277 SOBRE A PERTINÊNCIA DA DISCIPLINA DE FILOSOFIA ÉTICA PARA O CURSO DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS Gabriela D'Ávila Schüttz1 Resumo Este texto discute a importância do estudo da filosofia e da ética para futuros gestores a partir de uma reflexão básica: qual a utilidade prática da filosofia para o administrador? Defende-se que o reconhecimento ou não da pertinência da filosofia como disciplina obrigatória nos cursos de graduação em administração de empresas depende do entendimento que temos das atividades relacionadas à figura do administrador. E que, se virmos no profissional da administração a característica crucial de um profissional cujas atividades vinculadas à tomada de decisão desempenham papel principal em suas atribuições, o ensino-aprendizado de filosofia e ética são fundamentais. Neste sentido, concluímos que quando as consequências de nossas ações se refletem efetivamente sobre a vida de uma organização e todos que dela participam, como no caso do administrador, é preciso desenvolver uma compreensão ampla e profunda a respeito das escolhas e ações adotadas, não apenas para convencer colaboradores, mas principalmente para tomarmos a melhor decisão, para o maior número de pessoas, tal qual a máxima utilitarista. Palavras-chave: Filosofia. Ética. Administração de Empresas. ON THE RELEVANCE OF PHILOSOPHY AND ETHICS TO THE BUSINESS ADMINISTRATION GRADUATES Abstract This paper discusses the importance of the study of philosophy and ethics to future managers from a basic question: what is the practical utility of philosophy for the administrator? It is argued that the recognition or not of the relevance of philosophy for the graduated in Business Administration depends on the understanding that we have of managers activities. In this way, if we see the power of decision as central to management figure, the decision-making activities play an important role in their assignments, so the teaching-learning process of philosophy and ethics are essential. In this sense, we conclude that when the consequences of our actions reflect effectively on the life of an organization and all who participate in it, as in the case of the administrator, we need to develop a broad and deep understanding about the choices and actions taken, not only to convince stakeholders, but mainly for us to take the greatest good for the greatest number of people, as the central utilitarianism idea. 1 Mestre em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Professora da Faculdade Decision de Negócio – FGV. Email: [email protected] 278 Keywords: Philosophy. Ethics. Business Administration. INTRODUÇÃO Este texto, conforme o título indica, discute a importância do estudo da filosofia e da ética para futuros gestores e inicia com uma questão não muito original, mas cuja resposta parece carecer de efetividade, ou pelo menos ser mais convincente aos olhos dos estudantes de administração de empresas. Afinal, qual a utilidade prática da filosofia para o administrador? Embora a análise das grades curriculares dos cursos de graduação em administração de empresas em geral ateste a presença de pelo menos uma disciplina dedicada à filosofia ou à ética, é possível afirmar que nem sempre os graduandos desse curso parecem coincidir com essa decisão. Qual a razão dessa postura? Por que, apesar de concensuada entre os coordenadores dos cursos das mais variadas instituições do país e, quiçá, fora dele, ainda persiste certa recusa (justificada ou não) a respeito da importância dos conhecimentos oferecidos pela filosofia e seu reconhecimento? Nesse sentido, seria válido o argumento que reduz a contribuição desta disciplina a tão somente um apelo à ampliação da cultura do estudante universitário, beirando a mera aquisição de um saber erudito, sempre válido, mas que pouco acrescenta à resolução imediata dos vários percalços objetivos que os administradores enfrentam em seu dia-a-dia nas empresas e corporações? O reconhecimento ou não da pertinência da filosofia como disciplina obrigatória nos cursos de graduação em administração de empresas depende do entendimento que temos das atividades relacionadas à figura do administrador. Se virmos no profissional da administração a figura de um técnico, seja da área de produção, finanças, marketing etc; certamente o acréscimo de conhecimento filosófico trará resultados pouco expressivos, uma vez que a função do técnico é justamente dominar uma técnica (desculpem a redundância). Por outro lado, quando atribuímos ao administrador tarefas mais abrangentes como o planejamento, o gerenciamento, a direção e o controle de recursos humanos e materiais direcionados a otimização dos objetivos de uma organização, isso inclui uma variada gama de atividades vinculadas à tomada de decisão. E esta segunda perspectiva faz toda a diferença para a compreensão das contribuições da disciplina de Filosofia e ética para os estudantes de administração de empresas. 279 2 A TOMADA DE DECISÃO NO CENTRO DAS ATRIBUIÇÕES DE UM ADMINISTRADOR DE EMPRESAS A tomada de decisão em qualquer área da vida social refere-se a um cálculo moral, isto é, avalia-se o que é melhor ou pior, justo ou injusto, correto ou incorreto em relação ao dado fim. A decisão de dar um passo à frente em situações do cotidiano, como terminar uma relação amorosa, inscrever-se em um curso de extensão, abandonar o transporte público e endividar-se na compra de um automóvel, descansar no final de semana ou viajar para visitar amigos e parentes, rescindir, revisar ou renovar um contrato (seja ele comercial ou não) remete à própria possibilidade de existência. Referindo-se à fábula do asno de Buridano, o filósofo moral e prêmio Nobel em economia (1998), Amartya Sen (1933), argumenta que o asno de Buridano morreu de fome porque não conseguiu decidir qual dos dois montes de feno a sua frente era melhor para saciar seu apetite (SEN, 2010). Portanto, a tomada de decisão é condição necessária para a própria vida. Não seria possível viver uma vida digna de ser vivida, independente dos significados que podemos atribuir a isso, se não houvesse a possibilidade da liberdade de escolha, sem a qual nenhuma decisão no sentido estrito pode ser feita. Porém, a liberdade por si só não é capaz de impedir escolhas malfeitas, poderá, talvez, nos auxiliar a evitá-las, mas não a erradicá-las. E, é nesse emaranhado de ideias e possibilidades que a capacidade de filosofar (indagar-se de modo lógico e sistemático sobre um problema) emerge como um diferencial. Ser capaz de compreender todas as partes que formam um problema, suas relações e conexões com outros elementos, nada mais é que ampliar nosso nível de entendimento acerca de um estado de coisas ou situações. O pensar filosófico jamais será um empecilho na hora da escolha, mas tampouco se aplica a todo o momento. Ele serve (e aqui está uma de suas serventias), para conscientizarnos dos pormenores, muitas vezes não tão insignificantes assim, dos inúmeros processos e consequências inerentes às escolhas que tomamos ao longo de nossa vida. Mesmo que nossas escolhas particulares estejam pautadas na avaliação de nossos interesses e nas chances reais de alcançarmos nossos objetivos a partir da realização de metas, jamais teremos o controle total de todas as situações, talvez nem mesmo da metade delas. No entanto, não deixamos de realizar esse cálculo, e, por exemplo, decidimos pela opção de estudar no final de semana, em vez de descansar ou sair com os amigos, visto que na semana seguinte inicia-se o período de exames na faculdade. 280 E torna-se evidente que episódios envolvendo escolhas tendem a se complexificar em nossa vida profissional, principalmente se assumirmos o compromisso da tomada de decisão por outrem. Logo, quando as consequências de nossas ações se refletem efetivamente sobre a vida de uma organização e todos que dela participam, direta ou indiretamente, precisamos ponderar muito mais para tomarmos a melhor decisão. Este é o campo de reflexão da filosofia moral, ou seja, a ética. 3 A IMPORTÂNCIA DA DISCIPLINA DE FILOSOFIA E ÉTICA PARA OS ESTUDANTES DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS Um primeiro passo para compreendermos as contribuições da disciplina de Filosofia e Ética para os estudantes de administração de empresas é que entender que do mesmo modo que inumeráveis profissionais dedicaram suas vidas à arte da administração, os filósofos invocados nos cursos de filosofia dedicaram-se ao exame de questões essenciais para a vida humana e em sociedade, tais como: por que devemos viver em grupos? Não poderíamos viver isolados? Chegaremos um dia a autossuficiência? Afinal até que ponto somos seres autônomos? Não há dúvida que todos nós frequentemente esbarramos neste tipo de interrogação filosófica na medida em que procuramos identificar o conteúdo de conceitos abstratos que compõem nossos problemas (tais como melhor ou pior) para justificar nossas ações. Por exemplo, quando defendemos um caminho e não outro para obtermos um resultado exitoso frente à diretoria e colaboradores da empresa, o fazemos munidos de alguma concepção subjetiva sobre o que é o sucesso, mas também do que os demais entendem ou esperam desse conceito, do que pode ou não ser feito para obtê-lo. Nesse momento, fazemos o que Aristóteles denominou de hierarquia de meios-fins (ARISTÓTELES, 1996), uma vez que parece estar claro tanto na Grécia antiga quanto no Brasil do século XXI que nem todos os fins justificam os meios, mesmo que alguns comentem que Maquiavel teria dito o contrário. Desta forma, visto o tamanho do peso da responsabilidade atribuído ao administrador e a impossibilidade eminentemente humana de munir-se da totalidade de informações necessárias ao planejamento e execução de ações irreprocháveis, o estudo e a apropriação do pensamento filosófico faz-se não somente necessário, mas tornam-se essencial para o embasamento e justificação de ações inovadoras e desafiadoras, que dada a sua originalidade necessitam de bons argumentos e razões objetivas para convencer os demais a aceitarem iniciar tal empreitada. 281 O profissional da administração precisa estar munido de algo mais, que irá diferenciálo e que efetivamente influenciará em suas decisões, para além do domínio da técnica e da informação, também importantes. O que fazer é uma das grandes perguntas que navegam pela órbita do administrador. A resposta que ele formula a cada novo problema deve contemplar exigências mínimas de convivência social e cordialidade nos negócios, seja através do cumprimento das obrigações legais (existem mecanismos formais que o exigem), com relação à obrigação institucional (relativo aos padrões estabelecidos pela própria organização), obrigação moral (uma vez que os costumes e tradições variam de acordo com a sociedade e o público envolvido) e, por fim, e não menos importante, a obrigação ética. A questão ética é, provavelmente, a mais evocada e menos debatida em nossa sociedade, exatamente pela dificuldade que temos em refletirmos sobre nossas ações e valores, sejam eles individuais, empresariais ou públicos. A ética caracteriza-se pela reflexão sobre os padrões morais estabelecidos na sociedade, trata-se de buscar compreender por que alguns atos são considerados válidos e outros inválidos, quais razões e argumentos as pessoas utilizam para avaliar e justificar ações como legítimas ou ilegítimas, e perante o quê ou a quem. Uma maneira de tornar a discussão em torno da ética mais palpável e salutar é investigarmos os fundamentos das regras e normas (positivas, isto é, em caráter de lei, código, decreto etc.; e implícitas, como aquelas que nos orientam como vestir-se e comportar-se em determinados locais e momentos). Esta investigação não tem porque ser interminável. Ao contrário, cabe aos filósofos, e não aos administradores, investigar os princípios lógicos que regem a racionalidade, a veracidade dos argumentos, os limites da linguagem, o peso das emoções e a valoração (seja ela simbólica ou não), aspectos sabidamente essenciais à condição humana. Também cabe aos filósofos, e mais propriamente aos professores de filosofia, traduzir para uma linguagem ordinária os insights formulados ao longo da história da filosofia, não para serem utilizados de forma doutrinária – já que é tradição na filosofia desconfiar do que já foi dito e escavacar e trabalhar sobre os equívocos cometidos pelos próprios filósofos –, mas, para através de uma reflexão analógica, colocar os conhecimentos e o caminho já realizado por esses pensadores a serviço da humanidade, aqui e agora! Desta forma, porque não recorrermos aos ensinamentos de Sêneca sobre o fracasso, para o qual o sucesso se relaciona com nossa capacidade de superação do erro, com o aprendizado progressivo a partir do grande engano que caímos quando nos iludimos com resultados dificilmente alcançáveis, construídos a partir de metas irreais (DE BOTTON, 282 2001). Do mesmo modo, por que não aludir a Sócrates quando lidarmos com o problema da impopularidade (DE BOTTON, 2001), ou às discussões entre os filósofos utilitaristas Bentham e Stuart Mill para avaliarmos o que de fato poderá trazer o maior bem ao maior número de pessoas e a que custos (BENTHAM, 1984; STUART, 2000)? Esses são alguns breves exemplos de como a transposição de teorias e teses através de um pensamento analógico podem enriquecer nossa visão de mundo e auxiliar-nos nos dilemas da vida, sejam eles pessoais ou profissionais. Considerando que a atividade do administrador é repleta de problemas e decisões a serem tomadas, parece bastante razoável reconhecer na Filosofia e na Ética conhecimentos úteis ao cotidiano de um profissional de administração, tanto para a persuasão e convencimento diante do desconhecido quanto para a resolução de problemas. CONSIDERAÇÕES FINAIS O grande pulo do gato para os estudantes de administração em relação à disciplina da filosofia e ética se dá no momento em que as grandes contribuições dos pensadores não são encaradas como algo distante de nossa realidade. E que o estudo da filosofia seja de fato, aquilo que deve ser: apropriação da atitude filosófica e do pensamento crítico, alerta e atento à complexidade dos assuntos humanos, àquilo que em última instância é o que interessa para os atores econômicos: a liberdade de escolha e a realização de seus objetivos e metas, cuidando sempre da questão ética, uma vez que o mesmo e almejado princípio de liberdade, que nos permite escolhermos sem impedimentos o que melhor nos convém, segundo nosso próprio juízo, nos torna eticamente responsáveis pelas consequências que nossas escolhas e ações acarretam não só para nós mesmos, mas para a sociedade. Este aprofundamento do entendimento e da consciência é a maior contribuição prática que a filosofia pode oferecer aos administradores, já que não há fórmulas nem resoluções prontas para todos os problemas de uma empresa ou organização, e cabe a essa figura lidar com todas essas questões. Desse modo, não há dúvidas de que o auxílio precioso fornecido pelo estudo da filosofia agrega peso à formação dos futuros gestores, deixando-os mais bem preparados para encarar de forma ética os dilemas empresarias. Recebido em junho de 2014. Aprovado em maio de 2015. 283 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Livro I. Tradução: Gama Kury, M. Nova São Paulo: Cultural, 1996. BENTHAM, Jeremy. Introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1984. BOTTON, Allan de. As Consolações da Filosofia. São Paulo: Rocco, 2001. SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 88. STUART MILL, John. O utilitarismo. São Paulo: Iluinuras, 2000.