A filosofia prática de Spinoza: uma ética da imanência contra a

Propaganda
A filosofia prática de Spinoza:
uma ética da imanência contra a moral transcendente
LEONARDO ARAÚJO OLIVEIRA*
Resumo
O presente texto consiste em uma exposição introdutória da teoria ética do
filósofo Benedictus Spinoza, levando em conta suas principais obras, bem
como texto de comentadores; abordando suas implicações críticas na história
da filosofia, foca-se na perspectiva imanentista, ao evidenciar como entra em
confronto com concepções moralistas – baseadas em princípios transcendentes.
Como desdobramento, será trabalhada (enquanto conseqüência de uma
filosofia prática) a relação entre conhecimento e existência no pensamento de
Spinoza.
Palavras-chave: Ética; Imanência; Moral; Transcendência; Pensamento;
Spinoza.
Abstract
This paper consists of an introductory exposition of ethical theory of the
philosopher Benedictus Spinoza, considering his major works; approaching its
critical implications in the history of philosophy, focusing in immanentist
perspective, by showing how it enters into confrontation with moral
conceptions - based on transcendent principles. As an outcome, will be worked
(as consequence of a practical philosophy) the relation between knowledge and
existence in the thought of Spinoza.
Key words: Ethics; Immanence; Moral; Transcendence; Thought; Spinoza.
*
LEONARDO ARAÚJO OLIVEIRA é graduando do curso de Filosofia da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected].
82
1. Introdução
Benedictus (ou Baruch)
de Spinoza (ou de
Espinosa), nascido em
1632 numa comunidade
judia de Amsterdã, foi
um dos pensadores mais
odiados na vida e na
morte. Tem-se entre as
tentativas de diminuírem
e extirparem a força de
seu pensamento: uma
excomunhão e uma
tentativa de assassinato.
Mas em que um
pensador como Spinoza,
tido muitas vezes como
um continuador da filosofia de
Descartes – filósofo francês que não
publicou acerca de ética ou de política,
tendo mencionado apenas uma moral
provisória – é tão ameaçador? Como
esse homem que, viveu de polir lentes e
da ajuda financeira de amigos, que
escreveu à maneira dos geômetras,
chegou a se tornar tão ameaçador?
Podemos responder de início que sua
postura política (simpatizante do partido
de Jan de Witt, militante na dissolução
dos grandes monopólios) favorecia tal
condição. Mas seria o bastante? Dentro
da presente exposição da teoria ética de
Spinoza, pretende-se aclarar as razões
do filósofo judeu ter sido tão polêmico e
odiado; mas também, amado, em
particular a atração que causou em
Nietzsche – que o considerou um
predecessor.
De fato, no que concerne ao caráter
mais inovador do pensamento de
Spinoza, não poderia ele estar mais
próximo do cartesianismo, do que da
filosofia prática de um Marx, ou das
marteladas filosóficas de um Nietzsche;
o que configura sua filosofia menos
como um pensamento de síntese do que
como uma formulação inventiva e
original, voltada ao
futuro; traçando, com
sua nova ideia de Deus,
um plano de imanência
povoado por novas
concepções filosóficas –
embora algumas delas
sejam designadas por
nomes
usuais
na
filosofia tradicional, pelo
senso comum e até
mesmo pelos sistemas
filosóficos que, desde
Platão e principalmente
por sua influência, atuam
em consonância com a
transcendência.
Em Spinoza, o pensamento se une à
vida – afirmação que faz surgirem as
linhas de investigação que guiam o
presente texto e que são cruciais no
interior de sua filosofia: o pensador
holandês não teria feito de sua própria
vida uma obra de sua filosofia, e viceversa? Não compôs sua vida da maneira
que pudesse exercer da melhor maneira
possível a liberdade de seu pensamento?
O que Spinoza tem a dizer acerca da
existência ética? Como essa existência
se
relaciona
com
princípios
transcendentes (como os de Bem e de
Mal) e com uma concepção de mundo
pré-ordenada
moralmente?
Tal
existência se sustenta nessas condições?
E ainda: como o conhecimento se
compõe com a realidade concreta, com
a vida prática - principalmente essa que
se apresenta tão intimamente aos
homens, a dos afetos? Como é
concebida a relação entre alma e corpo,
mente e matéria?
83
2. Como as noções “Bem” e
“Mal" resistem ao sistema
imanentista de Spinoza?
Ainda que o estatuto de primeiro
filósofo seja remontado constantemente
à oscilação entre Tales e Sócrates, não
se poderia enxergar em Platão um pai
da filosofia? Não são nos diálogos
platônicos
onde
encontramos
metafísica, teoria do conhecimento,
ética, estética, política, e mesmo uma
filosofia da educação, isto é, os
principais eixos temáticos presentes na
história da filosofia e que norteiam todo
o projeto filosófico ocidental?
Mas se Platão é o pai da filosofia,
precisaríamos encontrar o elemento
fertilizador ou àquele elemento-base de
sua filosofia, a partir do qual todo seu
sistema nasce, se ergue e se sustenta. E
esse elemento é a ideia de Bem.
No platonismo, a noção de Bem,
realidade ultima e superior, é o
elemento que transcende todas as coisas
existentes, tanto as coisas terrenas do
mundo sensível, tomadas como cópias,
quanto àquelas perfeitas, as coisas em si
mesmas, objetos verdadeiros a partir das
quais os objetos sensíveis são
modelados pelo Demiurgo, o deus
artesão, que por sua vez, também se
encontra em um grau inferior em
relação ao Bem.
Na alegoria da caverna, presente no
livro VII de A república, o Bem é
identificado ao Sol. Assim como o astro
rei é o que de mais alto o ex-prisioneiro
da caverna vê ao se livrar dos grilhões,
o Bem é o que de mais alto o filósofo
pode contemplar. Porém, o Sol não é
apenas
visto,
é
também,
e
principalmente, a condição para que se
vejam todas as coisas: no caso do exprisioneiro, as coisas reais das quais ele
via somente as sombras na caverna; no
caso do filósofo, as ideias perfeitas.
Porém, o Sol não provê somente a visão
das coisas, assim como o Bem não
provê
apenas
o
conhecimento
verdadeiro; o Sol, o Bem, são, ou é – se
o tomarmos como idênticos pela
analogia – a condição de existência e de
criação de todas as coisas (Cf.
PLATÃO, 2006).
Será o Bem que, na filosofia cristã, se
identificará com Deus – de onde surgirá
a questão: Se Bem e Deus se
identificam, de onde vem o Mal? Como
o Mal pode existir se tudo é proveniente
do Bem? (Cf. AGOSTINHO, 2009, p.
145). Diante de tal problema, Agostinho
responderá que não existe Mal. Ou
melhor, que o Mal, essa noção, não
carrega em si nenhum estatuto
ontológico, uma vez que o que existe é
o Bem e os graus de distância em
relação ao próprio, em relação a Deus.
O Mal seria somente privação do Bem:
“Procurei o que era a maldade e não
encontrei uma substância, mas sim uma
perversão da vontade desviada da
substância suprema – de Vós, ó Deus –
e tendendo para as coisas baixas”
(AGOSTINHO, 2009, p. 158, grifos do
autor).
No contexto filosófico da modernidade,
a reação de Leibniz ao problema do mal
guarda semelhanças consideráveis com
a resposta de Agostinho, quando, diante
do problema da maldade, se tem a
resposta de que esse é o melhor dos
mundos possíveis. O Deus de Leibniz,
pensado sobre o princípio da razão
suficiente, não se faz presente, atuante
no mundo, como a tradição paulina
concebe (“nele vivemos, movemo-nos e
existimos”). Ao contrário de Newton,
talvez seu maior rival teórico, Leibniz
não concebe Deus como um ente de
permanente interferência no mundo.
Para o autor da Monadologia, basta a
criação divina em si mesma, visto a
perfeição divina, nesse âmbito, residir
84
na condição de Criador, o que impediria
Deus de interferir em sua própria
criação, na medida em que ele não
obedece uma vontade, mas leis
imodificáveis e incontornáveis: “Querer
que Deus aja de outra forma e dê às
coisas acidentes, que não constituem
modos de ser ou modificações derivadas
das substâncias, é recorrer aos milagres
e àquilo que as escolas denominavam a
potência obediencial” (LEIBNIZ, 1980,
p. 305, grifos do autor). Aqui, há uma
proximidade com a argumentação de
Agostinho, na medida em que o Mal
tem como causa a estreiteza da
percepção
humana
quando
não
consegue apreender a harmonia do
mundo estabelecida por Deus (Cf.
AGOSTINHO, 2009, p. 155-156).
Ainda que a ausência de interferência de
uma vontade divina no curso da
natureza (Leibniz) ganhe espaço no
sistema spinoziano, bem como a
dissolução do Mal enquanto princípio
ontológico (Agostinho), o pensador
holandês tratou tais questões de maneira
ainda mais radical, atribuindo um novo
tom às expressões de pensamento moral
e ontológico acerca de Bem e Mal,
como também de Deus.
Spinoza postula a identificação entre
Deus e natureza, de modo a não
possibilitar
espaço
para
a
transcendência. Existe apenas uma
substância e não mais que uma
natureza: “a natureza é sempre a
mesma, e uma só e a mesma, em toda
parte, sua virtude e potência de agir.”
(SPINOZA, 2009, p. 98).
Não subsiste nada fora da totalidade do
real, nem Deus, nem Bem. Deus, ele
mesmo, é a própria e única realidade, e
como dito na sexta definição do
primeiro livro da Ética: “um ente
absolutamente infinito” (SPINOZA,
2009, p. 13), o que assegura a
inexistência de qualquer ente fora de
seu campo de realidade. Desse modo, se
Agostinho e Leibniz já haviam retirado
o Mal do campo metafísico, em
Spinoza, não resta nem mesmo o Bem.
Para Spinoza, Bem e Mal, enquanto
realidades em si, separadas da vida, não
podem enunciar nada de efetivo, são
realidades vazias: “Quanto ao bem e ao
mal, também não designam nada de
positivo a respeito das coisas,
consideradas em si mesmas, e nada
mais são do que modos do pensar ou de
noções,
que
formamos
por
compararmos as coisas entre si.”
(SPINOZA, 2009, p. 157). Bem e Mal,
enquanto princípios transcendentes,
compõem o plano dos universais, que
para Spinoza, também não existem em
si, mas são formados por abstração
humana, produzidos em meio a uma má
apreensão das coisas. Assim, criamos
tais princípios “a partir de coisas
singulares, que os sentidos representam
mutilada, confusamente, e sem a ordem
própria do intelecto [...]. Por isso, passei
a chamar essas percepções de
conhecimento originado da experiência
errática.” (SPINOZA, 2009, p. 81).
A formação de universais faz parte do
que Spinoza denomina de primeiro
gênero do conhecimento, gênero da
experiência errática, da experiência
vaga. Esse tipo de conhecimento
também é definido por sua apreensão
dos efeitos, ignorando as causas – que
são conhecidas apenas no segundo
gênero. Nesse tipo de conhecimento,
estamos ao acaso dos encontros, sendo
condicionados
por
forças
desconhecidas, dominados pelos afetos
(enquanto paixões), o que dificulta a
saída da servidão, pois nessas
condições, mente e corpo estão em
estado passivo: “Chamo de servidão a
impotência humana para regular e
refrear os afetos.” (SPINOZA, 2009, p.
155).
Desse
modo,
podemos
85
compreender a idéia spinoziana de que
os homens não formariam nem um
conceito de Bem e Mal, se esses
nascessem e permanecessem livres (Cf.
SPINOZA, 2009).
Mesmo que Spinoza condene as noções
de Bem e de Mal, enquanto impróprias
e mutiladas, é compreensível que ele
permaneça fazendo uso de tais noções:
“Com efeito, uma única e mesma coisa
pode ser boa e má ao mesmo tempo e
ainda indiferente [...]. Entretanto,
mesmo assim, devemos ainda conservar
esses vocábulos” (SPINOZA, 2009, p.
157). Isso, pois, assim como o Deus da
filosofia de Spinoza não pode nos
remeter ao Deus transcendente, muito
menos Bem e Mal nos remeteria a tal
condição. Como explica o filósofo
marrano:
Sei que esses nomes significam
outra coisa no uso corrente. Meu
objetivo não é, entretanto, o de
explicar o significado das palavras,
mas de explicar a natureza das
coisas,
designando-as
por
vocábulos que tenham, no uso
corrente, um significado que não se
afaste inteiramente daquele que
quero atribuir-lhes (SPINOZA,
2009, p. 145).
É assim que Spinoza cria uma série de
conceitos novos, optando por encaixálos em terminologias clássicas. Por
exemplo, o conceito de Deus já
mencionado, que se afasta da concepção
cristã de Deus, bem como a noção de
atributo, que desde Aristóteles adquire
o sentido lógico de complemento a um
sujeito, ou seja, de uma qualidade
atribuída a um sujeito – sentido que não
pode ser completamente adequado ao
conceito de atributo em Spinoza, pois os
atributos, nessa teoria, dos quais
conhecemos apenas dois, a extensão e o
pensamento,
são
expressões
da
substância única, não acopladas de fora,
mas imanentes a ela. É válido o alerta
para que atentemos mais às próprias
coisas, nos afastando do perigo do
apego a nomes vazios – assim como é
costume
sermos
seduzidos
e
acomodados por noções universais,
como as de Bem e de Mal.
Se Bem e Mal não designam realidades
transcendentes, princípios de regulação
moral, como tais noções devem, ou
melhor, podem ser utilizadas? A
resposta está na teoria spinoziana dos
afetos: “Chamamos de bem e de mal
aquilo que estimula ou refreia a
conservação de nosso ser [...], isto é
[...], aquilo que aumenta ou diminui,
estimula ou refreia nossa potência de
agir.” (SPINOZA, 2009, p. 163). Assim,
chamamos de boas ou más as coisas que
nos afetam ou de alegria, ou de tristeza.
Alegria
e
tristeza
designam,
respectivamente, a passagem de uma
menor a uma maior perfeição, e a
passagem de uma maior a uma menor
perfeição. Como exposto no trecho
supracitado, alegria e tristeza se dizem
de um aumento ou de uma diminuição
de nossas potências. Bem e mal, assim,
dizem respeito ao que convém ou não
convém com a nossa natureza, ou que
aumenta ou diminui a nossa potência;
por isso diz Spinoza, no tratado da
correção do intelecto: “note-se que o
bem e o mal não se dizem senão
relativamente, de maneira que uma
mesma coisa pode ser chamada boa ou
má conforme as diversas relações, assim
como se dá com perfeito ou imperfeito”
(ESPINOSA, 1983, p. 66, grifos do
autor). Bem e mal são, assim, bom e
mau, como bons e maus encontros,
segundo as composições entre corpos,
segundo
as
diferentes
relações
formadas.
Retirar qualidades ontológicas das
noções de Bem e de Mal, arremessandoas para o plano valorativo inerente aos
modos de existência, para o campo
86
prático, é um dos movimentos que
fazem Spinoza realizar um verdadeiro
salto na história da filosofia. Afinal,
aqui não estaria, bem antes de
Nietzsche, uma filosofia para além do
bem e do mal? ‘Além’ que poderia ser
também ‘aquém’, na medida em que o
se quer propor é menos uma
ultrapassagem dessas noções, do que
oferecer um outro lugar para o
pensamento; lugar esse não mais
povoado por noções que não dão mais
conta do problema ético, de pensar
eticamente. Pois mesmo Nietzsche não
intenta negar a moral; na medida em
que, embora negue a existência de fatos
morais (há somente interpretações), não
nega o campo moral, enquanto plano
valorativo de imanência, uma vez que,
se os valores deixam sua existência
transcendente para trás, é porque são
recolocados enquanto modos maleáveis
da existência imanente. Como está
exposto na genealogia da moral:
“supondo que há muito tenha ficado
claro o que pretendo, o que desejo com
a perigosa senha inscrita na fronte do
meu ultimo livro: ‘Além do bem e do
mal’... Ao menos isso não significa
‘Além do bom e do ruim’.
(NIETZSCHE, 2009, p. 41-42, grifos do
autor).
3. Spinoza e Nietzsche: contra a
transcendência e a ordem
moral do mundo
A aproximação entre Nietzsche e
Spinoza não se faz de modo arbitrário.
Foi o próprio Nietzsche, quem, em carta
ao seu amigo Overbeck, enumerou
pontos de sua filosofia que entram em
consonância com o pensamento de
Spinoza - quando foi, naquela mesma
carta, considerado seu predecessor.
Dentre os pontos, são todos, negações
de elementos clássicos da tradição
filosófica: da livre vontade, do nãoegoísmo, dos fins, do mal (Cf.
NIETZSCHE, 2007b, p. 137). Mas a
ênfase que daremos aqui será sobre a
negação da ordem moral do mundo. Em
sua ética, Spinoza fala pouco de moral,
muito menos de ordem moral, como
indica Homero Santiago:
[...] são inúmeras as ocorrências de
“ordem”
(“geométrica”,
“da
natureza”, “das causas” etc.),
nunca, porém, descobrimos o
substantivo associado a “moral’,
termo, aliás, que não conhece
grande fortuna nos textos de
Spinoza; ele fala em “documentos
morais”, “certeza moral”, “virtudes
morais”, “filosofia moral”, mas não
há nenhum uso relevante, nenhuma
consideração mais demorada em
torno do designado vocábulo.
(SANTIAGO, 2009, p. 172).
Seguindo a argumentação de Santiago,
questionamos se, ao não mencionar uma
ordem moral do mundo, Spinoza estaria
negando-a ou somente ignorando a
questão? Antes de tentarmos oferecer
uma resposta, precisamos saber o que se
quer dizer com tal ordem. Já que
Spinoza não trabalha com a ideia (ao
menos de modo direto, como sabemos
até então), recorremos a Nietzsche,
posto que foi o filósofo alemão quem
atribuiu a Spinoza tal pensamento:
E os filósofos secundaram a Igreja:
a mentira da “ordem moral do
mundo” perpassa a evolução inteira
da filosofia moderna. Que significa
“ordem moral do mundo”? Que
existe, de uma vez por todas, uma
vontade de Deus quanto ao que o
homem tem e não tem de fazer; que
o valor de um povo, de um
indivíduo, mede-se pelo tanto que a
vontade de Deus é obedecida; que
nas vicissitudes de um povo, de um
indivíduo, a vontade de Deus
mostra ser dominante, isto é,
punitiva
e
recompensadora,
segundo o grau de obediência.
(NIETZSCHE, 2007, p. 32, grifos
do autor).
87
É todo um pensamento negador da vida,
onde a crítica de Nietzsche incide como
contraponto, ao propor um pensamento
integralmente afirmador, onde a vida
mesma não é questionada – sob a forma
de um valor transcendente – pois a
própria vida deve ser o critério de toda
avaliação.
Assim,
valores
transcendentes (como Bem e Mal) dão
conta da vida apenas em nível de
repressão, de dominação, de negação e
quebra das forças ativas. Tais
princípios, enquanto componentes de
uma ordem moral (proveniente de Deus,
do Bem ou de qualquer ideia que forje
um modelo de perfeição), se aplicam à
vida, não a afirmando, mas regulando-a.
O
que
Nietzsche
ataca
na
transcendência é seu caráter regulador,
como algo que se movimenta
verticalmente, de cima para baixo
(ainda sob o modelo da perfeição da
ideia indo de encontro à imperfeição do
corpo), que forma um pensamento em
consonância com a igreja, com o estado
e com os poderes estabelecidos.
Podemos entender como Spinoza não
está de acordo com uma ordem moral
pré-estabelecida, se retornarmos à
questão do bem, quando o autor da
Ética, novamente retira o bem de uma
condição destacada da vivência
humana, como princípio transcendente,
o remetendo assim, não como causa,
mas como efeito de um princípio
imanente, o desejo: “[...] não é por
julgarmos uma coisa boa que nos
esforçamos por ela, que a queremos,
que a apetecemos, que a desejamos,
mas, ao contrário, é por nos esforçarmos
por ela, por querê-la, por apetecê-la, por
desejá-la, que a julgamos boa.”
(SPINOZA, 2009, p. 106). O afeto do
desejo enquanto afeto primeiro é a
própria essência do homem, que
determina sua ação e, que, por
conseguinte, não está sob julgamento
moral; assim como em Nietzsche, a vida
se efetua como princípio avaliador.
Destarte, o desejo é “a própria essência
do homem, enquanto esta é concebida
como determinada, em virtude de uma
dada afecção qualquer de si própria, a
agir de alguma maneira” (SPINOZA,
2009, p. 140). A virtude consiste no
esforço por conservar a si mesmo: “O
esforço por se conservar é o primeiro e
único
fundamento
da
virtude”
(SPINOZA, 2009, p. 171).
Ao elaborar uma ética que trate dos
afetos, não somente como temática de
estudo – o que poderia ser apenas mais
uma prática de condenação dos afetos e
do corpo – mas sim, afirmando a sua
importância seminal, tanto na conduta
ética quanto na própria compreensão do
mundo, visto a constatação de que o
conhecimento não está separado,
também, do desejo; como subsistiria
uma ordem moral do mundo, nesse
sistema, que afirma a própria
conservação como virtude máxima,
demonstrando ser tão pouco cristão? É
uma das questões que coloca Marilena
Chauí:
Uma ética que não condena as
paixões como ‘vícios em que os
homens caem por sua própria
culpa’, que afirma serem bons e
virtuosos todos os prazeres que
aumentem a potência de agir do
corpo e da mente, que demonstra
ser bom tudo quanto traga alegria,
sendo maus tudo aquilo que, por
força da superstição e da
melancolia, traga tristeza, que
considera a humildade, a modéstia e
o arrependimento paixões tristes,
incompatíveis com a virtude e com
a liberdade – essa ética não seria
um risco para uma sociedade cristã?
(CHAUÍ, 1999, p. 29).
Não foi de forma gratuita que Nietzsche
conceituou a ideia de ordem moral do
mundo em sua obra O anticristo, pois a
religião em questão atua com eficiência
88
em tal esquema, onde um fator de
grande importância é a determinação da
vida proveniente da vontade de Deus.
Para Spinoza, a existência de uma
vontade divina se sustenta em doutrinas
finalistas, que tomam a causa por efeito
e vice-versa. Segundo esse modelo de
pensamento, Deus agiria buscando
algum fim, na medida em que possui
vontade e escolha para, por exemplo,
beneficiar os humanos, ou castigá-los.
No enquanto, questiona Spinoza: como
Deus, diante de sua própria perfeição,
agiria segundo algum fim? Ora, se Deus
age segundo um fim, como ele pode ser
perfeito, se o ato em direção a um fim
indica uma falta a ser completada? Ao
confundir causa e efeito, tais doutrinas
criam sua própria “lógica”, seu próprio
mecanismo de argumentação, que só
poderia culminar na superstição da
vontade de Deus:
Com efeito, se, por exemplo, uma
pedra cair de um telhado sobre a
cabeça de alguém, matando-o, é da
maneira seguinte que demonstrarão
que a pedra caiu a fim de matar esse
homem: se a pedra não caiu, por
vontade de Deus, com esse fim,
como se explica que tantas
circunstancias [...] possam ter se
juntado por acaso? Responderás,
talvez, que isso ocorreu porque
ventava naquele momento? E
porque o homem passava por lá
naquele momento? Se respondes,
agora, que se levantou um vento
naquele momento porque, no dia
anterior, enquanto o tempo ainda
estava calmo, o mar começou a se
agitar, e que o homem tinha sido
convidado justamente para aquele
momento? E assim por diante, não
parando de perguntar pelas causas
das causas até que, finalmente,
recorras ao argumento da vontade
de Deus, esse refúgio da ignorância.
(SPINOZA, 2009, p. 45).
Eis a fórmula spinoziana: argumento da
vontade de Deus = refúgio da
ignorância. Em Nietzsche, a ilusão
teológica da vontade de Deus espelha a
negação da vontade do homem; se diz
do homem que, tomado em um dos
tipos de niilismo, possui a vontade de
nada (não ainda o nada de vontade).
Ao se distanciar dos princípios morais
transcendentes, Spinoza edifica uma
Ética que entra em confronto com a
Moral – entendida como o conjunto de
normas, segundo certa ordem a ser
obedecida. O pensamento de Spinoza
não poderia estar de acordo com tais
preceitos morais, pois se afirma
segundo um plano de imanência,
segundo princípios imanentes que
envolvem a existência humana. A vida
ética pode acontecer, não como
repressora – segundo modelos de
perfeição –, mas como afirmadora e de
acordo com condições reais de
existência. Em razão disso, existe no
texto spinoziano uma crítica aos
pensadores da Moral, aos quais Spinoza
atribui não terem escritos uma ética,
mas terem feito somente projeções de
ideais distantes de uma filosofia prática:
Os filósofos concebem os afetos
com que nos debatemos como
vícios em que os homens incorrem
por culpa própria. Por esse motivo,
costumam rir-se deles, chorá-los,
censurá-los ou (os que querem
parecer os mais santos) detestá-los.
Creem, assim, fazer uma coisa
divina e atingir o cume da sabedoria
quando aprendem a louvar de
múltiplos modos uma natureza
humana que não existe em parte
alguma e a fustigar com sentenças
aquela que realmente existe. Com
efeito, concebem os homens não
como são, mas como gostariam que
eles fossem. De onde resulta que, as
mais das vezes, tenham escrito
sátira em vez de ética e que nunca
tenham concebido política que
89
possa ser posta em aplicação
(ESPINOSA, 2009, p. 5).
Se Nietzsche reconhece Spinoza como
um aliado é, sobretudo, nessa medida
em que oferece um pensamento que não
mais nega a vida segundo valores
transcendentes, mas que a afirma de
acordo
com
uma
compreensão
imanentista da existência. A Crítica à
metafísica se insere no plano moral,
pela crítica à existência de outro mundo,
ou à suposta existência humana em
outro mundo. Para Nietzsche, a tradição
filosófica é vil, doente, escrava, na
medida em que sustenta a crença no
além, tornando, por força de uma
inversão causal, o próprio além-mundo
como sustentáculo. Tal pensamento
reflete
um
sentimento
de
insuportabilidade da vida. A filosofia
estaria de acordo com tal linha de
pensamento desde o seu início, quando
se vê Platão afirmar, no Fédon, que
filosofar é se preparar para morrer, e,
sobretudo, quando se lê que o corpo é o
túmulo da alma – o que nos remete a
trazer o que Spinoza tem a dizer acerca
do corpo.
4. Do olhar para o corpo:
pensamento e vida sob a ótica
da potência
Spinoza formula uma teoria dos afetos,
complicando, de maneira única na
história da filosofia, a relação entre o
campo afetivo e o campo gnosiológico,
criticando a acomodação teórica que
compreende esses dois planos como
quadros claramente discerníveis. Pois,
segundo Spinoza, o conhecimento puro
não funciona como instância suficiente
para se afastar idéias ruins – causadoras
de diminuição de potência. Uma ideia
adequada
derrubará
uma
ideia
inadequada somente se estiver dotada
de uma força afetiva superior, capaz de
causar um aumento de potência:
Um afeto é uma idéia pela qual a
mente afirma a força de existir,
maior ou menos que antes, do seu
corpo [...]. Portanto [...], nada do
que tem de positivo pode ser
suprimido pela presença do
verdadeiro. Conseqüentemente, o
conhecimento verdadeiro do bem e
do mal, enquanto verdadeiro, não
pode refrear qualquer afeto. Mas,
enquanto afeto [...], e apenas
enquanto tal [...], se é mais forte
que o afeto a ser refreado, esse
conhecimento poderá refreá-lo
(SPINOZA, 2009, p. 166).
Está clara, aqui, uma positividade nunca
dada antes aos afetos na história da
filosofia; como também fica clara, a
tarefa de Spinoza, como assim
retomaria Nietzsche, de tornar o
conhecimento o mais potente dos afetos.
Porém, como os afetos ganhariam
tamanha importância na ética, se o
corpo não lhes abrisse esse espaço? Fazse necessário, assim, dar voz à Spinoza
acerca dessa questão: “O fato é que
ninguém determinou, até agora, o que
pode o corpo” (SPINOZA, 2009, p.
101). Frase provocativa, que comporta
múltiplos sentidos e questões. Uma
delas: a de que o corpo foi pouco
pensado pela tradição; outra: que pode
ser pensada como corolário da primeira
- o corpo é subestimado, quase sempre
tomado como superfície de aplicação de
regras por parte do poder mental
(superior ao corpóreo).
De fato, o corpo, desde Platão, parece
ter sido sempre colocado sob o domínio
da mente, da alma, como algo inferior e
muitas
vezes
dispensável,
principalmente no campo gnosiológico
– tomado muitas vezes como
empecilho, assim como as paixões que
o preenchem. Spinoza estaria “nadando
contra a corrente”, quando, na segunda
proposição do terceiro livro da Ética,
anuncia que “nem o corpo pode
determinar a mente a pensar, nem a
90
mente determinar o corpo ao
movimento ou ao repouso” (SPINOZA,
2009, p. 100). Acaba-se com a
hierarquia de um sob o outro, abrindo
espaço para o que os intérpretes de
Spinoza chamariam de paralelismo. O
paralelismo no campo humano, segundo
o qual a mente não determina o corpo e
vice-versa, reflete e se liga ao
paralelismo no plano ontológico, pela
expressão de Deus através dos dois
atributos conhecidos pelo homem:
pensamento e extensão.
O que Spinoza põe em evidência, contra
certa tradição, é que corpo não é um
obstáculo à vida; assim como o afeto
não é um obstáculo ao pensamento. Um
corpo em que sua capacidade de ser
afetado tenha sido diminuída é um
corpo desfavorecido, cuja mente pensa
cada vez mais de modo parcial. Um
corpo que se compõe sempre com os
mesmos corpos, de acordo com os
mesmos afetos, é um corpo em maior
limitação, com menor potência de se
livrar da servidão, pois se torna
dependente com maior facilidade. Uma
mente ligada a um corpo nessas
condições está impossibilitada de pensar
algo novo e tem sua potência de criação
reduzida.
Em que pese a presença de Spinoza no
rol dos pensadores que não separam
conhecimento e vida, não surpreende o
fato de que certas questões de sua ética
sejam também questões de ótica. Tese
reforçada (mesmo que a título de
provocação) na medida em que
realçarmos o fato de que o filósofo
marrano tenha tomado como sustento o
ofício de polir lentes, conforme a
tradição judaica de se mover na vida
com
o
trabalho
intelectual
paralelamente a um trabalho manual
(Cf. COLERUS, 2012). Trabalho esse
que preferiu a outros que lhe
trouxessem maior conforto financeiro,
como o de professor público, que, em
contrapartida, ameaçava o exercício de
sua liberdade. Spinoza que, em muitos
aspectos viveu como um verdadeiro
seguidor das virtudes cristãs, alguém
que viveu dentro da humildade, pobreza
(inclusive recusando a herança do pai) e
castidade. Não seria estranha tal vida,
vinda de um pensador tão ameaçador ao
cristianismo e a Moral dominante?
Porém, não seriam essas as próprias
ferramentas de guerra de um pensador?
O Filósofo se apropria de virtudes
ascéticas – humildade, pobreza,
castidade –, para fazê-las servir a
fins
totalmente
particulares,
inusitados, na verdade muito pouco
ascéticos. [...] isso não significando
para ele fins morais, nem tampouco
meios religiosos para outra vida,
mas antes os “efeitos” da própria
filosofia. E isso porque para o
filósofo não existe em absoluto
outra vida. Humildade, pobreza,
castidade tornam-se assim os
efeitos de uma vida particularmente
rica e superabundante, poderosa o
suficiente para ter conquistado o
pensamento e ter-se subordinado a
qualquer outro instinto – [...] a
partir de uma produção, de uma
produtividade, de uma potência, em
função das causas e dos efeitos. [...]
eis a maneira própria de o filósofo
ser um Grande Vivente, e de fazer
de seu próprio corpo um templo
para uma causa por demais
orgulhosa,
demasiado
rica,
demasiado sensual. De tal modo
que, ao atacar o filósofo, sofremos a
vergonha de atacar um invólucro
modesto, pobre e casto; o que
intensifica a raiva impotente, pois
ele, o filósofo, não oferece
nenhuma resistência, a despeito de
padecer
todos
os
golpes
(DELEUZE, 2002, p. 9).
Não oferecer resistência no campo da
luta, do combate físico, talvez, pois a
resistência pode ser ainda outra: a da
91
criação. Reflitamos sobre o que pensaria
Spinoza do fanático que tentou
assassiná-lo com uma faca (Cf.
COLERUS, 2012). Não seria aquele
homem um exemplo de um servo? De
um indivíduo dominado pelas paixões,
de um corpo fraco, diminuído em sua
capacidade de ser afetado, e por isso
fanático, triste, odioso? De um homem
que não conseguia superar o gênero da
experiência errática? Que não conseguia
pensar e não suportava o pensamento?
“Conta-se que Espinosa conservava o
seu casaco perfurado pela facada, para
melhor se lembrar de que o pensamento
nem sempre é apreciado pelos homens”
(DELEUZE, 2002, p. 12). Foi preciso,
então, para um homem livre feito
Spinoza, revidar não com ódio, mas
sim, criando. Condizente com uma
natureza livre, que não espera as forças
exteriores para agir, mas que , ao
contrário, cria pelo próprio ato imanente
à criação.
Spinoza mostrou que o pensamento
livre supõe ainda um certo tipo de olhar,
um novo modo de ver as coisas: o da
potência. Não há na ética spinoziana
nem um mandamento, não há ali busca
de se cumprir deveres ou preencher
faltas. A questão da ética, contrapondose a uma moral, não é “o que deve ser
feito”, mas sim e somente, “o que pode
ser feito”. Não há dívida ou pecado
original, não há princípio de ordenação
fora da natureza, há somente natureza e
potência de ação, desejo, conatus,
perseverança no ser – e é isso que se
pode chamar de essência em ato: “O
esforço pelo qual cada coisa se esforça
por perseverar em seu ser nada mais é
do que a sua essência atual.”
(SPINOZA, 2009, p. 105).
É ainda com esse olhar que pode
aparecer uma nova concepção de
desejo. O desejo como essência do
homem, porém, não sendo identificado
à falta, sem repouso em uma carência,
como argumenta Laurent Bove: “Aqui
temos - no meio de tantas semelhanças
desse pensamento com a psicanálise –
uma
diferença
fundamental:
contrariamente ao que sustenta Freud, e
também Lacan, a falta não é essencial”
(BOVE, 2010, p. 33). O Desejo é
potência afirmativa; ao contrário da
concepção de desejo como falta,
coerente com as doutrinas finalistas,
Spinoza oferece uma concepção de
desejo onde há somente aumento de
potência, de onde se pode inferir uma
vontade de criação, é o que assinala
Amauri Ferreira, no prólogo de sua
introdução à filosofia de Spinoza:
Contra todo dever ser, contra todo
modelo de perfeição, o sentimento
de felicidade é a nossa maior arma
no combate ao esmagamento
contínuo da vida humana. Criar é
uma resistência à submissão, e a
felicidade que provém do ato
criativo passa a nos guiar cada vez
mais, já que através dela podemos
avaliar as nossas atividades
cotidianas sempre do ponto de vista
do favorecimento ou do obstáculo à
fruição da vida. Como o criador é
movido por um desejo contínuo de
distribuir seus filhos ao mundo, é
inevitável que, ao perceber que está
muito próximo da morte, tenha
como única preocupação não a
morte mesma, mas sim ter a única
certeza de que tudo que foi possível
criar foi efetivamente distribuído ao
mundo. Por isso que o pensamento
da morte, quando nele surge,
funciona apenas como mais um
estímulo para tornar-se cada vez
mais fecundo e para não desviar-se
do seu caminho (FERREIRA, 2009,
p. 8).
Dessa concepção de desejo pode se
inferir uma energia criativa, uma vez
que o desejo, por essa via interpretativa,
não vive atrás de objetos dados, ao
contrário, o desejo cria o seu próprio
92
objeto, na medida em que é o afeto
primeiro, determinante do que é bom ou
ruim. Ainda assim, o que significa falar
de criação em um livro sobre um
pensador que usa tão pouco o termo?
Talvez pudéssemos pensar novamente
no alerta de Spinoza para com o
cuidado com as palavras; mas também,
não deveríamos supor que falar de
criação em Spinoza, não é também
tomar sua própria vida como
parâmetro? A vida de um homem que,
após ser excomungado da comunidade
judaica, em resposta – ao invés de
cultivar afetos tristes – escreveu um
esboço do que viria a ser o Tratado
teológico-político, isto é, de alguém que
responde sempre, mesmo aos inimigos,
com o ato criativo.
5. Conclusão
Entre as conseqüências práticas da
filosofia de Spinoza, de uma negação de
valores transcendentes, de uma ordem
moral do mundo, está a afirmação da
vida, do corpo. Segundo o paralelismo,
a alma não age em função do
padecimento do corpo, pois a ação da
alma é também ação no corpo, assim
como a paixão do corpo é, também,
paixão na alma. Spinoza compôs uma
ética em que os valores morais préestabelecidos foram trocados pelos
modos imanentes de existência, o que o
torna – conforme expressão cara a
Antônio Negri – uma anomalia
selvagem (Cf. NEGRI, 1993).
A Moral, enquanto ligada a valores
transcendentes, não sobrevive em tal
sistema, nem mesmo o julgamento de
Deus, – o que traz Nietzsche tão
próximo de Spinoza. O argumento da
vontade de Deus é o refúgio da
ignorância. Não há mais dívida para
com Deus, para com um outro mundo,
assim como o desejo não se guia em
função de um objeto pré-determinado.
Não se permite mais falar em dever,
mas somente em potência, o que eleva a
vida, retirando-a dos padrões de
oposição moral (Bem/Mal), ao colocá-la
sob os graus de intensidade de potência:
uma diferença qualitativa de graus, e
não uma diferença de natureza, pois só
existe uma única natureza, uma única
substância, um único mundo.
Fazer com que o homem olhe para a
vida e não para a morte, que reflita nela,
para se tornar livre – eis mais uma
conseqüência e mais uma tarefa sobre o
plano de uma ética da imanência. Se há
em Spinoza toda uma recusa a
princípios transcendentes, a uma ordem
moral do mundo, é na medida em que
sua filosofia se compõe somente com a
vida.
Vida e pensamento em consonância:
Spinoza soube como ninguém denunciar
os afetos tristes e as forças negadoras da
vida. Pois, como ressalta Deleuze, se a
tristeza nos causa diminuição da
potência de agir, o espalhamento da
tristeza não seria interesse dos poderes
estabelecidos? Não será a vida alegre a
mais apta a criar e a resistir? Pensemos
ainda em como Spinoza fugiu dos afetos
tristes, das determinações morais; do
estado, da religião. Procurou sempre o
ambiente mais favorável a liberdade,
isto é – os lugares onde o dever à
obediência não subjugassem a potência
do pensamento.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Petrópolis:
Vozes, 2009.
BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social:
ensaios de ontologia política e antropogênese.
Belo Horizonte: Autêntica; São Paulo: NupsiUSP, 2010.
CHAUÍ, Marilena. A nervura do real:
imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
COLERUS, Jean. Vida de Spinoza. Tradução de
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso. Disponível
93
em:
http://www.benedictusdespinoza.pro.br/4939/15
139.html. Acesso em: 24/10/2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Carta sobre Espinosa.
Cadernos Espinosanos, v. XVI, 2007c, p. 131138.
DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática.
São Paulo: Escuta, 2002.
_________. Genealogia da moral. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado político. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
_________. O Anticristo: maldição ao
cristianismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
_________. Tratado da correção do intelecto.
São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os
Pensadores).
FERREIRA, Amauri. Introdução à filosofia de
Spinoza. São Paulo: Quebra Nozes, 2009.
LEIBNIZ, Wilhelm Gottfried. Novos ensaios
sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril
Cultural, 1980. (Os Pensadores).
NEGRI, Antônio. A anomalia selvagem: poder e
potência em Spinoza. Rio de Janeiro: Ed.34,
1993.
SANTIAGO, Homero. A negação da ordem
moral do mundo. In: MARTINS, André
(ORG.). O mais potente dos afetos: Spinoza e
Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
SPINOZA, Benedictus de.
Horizonte: Autêntica, 2009.
Ética.
Belo
Recebido: 08.01.2012
Publicado: 12.12.2012
94
Download