relação entre indivíduo e as instituições na filosofia do

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
RELAÇÃO ENTRE INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES NA
FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL
TARCÍSIO VILTON MENEGHETTI
DECLARAÇÃO
“DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA
PUBLICA EXAMINADORA”.
ITAJAÍ (sc),
de
de 2010.
___________________________________________
Professor Orientador:
JOSEMAR SIDINEI SOARES
UNIVALI – Campus Itajaí-SC
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS
CURSO DE DIREITO
RELAÇÃO ENTRE INDIVÍDUO E AS INSTITUIÇÕES NA
FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL
TARCÍSIO VILTON MENEGHETTI
Monografia submetida à Universidade do
Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito
parcial à obtenção do grau de Bacharel
em Direito.
Orientador: Professor Doutor Josemar Sidinei Soares
Itajaí, dezembro de 2010
AGRADECIMENTOS
À Ordem Natural, possível de ser compreendida racionalmente por uma
consciência cultivada;
Ao Professor Josemar Soares, o Mestre que me auxiliou a despertar,
demonstrando que uma vida de realizações, liberdade e felicidade é possível, e que
depende de nós;
Aos meus pais, Iêda e Ironi, ao meu irmão Leonardo, e a todos os familiares,
pelo incentivo, carinho, formação, auxílio em momentos decisivos e compreensão
durante toda uma vida;
À Dra. Aulia Esper, pelo exemplo e possibilidade de autoconhecimento e
realização pessoal-profissional;
À UNIVALI, nas pessoas do Reitor Prof. Mário César dos Santos, Diretor do
CEJURPS, Prof. José Carlos Machado, Coordenador do Curso de Direito, Prof.
Osmar Facchini, pelo incentivo e construção de um espaço propício ao
desenvolvimento acadêmico, profissional e existencial;
Ao Prof. José Everton da Silva, por tantas oportunidades criadas;
À Bruna, por me encorajar a enfrentar a mim mesmo;
Aos grandes amigos Tiago, Matheus e Renan, verdadeiros amigos no sentido
aristotélico do termo, pois buscam acima de tudo estimular o melhor de cada um,
tanto no trabalho como nos momentos de lazer;
À Isadora, por trabalhar junto em um semestre ininterrupto de atividades,
sempre com lealdade, dedicação e resultados;
Aos tantos e queridos amigos do Grupo Paidéia, ao longo destes anos de
convivência, em especial William, Beatriz, Ágatha, Vithória, João e Leandro.
A todos que participaram desta minha caminhada, sempre estimulando o
desenvolvimento pessoal e profissional.
DEDICATÓRIA
A todos Nós, que ao construirmo-nos como pessoas construímos todas as
instituições, e juntos temos o dever e a responsabilidade de aprimorá-las.
4
“Para nós, portanto, já está presente o conceito de espírito. Para a consciência, o
que vem-a-ser mais adiante, é a experiência do que é o espírito: essa substância
absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber, das
diversas consciências-de-si para si essentes – é a unidade das mesmas: Eu, que é
Nós, Nós que é Eu”.
HEGEL, Fenomenologia do Espírito
5
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do
Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de
toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, novembro de 2010
Tarcísio Vilton Meneghetti
Graduando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do
Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Tarcísio Vilton Meneghetti, sob o título
Relação entre Indivíduo e as Instituições na Filosofia do Direito de Hegel, foi
submetida em novembro à banca examinadora composta pelos seguintes
professores: Prof. Dr. Josemar Sidinei Soares (Orientador), e Profa. Msc. Fabiana de
Bittencourt Rangel (Examinadora) e aprovada com a nota [Nota] ([nota Extenso]).
Itajaí, dezembro de 2010
Prof. Dr. Josemar Sidinei Soares
Orientador e Presidente da Banca
Profa. Msc. Fabiana de Bittencourt Rangel
Coordenação da Monografia
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................... IX
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 ........................................................................................................ 13
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL .................................... 13
1.1 A FILOSOFIA DO ESPÍRITO NO SISTEMA HEGELIANO ........................... 13
1.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
............................................................................................................................. 18
1.2.1 A vontade livre ............................................................................................. 20
1.2.2 Vontade livre e direito .................................................................................. 23
CAPÍTULO 2 ........................................................................................................ 27
A FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL: DIREITO ABSTRATO, MORALIDADE E
ETICIDADE .......................................................................................................... 27
2.1 O DIREITO ABSTRATO ................................................................................ 27
2.2 A MORALIDADE ........................................................................................... 31
2.3 A ETICIDADE ................................................................................................ 35
CAPÍTULO 3 ........................................................................................................ 40
AS INSTITUIÇÕES NA ETICIDADE: FAMÍLIA, SOCIEDADE CIVIL E ESTADO40
3.1 A FAMÍLIA ..................................................................................................... 40
3.2 A SOCIEDADE CIVIL .................................................................................... 44
3.3 O ESTADO ..................................................................................................... 48
3.4 HEGEL E A CONTEMPORANEIDADE ......................................................... 53
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 56
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ............................................................. 59
RESUMO
Inserida numa linha de pesquisa voltada à filosofia política, esta
pesquisa pretende analisar a relação entre indivíduo e as instituições na Filosofia do
Direito de Hegel. Nesse sentido, o trabalho articula-se logicamente primeiro com
uma introdução à filosofia política hegeliana; depois com a apresentação dos três
momentos da obra em estudo: direito abstrato, moralidade e eticidade; e por fim,
com a análise das três instituições mais importantes: família, sociedade civil e
Estado. Resulta que as instituições são essenciais para a realização da Liberdade
do indivíduo, porém nenhuma delas é em absoluto. É o movimento de realização da
Liberdade por meio das instituições que se torna o essencial. Para tanto, foi utilizado
o método indutivo, através da pesquisa bibliográfica. Em relação às obras de Hegel,
foram utilizadas, para a Enciclopédia, a tradução de Paulo Meneses, e para a
Filosofia do Direito, as traduções do Prof. Dr. Marcos Lutz Müller, esparsas em
diversos cadernos publicados, de forma que nesse caso utilizar-se-á somente a
referência através de parágrafos.
Palavras-chave: Indivíduo. Instituições. Liberdade.
INTRODUÇÃO
A relação entre indivíduo e as instituições sempre foi uma das
investigações centrais da filosofia do direito, desde a República platônica que
buscava construir o Estado Ideal como reflexo da alma dos cidadãos. Depois viriam
momentos de sublime inspiração, como a procura pelo bem comum na Política de
Aristóteles, a reprodução do Estado perfeito na Cidade de Deus de Agostinho, o
surgimento do Leviatã hobbesiano, o valor singular do Indivíduo no liberalismo de
Locke e a necessidade da vontade geral de Rousseau. Também Marx necessitará
passar por essa reflexão, a partir de sua constatação de que as Instituições são
reproduções da ideologia da classe dominante que manipula os indivíduos. O
anarquismo
defenderá
a
extinção
das
Instituições
proclamando
assim
a
possibilidade de Liberdade da pessoa. O liberalismo econômico propõe a redução
das mesmas, deixando ao singular a possibilidade de se guiar por si só nas relações
mercantis. Ao final do século XX presenciamos a derrocada do socialismo e do
liberalismo, e o que vemos surgir é um meio-termo entre ambos: a política e o direito
devem buscar o bem comum, a equidade, a redução das desigualdades sociais, a
harmonia entre o Indivíduo e a sociedade. O Estado precisa proteger o valor da
maioria. Nem o capitalismo desenfreado nem o socialismo utópico. Como se vê, a
filosofia, o direito, a política, a sociologia, a economia, as ciências humanas em sua
totalidade repensam continuamente a relação entre Indivíduo e as Instituições, pois
é nessa dialética que se desenvolve a possibilidade de concretização do bem
comum, de equidade, de progresso social e econômico, mas também de Liberdade
individual ou supressão da mesma.
Quem é o Indivíduo? Ele é Indivíduo porque vive em sociedade?
Ele deve visar o bem próprio ou o bem comum? Qual a finalidade das Instituições, e
aqui como Instituições nos referimos ao Estado, à sociedade civil, à família, ao
direito, e também à escola, à universidade, ao hospital, à penitenciária, aos partidos
políticos, aos sindicatos, enfim, são todos Instituições, são todos entes criados pelo
homem para auxiliar na promoção de um determinado bem. E que bem é esse? O
Estado quer que o indivíduo se realize, seja feliz, ou apenas que tenhamos
igualdade social? A sociedade civil, o que deseja? A família, para que serve, seria
11
para dar estabilidade emocional, econômica, social e moral ou educar a pessoa para
a vida? Qual a função da penitenciária? E da universidade? Enfim, o que buscam
realizar as Instituições? Qual o papel das Instituições?
Este trabalho não pode e nem pretende oferecer conclusões
definitivas, pois trata de um tema que atravessa a história da civilização ocidental.
As mais elevadas mentes de nossa cultura indagaram sobre a questão, e até agora
não temos respostas acabadas. Esta pesquisa apresenta apenas a visão de um
autor: Hegel.
E mesmo limitando-nos a Hegel, não é simples esta empreitada.
Já houve quem interpretasse no filósofo alemão um fundamentador do totalitarismo
e quem visse nele um defensor do liberalismo econômico.
A obra principal desta pesquisa é a Linhas Fundamentais da
Filosofia do Direito, de Hegel, na qual o filósofo apresenta a realização da Ideia de
Liberdade pelo Indivíduo, por meio da sua interação com as Instituições do mundo
ético: Família, Sociedade Civil e Estado. Os comentadores, em geral, convergem no
sentido de que a Liberdade em Hegel se dá na ação do Indivíduo junto às
Instituições. Porém, o que isso pode significar ao fundo? Se as Instituições são
realmente necessárias para a Liberdade seriam elas o caminho para a Liberdade do
Indivíduo? Ou seja, é o Indivíduo dependente das Instituições? Ou, na verdade o
Indivíduo é quem realiza a sua Liberdade, e, nesse sentido, as Instituições são
apenas momentos históricos, existenciais e contingenciais, isto é, instrumentos
utilizados pelo Indivíduo para alcançar a sua finalidade maior. Diante dessa
possibilidade de interpretação as Instituições seriam reduzidas a meio, e o Indivíduo
resplandeceria em sua máxima importância na filosofia política hegeliana. Eis a
indagação que conduz todo este trabalho: como se dá a relação entre Indivíduo e as
Instituições na perspectiva da realização da Ideia de Liberdade em Hegel? Tal
problemática nos levará ao cerne da questão da Eticidade em Hegel.
A Eticidade é a realização da Ideia de Liberdade no mundo
dado, onde a vontade livre encontra a harmonia entre o Indivíduo e as Instituições. É
nessa harmonia que se situa a Liberdade hegeliana. A complexidade do tema se
12
revela diante desta dificuldade: é preciso avançar para o centro da eticidade e ali
tentar identificar se há preponderância do Indivíduo ou das Instituições.
Espera-se que este trabalho, ainda que não suficiente para
solucionar a problemática, possa suscitar novas pesquisas e contribuir nos avanços
dessa fundamental investigação para a contemporaneidade: afinal, ainda hoje,
vivemos mergulhados nessa complexa relação com as Instituições.
Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de
1
Investigação foi utilizado o Método Indutivo2, na Fase de Tratamento de Dados o
Método Cartesiano3, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia
é composto na base lógica Indutiva.
Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas
do Referente4, da Categoria5, do Conceito Operacional6 e da Pesquisa Bibliográfica7.
1
“[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente
estabelecido [...]. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11 ed.
Florianópolis: Conceito Editorial; Millennium Editora, 2008. p. 83.
2
“[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção
ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática.
p. 86.
3
Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE,
Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 2226.
4
“[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o
alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.”
PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 54.
5
“[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD,
Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 25.
6
“[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita
para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa
jurídica: teoria e prática. p. 37.
7
“Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar
Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 209.
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL
1.1 A FILOSOFIA DO ESPÍRITO NO SISTEMA HEGELIANO
Antes de adentrar na filosofia política de Hegel é preciso tecer
algumas considerações acerca de seu sistema filosófico, pois as dialéticas jurídicas,
políticas, sociais engendram-se conforme aquilo que está exposto no sistema
hegeliano como um todo, a tal ponto que Vieillard-Baron afirma que “on ne peut pás
comprendre la philosophie hégélienne du droit sans la replacer le système entier. É
preciso ter sempre então uma noção da totalidade do sistema hegeliano.”
Tal sistema está apresentado na Enciclopédia das Ciências
Filosóficas, obra de três volumes que serve de compêndio, uma vez que reúne
basicamente todas as suas discussões anteriores e inclusive algumas que depois
seriam aprofundadas numa estrutura lógica, em que se torna compreensível a
ligação entre tantas temáticas e obras diversas.
Na Enciclopédia temos a Ciência da Lógica no primeiro
volume, que pode muito bem ser considerada a ontologia hegeliana, uma vez que
apresenta o que significa ser, vir-a-ser, Ideia, conceito, e tantas outras categorias
fundamentais para a filosofia de Hegel.
O segundo volume apresenta a Filosofia da Natureza, que é o
desenvolvimento da Ideia na realidade física de nosso mundo. Aqui estão as leis
biológicas, químicas, etc.
Por fim, no seio da vida natural engendra-se a Filosofia do
Espírito, terceiro volume. E é aqui que se situa o objeto do presente estudo. Por
14
Espírito já não entendemos apenas as ideias lógicas simples nem a Natureza, mas a
consciência e a realidade humana. A vida animal não é consciente de si mesma, não
sabe por que existe nem se responsabiliza por sua existência. Somente o homem
vive essa dimensão maior que é ter plena consciência de estar vivo, de viver em
sociedade, de agir e pensar, de se relacionar com o Outro. De fato, a vida humana é
a mais complexa entre todos os organismos provindos da Natureza.
Essa
autonomia
de
consciência,
contudo,
acarreta
na
responsabilidade da Liberdade. Ser consciente de que vive significa poder decidir o
que fazer da própria existência. E é nessa esfera que se situam as discussões da
Filosofia do Espírito, conforme assinala Hegel no § 382 da Enciclopédia:
A essência do espírito é, por esse motivo, formalmente a liberdade, a
absoluta negatividade do conceito enquanto identidade consigo.
Segundo essa determinação formal, ele pode abstrair de todo o
exterior e de sua própria exterioridade, de seu próprio ser-aí; pode
suportar a negação de sua imediatez individual, a dor infinita, isto é,
nessa negatividade conservar-se afirmativamente, e ser idêntico a si
mesmo. Essa possibilidade é sua universalidade abstrata, essente
para si dentro de si mesma.8
A essência do espírito é formalmente a Liberdade. Isso
significa que para essa essência se tornar algo efetivo, é preciso que deixe de ser
apenas formal para também ser presente no Indivíduo e no mundo. Esse é o projeto
de realizar a Liberdade no mundo. Trata-se de um parágrafo complexo, e que pode
ser melhor compreendido ao atentar-se à própria explicação de Hegel, logo a seguir
na forma de adendo:
A substância do espírito é a liberdade, isto é, o não-ser-dependente
de um Outro, e referir-se a si mesmo. O espírito é o conceito
efetivado, essente para si, [e] que a si mesmo tem por objeto. [...] A
liberdade do espírito, porém, não é simplesmente a independência
do Outro, conquistada fora do Outro, mas no Outro; não chega à
efetividade pela fuga perante o Outro, mas pela vitória sobre ele. [...]
Essa potência sobre todo o conteúdo nele presente forma a base da
liberdade do espírito. Mas, em sua imediatez, o espírito só é livre em
si segundo o conceito ou a possibilidade, não ainda segundo a
efetividade: a liberdade efetiva, assim, não é algo essente de modo
imediato no espírito, mas algo a ser produzido por sua atividade.
8
ENC, p. 23. § 382.
15
Desse modo, [é] como o produtor de sua liberdade [que] temos de
considerar na ciência o espírito. O desenvolvimento total do espírito
apresenta somente o “fazer-se livre”, do espírito, de todas as formas
de seu ser-aí que não correspondem a seu conceito: uma libertação
que ocorre porque essas formas são transformadas em uma
efetividade perfeitamente apropriada ao conceito do espírito.9
A Liberdade é uma possibilidade, que pode vir a se tornar
efetivada. É responsabilidade do Indivíduo realizar da Liberdade em si mesmo e no
mundo. Não basta ao espírito ser livre em conceito ou em possibilidade, é
necessário que o seja de modo efetivo no mundo.
Também é substancial compreender o início da citação,
quando se afirma que a Liberdade passa pela autonomia em relação ao Outro, mas
que essa autonomia não é fugir do Outro, mas uma vitória no Outro. Isso será
demasiadamente importante para se compreender a exposição de todo este
trabalho. A relação do Eu com o Outro deve ser uma relação de independência para
ambos, porém sem a exterminação de uma das partes. O extermínio do Outro não é
Liberdade, mas fuga do Outro. E essa mensagem Hegel já expôs de modo decisivo
e emblemático na célebre dialética entre senhor e escravo na Fenomenologia do
Espírito.
A intersubjetividade é essencial para a Filosofia do Espírito de
Hegel. E isso pode ser extraído da parte final da citação acima. A Liberdade se faz
quando o espírito liberta-se de todas as formas que não são próprias ao conceito do
espírito.
Essas
formas
precisam
ser
transformadas
em
uma
efetividade
perfeitamente apropriada ao conceito do espírito. Isso se tornará mais assimilável ao
longo do trabalho, quando for apresentado que a Liberdade não passa pela
eliminação das Instituições, mas na transformação dessas em algo apropriado ao
conceito do espírito. Tal discussão é o cerne da presente pesquisa.
Em
síntese,
o
espírito
consiste
numa
dialética
de
intersubjetividade do Indivíduo com a Natureza e o mundo. O homem nasce em um
mundo que é um Outro, e depois se vê rodeado de outros seres-Outros, outros
homens. Por fim, há as todas as construções racionais humanas, como o direito, a
moral, as Instituições, as ciências e assim por diante. Tudo isso é um Outro, que me
9
ENC, p. 23-24. § 382. Adendo.
16
provoca a agir de um determinado modo. Porém, todas essas construções refletem
também a vontade humana em transformar o mundo natural em um mundo humano,
e isso é algo fundamental quando se pensa em Liberdade diante do mundo. O § 384
da Enciclopédia auxilia nesse entendimento:
O manifestar – que enquanto [é] o manifestar da idéia abstrata e
passagem imediata, vir-a-ser da natureza – enquanto manifestar do
espírito, que é livre, é [o] pôr da natureza como de seu mundo; um
pôr que como reflexão é ao mesmo tempo [o] pressupor do mundo
como natureza autônoma. O manifestar no conceito é [o] criar do
mundo como ser do espírito, no qual ele se proporciona a afirmação
e verdade de sua liberdade.
Em outras palavras, o movimento de se pôr no mundo
pressupõe que esse mundo é uma natureza autônoma. Mas o homem a transforma,
e a partir daí essa natureza autônoma torna-se mundo humano, o mundo como ser
do espírito. Nesse processo reside a afirmação e a verdade da Liberdade em Hegel.
Como se verá mais adiante, não se pode pensar a Liberdade em Hegel apenas na
Liberdade individual, na minha Liberdade, na tua Liberdade. Antes disso, a
Liberdade é uma ideia que se engendra no espírito, e o espírito envolve tanto os
particulares, os Indivíduos singulares, como a relação entre eles, nas formas da
família, da sociedade civil, do Estado, e inclusive na relação de todos eles com o
mundo. Trata-se, portanto, de uma Liberdade em sentido bastante amplo. Tal
amplitude pode ser melhor compreendida com as palavras de Peperzak:
The further development of Hegel’s philosophy of spirit, which has
now reached its appropriate foundation or “soil”, consists in the
gradual unfolding of the spirit’s self-determination through aspectual
manifestations of its reason-ability, which it then transcends and
integrates as moments of its own life. As Wissen, this life is not a
passive reception; rather, it is a position, production, and creation
(Erschaffung). The spirit’s eternal movement appears in Hegel’s
systematic discourse as a development or unfolding (Entwicklung)
from its emptiest to its most fulfilled actuality, which is found in the
absolute freedom of perfect self-knowledge as the highest praxis of
creative and self-relevatory “actuosity”.10
A partir do momento que o espírito produz o mundo à sua
reflexão, atualiza não apenas o mundo, mas a si mesmo. Esse trabalho de criação
10
PEPERZAK, Adriaan. Modern Freedom: Hegels Legal, Moral and Political Philosophy. Dordreeht:
Kluwer Academic Publishers, 2001.
17
do mundo produz a efetivação da ideia de Liberdade num movimento gradual
consoante ao de autorrevelação do espírito. O espírito reconhece-se subjetivamente
no sujeito, objetivamente no mundo, e de modo absoluto na ideia, tal como expõe a
divisão da Filosofia do Espírito que se apresenta abaixo sintetizada no § 385 da
Enciclopédia:
O desenvolvimento do espírito é este:
1º) O espírito é na forma da relação a si mesmo: no interior dele lhe
advém a totalidade ideal da ideia. Isto é: o que o seu conceito é,
vem-a-ser para ele; para ele, o seu ser é isto: ser junto de si, quer
dizer, ser livre. [É o] espírito subjetivo.
2º) [O espírito é] na forma da realidade como [na forma] de um
mundo a produzir e produzido por ele, no qual a liberdade é como
necessidade presente. [É o] espírito objetivo.
3º [O espírito é] na unidade – essente em si e para si e produzindose eternamente – da objetividade do espírito e de sua idealidade, ou
de seu conceito: o espírito em sua verdade absoluta. [É] o espírito
absoluto.
No espírito subjetivo temos a divisão em antropologia,
fenomenologia, estudada mais profundamente na obra Fenomenologia do Espírito
(1807) e psicologia. Aqui se analisa o Indivíduo enquanto consciência, enquanto
singularidade em seus aspectos internos e na sua relação com os demais. Trata-se
de um estudo eminentemente existencial e, por vezes, inclusive psicológico. O
espírito nesse momento é subjetivo justamente por explorar os aspectos da
subjetividade humana, a qual se apresenta em cada consciência, porém em cada
uma de modo diferente. Dois sujeitos possuem dilemas, complexidades e aspectos
internos sempre distintos.
Depois da realidade singular do homem passa-se ao estudo da
realidade objetiva e concreta, que é o mundo externo. Este trabalho se concentrará
no estudo dessa parte, pois é aqui que se fazem presentes as relações sociais,
jurídicas, políticas, morais entre as pessoas. Com efeito, é nesse momento que se
pode estudar a relação entre o Indivíduo e as Instituições. O espírito é então objetivo
porque explora questões que envolvem todos os Indivíduos da mesma maneira,
numa universalidade. É na universalidade que se estuda o direito, a ética e a
política, pois essas dimensões são criadas visando o universal, ainda que esse deva
conter o particular. O espírito objetivo se desdobra no direito abstrato, na moralidade
18
e na eticidade, Instituições que serão analisadas mais profundamente neste
trabalho.
Por fim, o espírito absoluto, que contém o subjetivo e o
objetivo, é a Arte, a Religião e a Filosofia. Trata-se do Saber Absoluto, da verdade
absoluta. Aqui o espírito retorna a ser ideia, mas ideia produzida eternamente por
ela mesma. O espírito absoluto é uma dimensão da filosofia hegeliana que está para
além do homem, das Instituições e do mundo porém contém todos eles.
Feita essa apresentação introdutória ao sistema hegeliano,
cabe agora introduzir a obra Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, pois é nela
que se pode analisar a relação entre Indivíduo e as Instituições, uma discussão
fundamental da problemática do espírito objetivo, que consiste em objeto dessa
obra.
1.2 A FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
As Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, obra de 1821,
uma das últimas a serem publicadas pelo autor, é aquela em que Hegel traz de
forma mais sistemática seu pensamento político. Ao se analisar a estrutura lógica da
Filosofia do Direito, compreende-se como a filosofia política, abrangendo seus
aspectos sociais, políticos e jurídicos, não pode ser separada do Todo, tratada como
uma ciência a parte, mas sim vista como integrante efetiva dessa totalidade
orgânica. Para Hegel, jamais devemos pensar o Todo como soma de fatores, mas
sempre como uma unidade completa, conforme se observa logo no § 2.
A Ciência do Direito é uma parte da Filosofia. Por isso ela tem de
desenvolver a idéia, como aquela que é a razão de um objeto, a
partir do conceito ou, o que é o mesmo, ela tem de dirigir o seu olhar
ao próprio desenvolvimento imanente da coisa mesma. Como parte,
ela tem um ponto de partida determinado, o qual é o resultado e a
verdade daquilo que precede e do que constitui a assim chamada
demonstração do mesmo. Por isso, o conceito do Direito, segundo o
19
seu devir, cai fora da ciência do Direito, e sua dedução é aqui
pressuposta, e é preciso admiti-lo como dado.11
A Ciência do Direito, portanto, não é uma ciência autônoma,
mas parte de um conjunto mais amplo, a ciência filosófica, de forma que qualquer
Ideia ou conceito abordado nesse campo deve também ser submetido à lógica da
totalidade, isto é, obedecer a caminhos determinados pela filosofia. As Instituições
jurídicas propostas por Hegel, então, não podem ser analisadas somente como
conceitos políticos e jurídicos, mas também sob um olhar tanto lógico como
existencial, ou seja, não podemos pensar o direito, a comunidade, a família e o
Estado separados de uma estrutura lógica, nem separados da parte mais essencial
ao qual repousa toda a filosofia hegeliana: a figura do Indivíduo, da consciência12.
Rosenfield ressalta que uma releitura nesse viés revela um novo conceito de
Indivíduo, o de Indivíduo (Mitglied) como membro da comunidade.13 Por fim, deve-se
referir que apenas nessa perspectiva é possível compreender a relação entre o
desenvolvimento do Espírito e a realização da Ideia de Liberdade, ambas temáticas
centrais da obra analisada. Com isso Hegel propõe que as Instituições jurídicas e
políticas são antes o trabalho existencial do Indivíduo, ou seja, o trabalho da
consciência de si que opera no mundo tendo como finalidade a realização da Ideia
de Liberdade, representada por Hegel como a eticidade.14 Pensar a manifestação da
Ideia de Liberdade é o trabalho principal da Filosofia do Direito, e qualquer análise
das Instituições propostas nessa obra devem conter o paralelo com essa premissa.
O solo do Direito é, em geral, o [elemento] espiritual e o seu lugar
mais preciso e o seu ponto de partida [é] a vontade que é livre, de
maneira que a liberdade constitui sua substância e a sua
11
FD, Introdução, § 2.
Em sua primeira grande obra, a Fenomenologia do Espírito (1807), Hegel apresenta um processo
de formação (Bildung), onde trabalha a construção existencial da consciência, desde seus estágios
mais primitivos, até o Saber Absoluto. Tal obra, ainda, é considerada como uma Introdução ao
Sistema da Ciência, ou seja, todos os trabalhos posteriores de Hegel passam antes pela
compreensão desta obra. Em Hegel o político, o ético, o jurídico, e mesmo o lógico, nunca estão
separados do existencial, do humano. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de
Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. Petrópolis:
Vozes, 2005.
13
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 14.
14
“A unidade entre o indivíduo e a totalidade, a vontade e o pensamento, o conceito e a história, o
lógico e o político são problemas centrais da filosofia política hegeliana. Neste sentido, é apenas
necessário salientar que esta unidade não pode ser pensada como uma soma de partes isoladas
umas das outras, mas, ao contrário, a unidade vive da atualização de suas próprias diferenças. Se for
rompida esta relação onde uma determinação põe e é posta pela outra, a própria Idéia da liberdade
sai prejudicada. Poder-se-ia, ainda, acrescentar que o lógico, o especulativo, o conceitual brotam do
seu próprio conteúdo político, ético. ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 15.
12
20
determinação e que o sistema do direito é o reino da liberdade
efetivada, o mundo do espírito produzido a partir do próprio espírito
como uma segunda natureza.15
O reino do Espírito Objetivo, então, seria aquele onde o
Espírito produziria a partir de si próprio o conceito da liberdade realizada no mundo.
Trabalhar a realização da Ideia de Liberdade somente é possível quando se
compreende que toda articulação no mundo dado manifesta-se através da vontade
livre do Indivíduo. Sendo assim, o projeto hegeliano em sua filosofia política é
pensar o caminho racional, isto é, efetivado pela consciência de si nos planos
político, ético, jurídico, social, através de seus desdobramentos como pessoa
(Person) no direito abstrato, sujeito (Subjekt) na moralidade e membro (Mitglied) da
comunidade na eticidade,16 que são justamente os três momentos da obra.
Contudo, o movimento inicia-se pela vontade livre do Indivíduo,
de forma que é necessário antes explorar os pontos fundamentais daquilo que Hegel
entende por vontade livre.
1.2.1 A vontade livre
O espírito objetivo busca realizar a Ideia de Liberdade no
mundo. Nesse processo encontra-se a construção das Instituições. Porém, isso tudo
se encontra em um processo, em um vir-a-ser. Como se formam as Instituições? De
onde surge o direito? São todas construções humanas. Ora, uma construção
somente é posta porque antes foi querida. Logo, está implícito que o ponto de
partida da realização da Liberdade é a vontade. Portanto, antes de se analisar as
Instituições, é necessário compreender como se dá o movimento da vontade livre do
homem, que de certa forma é o motor que permite a possibilidade tornar-se efetiva.
Sem a vontade livre não há como a ideia de uma Instituição ou do próprio direito
15
FD, Introdução, § 4.
BOURGEIS, Bernard. O pensamento político de Hegel. Tradução de Paulo Neves da Silva. São
Leopoldo: Editora UNISINOS, 1999. p. 90-91.
16
21
tornarem-se reais no mundo. Da mesma forma, a Ideia de Liberdade só pode ser
efetivada pela vontade livre. Rosenfield apresenta a importância da vontade dentro
da filosofia hegeliana como:
Na verdade, a vontade dá forma ao mundo à medida que começa a
reconhecer-se no produto de seu próprio trabalho. A experiência da
consciência e a vontade na sua atividade reflexiva, não se
confundem como um querer indeterminado que construiria o mundo
a partir do nada. A atividade da vontade é uma síntese política
original entre a teoria e a prática, pois a vontade elabora, no seu agir,
as pressuposições a partir das quais ela empreendeu o seu caminho
e que se tornam, assim, suas próprias determinações.17
Eis a importância fundamental do movimento realizador da
vontade livre: aquilo que a vontade realiza torna-se a sua própria determinação.
Aquilo que o Indivíduo elabora torna-se parte dele. Mais adiante Rosenfield
apresenta o seu conceito de vontade livre:
Trata-se do movimento de atualização lógica do conceito na
individualidade do mundo. Uma substancialidade que é nada mais do
que o movimento de fazer e refazer constantemente o processo de
dissolução e produção de si em cada uma e no conjunto das
“determinidades” assim produzidas. O conceito torna-se, então,
individual na imediação do ser. O processo de concreção é um
processo de individuação. [...] Trata-se do movimento lógico de
produção do conceito da vontade à medida que este conceito
começa a perceber-se (e conhecer-se) como o ponto terminal de um
processo que, tornando-se presente na interioridade da vontade,
pode empreender novamente seu processo de “reposição”. Se o fim
é o começo, ele o é porque ambos possuem um mesmo fundamento.
A substância é, então, sujeito.18
A vontade livre é acima de tudo ação negadora. O Eu põe a
sua vontade e transforma um dado do mundo externo. Esse ato é em um primeiro
momento destruidor, porque aniquila o dado externo precedente. Em seguida, tornase um ato criador, pois atualiza o dado anterior em um novo dado, agora elaborado
conforme a vontade do Indivíduo. O Eu se abre de sua interioridade à exterioridade
do mundo de modo a realizar dialética com as determinações já existentes.
17
18
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel. p. 35.
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel. p. 46.
22
O ato da vontade livre pode ser exemplificado numa simples
frase como “Eu quero alguma coisa”, tal como apresenta Rosenfield. Ora, ao dizer
isso, o sujeito (o Eu) afirma que escolheu fazer algo com uma coisa específica.
Logo, essa coisa receberá a ação da vontade livre e será transformada. Aqui,
percebemos uma nova nuance do conceito de Liberdade dentro da vontade livre. Eu
escolho uma coisa para pôr minha vontade livre, posso colocar aqui ou lá, depende
de minha decisão. Ademais, mesmo naquela coisa escolhida, eu posso pôr minha
vontade de várias formas. Se adquiro a carne de um animal eu posso consumi-la ou
comercializá-la, por exemplo. Entre essas possibilidades abre-se a Liberdade de
decisão. O resultado dessas decisões da vontade livre é o que transformará o
mundo de um modo ou de outro modo. A história é sempre o resultado de decisões
da vontade livre, que escolheu fazer isto e não aquilo, e desse modo e não de outro.
O sistema desse conteúdo, tal como ele se encontra imediatamente
na vontade, é somente uma multidão e uma multiplicidade de
impulsos, dos quais cada um, ao lado de outros, é, em princípio, o
meu, e, simultaneamente, é algo de universal e indeterminado, que
tem os mais variados objetos e modalidades de satisfação. Pelo fato
de que, nessa dupla indeterminidade, a vontade se dá a forma da
singularidade (§ 7), ela é vontade que decide, e somente enquanto
vontade que, em princípio, decide, é vontade efetiva.19
Particularmente interessante para entender esse parágrafo é o
estudo do Prof. Marcos L. Müller, que afirma o verbo “decidir” nesse texto traduz dois
verbos da língua germânica, beschliessen e entschliessen, sendo que ambos
contêm a raiz comum em schliessen, que significa fechar, cerrar, encerrar. O
primeiro verbo citado traduz a ideia de pôr fim. Porém, o segundo verbo é utilizado
por Hegel no sentido originário do prefixo ent, em alemão, quando então ainda era
usado no sentido de contra. Dessa forma, entschliessen surge como abrir, descerrar,
o oposto do primeiro. Este jogo linguístico revela o sentido essencial do decidir em
Hegel: ao mesmo tempo em que fecha, abre. Isto é, ao decidir isto, eu fecho a
escolha em uma ação, excluindo as demais. Em contrapartida, esaa escolha abre
novas possibilidades, pois haverá consequências advindas dela.
Em síntese, a vontade livre é um movimento do Eu com a
individuação de uma coisa, e um movimento que nega o dado atual para transformá19
HEGEL, FD, § 12.
23
lo em um novo. Nesse novo dado o sujeito reconhece-se, pois é resultado de sua
vontade, de seu movimento. É pelo decidir esta e não aquela ação que a minha
vontade torna-se efetiva, pois esse conteúdo de decisão é conteúdo que produz
Liberdade.
As Instituições e a organização social, bem como a história,
portanto, são resultados da vontade livre humana. Com isso, pode-se afirmar que a
vontade livre é a determinação que cria e dá validade a todas as Instituições, sendo
que inclusive o direito posto é resultado da ação da vontade livre.
1.2.2 Vontade livre e direito
O direito é algo posto por uma vontade livre, e não uma
vontade livre singular qualquer, mas uma vontade livre racional, em si e para si, que
já superou a finitude da subjetividade e da objetividade. Esse entendimento é
essencial para se compreender o conteúdo do § 29 da Filosofia do Direito:
O fato de que um ser-aí em geral seja ser-aí da vontade livre, isso é
o Direito. – Ele é, portanto, em princípio, a liberdade enquanto ideia.
A definição kantiana e, também, a mais geralmente aceita, cujo
momento principal é “a restrição da minha liberdade ou arbítrio,
assim que ele possa coexistir com o arbítrio de cada um, segundo
uma lei universal”, por um lado contém somente uma determinação
negativa, a da restrição, [ao passo que] por outro, o positivo, a lei
universal ou assim chamada lei da razão, a concordância do arbítrio
de cada um com o arbítrio do outro, redunda na conhecida identidade
formal e no princípio de contradição. A mencionada definição do
Direito contém o ponto de vista, difundido precipuamente desde
Rousseau, segundo o qual, o que deve ser a base substancial e o
primeiro não é a vontade enquanto sendo em si e para si, enquanto
vontade racional, não é o espírito, enquanto espírito verdadeiro, mas
sim enquanto indivíduo particular, enquanto vontade do singular em
seu arbítrio peculiar.
A crítica hegeliana a Kant e ao entendimento mais comum
sobre a ideia de Direito consiste em que essa visão vê apenas o direito enquanto
24
Liberdade como restrição da ação alheia. Eu limito o meu arbítrio para que ele possa
coexistir com o arbítrio dos outros.
Outra crítica dirige-se a esse posicionamento que parte do
singular apenas. Sou eu, Indivíduo singular, que restrinjo minha Liberdade tal como
o outro restringe a dele. Essa é inclusive a prerrogativa que sustenta a teoria
contratualista que predomina na filosofia política moderna.
Hegel debruça-se sobre esse problema sob outro ângulo. Para
a vontade livre racional não há restrição da minha Liberdade, pois a vontade livre
efetiva é uma vontade universal que põe o direito como algo que produz Liberdade a
todos. O direito, então, não vem a ser resultado da ação de Indivíduos singulares,
mas da totalidade. Embora a vontade singular esteja contida no direito, ela se situa
no plano do espírito objetivo, e, portanto, é acima de tudo a produção de um povo,
de uma comunidade. Um direito posto é o caminho lógico de uma comunidade
civilizada.
A vontade consegue, assim, enunciar na realidade imediata o que
pensa de si, pois expressa agora, ao nível dos fatos, do
desenvolvimento da cultura (civilização), que todos os indivíduos são
iguais e que, graças a isso, atuam na sua vida cotidiana em função
de tornar cada vez mais vivo o sistema que forma o direito. Em
outras palavras, este sistema jurídico é, ao mesmo tempo, uma
“posição” e uma pressuposição. O direito vem a ser uma “posição” à
medida que resulta efetivamente de um desenvolvimento da
civilização e, como “posição”, é uma pressuposição de toda
mediação posterior, pois a mediação produz na imediação do real o
que está essencialmente contido em toda pressuposição verdadeira.
A “posição” resultante desse processo concretiza o seu movimento
de autodeterminação. O direito tende a enriquecer-se à medida que o
conceito totaliza seu movimento de figuração, no processo pelo qual
ele se apresenta a si.20
O sistema jurídico é um sistema vivo, que se atualiza conforme
o desenvolvimento da civilização que o produz. Quanto mais elevado o
desenvolvimento do espírito de determinado povo, assim o será o seu sistema
jurídico. Como se vê, o direito é analisado do ponto de vista do universal, pois é
esse que o põe.
20
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 57.
25
O direito vem a ser ainda o ser-aí (Dasein) da vontade livre de
um povo expressa na exterioridade das coisas. O direito fixa o ponto, determina
racionalmente que algo deve ser realizado deste modo e não de outro. Há uma
infinidade de possibilidades que podem ser fixadas como direito positivo, porém
aquele povo decidiu, pela vontade livre, pôr estas leis e não aquelas. E essas
decisões, que são históricas, refletem o desenvolvimento do povo. Por isso o direito
é vivo e presencia-se na atualização constante. E o que movimenta essa atualização
é a vontade livre infinita, que está sempre negando e realizando o que antes se
figurava apenas como Ideia, a Liberdade. É por isso que Peperzak dá tamanha
ênfase ao direito como ser-aí da Liberdade.
The circle is closed: Right is “the Dasein of free will” (§ 29) or
“actualized freedom” (§ 4). The idea of freedom (or the no longer
abstract, but actualized concept of free will) is the concept of right.
This concept must now, in its turn, actualize itself to become the idea
of right (§ 1), and the unfolding of this new actualization is the task of
the philosophical science of right (§§ 1 and 31). Because freedom is
“the highest determination of spirit”, right is sacred – the most sacred
of all objective realities.21
A ênfase tem objetivos claros, tanto por parte de Hegel como
de seus comentadores. Hegel é o primeiro filósofo moderno a fundamentar e
defender o sistema jurídico como essencialmente a realização da Liberdade, em
oposição à tradicional visão do direito como restrição, como dever. A lei não é criada
para possibilitar o convívio com o outro, mas para potencializar esse convívio. O
direito traduz a realidade que se vive naquele povo. O direito expressa o grau de
Liberdade conquistada. Quando analisar a Constituição, na última seção da Filosofia
do Direito, Hegel apresentará um exemplo marcante que fundamenta também a
discussão atual, que é a história de que Napoleão, depois de conquistar a Espanha,
tentou empurrar uma Constituição melhor e mais justa aos espanhóis, porém esses
a rejeitaram veementemente. Para Hegel tal fato é normal, pois a Espanha não
havia conquistado um grau de Liberdade suficiente para compreender aquela
Constituição que Napoleão oferecera.
Nessa linha de pensamento comenta Maspétiol:
21
PEPERZAK, Adriaan. Modern Freedom: Hegels Legal, Moral and Political Philosophy,p. 217.
26
[…] le droit est l’expression sublimée de la force collective
transcendante. Le “droit” au sens large hégélien est l’ensemble du
social objectivité au sein duquel une certaime negation de l’individu
concret est la condition nécessaire de l’existence de la collectivité. Le
Volksrecht corresponda u Volksgeist, lequel ne constitue pás une
entité mystique ou métaphysique, mas traduit les relations de toute
espèce, - naturelles, techniques, économiques, Morales et
intellectuelles, - que expliquent à un moment donné l’état d’une
nation et la ligne de son développement. Le “droit” est un Volksrecht
tout à la fois par son origine, par as formation et par son objet; il est
“présence de la liberté dans l’extérieur et, à ce titre, entre dans une
pluralité de relations avec cet extérieur et avec lês autres personnes”
(ENC. Pr. 496); il est l’incarnation de l’idée dans la figure concrète
d’un peuple determine.22
O direito expressa todas essas relações mencionadas por
Maspétiol, que se dão de modo diferente em cada civilização. Essa diferença
também se dá pelo fato de o conceito de direito não ser igual ao modo de como esse
se realiza na prática. Não basta o direito estar positivado, é preciso um movimento
completo de autonomia dos Indivíduos e da coletividade que permita a esse direito
se efetivar como algo realizado.
Pode-se afirmar que o direito é a base que garante a
Liberdade. Contudo, o direito não basta, é preciso analisar como a vontade livre
perfaz-se e realiza esses direitos. E é nesse ponto que se adentra a discussão
principal do presente trabalho: a relação entre Indivíduo e as Instituições na Filosofia
do Direito de Hegel.
Até aqui vimos o direito e a Liberdade como conceitos. De
agora em diante é preciso observar se esses conceitos efetivam-se no mundo dado,
se realizam o conteúdo que representam. Tal atividade, como já salientado
anteriormente, é movida pela vontade livre.
A exposição da vontade livre realizando a si mesma atende a
seguinte divisão: direito abstrato, moralidade e eticidade, momentos que serão
analisados no próximo capítulo.
22
MASPÉTIOL, Roland. Esprit Objectif et Sociologie Hégélienne. Paris: Jvrin, 1983. p. 60-61.
CAPÍTULO 2
A FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL: DIREITO
ABSTRATO, MORALIDADE E ETICIDADE
2.1 O DIREITO ABSTRATO
As Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito de Hegel são
concebidas numa estrutura dialética, sendo o primeiro momento o estágio do direito
abstrato, em que nos situamos no plano das relações jurídicas. Por isso, o direito
abstrato, aqui vale o direito formal e objetivo, é posto como lei ou como contrato.
Assim, ele abrange tanto os atos civis como criminais.
O direito abstrato é já o primeiro momento da realização da
Liberdade, o que aqui ocorre de forma ainda imediata. Contudo, essa imediaticidade
já integra o movimento da Liberdade, uma vez que o direito abstrato é uma realidade
produzida por um movimento da Liberdade. Imediaticidade, em Hegel, significa que
aquele momento ou figura que ainda não foi mediada pelo Indivíduo, superada e
atualizada em novo momento.
No direito abstrato o Indivíduo surge como vontade singular,
como pessoa, que por sua vez está ligada à ideia da propriedade. “O ser-aí que esta
dá à sua liberdade é a propriedade. O direito como tal é o direito formal, abstrato” 23.
Trata-se de um direito que abstrai a particularidade (Besonderheit) do
indivíduo – o interesse particular, os impulsos, desejos, pulsõespara, deste modo, surgir o indivíduo compreendido segundo a
universalidade de pessoa em sua acepção jurídica (Person), isto é,
pessoa com capacidade jurídica, com direitos e deveres. A pessoa,
enquanto capacidade jurídica, é a figura formal do direito que
pertence a um indivíduo. Surge desta noção a igualdade formal entre
os indivíduos. A partir destas ponderações, implica reconhecer que o
conteúdo primeiro da vontade está em consideração com o indivíduo
23
ENC, § 487, p. 282.
28
em sua relação jurídica com outros e que o indivíduo, em sua
finitude, com o conceito de pessoa, se reconhece como infinito,
universal e livre.24
O direito abstrato, ao conceder capacidade jurídica de direitos
e deveres a todos os Indivíduos em uma igualdade formal é obrigado a abstrair de
todos suas particularidades (interesses particulares, impulsos, desejos, pulsões),
pois, neste mundo interno, cada Indivíduo é distinto do outro. É nesse sentido que a
igualdade é formal, pois ela ignora as diferenças e vê a todos de uma mesma forma:
todos, independentemente de suas diferenças, são capazes de direitos e deveres, e
por isso são iguais perante a lei.
Ora, isso já é movimento da Liberdade, pois assim o direito
reconhece que todos, como pessoas, são racionalmente capazes de relacionaremse de modo adequado em suas relações jurídicas. Se o direito foi posto pelos
Indivíduos, seja uma lei, seja um contrato, significa que essas pessoas pretendem
cumprir o que estabeleceram, logo as manifestações interiores de cada um não
deveriam ser relevadas.
Ademais, a obediência à lei é também uma das primeiras
manifestações de superação do plano natural, pois representa um primeiro domínio
interior do Indivíduo. A consciência sabe que possui pulsões e interesses
particulares, mas segue aquilo que é determinado juridicamente, pois sabe que a
construção do direito positivo foi algo posto pela sua vontade livre. Encerrou-se o
capítulo anterior tratando da vontade livre como fundamento do direito positivo.
Portanto, espera-se que o Indivíduo cumpra aquilo que ele mesmo estabeleceu. É
daí que decorre o imperativo formal do direito abstrato: “sê uma pessoa e respeita os
outros como pessoas (sei eine Person und respektiere die anderen als Personen)”. É
nesse viés que se realiza a satisfação das relações jurídicas entre as pessoas no
direito abstrato.
Contudo, a imperfeição existente no direito abstrato é
justamente o fato de esse momento limitar-se a um formalismo legal. Isso pode ser
melhor compreendido ao se acompanhar brevemente o percurso da dinâmica do
24
SOARES, Josemar Sidinei. Consciência de si e Reconhecimento na Fenomenologia do Espírito e
suas implicações na Filosofia do Direito. 314f. 2009. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. p. 153.
29
direito abstrato em seus três momentos constitutivos: a possessão e a propriedade,
na qual a pessoa relaciona-se consigo mesma; o contrato e a alienação da coisa,
em que a pessoa relaciona-se com outra pessoa; o crime ou a in-justiça, que é a
situação conflitual que deflagra a imperfeição.
Possessão e propriedade não são sinônimos. A possessão
está muito mais ligada à manifestação das pulsões e desejos do Indivíduo em se
apropriar de algo. Tal desejo pode ser inclusive em nível biológico, como apropriarse de um alimento. Já a propriedade possui caráter racional diferenciado, pois
representa a vontade livre do Indivíduo em realizar no mundo externo a sua
Liberdade interna. Eu aproprio-me de algo e transformo em minha propriedade
porque ali repousarei o meu ser-aí. Antes de o Indivíduo agir na coisa, essa é
apenas natural, nem justa nem injusta. Ao agir, transformando este dado natural em
um dado elaborado pelo homem, o indivíduo está colocando sua vontade singular na
coisa, transformando-a em propriedade privada. Com isso a propriedade vem a ser
existência concreta da pessoa.
Contudo, a existência da propriedade implica também na
relação necessária com o outro, pois, se eu tenho o direito de ter uma propriedade,
ao mesmo tempo tenho o dever de respeitar o direito de o outro ter a propriedade.
Aqui surge essa intersubjetividade no mundo jurídico, que consiste em uma pessoa
possuir a propriedade privada, mas para ela de fato ser privada, é necessário que os
outros a respeitem como privada. Só há propriedade privada quando o Indivíduo se
abstém de subtrair a propriedade alheia.
Dessa relação intersubjetiva nasce o contrato. Ora, se a
propriedade é minha, eu posso abandoná-la ou mesmo cedê-la a outro. O contrato
então consiste nessa relação jurídica entre duas pessoas que negociam
determinada propriedade privada. Porém, o que deve ser observado aqui é que o
contrato, embora realizado em conjunto, manifesta interesses particulares de ambas
as partes. Cada pactuante aceita o contrato porque vê ali benefícios a ele, e não um
interesse geral que seria de valor a todos.
A
crítica
hegeliana
aqui
é
direcionada
aos
filósofos
contratualistas, sobretudo Rousseau. Um contrato sempre permanece com a
30
vontade particular de cada parte num processo intersubjetivo a vontades particulares
de outros, porém disso aí não se erguer a uma vontade comum entre todos. Com
isso a teoria contratualista está condenada sempre a ser uma teoria atomística, uma
soma de Indivíduos que a partir disso comporiam a sociedade e o Estado como
organismos. Esse entendimento é essencial, pois cumpre a passagem para a parte
final do direito abstrato, que é a in-justiça. Observa-se como Méthais alude a essa
comparação:
Ce qui vicie tout la doctrine du Contrat social, c’est d’être en son fond
un individualisme partrant d’une déduire mécaniquement une
association ou l’Etat se ferait par convention. Dès lors, la théorie
même de l’Etat, centre de toute philosophie politique, et la volontés
générale qui définirait, selon Rousseau, le peuple en corps, ne
parvient jamais à se poser comme substantielle, lês volontés
particulières, quand elles arrivent à fusioner, aboutissant
contradictoirement à s’autodétruire.25
A teoria do contrato social possui a mesma imperfeição que se
presencia em qualquer contrato. Partindo de vontades singulares, que respeitam o
pacto, mas que o estabelecem visando fins particulares, não há como se impedir a
in-justiça ou a quebra do mesmo.
Tanto a fraude a um contrato como o crime que fere uma lei ou
direito positivo somente acontecem quando o Indivíduo passa a ver o direito apenas
em sua aparência, e por isso põe a sua vontade na violação do direito. Esse ato
violento é acima de tudo uma agressão à Liberdade do outro, e que por isso possui
o direito de resistir.
Contudo, o que está em jogo é que a simples existência do
direito e do dever não impede a existência da injustiça. Ou seja, o direito pode
somente regular os aspectos jurídicos e externos entre os Indivíduos, não
possuindo, contudo, força para ingressar na vontade subjetiva da consciência.26
25
MÉTHAIS, Pierre. Contrate et volonté générale selon Hegel et Rousseau. In: D’HONDT, Jacques
(org.). Hegel et le siècle des Lumières. Paris: Presses Universitaires de France, 1974.
26
O direito abstrato não prospera numa sociedade ética porque a coerção não é uma determinação
ética, mas sim um instrumento que priva o desenvolvimento da vontade livre. “Quer dizer, se a
coerção é o elemento essencial do Direito, a vida ética e a liberdade não podem ser pensadas a partir
de um sistema da coerção recíproca universal”. MÜLLER, Marcos Lutz. O Direito Natural de Hegel. In:
ROSENFIELD, Denis (coord.). Estado e Política: a filosofia política de Hegel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003. p. 47.
31
Nada impede que uma parte rompa com o contrato, mesmo sendo isso considerado
anti-jurídico.27 É a finitude do direito, que se vê impotente para controlar os aspectos
morais de cada consciência.
Como o direito abstrato regula apenas formalmente as relações
jurídicas, abstraindo para isso as particularidades subjetivas, não possui condições
de evitar o crime, pois esse nasce de uma decisão interna do Indivíduo em não
considerar mais o direito como essencial para ele, a ponto de poder ser violado.
Conclui-se o direito abstrato como a Instituição que regula as
relações jurídicas na perspectiva da igualdade formal, ignorando as particularidades
subjetivas de cada pessoa. No que tange a relação entre Indivíduo e Instituição, o
direito abstrato medeia a realização da liberdade a partir do momento em que nasce
da superação do plano natural. Por outro lado, o direito pode parecer reduzir a
Liberdade do Indivíduo, pois exprime que ele deve respeitar os outros como
proprietários e pactuantes do direito positivo. Ao fim, é essencial para a Liberdade
pois é nesse respeito que se possibilitam as relações jurídicas, em especial as
contratuais, que movimentam a sociedade civil. No direito abstrato o Indivíduo
aprende a viver sob leis externas, e isso já é Liberdade dos impulsos naturais e
particulares. A imperfeição do direito abstrato está em não poder adentrar a esfera
interior e subjetiva da consciência, o que nos remete ao segundo momento da
Filosofia do Direito: a Moralidade.
2.2 A MORALIDADE
Como resultado, cumpre-se a passagem ao segundo estágio
da dialética da Filosofia do Direito, “refletida sobre si mesma, de modo que tem seu
27
A coerção e o contrato, como Hegel expõe ao final da seção do direito abstrato, não impedem o
surgimento do crime nem das injustiças em geral. Cf. FD, Direito Abstrato, § 104.
32
ser-aí no interior de si, e por isso está determinada ao mesmo tempo como [vontade]
particular – [é] o direito da vontade subjetiva, a moralidade”
28
. A impotência e o
vazio do direito abstrato remetem a vontade livre para dentro de si, para o interior da
consciência de si. A moralidade é o momento onde Hegel discute os aspectos
subjetivos e morais que permeiam a consciência, o Indivíduo é não somente pessoa,
mas também sujeito, isto é, capaz de pensar por si.29 A representação da Liberdade
é retirada da Coisa exterior e trazida para o mundo psíquico e intelectivo.
A moralidade não é uma Instituição, tal como o direito abstrato
e a família, a sociedade civil e o Estado, que serão analisados mais adiante.
Contudo, ela é um elemento fundamental para a relação com as outras Instituições,
pois é a interioridade do Indivíduo que fará dialética com os demais momentos
constitutivos da Filosofia do Direito. É a moralidade que garante o direito de
expressão da subjetividade e da singularidade de cada um, o que é essencial para
se evitar a supremacia das Instituições sobre os Indivíduos.
Hegel trabalha nessa seção discussões sobre a intenção e a
relação dessa com a ação que está por vir a ser praticada.30 Aqui, cada sujeito tem o
seu conceito de bem, o seu “fim último absoluto do mundo, e o dever para o sujeito,
que deve ter o discernimento no bem, é fazer dele a [sua] intenção e produzi-lo por
sua atividade”31. Isso é tão evidente na moralidade que toda ação do Indivíduo é
realizada com a intenção de satisfazer a própria felicidade, e inclusive quando isso
passa por beneficiar o universal, o faz somente como meio, e não fim último.
A satisfação subjetiva do próprio indivíduo (incluindo o apreciar-se a
si mesmo na honra e na glória) está também abrangida nos fins que
são válidos em si e para si; a isso acrescentou o intelecto abstrato a
vã afirmação de que só tais fins são dignos e os fins subjetivos e
objetivos se excluem. Esta convicção torna-se um malefício quando
chega ao ponto de considerar a satisfação subjetiva, só porque ela
existe (o que sempre acontece em qualquer obra que se completa),
com o fim essencial do agente e o fim objetivo como meio que
apenas serviu para isso.32
28
ENC, § 487, p. 282.
FD, Moralidade, § 131.
30
FD, Moralidade, § 132.
31
ENC, § 507, p. 292.
32
“Indem auch die subjektive Befriedigung des Individuums selbst (darunter die Anerkennung seiner in
Ehre und Ruhm) in der Ausführung an und für sich geltender Zwecke enthalten ist, so ist beides: die
Forderung, daß nur ein solcher als gewollt und erreicht erscheine, wie die Ansicht, als ob die
29
33
Ora, essa visão de pura preocupação com os próprios
interesses também desabaria em situação semelhante ao direito abstrato com o
crime e a in-justiça, por exemplo. Em busca dessa satisfação subjetiva, o Indivíduo
cria o seu conceito de Bem, o qual se torna o seu fim último de vida, a ideia que
norteia todas as suas ações.
O Bem é a idéia, enquanto unidade do conceito da vontade e da
vontade particular, - na qual o direito abstrato, assim como o bempróprio, a subjetividade do saber e a contingência do ser-aí exterior
estão suprimidos enquanto subsistentes por si, contudo, ao mesmo
tempo, aí contidos e conservados segundo a sua essência, - a
liberdade realizada, o absoluto fim último do mundo.33
Interessante notar que na ideia de Bem está conservado
inclusive o direito abstrato, pois o Bem está intimamente ligado ao conceito da
vontade. Tudo que o Indivíduo age, ou seja, põe uma vontade sua, é porque aquela
ação lhe representa um bem, ou lhe trará um bem.
O problema é que esta ideia de Bem é limitada e escolhida por
cada sujeito, que o faz tendo em vista suas convicções, opiniões, preferências, etc.
Isso é tão subjetivo que aquilo que um sujeito entende por Bem pode ser o que outro
entende por mal, desabando numa pluralidade de visões contrapostas. Hegel é
enfático ao abordar o problema do completo subjetivismo:
O direito da vontade subjetiva consiste em que aquilo que ela deve
reconhecer como válido seja por ela discernido como bom, e que
uma ação, entendida como o fim que entra na objetividade exterior,
seja a ela imputada como lícita ou ilícita, boa ou má, legal ou ilegal,
segundo o seu conhecimento do valor que a ação tem nessa
objetividade.34
objektiven und die subjektiven Zwecke einander im Wollen ausschließen, eine leere Behauptung des
abstrakten Verstandes”. FD, A intenção, § 124, HW 7, p. 232.
33
“Das Gute ist die Idee, als Einheit des Begriffs des Willens und des besonderen Willens, in welcher
das abstrakte Recht, wie das Wohl und die Subjektivität des Wissens und die Zufälligkeit des
äußerlichen Daseins, als für sich selbständig aufgehoben, damit aber ihrem Wesen nach darin
enthalten und erhalten sind, - die realisierte Freiheit, der absolute Endzweck der Welt”. FD, O Bem e a
certeza moral, § 129, HW 7, p. 243.
34
“Das Recht des subjektiven Willens ist, daß das, was er als gültig anerkennen soll, von ihm als gut
eingesehen werde und daß ihm eine Handlung, als der in die äußerliche Objektivität tretende Zweck,
nach seiner Kenntnis von ihrem Werte, den sie in dieser Objektivität hat, als rechtlich oder unrechtlich,
gut oder böse, gesetzlich oder ungesetzlich zugerechnet werde”. FD, O Bem e a certeza moral, § 132,
HW 7, p. 245.
34
Portanto, na moralidade cada Indivíduo consegue inclusive
classificar aquilo que ele entende por lícito ou ilícito, bom ou mal, legal ou ilegal. Ora,
esse completo relativismo denuncia a própria limitação da moralidade puramente
subjetiva. Se o Bem, a ideia mais importante da moralidade, não consegue dissiparse do mal, pois ambos decorrem do mesmo princípio: a preferência do sujeito, como
de fato poderia a moralidade erguer-se a uma verdadeira Liberdade? Do modo como
é constituída ela inclusive é incapaz de evitar a existência do crime no direito
abstrato, pois nada impede que o sujeito veja a lei como má, e a sua ação como
boa.
Contudo, o que se conserva de importante no estudo da
moralidade para a presente pesquisa, que é estudar a relação entre Indivíduo e as
Instituições na Filosofia do Direito de Hegel? Na moralidade todo sujeito age não
tendo em vista a lei externa ou o contrato externo, como ocorria no direito abstrato,
mas conforme uma certeza moral interior, ele age porque vê naquela ação um Bem.
O limite da moralidade é esse contraste, e o momento em que
a consciência transcende a sua vontade livre, posta no “meu” querer, e a coloca num
dever-ser, encontra-se a eticidade.35 Ou seja, o Indivíduo precisa seguir agindo
tendo em vista o Bem que está dentro dele como certeza moral, contudo, esse Bem
precisa deixar de ser um Bem subjetivo, apenas limitado às suas preferências, para
se tornar um Bem universal, um Bem vivo conforme a ideia de eticidade, tema do
terceiro momento da Filosofia do Direito.
Por fim, a Moralidade deixa um legado precioso: o direito de o
Indivíduo agir conforme aquilo que ele entende como correto internamente. Sem
esse dado relevante, como contestar as leis quando injustas? Como contestar o
governante quando corrupto? A moralidade é a garantia da subjetividade de lutar
contra uma possível objetividade que não realize a Liberdade de todos. E essa
Liberdade realizada se dá na esfera da eticidade.
35
FD, Moralidade, § 142.
35
2.3 A ETICIDADE
A eticidade é o terceiro momento da Filosofia do Direito, é a
“vontade substancial enquanto efetividade, conforme ao seu conceito, no sujeito e
totalidade da necessidade – [é] a eticidade, na família, na sociedade civil e no
Estado”
36
. A eticidade, em breves palavras introdutórias, situa-se no momento em
que a consciência de si transcendeu tanto a formalidade vazia do direito abstrato
como a intencionalidade apenas subjetiva da moralidade, e por isso é considerada o
reino da Liberdade realizada. Contudo, deve-se entender essas passagens não
como negações aniquiladoras, em que o momento anterior simplesmente deixou de
existir, mas como superação, isto é, um movimento racional e efetivo que trouxe
para dentro de si aquelas determinações, mas agora atualizadas num plano mais
elevado. Em outras palavras, a eticidade contém tanto o mundo jurídico do direito
abstrato como a compreensão da existência de um mundo interior e subjetivo na
moral de cada Indivíduo. E a conversão de todo esse universo para um mundo livre
é justamente a sua atividade; a atividade da vontade livre, “é a plena realização do
espírito objetivo, a verdade do espírito subjetivo e do espírito objetivo mesmos”.
Qualquer discussão acerca do mundo ético hegeliano deve
prescindir da leitura de seu conceito logo no § 142 da Filosofia do Direito:
A Eticidade é a Idéia de Liberdade enquanto Bem Vivo, que tem o
seu saber e o seu querer na consciência de si, e que se torna
realidade efetiva mediante o agir da consciência de si. Esta ação tem
o seu fundamento em si e para si e sua finalidade motora no ser
ético. A Eticidade é onde a Idéia de Liberdade se torna presente no
mundo e natureza da consciência de si.37
Nessas linhas está todo o movimento dialético da Filosofia do
Direito. A Eticidade é a realização da Ideia de Liberdade justamente por ser um Bem
36
HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft
im Grundrisse. Tradução livre. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982 (Werke in zwanzig Bänden 7). §
142, p. 292.
37
HEGEL, G. W. F. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft
im Grundrisse, § 143, p. 293.
36
Vivo, não é o bem da moralidade, concebido apenas em si, e vinculado a aspectos
subjetivos e psicológicos de cada Indivíduo, sujeitos às mais variadas deturpações
provocadas pela consciência; é um Bem Vivo justamente porque nasce de um
movimento dialético, existencial, presente no mundo. Para Hegel, o movimento de
autodeterminação do conceito é chamado de infinitude, e a infinitude é o que
constitui o movimento da Vida. A eticidade, portanto, nasce e se desenvolve pela
reflexão racional e viva dos Indivíduos, não deste ou aquele, mas de todos eles. É
um pensamento universal que se torna realidade com a ação prática no mundo
dado, que transformado conforme a vontade livre da consciência de si, torna-se a
verdadeira natureza dessa. O resultado da eticidade, a finalidade de sua construção
é o ser ético. A eticidade não é o mundo jurídico, nem o mundo moral, mas o mundo
ético, surgido da vontade racional e livre dos Indivíduos, do seu saber e do seu
querer. O saber é a apreensão conceitual, é o entendimento do mundo interno e
externo construído a partir das reflexões dialéticas; já o querer é a vontade posta no
mundo a partir destes entendimentos. A combinação entre o saber efetivo e a
vontade livre constitui essa construção viva que é o mundo ético. As Instituições e as
leis que estão contidas no mundo ético, portanto, jamais podem ser entendidas
como coerção estatal, limitação do livre-arbítrio, mas como vontades livres postas no
mundo, se aquelas Instituições e aquelas leis existem, é porque foram postas pelos
Indivíduos. “A substância que se sabe livre, em que o dever-ser absoluto é
igualmente ser, tem efetividade como espírito de um povo” 38.
O mundo ético tem a representação da sua objetividade,
externamente, nas Instituições e nas leis, e “este conteúdo é para si necessário, e
ergue-se acima das opiniões e preferências subjetivas: onde as leis e as instituições
existentes são em si e para si”. Para a consciência em geral viver com essas regras
é o momento de Liberdade, e segui-las constitui um dever ético, tendo em vista que
esse dever não é posto por um outro, mas uma condição interna da consciência de
si, porque a substância ética, isto é, a essência que permeia o mundo ético, que
condiciona a existência efetiva das Instituições e leis não é um dado externo, mas
sempre interno a cada Indivíduo, tendo em vista que ela só existe porque eles a
criaram. A substância ética não é um dado imediato, a priori, mas construção livre
dos Indivíduos, postos pelo seu querer e saber.
38
ENC, § 514, p. 295.
37
As determinações da vontade só adquirem autonomia pelo seu
movimento de realização efetiva. O caráter imediato das leis e
poderes éticos torna-se, então, a expressão do movimento ideal pelo
qual a substância aparece a si na imediação do ser, compreendendose melhor a afirmação de que a autoridade ética é mais firme do que
a autoridade da natureza. Com efeito, o homem deve conformar-se
tanto às leis de uma com às de outra para poder recolher os seus
frutos, mas a sua diferença reside em que a primeira é portadora de
um processo de mediação política que faz com que seja o que ela
é.39
Esse movimento consiste na superação do plano natural. Não
há Liberdade em se viver dependente dos ciclos da Natureza, e também não há
transformação do mundo nem a si mesmo. Superar esse plano exige a relação
intersubjetiva com o outro, exige o aprimoramento de relações sociais, jurídicas,
econômicas, etc.
Na substancialidade ética o homem vive conforme uma
segunda natureza, pois as leis e Instituições criadas por ele se tornam internas ao
sujeito, como se integrasse sua própria natureza. O dever ético de viver nessas
normas não é estrangeiro, como se coagisse o Indivíduo a viver desse modo, mas
algo interno a eles, querido e sabido por eles.
As leis e instituições tornaram-se determinações substanciais, sendo
que a relação do indivíduo com estas determinações substanciais, a
sua atitude, determina-se pelo dever ético (Pflicht). O indivíduo debe
obedecer a essas leis e instituições, pois elas expressam o seu ser
substancial. Logo, quando Hegel utiliza a noção de relação
(Verhältnis) para caracterizar a atitude dos indivíduos em relação aos
deveres, ela deve ser relacionada não com a noção do dever-ser
(Sollen) mas com a noção de substância (Substanz).40
Com isso o indivíduo internaliza as leis e Instituições como seu
ser ético, o qual para ele se torna um dever-ético obedecer. A noção de dever-ético
em Hegel significa que não se trata de qualquer dever, mas somente daqueles
examinados livremente e incorporados pelos Indivíduos. O Indivíduo se vê nas
Instituições, é o seu reflexo, de modo que a partir do momento que aquelas não
mais conferirem essa condição, ele pode ou inclusive deve dizer ‘não’ a elas. Aqui
se situa o valor da moralidade para a dialética com as Instituições, por exemplo, a
39
40
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 147
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 148
38
capacidade de examinar se aquela estrutura externa condiz com a minha vontade
livre.
O envolvimento do Indivíduo com as leis e Instituições éticas
implica em nova passagem, da pessoa do direito abstrato e do sujeito moral ao
membro de uma comunidade. O dado central aqui é que para construir leis e
Instituições comuns a serem obedecidas como dever-ético, é necessário que haja
um processo de reconhecimento entre os Indivíduos.
[...] a consciência eleva-se a uma nova apreensão de si graças à
relação mediada que estabelece com outrem. Além do mais, a sua
verdadeira existência efetua-se somente por meio desse movimento
de reconhecimento. Uma nova relação entre o indivíduo e a
comunidade está “posta”, de tal modo que a negatividade inscrita nas
relações entre os indivíduos, ou entre estes e os costumes vigentes,
ou ainda entre as leis e os costumes, consiste em uma relação de
reconhecimento que eleva o indivíduo à consciência de si como
membro de uma comunidade. Logo, a liberdade é o processo de
efetuação das suas próprias determinações, inclusive daquelas que
implicam a dissolução dos indivíduos na vida comunitária ou, de
modo inverso, a resolução dos conflitos comunitários da vida ética
dos indivíduos. O indivíduo adquire uma nova posição – expressão
de si e de outrem – em um movimento de reconhecimento recíproco
que medeia a substancialidade ética.41
Logo, o essencial é que o Indivíduo se reconheça nos outros,
nos costumes, nas leis e nas Instituições. É ests processo de reconhecimento que
torna possível todos obedecerem às leis e Instituições sem violarem a própria
interioridade. É por isso que se costuma dizer que a obediência às instituições em
Hegel não é estrangeira como aquela em Hobbes, por exemplo.
A ideia dos costumes também implica em fator temporal, pois
os costumes modificam-se conforme a vontade livre dos Indivíduos e comunidades,
a tal ponto que em duas épocas se veem costumes completamente distintos ou
mesmo em duas comunidades na mesma época. Com isso, Hegel sinaliza que não
defende este tipo de lei ou aquele sistema jurídico, todos são válidos desde que
nasçam da vontade livre dos Indivíduos de uma comunidade emanada nos
costumes.
41
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 150.
39
Por fim, é importante frisar que a passagem do Indivíduo em
membro de uma comunidade não se trata, para Hegel, de supressão da Liberdade
individual, mas apenas do livre-arbítrio. O individual supera a simples tendência de
seguir apenas as pulsões naturais para viver dentro de leis e Instituições éticas.
Trata-se de domínio de si mesmo. É o próprio indivíduo que se reconhece como
membro de uma comunidade e atualiza-se para essa condição, e não uma aceitação
da perda da Liberdade, como defendia Rousseau, por exemplo.
Nessa lógica manifesta-se o reino da eticidade, agora é
importante analisar suas três mais importantes Instituições. A substância ética, como
ponto central da dialética da eticidade, constitui-se de três momentos: a família, a
sociedade civil, e o Estado.
CAPÍTULO 3
AS INSTITUIÇÕES NA ETICIDADE: FAMÍLIA, SOCIEDADE
CIVIL E ESTADO
3.1 A FAMÍLIA
Assim como Aristóteles o faz em sua Política, Hegel concebe a
família como a primeira manifestação do Estado, é o primeiro corpo, natural e
imediato. Tanto o Estado hegeliano como a polis aristotélica partem desse
pressuposto.
Na família está presente a universalidade natural, o ser-aí
substancial, mas elevado a uma determinação espiritual. Constitui-se, ainda, numa
relação ética, porque duas singularidades se unem numa só pessoa por meio do
amor, que forma o matrimônio.
O matrimônio possui importante função de cultivo da
substancialidade ética em Hegel, pois é o primeiro momento em que duas
consciências liberam-se de suas personalidades naturais e singulares para uniremse em totalidade numa só pessoa. De fato é necessário um processo de
reconhecimento recíproco entre ambos. Por isso se diz que a família é a base
natural da eticidade em Hegel, pois é esse reconhecimento no Outro que será
primordial para o espírito ético também na sociedade civil e no Estado. Por isso
Hegel concebe o matrimônio não como mera formalidade, mas como dever ético,
que sustenta a eticidade imediata.
Está posta a universalidade de singularidades, e essa
universalidade passa a ser vista também como singularidade pelas demais unidades
familiares. “A propriedade da família como uma só pessoa [...] recebem um interesse
41
ético, por meio da comunidade, em relação à qual estão igualmente os diversos
indivíduos que constituem a família”42.
A unidade familiar se relaciona com as outras unidades
familiares por meio do patrimônio, que é a riqueza familiar que permite o consumo
de bens pelos integrantes familiares bem como o relacionamento com outras
famílias.
A família não é, então, uma soma de individualidades mas uma
relação orgânica em que cada cumpre uma função determinada,
sendo a mais importante a que provém do papel do chefe da família,
cujo trabalho de providência econômica, de aquisição de bens, de
representação exterior da unidade familiar, em suma, de
individualização do ser ético visa ao bem-estar e à organização
interna desta pessoa substancial. [...] Cada membro tem o direito de
dispor de uma parte dos bens comunitários sob a condição de que
não se trate de uma apropriação individual, pois o patrimônio familiar
é o bem de todos.43
O pai é o chefe da família porque ele é quem vai ao mundo
externo e conquista a riqueza que será usufruída por todo o organismo familiar.
Contudo, o pai não é o chefe autoritário, de tal forma que os demais membros
também participam ativamente da riqueza familiar. O papel do pai como chefe de
família é apenas um papel quase meritocrático, já que ele é quem adquire a maior
parte da riqueza.
Também não se pode deixar de ignorar que a família analisada
por Hegel é a família da Idade Moderna, na qual o pai era voltado ao mundo externo,
ao trabalho na sociedade civil, enquanto a esposa dedicava-se, sobretudo, ao lar.
Nota-se que Hegel busca formular na família uma verdadeira
base natural para a sua ideia de eticidade. A família como totalidade orgânica, na
qual cada membro cumpre sua função e assim usufrui do todo, é a visão organicista
que Hegel pretende empreender em sua ideia de Estado. Logo, o que aparece junto
desse movimento da Instituição da família é que ela é acima de tudo preparação
para as demais Instituições.
42
43
ENC, § 520, p. 297.
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 159
42
Isto se torna mais claro quando analisado o terceiro momento
da família, que é também o da sua dissolução: aquilo que Hegel chama de segundo
nascimento dos filhos, “na educação que faz deles pessoas autônomas” 44. O grande
sentido existencial da família, então, é a formação ética dos filhos, isto é, prepará-los
para serem autônomos na vida pública. E esse dever ético é também ao mesmo
tempo o momento da dissolução familiar, quando o jovem retira-se do antigo
convívio e decide adentrar a sociedade civil. Com esse movimento, os singulares
vem a ser para si, passam a viver conforme suas vontades próprias, e não
ancorados na estrutura familiar. Esse movimento de dissolução, contudo,
posteriormente virá a ser também responsável pela perpetuação da Instituição
familiar, pois os mesmos singulares que agora se encontram autônomos no seio da
sociedade civil se unirão a outrem, formando novas famílias.
Logo se vê que Hegel entende a família como um momento
educacional, de formação humana, um estágio onde se requer o preparo ético dos
filhos tendo como finalidade a vida civil. Não é um formar para dentro, mas para fora
da Instituição familiar. Na estrutura ética do Estado, Hegel não concebe a família
como fim, mas como meio necessário a consecução desses fins. Na Fenomenologia
do Espírito, Hegel já analisara a família grega, explicando que sua ideia geral era
justamente a preparação de singulares para a Cidade. A família contribuía com a
Cidade preparando tanto os Indivíduos que a sustentarão na vida pública, como
aqueles que defenderão sua manutenção em tempos de guerra. É esse espírito
basilar que Hegel aspira trazer para a família moderna, não um sentido finalista,
central na sociedade, mas uma parte importante de sua constituição. Na família
formam-se muitos dos Indivíduos que representarão a vida pública no Estado, até
porque a família é justamente o primeiro momento, imediato e natural, do Estado.
Esse movimento de dissolução é realizado pelos filhos, pois
esses, diferentemente dos pais, não escolheram integrar aquela família, eles
simplesmente nasceram nela, de modo que a ação de retirar-se da Instituição
familiar é acima de tudo movimento de realização da Liberdade.
Diferentemente dos pais, a criança não se encontra na família por
uma vontade livre, ou ética, por um reconhecimento. O desejo de
44
ENC, § 521, P. 298.
43
negar esta instituição, de ver-se compelido a formar sua própria
família, é acima de tudo uma atividade reflexiva, negadora. Num
primeiro momento parecer-se-ia que a ação negadora de
suprassumir a família supera a substância ética da comunidade. No
entanto, o que se verá depois é que tal ação representa o
nascimento de uma nova relação ética, por um duplo motivo:
primeiro, porque a negação da família objetiva a criação de uma
nova família, o jovem abandona seu antigo lar para erguer sua
própria morada, através do reconhecimento de outro indivíduo,
donde, não será um simples ser educado e mantido materialmente
pelos pais, mas sim o verdadeiro chefe de família, o responsável
direto pelos interesses comunitários.45
O filho deseja construir suas próprias relações éticas, mas para
isso antes deve buscar sua própria autonomia. É notável o fato de Hegel ver na ação
negadora da família um movimento essencial para a realização da ideia de
Liberdade. O movimento do filho é manifestação lógica da dialética hegeliana. O
Indivíduo nasce numa Instituição que não escolheu. O ato de negação é o desejo
vivo de mediatizar o que antes era tão-somente uma imediaticidade natural. O filho
precisa efetivar a própria história, do contrário não pode se tornar partícipe do todo
no Estado, não pode contribuir no seio da substancialidade ética. O filho, então,
precisa sair do ambiente familiar e aventurar-se sozinho na sociedade civil.
O resultado da dissolução familiar é o ingresso do Indivíduo na
sociedade civil46. É a passagem da vida universal para vida singular, na sociedade
civil o Indivíduo não é membro da comunidade familiar, mas um particular em
relações especialmente jurídicas e econômicas com os demais.
45
SOARES, Josemar Sidinei. Consciência de si e Reconhecimento na Fenomenologia do Espírito e
suas implicações na Filosofia do Direito, p. 209
46
Em Estado, Governo, Sociedade, Bobbio delineia várias acepções acerca de sociedade civil,
relacionando o uso primordial do termo às famosas conotações trazidas por Hegel e Marx. Cf.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. 12. ed. Tradução
de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
44
3.2 A SOCIEDADE CIVIL
A sociedade civil é o momento do Espírito Objetivo em que a
singularidade cria a sua Liberdade dentro da universalidade efetiva do Estado. A
ideia de sociedade civil, ademais, é produto histórico, vindo a nascer somente com o
mundo moderno, com aqueles agentes econômicos e livres que passaram a
prosperar nos burgos. A expressão original empregada por Hegel, bürgerliche
Gesellschaft, pode ser traduzida tanto como sociedade civil como sociedade civilburguesa. Hegel afirma que no somente moderno a Liberdade econômica alcança
sua plena existência, isto é, o direito do Indivíduo poder prosperar por si só, sem a
necessidade de objetivar, antes e sobre qualquer outra intenção, um bem comum.
Na sociedade civil, cada particularidade alarga-se ao extremo, atualizando o sistema
ético num modelo atomístico, no qual cada Indivíduo vive somente para si, guiado
por interesses egoísticos buscando apenas o próprio lucro. É o momento que se
busca, inclusive, negar a substancialidade ética.
Dessa maneira, a substância vem a ser apenas uma conexão
universal, mediatizante, de extremos autônomos e de seus
interesses particulares; a totalidade, desenvolvida em si mesma,
dessa conexão é o Estado enquanto sociedade civil, ou enquanto
Estado exterior.47
Essa relação somente de conexão entre os Indivíduos é
entendida por Hegel como sistema das necessidades (Bedürfnisse). Na sociedade
civil o Indivíduo anseia realizar todas as suas necessidades, que variam desde os
instintos biológicos até o usufruir de prazeres estéticos. Porém, para alcançar essas
necessidades, deverá, necessariamente, relacionar-se com outros Indivíduos.
O resultado disSo é que, por mais que o princípio da sociedade
civil seja a particularidade, todos dependem-se reciprocamente. Para obter
determinado produto ou serviço, depende do comércio ou produção do outro, e
assim por diante, logo todos os cidadãos estão relacionados entre si na riqueza
geral da nação. No mundo industrial, onde cada vez mais proeminente é a divisão
do trabalho, mesmo os interesses egoístas somente podem ser satisfeitos através
47
ENC, § 523, p. 298.
45
do trabalho do outro. “A possibilidade da satisfação delas põe-se aqui na conexão
social que é a riqueza universal, da qual todos obtêm sua satisfação”
48
. Resulta
disso que, por mais que na sociedade civil as singularidades existam para
prioritariamente satisfazer suas necessidades, a universalidade está presente, como
o sistema que regula todas as relações econômicas entre os particulares.
Com isSo surge uma relação intersubjetiva que liga a todos os
Indivíduos envolvidos na sociedade civil, a interdependência econômica. Esse
processo é também a superação do plano natural de relações. O animal nasce em
um círculo restrito de possibilidades, já o homem, ao relacionar-se com outro, amplia
suas possibilidades de satisfação das necessidades. Surge, assim, que a atividade
econômica forma o homem, pois por forçá-lo a se relacionar com os outros,
potencializa as possibilidades de satisfação pessoal. Por isso a atividade econômica
forma o homem no sentido de que a relação com os demais propicia o
desenvolvimento tanto coletivo como singular.
Fator essencial para esta formação pela atividade econômica é
o trabalho. O trabalho já foi analisado por Hegel na Fenomenologia do Espírito como
o momento em que a consciência serva alcança a liberdade ao trabalhar e
transformar o mundo. Naquela obra se trabalha a essência de toda a atividade
laboral, é atemporal. Já na Filosofia do Direito o trabalho que se analisa é acima de
tudo atividade profissional, econômica, que se manifesta na sociedade civil. O
trabalho da Fenomenologia, porém, está mantido e presente no trabalho da Filosofia
do Direito. Observa-se o processo formado do trabalho dentro do sistema das
necessidades:
Em contato com a multiplicidade das determinações e dos objetos
que despertam interesse desenvolve-se a formação teórica, não só
uma multiplicidade de representações e conhecimentos, mas,
também, uma mobilidade e uma rapidez do representar e do passar
de uma representação a outra, o captar relações intrincadas e
universais etc., - a formação do entendimento em geral, por
conseguinte, também, a da linguagem. – A formação prática pelo
trabalho consiste na carência que se gera a si mesma e no hábito da
ocupação em geral, depois, na restrição do seu fazer, em parte
segundo a natureza do material, em parte, sobretudo, segundo o
48
ENC, § 524, p. 298-9.
46
arbítrio dos outros, e num hábito, que se adquire por essa disciplina,
de atividade objetiva e de habilidades universalmente válidas.49
Logo, pelo trabalho, o Indivíduo forma-se tanto teoricamente
quanto na prática. Forma-se teoricamente na aquisição de conhecimentos e
habilidades provindas da própria ocupação, e na prática ao fazer o produto em si.
Rosenfield analisa a formação interna que se faz no indivíduo pelo trabalho:
O homem, representando-se subjetivamente as relações de trabalho
criadas, desenolve novas capacidades de assimilação das técnicas
produzidas, tornando-se simultaneamente consciente de que estas
relações de trabalho são móveis, novas e determinadas. [...] O ato
individual de produção de um objeto torna-se o momento através do
qual a natureza interioriza-se no processo de trabalho e o homem se
faz objetivo e real, na transformação prática do mundo.50
Outro fator importantíssimo levantado por Hegel é que no
sistema das necessidades a tendência é que os Indivíduos queiram cada vez mais
satisfazer novas necessidades, que iriam desde o consumismo através de instintos
biológicos até o fenômeno do luxo. Essa variabilidade de produtos exige que o
mundo do trabalho priorize a especialização, de modo que um Indivíduo torna-se
bastante apto naquela única atividade que realiza. Tal movimento intensifica ainda
mais a interdependência econômica entre todos na sociedade civil.
Desse desenvolvimento surge uma crítica surpreendente de
Hegel. O filósofo já alertara que esta excessiva especialização no trabalho acabaria
por reduzir o mesmo à mera atividade mecânica, na qual o homem se tornaria
apenas uma peça, facilmente substituível. Com isso o trabalho deixa de ser ato
criativo e de transformação do mundo para se tornar algo apenas mecânico.
49
“An der Mannigfaltigkeit der interessierenden Bestimmungen und Gegenstände entwicklelt sich die
theorestiche Bildung, nicht nur eine Mannigfaltigkeit von Vorstellungen und Kenntnissen, sondern
auch eine Beweglichkeit und Schnelligkeit des Vorstelens und des Übergehens von einer Vorstellung
zur anderen, das Fassen verwickelter und allgemeiner Beziehungen usf. – die Bildung des Verstandes
überhaupt, damit auch der Sprache. – Die praktische Bildung durch die Arbeit besteht in dem sich
erzeugenden Bedürfnis und der Gewonheit der Beschäftigung überhaupt, dann der Beschränkung
seines Tuns teils nach der Natur des Materials, teils aber vornehmlich nach der Willkür anderer, und
einer durch diese Zucht sich erwerbenden Gewohnheit objektiver Tätigkeit und allgemeingültiger
Geschicklichkeiten”. FD, O trabalho, § 197, HW 7, p. 352.
50
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 179.
47
Além da interdependência econômica no mundo profissional,
os Indivíduos também estão ligados na riqueza universal, pertencente à nação, na
qual todos contribuem em alguma parte com os seus trabalhos, e neste ponto os
particulares estão intersubjetivamente unidos.
Nessa dependência e reciprocidade do trabalho e da satisfação das
necessidades, o egoísmo subjetivo se transforma em contribuição
para a satisfação das necessidades de todos os outros. O egoísmo
se transforma, isto é, na mediação do particular operada pelo
universal enquanto movimento dialético: nesse sentido, ganhando,
produzindo e gozando por si, exatamente por isso qualquer um
produz e ganha para o gozo dos outros.51
Ou seja, ao desejar satisfazer apenas o próprio egoísmo
subjetivo o Indivíduo contribui com os outros em suas satisfações. É de certa forma
notável que o egoísmo possa ser mediação do particular operada pelo universal
enquanto movimento dialético. A sociedade civil realiza o universal alargando ao
máximo a particularidade. A contribuição de todos entre si constrói aquilo que se
entende por riqueza universal.
Não obstante isso, o trabalho e os interesses buscados são
realizados visando-se os próprios interesses. Como consequência dessa situação
ocorre a dialética da moderna sociedade industrial, na chamada oposição de
classes. A sociedade civil, em seu escopo de acúmulo de lucro, se vê ineficaz para
impedir o aumento das desigualdades sociais, logo, enquanto alguns enriquecerão
graças ao trabalho executado, outros serão invariavelmente reduzidos à pobreza.
Sendo assim, os interesses públicos somente podem ser controlados eficazmente
por uma instituição que se guie por interesses públicos, eis a figura do Estado.
Tal movimento é analisado por Hegel como algo natural, uma
vez que os Indivíduos possuem habilidades diferenciadas em suas atividades
econômicas. Assim, não há como todos obterem a mesma quantidade de riqueza. A
sociedade civil, apesar de realizar o universal, segue sendo competitividade e
egoísmo na busca pela satisfação das próprias necessidades, de modo que não se
51
“In dieser Abhãngigkeit und Gegenseitigkeit der Arbeit und der Befriedigung der Bedürfnisse schlägt
die subjektive Selbstsucht in den Beitrag zur Befriedigung der bedürfnisse aller anderen um, - in die
Vermittlung des Besonderen durch das Allgemeine als dialektische Bewegung, so daβ, indem jeder
für sich erwirbt, produziert und genießt, er eben damir für den Genuß der übrigen produziert und
erwirbt”. FD, A riqueza, § 199, HW 7, p. 353.
48
pode esperar que todos cresçam na mesma proporção. A sociedade civil oportuniza
certa Liberdade de espaço para o crescimento econômico, mas a partir daí é
priorizada a evolução de cada Indivíduo.
De qualquer forma as desigualdades sociais não podem ser
incentivadas ou ignoradas pelo universal. Se excessivas, a própria totalidade ética é
posta em perigo, pois aqueles considerados mais pobres em algum momento se
revoltarão contra os demais. Controlar os interesses universais é função da última
instituição da eticidade: o Estado.
3.3 O ESTADO
Os parágrafos 257 e 258 da Filosofia do Direito concentram já
as linhas gerais de toda a discussão posterior. No § 257 articula-se o Estado como
vontade substancial, manifesta, “que se pensa e se sabe e realiza plenamente o que
ele sabe e na medida em que o sabe”52, e por isso é a realidade efetiva da Ideia
ética. Ora, a repetição de palavras é enfática, o Estado é a instituição que sabe a si
mesma, e na medida em que o sabe, porque o Estado, antes de ser Instituição, é
consciência de si, é Indivíduo. Hegel lança ao Estado o olhar não para um órgão
afastado e singular, mas para um organismo formado por indivíduos, que o
efetivaram conforme suas vontades. Se o Estado se sabe na medida em que o sabe,
isto se deve a contingências históricas, pois cada povo realizará o Estado de acordo
com suas disposições espirituais. Se para Platão o Estado deveria ser o reflexo da
alma, em Hegel ele é, efetivamente, o reflexo da formação espiritual de cada povo.
Não há contraposição entre indivíduo e Estado, se esta instituição não se mobiliza,
ou age por injustiça, significa que o problema central não está nele, mas nas
consciências que o criou, porque o Estado é produto efetivo da vontade livre
daqueles indivíduos. “Quando os indivíduos comportam-se em relação ao Estado
como se ele fosse uma substância inerte e fixa, abre-se um período de degradação
52
FD, § 257, p. 25.
49
da livre organização social”
53
. Não basta culpar o Estado, é preciso responsabilizar-
se como protagonista nesse cenário, se as atividades públicas e universais não são
executadas coerentemente, é não somente direito, mas dever do cidadão perfazer o
movimento lógico que articulou o Estado, remodelando-o ao reflexo de sua vontade
livre. “O exercício do direito, a atividade do pensamento e o pensar do cidadão
perfazem e desenvolvem o conceito do Estado. [...] Dizer não ao ser-aí histórico do
Estado significa que os indivíduos agem de acordo com o seu conceito” 54.
Depois, o § 260 apresenta o Estado como a mais elevada das
instituições da Filosofia do Direito de Hegel:
O Estado é a realização efetiva da liberdade concreta; mas a
liberdade concreta consiste em que a singularidade pessoal e os
seus interesses particulares tanto tenham o seu desenvolvimento
completo e o reconhecimento do seu direito para si (no sistema da
família e da sociedade civil-burguesa), quanto, em parte passem por
si mesmos ao interesse do universal, em parte reconheçam-no, com
saber e vontade, como o seu espírito substancial, e sejam ativos a
favor do universal como seu fim-último, e isso de tal maneira que
nem o universal valha e possa ser consumado sem o interesse, o
saber e o querer particulares, nem os indivíduos vivam apenas para
estes como pessoas privadas, sem querê-los, simultaneamente, no
universal e para o universal e sem que tenham uma atividade eficaz
consciente desse fim.55
Nota-se que o Estado hegeliano de forma alguma pode ser
entendido como opressor ao indivíduo, pois o filósofo afirma claramente nesse
parágrafo que a realização do universal não é suficiente se antes os indivíduos não
satisfazerem suas vontades próprias na família e na sociedade civil.
Ademais, é essencial que os indivíduos se reconheçam no
Estado como espírito substancial e sejam ativos a favor do universal como seu fim53
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 222.
ROSENFIELD, Denis. Política e Liberdade em Hegel, p. 222-223.
55
“Der Staat ist die Wirklichkeit der konkreten Freiheit; die konkrete Freiheit aber besteht darin, daß
die persönliche Einzelheit und deren besondere Interessen sowohl ihre vollständige Entwicklung und
die Anerkennung ihres Rechts für sich (im Systeme der Familie und der bürgerlichen Gesellschaft)
haben, als sie durch sich selbst in das Interesse des Allgemeinen teils übergehen, teils mit Wissen
und Willen dasselbe [,] und zwar als ihren eigenen substantiellen Geist anerkennen und für dasselbe
als ihren Endzweck tätig sind, so daß weder das Allgemeine ohne das besondere Interesse, Wissen
und Wollen gelte und vollbracht werde, noch [[daß]] die Individuen bloß für das letztere als
Privatpersonen leben, und nicht zugleich in und für das Allgemeine wollen und eine dieses Zwecks
bewußte Wirksamkeit haben”. FD, O Estado, § 260, HW 7, p. 406-7.
54
50
último. Com isso Hegel afirma que são os indivíduos que devem cultivar a
consciência de realizar como finalidade última o universal.
Diante destas considerações, compreende-se como o Estado
hegeliano é o desenvolvimento do Estado moderno. O Estado antigo, sobretudo
aquele tão discutido e refletido nas obras políticas e éticas de Platão e Aristóteles,
era um Estado que possuía o universal e o bem comum como finalidades últimas
indiscutíveis, a tal ponto que o indivíduo já nascia e se via como cidadão da polis, e
ali residia sua felicidade. Por outro lado, o Estado moderno viu nascer o sujeito
burguês, o capitalismo, e inclusive antes o conceito de pessoa e sua realidade ligada
à propriedade privada no direito romano e a fé cristã, que relativiza o Estado terreno
tendo em vista a Cidade de Deus, como defendia Santo Agostinho, por exemplo.
Todos estes novos fenômenos abrem portas a uma dimensão
interior e subjetiva do indivíduo, que já não se satisfaz em viver apenas para o
universal. Cada sujeito deseja realizar a si próprio também. Assim, o Estado
hegeliano é a instituição que pretende, sem excluir esta nova realidade, sem oprimir
o direito do indivíduo realizar-se em sua subjetividade, que ele também busque a
realização do universal.
O Estado, como se vê, é o fim absoluto da filosofia política
hegeliana, mas não o Estado somente como instituição, mas como Ideia realizada,
livre manifestação do conceito, e isto exige a fundamental participação consciente
de si dos indivíduos.
O Estado, como realidade efetiva da vontade substancial, realidade
efetiva que ele tem na autoconsciência particular erguida à
universalidade do Estado, é o racional em si e por si. Esta unidade
substancial é auto-fim absoluto, “imoto”, no qual a liberdade chega ao
seu supremo direito, assim como este fim-último tem o direito
supremo em face dos singulares, cujo dever supremo é o de ser
membro do Estado.56
O Estado hegeliano não é um Leviatã, não é um ser externo e
oposto ao indivíduo, e por isso os singulares possuem o dever supremo de serem
membros do Estado. Ser membro do Estado não significa simplesmente participar
56
FD, § 258, p. 25-26.
51
dele, mas viver efetivamente a sua realidade, inclusive modificá-la quando pensar
necessário. Hegel opõe-se aos contratualistas, não há um contrato social entre
indivíduo e Estado, estabelecendo o surgimento deste; enquanto existir sociedade,
existe o Estado. O surgimento do Estado hegeliano deve ser entendido não como
movimento histórico, mas lógico, isto é, uma sucessão de momentos e figuras que
resultam na efetivação de um Estado que seja, de fato, o reflexo espiritual da
vontade livre dos Indivíduos conscientes de si, e que por isso ele pode ser
representado como momento absoluto da realização da Liberdade substancial.
Hegel apresenta o Estado que se sabe como Estado, ou seja, um movimento
consciente de si, uma determinação racional.
As leis, que também poderiam vir a ser objeto de coerção
estatal para com os indivíduos, em Hegel exprimem as “determinações-de-conteúdo
da liberdade objetiva”
57
, porque são obras universais, iniciadas pelos particulares,
porque as leis são a “substância de seu querer, que aí é livre, e de sua disposição; e
assim são expostas como costumes [ethos] vigentes”
58
. Ou seja, as leis não são
manifestações singulares de um ou outro Indivíduo que por contingência se encontra
no poder público, mas a positivação dos costumes em códigos. Ademais, deve-se
advertir que se Hegel é contrário à ideia de uma imposição superior legislativa,
tampouco corrobora com o chamado direito consuetudinário59, pois os costumes, se
não devidamente positivados, e abertos publicamente ao interesse de todos os
particulares, podem transformar as leis em um conjunto de determinações obscuras,
facilmente manipuláveis por alguns indivíduos. A publicidade das leis, nesse sentido,
é uma garantia fundamental da liberdade particular.
Por
fim,
60
Constituição como potência
57
exprime-se
a
necessidade
da
efetivação
da
61
do Estado . Pela Constituição os Indivíduos
ENC, § 538, p. 307.
ENC, § 538, p. 307.
59
Piazza, em seu artigo acerca do confronto entre Hegel e a tradição historicista, delineia as críticas
hegelianas ao direito consuetudinário. Cf. PIAZZA, Di Stefano. Note minime intorno ad un possibile
confronto tra sistema hegeliano della filosofia del diritto e scuola storica del diritto. Revista Filosofia do
Direito e Intersubjetividade, Itajaí, n. 2, 2009. Disponível em: http://www.univali.br/direitofilosofia.
60
Potência em acepção ontológica, como algo que vem a ser efetivo, realizado substancialmente,
transcendendo da idéia para a realidade concreta. É, sobretudo, o princípio de mudança, conforme
Aristóteles: “Em primeiro lugar é o princípio de movimento ou de uma mudança que se encontra em
outra coisa ou na própria coisa enquanto outra”. A dialética hegeliana, sustenta-se,
fundamentalmente, nesta idéia de vir-a-ser. ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto
58
52
fundamentam sua igualdade, em sentido jurídico, e mantém guarnecida a Liberdade,
por isso em Hegel ela é justiça existente, já que guarda as determinações racionais
do movimento que constitui a liberdade. A Constituição, para Hegel, não é
simplesmente a legislação máxima de um Estado, mas a representação do
desenvolvimento do espírito de um povo. É pela Constituição que se pode analisar a
que medida aquele povo ousou articular suas determinações racionais e construir
um movimento livre no conceito. Não sem razão Hegel encerra sua Filosofia do
Direito trabalhando uma seção sobre a história universal, na qual apresenta
momentos distintos do desvelar do espírito objetivo, e até que ponto aqueles povos
realizaram a manifestação da Ideia de Liberdade.62
Por fim, cabe assinalar que, como contraponto à sociedade
civil, o Estado financia uma certa parcela de Indivíduos a viverem exclusivamente
para a universalidade da nação e do Estado como funcionários estatais. Para muitos
seria a fundamentação hegeliana para o servidor público e a burocracia moderna.
Se todos os Indivíduos vivem buscando satisfazer suas necessidades subjetivas, é
necessário que pelo menos uma parte deles dedique-se ao universal em si mesmo.
A síntese que se faz do Estado hegeliano é que ele realiza a
harmonia ética na Filosofia do Direito de Hegel, convergindo em um mesmo
movimento os interesses particulares e subjetivos dos Indivíduos aos interesses
universais e objetivos do Estado e do mundo ético. A universalidade segue sendo
privilegiada, pois ela contém a singularidade, mas não exclui a particularidade de
cada membro do Estado e da comunidade.
Por fim, encerra-se este trabalho com algumas considerações
relacionando a filosofia política hegeliana à contemporaneidade e alguns de seus
principais doutrinadores.
grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo:
Loyola, 2002. p. 225.
61
ENC. § 539, p. 307.
62
Última seção da Filosofia do Direito, onde Hegel, após trabalhar o direito político interno e externo
do Estado, apresenta o mundo oriental, o mundo grego, o mundo romano, e o mundo germânico,
analisando até que ponto cada povo elevou seu conceito de liberdade.
53
3.4 HEGEL E A CONTEMPORANEIDADE
Analisar o mundo contemporâneo, onde se vê o fenômeno da
crise das democracias, das ciências, das ideologias, a relativização de tantos
hábitos e condutas institucionalizadas há séculos, certamente exige um exame
árduo e multidisciplinar, o que não caberia neste trabalho. O que se pretende aqui é
tão somente tecer algumas breves considerações acerca das contribuições de Hegel
para o entendimento da sociedade contemporânea, seja no que seu pensamento
influenciou, ou em partes no que oferece para a efetivação de mudanças do cenário
atual.
Miguel Reale, ao doutrinar sobre a teoria geral do direito e do
Estado, analisou de forma rápida a estrutura geral da concepção hegeliana de
Estado, auferindo que por mais que na Filosofia do Direito atribua-se o valor à
pessoa humana, utilizando-se da máxima do direito abstrato, “sê uma pessoa e
respeite aos outros como pessoas”, e da apresentação do Estado como ‘realização
da liberdade’, ainda assim Hegel não teria escapado de em estatalismo éticojurídico63. Ora, a atribuição ao valor máximo da pessoa humana em Hegel não se
reduz à máxima mencionada, antes deve ser compreendida na totalidade de seu
pensamento. Se pensarmos que a Fenomenologia do Espírito possui como
finalidade a formação da consciência desde seu estágio mais primitivo até o Saber
Absoluto, e que mesmo sua filosofia-política baseia-se nas determinações racionais
do conceito, e da vontade livre que realiza sua Ideia de Liberdade, jamais se poderia
afirmar que em Hegel o Estado recebe primado por sobre o Indivíduo, já que, é
exatamente a consciência de si, representada como pessoa, sujeito e membro da
comunidade, quem constrói a figura do Estado conforme suas determinações éticas.
Hegel confere este alto valor ao Estado por questões lógicas, sendo o Estado reflexo
da vontade livre, do querer do Indivíduo, só pode ser ele a figura máxima de uma
63
Não obstante, deve-se aclarar que, ainda que Reale esboce essa crítica a Hegel, logo a seguir
acentua que estatalismo ético-jurídico em nada se confunde com totalitarismo, como declararam
vários comentadores, ancorados principalmente na visão marxista acerca do pensamento hegeliano.
REALE. Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 227.
54
organização jurídico-política. Contudo, como antes foi apresentado, se esse mesmo
Estado não reflete mais a vontade geral, o povo tem o dever de alterá-lo, assim
como o elaborou racionalmente. Do contrário desabar-se-ia no absolutismo de um
Leviatã. O Estado contemporâneo, ademais, possui muito maior aproximação ao
Estado hobbesiano que ao pensamento de Hegel, tendo em vista sua crescente
concentração de poderes. Hegel dedicou dois espaços em sua filosofia política para
o pleno desenvolvimento da particularidade, primeiro com a moralidade, ao anunciar
a questão singular das intenções, e depois na sociedade civil, onde se caracteriza o
valor do sujeito e do particular nas relações econômicas e jurídicas. O Estado surge
como harmonia entre a universalidade imediata e natural da família e a
particularidade extrema da sociedade civil.
O Estado é também necessário para organização e execução
de poderes, segundo Habermas, onde demonstra a necessidade dos chamados
direitos fundamentais para a reconstrução dos princípios de um Estado de Direito.64
Contudo, o que Hegel também se preocupou foi em evitar uma dissociação entre
Estado e Indivíduos. A concepção hegeliana de Estado é uma concepção orgânica,
se o Estado institucionaliza determinadas leis é porque os Indivíduos assim o
quiseram. A questão democrática é, de fato, a única via que resta para uma
reestruturação política, porém uma das maiores contribuições de Hegel nesse
sentido é de como se enxergar a democracia. Deve-se superar a democracia como
violência da maioria para uma democracia em que haja participação de todos. E
como participação efetiva, para Hegel, entende-se não o simples voto, mas o
verdadeiro exercício de um membro da comunidade, através das relações
econômicas, da contribuição com a riqueza geral, com a participação nas tomas de
decisões jurídicas.
O mundo pós-moderno apresenta cada vez mais a revolta do
Indivíduo contra o sistema vigente. A resolução dessa problemática certamente não
virá com o incremento de poder soberano ao Estado. O que Hegel se preocupou, e
nisso antecede muitos pensadores posteriores, é que as questões políticas e
jurídicas não são resolvidas somente com mudanças legislativas ou políticas, mas
através de um trabalho humano. Hegel articulou as instituições jurídicas e políticas,
64
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 171.
55
mas o agente que agia, e a finalidade de seu pensamento, não era apenas repensar
o modelo estatal moderno, mas, sobretudo, demonstrar que as grandes
transformações sociais não ocorrem na esfera política, mas na esfera humana, é
necessário primeiro formar o Indivíduo, depois pensar o Estado. É nesse sentido,
que Juszezak, ao interpretar a Filosofia do Direito como uma antropologia hegeliana,
afirma, que em Hegel, não se trata de superestimar o Estado, mas sim de pensar o
papel do Indivíduo em todas as esferas sociais, de compreender que é o Indivíduo
quem age e transforma a sua realidade, e não simplesmente uma tomada de poder
público. Em uma metáfora que alude a Louis XIV, encerra sua obra dizendo que, em
Hegel, é o Indivíduo quem diz: “L’État c’est Moi”65.
65
JUSZEZAK, Joseph. L’ anthropologie de Hegel à traves la pensée moderne. Paris: Éditions
Anthropos, 1977. p. 255.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste trabalho foi analisar a relação entre Indivíduo
e as Instituições na Filosofia do Direito de Hegel.
Assim, no primeiro capítulo apresentou-se uma introdução à
filosofia política hegeliana concentrada na obra Linhas Fundamentais da Filosofia do
Direito. Estudou-se aqui brevemente o sistema hegeliano, a divisão da Enciclopédia,
da própria Filosofia do Direito, bem como conceitos essenciais para o presente
trabalho, sobretudo o de vontade livre como fundamento do direito e das Instituições.
No segundo capítulo foram estudados os três grandes
momentos da Filosofia do Direito: Direito Abstrato, Moralidade e Eticidade.
Por fim, o terceiro capítulo trouxe as considerações acerca das
três Instituições da eticidade hegeliana: Família, Sociedade Civil, Estado. O trabalho
encerra-se, ainda, com algumas reflexões envolvendo a filosofia política de Hegel e
a realidade contemporânea, tendo em vista principalmente o mundo pós-moderno.
Diante dessa exposição, qual a relação entre Indivíduo e as
Instituições na Filosofia do Direito de Hegel? Atenta-se que esse questionamento
está intrinsecamente ligado à Ideia de Liberdade, conceito central da obra de Hegel
estudada. Responde-se o problema da pesquisa revisando brevemente o movimento
percorrido.
O Direito Abstrato estabelece o direito formal, positivo, nas leis
e nos contratos entre as pessoas. Exclui, contudo, as particularidades subjetivas de
cada Indivíduo. O resultado é que o formalismo jurídico não impede a violação ao
contrato e o próprio crime, pois não pode impedir que uma das partes veja o direito
apenas como aparente, e portanto, passível de ser violado.
A Moralidade é consequência desse movimento. O Direito
Abstrato denunciou que é necessário estudar o mundo interior e subjetivo do
indivíduo. Na Moralidade descobre-se que cada um age tendo em vista uma ideia de
Bem, a qual se torna o seu fim último de vida. E essa ideia brota de convicções
57
subjetivas, particulares, que não impedem a possibilidade de a minha ideia de Bem
parecer algo mau a outrem. Aqui surge a limitação da simples moralidade subjetiva.
A Eticidade é a síntese dos dois momentos. No mundo ético
existe o Bem Vivo, isto é, um Bem capaz de gerar realização e Liberdade à
coletividade, à universalidade, à comunidade como um todo, mas sem excluir a
particularidade de cada um. Na Eticidade o Indivíduo entende que as leis e
Instituições não são forças exteriores a ele, mas movimentos postos por ele mesmo
conforme a sua vontade livre, estudada no Capítulo I. O Indivíduo vive o mundo ético
pois ali entende a realização da Liberdade. A Eticidade se faz em três Instituições
principais, sendo a primeira a Família.
Na Família há a união de dois Indivíduos em uma só pessoa
pelo amor do matrimônio. Dessa união nascem outros Indivíduos. A família é a base
natural do mundo ético porque nela todos vivem para o fim universal, que é o bem
familiar e não para os próprios desejos. Contudo, a situação modifica-se na
realidade dos filhos, pois estes não optaram por integrar a família. A família dissolvese quando o filho decide retirar-se dela para construir a própria vida na sociedade
civil.
A Sociedade Civil é onde cada um busca satisfazer o próprio
egoísmo e necessidades pela atividade econômica no sistema das necessidades. O
trabalho, contudo, coloca cada um em relação de interdependência econômica com
os demais, pois a minha satisfação passa pelo envolvimento comercial com o outro,
já que sozinho não se pode produzir tudo e consumir tudo. Mas segue sendo
realização do egoísmo. Logo, como as pessoas possuem habilidades diferenciadas,
nem todos acumularão riquezas na mesma parcela, gerando as desigualdades
sociais. E esta problemática é também do Estado.
No Estado busca-se a síntese entre o particular e o universal.
Cada Indivíduo busca realizar o universal como fim último, pois o Estado é a
Instituição mais importante do mundo ético, sem, contudo, excluir a vontade
particular de cada membro. O Estado não é opressor ao indivíduo, mas permite o
desenvolvimento de sua singularidade. Essencial é compreender que para Hegel o
Estado é reflexo da formação de seu povo, logo é direito e dever de cada Indivíduo
58
realizar a dialética de modificar o Estado, quando esse não aparecer conforme a sua
vontade livre.
Logo, deve-se notar que nenhuma Instituição é absoluta em
Hegel. A Liberdade do indivíduo se faz também pelas Instituições, mas no
movimento através delas. Elas são essenciais para a Liberdade porque concretizam
a possibilidade de se realizar tanto na particularidade como na universalidade, tanto
o singular como a própria comunidade. Contudo, nenhuma delas comporta em si a
Liberdade em si mesma. Mesmo o Estado, notavelmente a Instituição mais
importante, só tem realidade efetiva e livre se em harmonia com a família e
sociedade civil.
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS
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2002. p. 225.
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Redaktion Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel.
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