,1 5,0 5,1 5,0 5,3 5,4 Nordeste 13,0 12,8 12,7 13,1 13,1 13,1 13,1 13,5 13,5 13,4 Sudeste 56,7 55,8 55,8 56,5 56,8 56,4 56,0 55,3 55,4 55,4 Sul 16,9 17,7 17,4 16,6 16,3 16,6 16,6 16,5 16,65 16,2 Centro-Oeste 8,7 8,9 9,2 8,8 8,7 8,9 9,2 9,7 9,15 9,6 Fonte: IBGE, em parceria com os Órgãos Estaduais de Estatística, Secretarias Estaduais de Governo e Superintendência da Zona Franca de Manaus - SUFRAMA O que se pode inferir dessa manutenção da participação regional no PIB é o efeito neutralizador da concessão do benefício fiscal em relação à ação de um outro ente federado. Quando se concede um benefício fiscal, na prática, não se consegue incrementar receita ou impulsionar a economia, mas apenas manter uma empresa no território do estado, normalmente, arrecadando menos do que antes da concessão do benefício. É o ceder os anéis para não perder os dedos. Em suma: embora se tenha observado maior crescimento industrial na maioria dos estados da federação, a partir da segunda metade da década de 1990, período em que em São Paulo essa participação iniciou seu declínio, não se observa a mesma evolução na arrecadação de ICMS nos estados, ou seja, de acordo com NASCIMENTO (2008), há notável perda de receita potencial dos estados devido aos benefícios fiscais concedidos. De acordo com os estudos desse autor, enquanto São Paulo perdeu receita de ICMS com a fuga de indústrias as demais unidades da federação não aumentaram suas receitas de ICMS no mesmo nível da atividade industrial impulsionada. 3. O Efeito Nocivo da Guerra Fiscal Não há dúvidas de que, a médio e longo prazo, quando se perdem as finanças estaduais, perde toda a sociedade e o único ganhador é o empresariado que já desenvolveu estratégias de chantagem junto aos governos, para alcançar sua meta de pagar o mínimo possível de impostos. Frise-se que a concessão de benefícios fiscais não é determinante para a decisão empresarial de se fixar em um dado território. Entre as principais conclusões de estudos 52 TRIBUTAÇÃO em revista 2012 100,00 5,3 13,6 55,2 16,2 9,8 realizados pelo Banco Mundial (TYLER, 1998), tendo referência a política de benefícios fiscais adotada pelo estado do Ceará, estão: 1 – Apenas grandes empresas recebem benefícios fiscais em função do elevado custo em buscar os mesmos; 2 – Os incentivos de ICMS discriminam as empresas domésticas e estimulam sua migração para estados vizinhos; 3 – Há maior investimento em lobistas do que em modernização das plantas industriais; 4 – Gastos públicos são concentrados em infraestrutura em detrimentos de gastos sociais; 5 – Distorções de vantagens comparativas, por exemplo, isentar uma fábrica de fibra ótica e aumentar o ICMS do extrativismo vegetal. 4. Benefício Fiscal: a Gênese da Fraude “Quando se concede um benefício fiscal, inicia-se, imediatamente, uma fraude” (TOSTES NETO) A frase acima não é de nenhum líder sindical do Fisco, mas do Secretário da Fazenda do Estado do Pará, Auditor Fiscal da Receita Federal José Barroso Tostes Neto. Benefício fiscal é uma das temáticas que mais resistências provocam na categoria fiscal, talvez em virtude de essa categoria perceber que a sua concessão vai de encontro a todo o esforço de controle despendido pelo Fisco no sentido de garantir o cumprimento da obrigação tributária por parte dos contribuintes. A fraude se estabelece no momento em que se celebra um protocolo de intenções, eivado de compromissos e metas que têm a pretensão de eficácia e de legalidade, mas cujos resultados, geralmente, não são aferidos, mensurados nem questionados e se tornam danosos para a arrecadação estadual e para os verdadeiros interesses da sociedade. Ocorre a fraude na dissimulação de como se dá o processo de concessão do benefício e nas formas de controle e acompanhamento dos compromissos assumidos no protocolo de intenções. Tais protocolos são peças para “inglês ver” e sua função é dissimular uma realidade na qual o engano se estabelece, via oficial, e o enganado é o interesse da sociedade. Compromissos meramente formais tais como: diversificar a oferta de produtos; emplacar a frota de veículos da empresa no estado; investir em capacitação e gerar novos empregos são usuais nos referidos protocolos de intenções que podem também ser chamados de Protocolos de Más Intenções, pois não resistem a uma crítica econômica aprofundada, se tomarmos como variáveis o crescimento do mercado, do consumo e a própria dinâmica empresarial. 5. A Fraude dos Protocolos de Intenções na Indústria Cimenteira Um exemplo flagrante desse tipo de fraude é a concessão de benefícios fiscais para a indústria cimenteira, pelos motivos abaixo: 1 – O cimento é produto de baixo valor agregado e de alto custo de frete, logo, deve ser produzido próximo aos centros consumidores. Não há, pois, que se falar em ameaça de perda de receita com o deslocamento da planta industrial, mesmo porque essa planta é de alto custo de investimento. Definitivamente, a indústria de cimento não se enquadra como “indústria de rodinhas”2, tão comum na guerra fiscal; 2 – O produto cimento não é passível de grandes alterações em sua formulação, logo variação de produtos só através de maquiagem na sua embalagem e na sua denominação; 2. Denomina-se indústria de rodinhas aquela empresa que possui alta capacidade de mudar seu domicílio em função das vantagens oferecidas com a concessão de benefícios fiscais. 3 – A tendência da indústria cimenteira é cada vez maior de automatização de sua linha produtiva, mesmo porque é uma das indústrias mais primitivas e de alta insalubridade, sendo assim, há maior possibilidade de redução de postos de trabalho ou de realocação para setores de controle e acompanhamento informatizado; 4 – As modernas empresas, basicamente, não possuem frota própria de veículos, sendo os veículos administrativos terceirizados e o transporte de seus produtos efetuado por parceiros ou coligados; 5 – O aumento da arrecadação é consequência natural do crescimento do consumo e do nível da atividade industrial e não de promessas retóricas constantes em protocolos de intenções; 6 – Investimento em aumento da planta e modernização é parte do negócio e a concorrência exige que assim o seja, sob pena de perda de mercado e de inviabilidade do próprio negócio. 6. O Balcão de Negócios dos Benefícios Fiscais Instala-se, então, no âmbito dos estados um verdadeiro balcão de negócios nada salutar às boas práticas do Fisco. Ingerências de setores externos ao Fisco como as secretarias de desenvolvimentos, interesses dos governantes e seus aliados e o próprio legislativo passam a pautar a agenda do Fisco e este assume um papel de negociador da coisa pública numa espécie de leilão, cujo resultado final se traduz e perda arrecadatória e transferência de renda para o setor privado. A linguagem negocial empresarial não é comum ao Fisco e causa torpor imaginar agentes do Fisco sentarem-se a uma mesa de negociação, sabendo-se, de antemão, que são perdedores, assim como o é toda a sociedade. Torpor ainda maior é imaginar que esse balcão de negócios possa se tornar um criador de dificuldades para vender facilidades. Aqui a fraude se torna mãe da corrupção e nunca antes os agentes do Fisco estiveram tão expostos a serem não somente colaboradores, mas também atores em processos corruptores. TRIBUTAÇÃO em revista 53 7. Conclusão: ICMS, a Reforma Necessária O ICMS que é o maior tributo em termos arrecadatórios no Brasil, belo em sua lógica e concepção, tem sido, paulatinamente, desfigurado por arranjos como os regimes especiais tributários e por mecanismos de burla que os próprios entes federados constroem por meio da guerra fiscal. Talvez, antes de falar em reforma tributária, convenha que se fale da reforma do ICMS que, além dos efei- tos nocivos dos benefícios fiscais, precisa ser modernizado para tratar das questões relativas ao comércio não presencial, aqui incluindo o e-commerce, à tributação no destino e ao instituto da substituição tributária. De todas as reformas, a mais urgente é a paralisação da farra dos benefícios fiscais e que sejam convalidados somente aqueles que efetivamente ensejaram crescimento econômico e mudança da paisagem regional e social dos estados concedentes. REFERÊNCIAS NASCIMENTO, Sidnei Pereira do. Guerra Fiscal: uma avaliação com base no PIB, nas receitas de ICMS e na geração de empregos, comparando Estados participantes e não participantes (tese de doutorado). Piracicaba: ESALQ/USP, 2008. 162p. TOSTES NETO. José Barroso. Questões atuais do federalismo fiscal brasileiro. Palestra proferida na 161ª Reunião do CD da FENAFISCO. Belém-PA, 14 de maio de 2014. 54 TRIBUTAÇÃO em revista TYLER, W. Promoting economic growth in Ceará: a background paper for The World Bank’s Ceará State Economic Memorandum. Washington: World Bank Institute, 1998. 488p, citado por NASCIMENTO, Sidnei Pereira do. Guerra Fiscal: uma avaliação com base no PIB, nas receitas de ICMS e na geração de empregos, comparando Estados participantes e não participantes (tese de doutorado). Piracicaba: ESALQ/ USP, 2008. 162p. A RTIGO Sonegador Fiscal: o Homicida da Cidadania Ivan Antonio Pellegrini Maia1 “Os sonegadores são homicidas que vitimam milhões de pessoas com suas práticas ilícitas”. Luiz Francisco de Souza, Procurador da República, em palestra no Conselho de Delegados Sindicais, em 24/11/2003 1. Introdução O crime de sonegação fiscal, previsto notadamente nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990 e 168-A e 337-A do Código Penal, está dentre aqueles que afetam a sociedade de maneira mais drástica. Tributo não arrecadado redunda em não auferimento de recursos para implementação dos direitos mais comezinhos assegurados pela Constituição Federal, como vida, saúde, segurança e educação. Considerando que a resposta punitiva estatal ao crime deve guardar proporção com o mal infligido ao corpo social, depreende-se que o tratamento penal aos sonega1. Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil. Email: [email protected]. dores fiscais deve ser firme e expressivo (inclusive com a possibilidade real de prisão), de maneira apta a desestimular novas condutas nefastas. Não obstante, analisando o sistema legislativo brasileiro, constata-se que o princípio da proporcionalidade não foi observado quanto ao tratamento do grave delito de sonegação fiscal. Hoje, vê-se a dificuldade na consumação de algumas modalidades do delito, as penas demasiadamente leves (a permitir a aplicação de uma série de benesses legais) e uma absurda causa extintiva da punibilidade. Diante desse cenário, este artigo visa demonstrar a imperiosidade do recrudescimento do tratamento penal aos sonegadores fiscais. Primeiramente, demonstra-se a necessidade da extirpação da causa extintiva de punibilidade insculpida no art. 9º da Lei nº 10.684/2003. A seguir, defende-se que todas as modalidades de sonegação fiscal devam ser crimes formais. Por fim, constata-se a urgência no aumento das penas cominadas aos mencionados delitos, inclusive com a in- TRIBUTAÇÃO em revista 55 serção do crime de sonegação fiscal na Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos). 2. Extinção de Punibilidade – Um Expediente a ser Suprimido de Nossa Legislação O tributo, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, adquiriu feições notoriamente construtivas e interventivas, sobretudo porque constitui a principal fonte de custeio do Estado. Com a arrecadação, torna-se possível a atuação estatal nas áreas de maior carência da sociedade, com os objetivos manifestos de concretizar as finalidades do Estado Democrático de Direito e de, assim, recuperar os nefastos efeitos da modernidade tardia brasileira. No Brasil, hoje, não há uma estatística que demonstre de maneira precisa quanto a sonegação fiscal subtrai dos cofres públicos. Não obstante, há um consenso: a sensação de impunidade relacionada a este grave delito fomenta sua prática. Com efeito, as penas suaves - 6 meses a 2 anos, no caso das condutas descritas no art. 2º da nº Lei 8.137/1990, por exemplo - propiciam uma série de benesses legais, tais como transação penal, suspensão condicional do processo, substituição por restritiva de direitos, sursis da pena, regime aberto, etc. E quando, por alguma substanciosa razão, esses benefícios são inaplicáveis ao caso concreto, o sonegador ainda tem a faculdade de, em qualquer fase do processo, pagar o tributo devido, a fim de ter declarada a extinção da sua punibilidade (artigo 9º da Lei nº 10.684/2003). Este artifício foi criado com o objetivo de estimular a quitação dos débitos tributários pelos devedores, assegurando, assim, o pagamento integral do tributo que foi sonegado. Assim, enquanto o contribuinte faltoso está pagando uma dívida tributária de um tributo que foi sonegado a sua punição fica suspensa. E se ele quitar integralmente a dívida, a punição fica extinta. Nossa legislação, neste e em tantos outros casos, é bastante leniente. Favorece o mau pagador, estimulando a proliferação de práticas de sonegação. Gera a sensação de impunidade, implicando em sério prejuízo à sociedade, pois 56 TRIBUTAÇÃO em revista tributo não recolhido, ou recolhido tardiamente, e com abatimento, à luz de programas de refinanciamento e sob a proteção de uma legislação que protege o mau pagador, implica, por exemplo, em menos investimentos sociais2. Enfim, no cenário atual, é praticamente nula a possibilidade de alguém ter a liberdade ceifada por sonegar um tributo. E o sonegador sabe (e aproveita) disso... Nesse rumo, em uma patente violação ao princípio da proporcionalidade, o tratamento que o direito penal confere a um poderoso empresário responsável pela evasão de milhares ou milhões, subfaturando preços de venda, registrando valores diferentes nas operações de venda, usando sistemas paralelos de notas fiscais, simulando operações comerciais por meio de “offshores” (empresas sem donos) ou utilizando paraísos fiscais nas suas operações é bem mais suave do que o que confere a um cidadão que, com o auxílio de terceiro, furta um telefone celular, por exemplo (art. 155, parágrafo 4º, IV, CP - pena de 2 a 8 anos, sem possibilidade de ressarcimento do prejuízo como meio de se extinguir a punibilidade). Isso significa que a sonegação fiscal, responsável pela falta de recursos para construção de escolas, aquisição de medicamentos, ampliação de leitos hospitalares, investimento em saneamento básico, diminuição do crescimento do país, aumento da carga tributária, etc., tem uma resposta estatal mais branda do que o furto, delito que atinge o patrimônio individual. Com essa constatação, inarredável concluir que a pena atrelada ao grave delito de sonegação fiscal é desproporcionalmente leve no Brasil. Nesse diapasão, cumpre trazer à baila os ensinamentos do douto jurista Fernando Capez3: “A pena, isto é, a resposta punitiva estatal ao crime, deve guardar proporção com o mal infligido ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividades distintas, ou para infrações dolosas e culposas. 2. Sobre outros benefícios fiscais ao mau pagador, ver SINDIFISCO NACIONAL, 2011 3. CAPEZ, 2088, p. 170-71 Necessário, portanto, para que a sociedade suporte os custos sociais de tipificação limitadoras da prática de determinadas condutas, que se demonstre a utilidade da incriminação para a defesa do bem jurídico que se quer proteger, bem como a sua relevância em cotejo com a natureza e quantidade da sanção cominada” Assim, pode-se concluir que a punição causada à coletividade pela prática do crime da sonegação fiscal deve ser mais grave do que aquela imposta à depredação ou subtração do patrimônio privado. O não pagamento das obrigações tributárias é um ilícito contra toda a coletividade que deveria ser punido com sanções penais severas. Para tanto, há que se modificar toda a legislação que trata do assunto4. 3. Sonegação Fiscal, um Crime Formal Para se modificar o atual “cenário de risco zero”, algumas mudanças legislativas devem ser adotadas. Primeiramente, destaca-se a necessidade de transformar todas as modalidades de sonegação fiscal em crimes formais. O crime formal é de consumação instantânea, aperfeiçoando-se no momento em que o agente pratica a conduta descrita no tipo, independentemente da ocorrência do resultado naturalístico. Em outras palavras, sua consumação ocorre no momento em que o agente faz a declaração falsa, ou omite a declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou emprega outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo. Realmente, ao praticar essas condutas, o agente já está dirigindo-se contra o dever de lealdade (do cidadão para com o Estado em relação ao mandamento tributário), a fé pública, a função social do tributo no Estado de Direito e, obviamente, contra a Fazenda Pública, na sua conotação patrimonial. Enfim, já está lesando bens jurídicos demasiadamente relevantes, de maneira suficiente a despertar a tutela penal. Não há motivo para a sonegação fiscal ser crime material, a depender do exaurimento da longa via admi4. Sobre as alterações na legislação com a finalidade de afastar a extinção de punibilidade de todo ordenamento jurídico, vide SINDIFISCO NACIONAL, 2011, pp 20-22. nistrativa e do efetivo lançamento do crédito tributário, porque, sobreleva frisar, antes disso já houve lesão a bens jurídicos relevantíssimos. A seguir, destaca-se a urgência na supressão da norma prevista no artigo 9º, da Lei nº 10.684/2003, a fim de que não mais haja extinção da punibilidade do agente pelo pagamento do tributo. Com efeito, tributo é uma prestação compulsória, quer dizer, recolhê-lo é um dever jurídico, e não uma liberalidade passível de prêmio estatal. O mencionado preceptivo é, verdadeiramente, um estímulo às condutas sonegadoras, porquanto o infrator sabe que, no improvável caso de ele sofrer uma ação penal pelo crime que cometeu, poderá, em qualquer fase da tramitação, simplesmente cumprir o seu dever legal de forma retardada como meio de ter a sua punibilidade extinta. Por fim, destaca-se a necessidade da alteração dos patamares de penas dos crimes de sonegação fiscal, a fim de que não os atinjam as benesses legais (sobretudo as previstas na Lei nº 9.099/1995) e o temor da prisão sirva como desestímulo à sonegação. Assim, tendo em vista a gravidade do delito de sonegação fiscal, sua função de salvaguarda de interesses gerais não individualizados, as peculiaridades dos bens jurídicos protegidos pelas respectivas normas penais incriminadoras, bem como os altos índices de cometimento do delito, o recrudescimento do tratamento penal dispensado é medida que se impõe, inclusive com a sua inserção na Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/1990). 4. Conclusão Ante todo o exposto, conclui-se que o sonegador fiscal deve ser submetido a um regime jurídico mais severo, capaz de incutir-lhe a real e concreta possibilidade (hoje inexistente) de sofrer, por sua conduta, uma penalização contundente – prisão, inclusive - como forma de desestímulo a novas condutas delitivas. O instituto da extinção de punibilidade não pode permanecer em nosso ordenamento jurídico, estimulando a sone- TRIBUTAÇÃO em revista 57 gação, premiando o mau pagador e penalizando a sociedade. A sonegação fiscal deve receber de nossa legislação um rigoroso tratamento em termos de punição devendo, mesmo, ser tratada como crime hediondo para que não reste dúvida da abrangência de suas consequências. Com isso, a sociedade ganhará... Ganhará em arrefecimento da carga tributária, não pela criação de novos tributos, mas pela arrecadação dos tributos sonegados, acrescidos das devidas multas e juros; ganhará em novos e bem equipados hospitais, em medicamentos gratuitos, em boas escolas, em saneamento básico, em segurança, etc. REFERÊNCIAS CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, v. 4,3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. SINDIFISCO NACIONAL. Benefícios Tributários ao Capital: alterações necessárias na legislação tributária para a promoção de maior justiça fiscal. Nota Técnica n. 23. Brasília, Sindifisco Nacional, 2011. Disponível em https://www.sindifisconacional.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13916:-sp-514019168&catid=76&Itemid=172. Acesso em 27 jul 2015. 58 TRIBUTAÇÃO em revista TRIBUTAÇÃO em revista 59