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JOÃO PEDRO GEORGE
MARQUESA
D E PA I VA
O
DESTINO EXTRAORDINÁRIO
D E U M A AV E N T U R E I R A D O A M O R
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ÍNDICE
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Infância e adolescência na Rússia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Nas ruas de Paris . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Os dédalos da prostituição em França . . . . . . . . . . .
A prostituição de luxo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A arte da sedução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Na penúria em Paris e à conquista em Londres . . . . . . . .
A carreira da fortuna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Albino Araújo de Paiva: um português estoira-vergas em
Paris . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Segundo Império: o luxo como demonstração de poder .
O homem mais rico da Prússia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Um palacete extravagante nos Campos Elísios . . . . . . . . .
Jantares principescos e reuniões brilhantes: o salão da
Marquesa de Paiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A guerra franco-prussiana e a Comuna de Paris . . . . . . . .
Um casamento milionário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma espia ao serviço de Bismarck? . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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O adeus a Paris . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A posteridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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INTRODUÇÃO
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A Marquesa de Paiva – também conhecida, apenas, como La
Païva – foi das mulheres que mais curiosidade inspirou no seu tempo. Não dispondo dos trunfos de quem nasce numa família com
bens económicos e capital de relações sociais, originária de um lugar
com opções limitadas, transmutou esse fracasso inicial tornandoVHXPDFDoDGRUDLQYHWHUDGDGHKRPHQVULFRVHLQÁXHQWHVJUDQGHV
burgueses que se deixavam atrair irresistivelmente pela sua força
mágica, impotentes contra o seu misterioso talento para acender os
terríveis desejos da carne. Personagem surpreendente e com uma
vida extraordinária, a Marquesa de Paiva é o arquétipo da prostituta parisiense da segunda metade do século XIX, a última de uma
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Nascida na Rússia, numa família de judeus humildes, a Marquesa
de Paiva não tinha uma única origem, mas sim muitas circunstâncias. Mulher de índole forte e perseverante, com uma vontade de
aço, La Païva lutou sem tréguas contra o destino para se libertar da
pobreza, e enriquecer tornou-se o grande objectivo da sua vida, a
sua maior preocupação. O berço não lhe concedeu vantagens nem
lhe facilitou a vida, mas deixou-lhe a convicção de que não valia
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a pena viver se não fosse para ser rica. Desprendeu-se dos pais, do
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crianças), e atirou-se de corpo e alma a esse projecto, nesse desígnio concentrou todas as suas forças e resoluções, a isso se dedicou imutavelmente e nunca mais se afastou dos seus propósitos.
Segundo ela, o dinheiro prepondera em tudo e em todos, é essa a
verdadeira condição do ser humano: aspirar ao máximo de dinheiro. E o mundo, nesse sentido, divide-se em dois tipos de pessoas,
os que têm muito e vivem na opulência e os que vivem na pobreza
e na miséria, na desdita.
Com meticulosa obstinação maníaca, premeditou outro destino
e fugiu para Paris. Chegou sozinha e sem convicções, nem paixões,
apenas uma visão: ser rica. Durante o resto da sua vida, não pensou
em mais nada a não ser locupletar-se, não teve outro pensamento,
outra ideia, que não fosse enriquecer. Era esse o elemento essencial da sua organização e a base da sua felicidade. Não era o amor
(nunca ardeu de amor), não era a amizade (raros foram os seus
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os maridos, não era o sexo. A sua fogosidade na alcova era directamente proporcional às posses do amante (homens sem dinheiro
não duravam muito na sua cama) e tinha horror a gatos, cães, aves
e crianças, tudo aquilo que dá trabalho e não se traduz em dinheiro, e que a podia distrair da «caça ao bezerro de ouro».
Implacável sedutora, com uma capacidade invulgar para penetrar
rapidamente num grupo ou meio social, tudo fez para adquirir uma
posição na sociedade parisiense. Embora não fosse especialmente
dotada pela natureza – era de pequena estatura mas generosa de
carnes e larga de cintura, tinha uma testa proeminente, alta e quadrada, e o rosto redondo, os cabelos abundantes, os olhos grandes
e muito abertos, o nariz um pouco achatado, dir-se-ia mongólico, e
a boca de lábios grossos davam-lhe um aspeto invulgar –, tornou-se prostituta de luxo. A Marquesa de Paiva não correspondia ao
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padrão convencional de beleza feminina e isso permitiu-lhe exercer
um grande fascínio nos homens. Sem ser muito elegante ou bonita, era carismática e sabia realçar as suas formas deselegantes e desgraciosas, as ondulações do seu corpo, sabia como o manobrar.
O contacto directo com o ambiente da prostituição permitiu-lhe
saber exactamente o que os homens desejavam e estar onde devia
no momento apropriado, tanto assim foi que se tornou a rainha das
cortesãs do Segundo Império e um dos grandes mitos sexuais franceses da segunda metade do século XIX.
Gulosa de homens ricos, famosos e poderosos, estava sempre à
espreita da primeira ocasião de encontrar um grande capitalista ou
um herdeiro de sangue azul, com muitos e grandes apelidos, dispostos a arruinar-se por ela. Ao longo dos anos, deslumbrou e inebriou
altas personagens da sociedade parisiense, que se deixaram apanhar
na sua rede e se entregaram a ela com toda a alma. O compositor e
pianista Henri Herz, um dos mais requisitados do seu tempo, foi o
primeiro a sentir-se impotente contra as suas seduções e a encontrar-se inteiramente à sua mercê: por causa dela desembolsou quase
toda a sua fortuna. Para o irmão do pianista, Jacques, que também
era sócio do negócio de família (uma conceituada fábrica de pianos
e uma sala de espectáculos, a mais concorrida da cidade), a Paiva
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sem fundo, e tudo fez para malograr as suas intenções, no que foi
bem-sucedido, expulsando-a do núcleo dos Herz.
Nos primeiros tempos aguentou-se bem, mas depois teve de
empenhar as suas jóias e encontrar alguns aposentos baratos. De
regresso aos horrores da prostituição de rua, instalada numa pensão infecta de terceira categoria, viu-se outra vez numa situação
difícil, na estaca zero. Reduzida à miséria, privada de qualquer amparo, de tal maneira que durante uma doença grave que a subjugou
nem sequer podia pagar os remédios, jurou que se levantaria e que
ainda seria uma das mulheres mais ricas do seu tempo. Estava tão
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certa de o conseguir que convenceu o escritor Théophile Gautier,
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seria proprietária de um dos palacetes mais luxuosos dos Campos
Elísios, que escreveria uma página da história de França e que não
lhe faltariam os biógrafos para fazer a narração das suas conquistas.
Dotada de espírito forte e de personalidade vigorosa, com grande olfacto ou intuição para os contactos e os negócios, conseguiu
reunir energias e foi para Londres, onde seduziu o opulento Lord
Stanley, futuro primeiro-ministro de Inglaterra, que muito lhe apreciou os encantos. Anos mais tarde, de volta a Paris, foi frequentada
por Antoine Alfred Agénor de Guiche, mais tarde duque de Gramont, príncipe de Bidache e ministro de Assuntos Exteriores de
Napoleão III, e mereceu a ascensão ao cortesanato. Depois conheceu o português Albino de Araújo de Paiva, nascido em Macau, um
malandro acabado que se auto-intitulava marquês, viciado em mulheres e no jogo (por causa disso, levou a mãe, que vivia no Porto,
à miséria). Quando nada mais lhe restava, convenceu-o a casarem:
ela pagava-lhe as dívidas, ele transmitia-lhe o título (depois da aparência física, uma das primeiras coisas antes de chamar a atenção e
causar alvoroço era escolher um nome apropriado). Quando não
precisou mais dele, abandonou-o à sua sorte e deixou que se suicidasse com um tiro no peito.
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negócios e à pura distracção, passeios a cavalo, compras (escolhia
vestidos caros e chapéus e comprava jóias), jantares e ópera, de que
era assídua espectadora. Nunca se sentiu só no mundo nem nunca
precisou da família. Ninguém sabia o que ela realmente pensava,
ninguém sabia o que ia no íntimo da sua alma, nem nunca revelou
a sua verdadeira identidade. Que abismos levava dentro dela? Que
espaço ocuparia na sua memória a recordação dos primeiros dois
DQRVGHYLGDGRÀOKR"(GRVSDLVTXHQXQFDPDLVYLX"4XHPRWLvos ocultos terão inspirado a resolução de abandonar o marido e ir
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para Paris? Que imagens do seu passado lhe apareciam subitamente? Ter-lhe-á pesado alguma vez a consciência? Ter-lhe-á sangrado
alguma vez o coração?
A última e a mais preciosa de todas as suas conquistas foi o conde prussiano Guido Henckel von Donnersmarck, um dos grandes
milionários da Europa, que a pediu em casamento – poucas pessoas conseguem uma primeira oportunidade e quase nenhumas têm
direito à segunda, a Marquesa de Paiva teve direito a três (e ainda
conseguiu que Roma anulasse o casamento anterior) – e lhe ofereceu castelos, palacetes, jóias, obras de arte, riquezas imensas. Com
os milhões do alemão, mandou construir, em 1855, um sumptuoso e faustoso palacete nos Campos Elísios, um exemplo maior da
arquitectura do Segundo Império, o único que ainda hoje subsiste
naquela avenida e que deixou um rasto indelével na memória parisiense (considerado hoje património nacional). Ali promoveu, durante mais de dez anos, requintados jantares literários e artísticos,
RQGHVHUHXQLXDÁRUHDQDWDGDVDUWHVGDVOHWUDVHGDSROtWLFDHXropeias, o que lhe permitiu participar no debate político da época:
após alguns anos em bordéis e casas alugadas, a imigrante russa
ascendia à fama. Para cúmulo da iniquidade, tornou-se, por via do
marido, próxima de Bismarck e da família imperial alemã, foi acuVDGDGHHVSLRQDJHPDSyVDJXHUUDIUDQFRSUXVVLDQDHÀQDOPHQWH
expulsa de França.
No destino desta mulher de mil vidas – começou por se chamar Esther Pauline Lachmann, depois Thérèse Villoing e Blanche
Herz, mais tarde substituídos pelo nome Marquesa de Paiva e, por
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KRPHQVLQÁXHQWHVHGHDOWDSRVLomR3RUpPIRLDRODGRGRDULVWRcrata prussiano que se habituou ao luxo e às jóias, de que se tornaria
uma ávida coleccionadora. O maior prazer da sua vida era usar jóias,
era uma das poucas coisas que a seduzia e fascinava genuinamente. Como um desdobramento narcísico ou um contraponto da sua
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vida, que suavizavam o seu incurável calculismo e lhe concediam
umas horas no paraíso, as jóias exerciam um domínio absoluto sobre ela, eram o seu ponto de equilíbrio.
A Marquesa de Paiva foi das cortesãs do Segundo Império mais
solicitadas – época de ostentação, dissolução e frenesi sexual, de entrega aos prazeres da carne – e uma das que mais êxito tiveram. Não
pela beleza, não pelo amor, mas pelos maridos e pelas jóias, pelo
mecenato artístico e a obsessão implacável pelo dinheiro. Segundo
os contemporâneos, aqueles que escreveram sobre ela, nunca abriu
o coração a ninguém, nunca nutriu sentimentos profundos por ninguém, e o seu coração nunca palpitou por nenhum homem, jamais
a sua alma se sentiu abrasada por um amor. O sexo não era esfriado ou álgido, mas estava sobretudo ao serviço das suas ambições.
Sem pretensões de amar nem ser amada, talvez tenha apreciado a
companhia de algum homem, talvez tenha aceitado a presença de
outros, porém, o seu coração nunca pertenceu verdadeiramente a
nenhum homem ou mulher. Para viver precisava apenas de dinheiro, o amor não lhe fazia falta. Nem nunca sentiu peso na consciência e nunca derramou uma lágrima (as lágrimas, se alguma vez
lhe nasceram no coração, estancou-as sempre nos olhos e nunca
ninguém a viu chorar). Dura e fria como o mármore, sem empatia
nem sentimentos de culpa, falava sempre a linguagem da razão e
nunca a dos sentimentos, a sua inteligência venceu sempre o coração e o seu coração, em cujo interior havia redemoinhos densos e
inimaginavelmente escuros, nunca vingou sobre o cérebro. Apesar
de inacessível às emoções e destituída de sentimentos, tinha um
temperamento sociável e os seus olhos, vivíssimos, tinham o poder de ler no rosto das pessoas.
O que haveria nela que atraía os homens e lhe permitiu encetar uma carreira fulgurante na sociedade francesa? A expressão de
uma força de uma nova espécie? A capacidade de penetrar no manancial primitivo da líbido masculina? Um desejo sexual imoderado,
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uma habilidade singular no acto? Exalava voluptuosidade e na cama
ninguém lhe levava a palma? Sabe-se que a simples presença física
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sexo, mas esse era apenas parte do seu atractivo. La Païva irradiava
fascínio pessoal, como se hábitos inconfessáveis ou perigosos segredos envolvessem a sua vida. Mulher orgulhosa, olhava sempre
de frente para os outros, com um distanciamento enigmático – não
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voz nunca lhe tremia nem nunca hesitava quando falava. Com os
homens era ela que tomava a iniciativa e nenhuma força no mundo
era capaz de vergar-lhe a vontade, nem nunca perdia o sentido da
realidade, antes parecia medir a sua vida com régua e esquadro. Na
sua opinião, tudo acontece graças à força de vontade, as circunstâncias não existem, cada indivíduo é que cria as suas próprias circunstâncias. Para a Marquesa de Paiva, a vontade é o agente da história
e da liberdade, é a verdadeira medida do progresso individual e do
êxito de cada um, é ela que nos liberta de todas as limitações, quer
as naturais, quer as sociais. Em suma, a vontade é a causa, a essênFLDHDGHWHUPLQDomRÀQDOGDVFRLVDVVHPRHVIRUoRUHQRYDGRGD
vontade, a vida escorrega debaixo dos nossos pés.
Numa época em que a resignação era um dever das mulheres,
faltava-lhe aquela doçura obediente que se ajustava ao ideal de feminilidade. Tinha um poderoso instinto de dominação, de estar em
controlo da situação, e estava-se nas tintas para certas convenções.
Nunca reverenciou as virtudes viris nem os princípios masculinos,
e subverteu os estereótipos femininos (o cortesanato, nesse sentido,
emancipou-a). Segura de si própria, a Marquesa de Paiva afrontou
os interditos da sociedade e recusou as conveniências, seguiu apenas
a sua própria lei e levou o fermento da diferença a uma época de
hipocrisia e cinismo. Moralmente nunca se sentiu obrigada a nada
e teve a ousadia de comportar-se de forma diferente, de viver fora
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sociedade governada por Luís Napoleão Bonaparte, o imperador
Napoleão III (sobrinho de Napoleão Bonaparte, ou Napoleão I).
A sua vida pôs em causa os rígidos códigos morais, mas não era
um espírito perturbado, sabia bem o que queria, e a sua consciência, aparentemente, nunca se revoltou contra ela.
Muito do que se sabe sobre a Marquesa de Paiva está registado
nas obras de alguns contemporâneos, provém das memórias e dos
diários daqueles que conviveram com ela, quase todos homens,
onde encontramos conjugados elementos de misoginia e de anti-semitismo. Nessas descrições intuímos o medo e o espanto dos
homens perante uma mulher poderosa que conseguia obter o que
queria deles e que não se deixava dominar. Num contexto histórico-cultural em que a consideração e o poder eram medidos e avaliados
pela ostentação e pelo fausto, as cortesãs deviam saber o seu lugar
e limitar-se à sua função decorativa dos homens ricos que acomSDQKDYDP2VKRPHQVTXHTXHULDPGLQKHLURSRGHUHLQÁXrQFLD
não eram mal vistos, os que possuíam as mesmas características
dela – ambição, tenacidade, grande força interior, apetência pelo
vil metal, prazer em exibi-lo, sentido das oportunidades, ausência
de escrúpulos, calculismo, manipulação para abrir caminho à cusWDGRVRXWURVHVDWLVID]HURVVHXVSUySULRVÀQV²HUDPDGPLUDGRV
Demais, não era suposto as cortesãs procurarem o sucesso ou fazerem-se notar por elas próprias ou evidenciarem a sua inteligência e astúcia (La Païva tinha poucos estudos, mas era culta e sabia
falar várias línguas). Tão-pouco era suposto mandarem construir
palacetes nos Campos Elísios e depois reservar a entrada apenas
a artistas e intelectuais. Quase sempre vários passos à frente dos
maridos, sobre os ombros de mulheres como ela se urdiu também
o feminismo do século XX.
Pavoneando-se com vestidos de seda e chapéus espampanantes para se proteger dos ardores do sol, montada num cavalo magQLÀFDPHQWHHQJDODQDGRRXH[LELQGRVHHPFDUUXDJHQVULFDPHQWH
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adornadas, nunca lhe faltou ânimo para aumentar a fortuna e exibir
que a possuía. Provocava a curiosidade dos parisienses – os seus
casos amorosos eram comentados publicamente – e ninguém passava com indiferença por ela. Sobretudo depois de morrer, o seu
nome foi repetido nos jornais, quase sempre carregado de vícios e
de miséria moral. Conhecida pejorativamente como «a Estrangeira» – parte da controvérsia que levantou e das opiniões hostis formadas acerca dela, em particular depois do colapso do Segundo
Império, deveram-se ao facto de ser estrangeira e judia –, as burguesas temiam-na e não a aceitavam nos seus bailes e festas. No
entanto, o atractivo que a vida da Marquesa de Paiva exercia sobre
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sociedade parisiense do século XIX.
Por causa da sua arrogância e do seu êxito ruidoso, mais do que
pela sua vida supostamente escandalosa, a Marquesa de Paiva inspirou raiva, nojo e desprezo, e sobre ela circularam muitas histórias e rumores que a procuravam denegrir, que a anatematizaram
e amaldiçoaram: mulher perdida e depravada, cujo furor sexual
provocava magnetismo e hipnose, para os quais não havia antídoto; criatura imunda caída em pecado que tinha vindo de longe
para assediar os homens ricos de Paris e que, por isso, representava um perigo para toda a sociedade francesa; símbolo perfeito
da corrupção moral, um verdadeiro demónio, uma bruxa que seduzia e embriagava o coração dos jovens, guiando-os à perdição;
serpente estrangeira ávida de prazer, um perigo para a imaginação
das raparigas indefesas, que se poderiam estimular e contaminar
SHORVHXPDXH[HPSOR5HVXPLQGRDVXDFRQGXWDIRLPDJQLÀFDda e atribuíram-lhe intenções maliciosas e desígnios perniciosos,
quase nunca fundados sobre conhecimentos de primeira mão, pela
simples razão de que a vida dissoluta da Marquesa inspirava tanto asco como curiosidade, exercia um atractivo sobre os espíritos,
sobretudo das burguesas submissas e puritanas, que deploravam a
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conspurcação dos costumes mas que, ao mesmo tempo, a invejam
(havia algo na determinação dela em deixar de ser cortesã que nos
diz que desejava apenas uma vida que muitas outras mulheres, sem
o confessarem, também queriam para si). Interpretações díspares
e variadas, com estas constantes: a sua perversidade, a sua crueza
e o seu erotismo sanguinário.
Essas histórias, onde é retratada como uma bruxa maldosa com
excesso de maquilhagem que seduzia e atraía os homens ricos para
se apoderar do seu dinheiro, dão conta dos preconceitos contra as
mulheres mas também contra os judeus – algumas características
dela foram atribuídas ao facto de ser judia – e os estrangeiros (e a
Marquesa de Paiva encarnava todos eles). Mesquinha e avarenta,
as lendas dizem que tratava os criados com punho de ferro, que
era implacável com o mais pequeno descuido, que os aterrorizava:
obrigava um empregado que começava o trabalho às seis da manhã e só terminava, exausto, à meia-noite, a abrir, lavar e fechar as
150 janelas do seu castelo de Pontchartrain, e que os jardins das
suas propriedades eram um inferno para os jardineiros, os quais
eram multados em 50 cêntimos por cada folha encontrada no chão
DSUySULD0DUTXHVDHPSHVVRDUHFROKLDDVPXOWDVDRÀQDOGRGLD
Que não precisava de lareiras no Inverno porque gostava de viver
em ambientes gelados, como os monstros da mitologia escandinava; que quando precisava de curar a acidez do seu sangue tomava
banhos de leite e por vezes até de champanhe; que quando foi derrubada por um cavalo se levantou, sacou da pistola do seu cinto e
matou-o; que em velha, para não assistir ao seu declínio físico e à
sua degeneração, partiu os espelhos todos de casa.
Comparada a Dalila, a Cleópatra, a Semíramis, a Aspásia, a Messalina, a Imperia Cognata; contemporânea de outras cortesãs famosas – como Cora Pearl, Marguerite Bellanger ou Marie Duplessis –,
a Marquesa de Paiva foi elevada ao estatuto de personagem literária
(quase totémica) e alguns traços da sua vida foram retratados em
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obras de escritores como Émile Zola, que a terá tomado como um
dos modelos para Nana, ou Alexandre Dumas, ÀOKR, que se inspirou
nela para compor a promíscua e espia traidora Césarine – «uma criatura estranha, mórbida, monstruosa» –, da peça La Femme de Claude
(1873). Ciosa de si mesma e da sua memória, ocultou cuidadosamente a sua identidade – sempre evitou que a pintassem, daí que
dela se conheça apenas um retrato, e poucas foram as cartas (dela ou
SDUDHODTXHVREUHYLYHUDP²LVVRH[SOLFDTXHDVXDELRJUDÀDWHQKD
tantas zonas complexas e obscuras. Entre os clientes e os maridos,
entre o seu gosto pelas jóias e o amor pelo dinheiro, a Marquesa
de Paiva foi a mais inimitável de todas as prostitutas de Segundo
,PSpULRHXPDÀJXUDLQLJXDOiYHOGRWXUEXOHQWRVpFXORXIX francês.
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I N FÂ N C I A E A D O L E S C Ê N C I A
NA RÚSSIA
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Sobre a infância e a adolescência da Marquesa de Paiva há ainda
muito por averiguar. Terá nascido na sexta-feira dia 7 de Maio de
1819, na Rússia, num gueto judeu, com o nome de Esther Pauline
Lachmann. O pai, Martin Lachmann, judeu polaco, e a mãe, Anna
Amalie Klein Lachmann, provavelmente de origem alemã (Klein
era o seu nome de solteira), eram refugiados e viviam na Rússia,
na chamada Zona de Assentamento criada em 1791 por Catarina,
a GrandeQDVHTXrQFLDGDVSDUWLOKDVGD3ROyQLDQRÀQDOGRVpFXOR
XVIII, mas também por causa da discriminação a que estavam sujeitos, ou ainda da crise económica que alastrava no país, várias centenas de judeus, sobretudo os mais pobres, fugiram para a Rússia,
DSURYHLWDQGRDPRGLÀFDomRHPGDOHLTXHSURLELDRVMXGHXV
de viverem em território russo).
Se as condições de existência na Rússia eram difíceis para a esmagadora maioria dos súbditos, elas eram bem piores para os judeus. Cada vez mais numerosos no império russo – as partilhas da
Polónia,1 que levaram à anexação de vários territórios, aumentaram
substancialmente a população semita, tendo chegado a existir, só
na Zona de Assentamento, mais de cinco milhões –, os judeus
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tinham-se tornado uma fonte de preocupações para as autoridades, que os procuravam expulsar (por exemplo, recorrendo à lei que
permitia a expulsão das famílias judias que não dispunham de um
chefe de família que lhes garantisse o sustento), converter à ortodoxia russa (baptizando-os), ou mesmo eliminar (quase sempre por
inanição, mas também convocando-os para o exército em guerra,
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restantes militares).
Em 1791, quando os mercadores moscovitas exigiram do Governo protecção contra a concorrência dos judeus, saiu um decreto
que proibia os elementos daquela minoria religiosa – exceptuando os
judeus muito ricos, os advogados, os médicos e os artesãos pertencentes a alguma associação (ou seja, um minoria dentro da minoria),
pois esses eram úteis à economia – de se estabelecerem na Rússia
Central, em particular nas cidades de Moscovo e São Petersburgo
(construída sobre terreno pantanoso, esta última cidade dispunha de
um porto internacional – o mais próximo do Ocidente no contexto
da Rússia – que lhe dava acesso ao comércio marítimo do mar Báltico, razão pela qual era considerada a «janela da Rússia para a Europa» e proclamada capital do império durante mais de 200 anos).
Pouco tempo depois, em 1794, com base nesse decreto, foi criada uma Zona de Assentamento (em russo Cherta Osedlosti), onde os
judeus eram obrigados a viver, com um milhão de quilómetros quadrados (quatro por cento do império) e se situava na região fronteiriça ocidental e ia do Báltico até ao mar Negro, incluindo, além de
algumas regiões ocidentais da Rússia, territórios da actual Polónia,
Bielorrúsia, Lituânia, Moldávia e Ucrânia (algumas grandes cidades dentro dessa zona demarcada, como Kiev, Sebastopol ou Ialta,
também lhes eram inacessíveis). Todos os judeus (salvo as categoULDVDWUiVPHQFLRQDGDVÀFDYDPSURLELGRVGHYLYHUHPTXDLVTXHU
outras regiões da «Mãe Rússia»: Volga, Urais, Sibéria, Moscovo e
6mR3HWHUVEXUJRD~QLFDIRUPDGHEHQHÀFLDUHPGRVGLUHLWRVGRV
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súbditos russos era a sua assimilação, convertendo-se à Igreja Ortodoxa, o que muito poucos judeus faziam e os condenava a uma
pobreza económica extrema).
Para a Zona de Assentamento deslocaram-se cerca de 90 por
cento dos hebreus que viviam na Rússia, a ponto de terem passado a ser maioritários em várias pequenas cidades ou povoações, em
iídiche denominadas shtetls.2 Os judeus que se aventuravam a viver
IRUDGHVVDiUHDFRQÀQDGDVXMHLWDYDPVHDVHUDVVDVVLQDGRVWRUWXrados ou encarcerados em prisões tenebrosas, e para saírem dela
temporariamente precisavam de uma licença especial (quase sempre de curta duração) e de obtenção muito difícil (quase sempre
concedida apenas a uns quantos privilegiados). Em Moscovo, por
exemplo, as autoridades atribuíam recompensas a quem capturasse um judeu (por cada judeu, a polícia oferecia uma recompensa
equivalente à captura de dois ladrões). De resto, até ao derrube do
regime czarista, em 1917, as medidas dirigidas contra os judeus foram sendo sempre cada vez mais restritivas.
Num império onde todas as religiões podiam ser praticadas livremente, não deixa de causar perplexidade a hostilidade e a repressão dirigidas contra os judeus, de tal maneira que o anti-semitismo
não estava proibido (sendo mesmo, por vezes, incentivado pelas
autoridades). Por exemplo, na segunda metade do século XVIII, a
czarina Catarina II, a Grande, imbuída dos ideais iluministas, mandou publicar a Carta de Tolerância Religiosa, que abrangendo muçulmanos e cristãos não-ortodoxos excluía, porém, os judeus. Do
mesmo modo, uma das primeiras medidas, assim que ascendeu ao
trono, foi autorizar a todos os estrangeiros uma liberdade total de
movimentos e actividades dentro dos territórios do império, decisão que, uma vez mais, não incluía os judeus, considerados uma
LQÁXrQFLDVRFLDOQRFLYD
Em mais de uma ocasião, os líderes do império procuraram «rusVLÀFDUªjIRUoDRVMXGHXV(PMiVREDDXWRULGDGHGRF]DU
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Alexandre I (neto de Catarina), foi promulgado o Estatuto dos Judeus, que permitindo o acesso das crianças e dos jovens judeus às
escolas e universidades russas visava, tão-somente, doutriná-los de
acordo com os princípios cristãos; decretava a sua expulsão de algumas povoações da Zona de Assentamento e obrigava-os a viverem
em centros urbanos; proibia-os de arrendarem terras, sendo-lhes
apenas permitido cultivar o solo que pertencia ao Governo, no sul
da Rússia (o que os obrigava, novamente, a emigrar), bem como
de comercializarem bebidas alcoólicas (incluindo dirigir estabelecimentos comerciais que as vendessem).
Em Agosto de 1827, Nicolau I, sucessor de Alexandre, movido
pelo seu fanatismo nacionalista, aprovou os Decretos de Cantão,
que consistiam basicamente numa «reinterpretação» agressiva da
anterior lei do recrutamento militar e que, uma vez mais, tinham
como objectivo forçar a assimilação e conversão dos judeus: assim
que cumpriam 12 anos, os jovens eram obrigados a frequentar as
HVFRODVFDQWRQDLV©FDQWmRªVLJQLÀFDYDDFDPSDPHQWRPLOLWDURQGH
não podiam rezar em hebraico, onde eram obrigados a assistir às
missas e aulas de religião ortodoxa cristã e onde se realizavam baptismos em massa (quem resistia a qualquer dessas medidas era abandonado à fome e submetido a castigos violentos, alguns dos quais
levavam à morte); chegados aos 18 anos, aqueles que sobreviviam
(ou seja, os que se tinham deixado converter) tinham de cumprir,
durante 25 anos, o serviço militar (a crueldade destas medidas foi
tal que os decretos cantonais acabaram por se tornar o tema central
do folclore judaico-russo). Em 1835, considerando que o impacto
GDVVXDVRUGHQVWLQKDÀFDGRDTXpPGRVREMHFWLYRVDVVLPLODGRUHV
Nicolau voltou à carga diminuindo a área onde os judeus podiam
residir dentro da Zona de Assentamento; proibindo o uso de roupas tradicionais judaicas assim como da língua iídiche; e deliberando que milhares de livros em hebraico e iídiche fossem destruídos
pelo fogo na praça pública.
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As razões para tanta brutalidade, mais do que religiosas, eram
económicas e políticas. Por um lado, os judeus estavam a tirar partido do ainda tímido progresso industrial, mais do que os comerciantes nativos russos, numa palavra, estavam a constituir-se como
XPDFODVVHPpGLDLQÁXHQWH1HVWHVHQWLGRUHVWULQJLURVVHXVPRYLPHQWRVGHVWHUUDQGRRVHGLÀFXOWDUDVVXDVDFWLYLGDGHVHFRQyPLcas (afastando-os das zonas de grande comércio, como Moscovo
e São Petersburgo) visava garantir condições para o crescimento
de uma classe média russa não judia. Por outro lado, num imenso
território maioritariamente agrário, povoado por milhões de camponeses andrajosos e analfabetos (os camponeses representavam
cerca de 90 por cento do total da população); que estavam submetidos a um sistema de servidão deplorável, que incluía o pagamento
de tributos elevadíssimos aos nobres proprietários das terras; que
dispunham de poucas ou nenhumas defesas contra as inclemências
do clima russo; e que arriscavam, com grande probabilidade, o recrutamento militar que os atiraria, como carne para canhão, para as
múltiplas guerras de expansão territorial do império (obcecado com
a ideia de pertencer ao clube das grandes potências europeias), em
suma, num cenário tão explosivo, o Governo precisava de canalizar a insatisfação dessa massa da população para outros alvos – os
judeus, invariavelmente, apontados como os grandes responsáveis
pela miséria dos servos escravizados pela nobreza latifundiária –,
evitando assim algumas potenciais revoltas.
Como quase tudo o que diz respeito à Marquesa de Paiva, as
interpretações sobre as suas origens são díspares e variadas. AlJXQVLQYHVWLJDGRUHVDÀUPDPTXHRSDLHUDXPWHFHOmRSREUHRX
um modesto mercador de roupa, informação contestada por outros que defendem que a Marquesa nasceu em Moscovo e que a
família vivia legalmente nessa cidade, o que, a ser verdade, signiÀFDTXH0DUWLQ/DFKPDQQHUDXPKRPHPFRPDOJXPDVSRVVHV
talvez mesmo um judeu rico que pertencia a um qualquer grémio
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SURÀVVLRQDOHVWDWXWRTXHOKHWHULDSHUPLWLGRHVFDSDUGDKRUUtYHO
miséria da Zona de Assentamento. Há também quem garanta, em
alternativa, que a família viveria ilegalmente nas imediações de Moscovo – no centro da cidade teria sido impossível passarem desapercebidos sem que fossem denunciados –, e ainda quem assegure
que os Lachmann não viviam em Moscovo, apenas aí se deslocavam, periodicamente, para fazerem comércio. Esta última possibilidade parece mais próxima da verdade, pela seguinte razão: a fonte
HPTXHRVLQYHVWLJDGRUHVVHEDVHLDPSDUDÀ[DURQDVFLPHQWRGD
0DUTXHVDHP0RVFRYRpRFHUWLÀFDGRGRVHXWHUFHLURFDVDPHQWR
– com um dos homens mais ricos da Prússia –, que contém, comprovadamente, informações falsas. Na realidade, esse documento
IRLXWLOL]DGRSHOD3DLYDSDUDUHFRQVWUXLUDVXDELRJUDÀDHOLPLQDQdo todos os vestígios que apontassem para uma origem familiar
humilde (além disso, se pensarmos que para um francês do século
XIX os russos eram todos originários, invariavelmente, de Moscovo ou de São Petersburgo, convencer o funcionário dos registos
de que tinha nascido na primeira cidade não lhe terá exigido grandes dotes de eloquência). Outro rumor a propósito da sua infância
diz que a Marquesa foi baptizada quando tinha sete anos, o que, a
VHUDVVLPVySRGLDVLJQLÀFDUXPDFRLVDTXHRVSDLVDFHUWDDOWXUD
decidiram renunciar ao judaísmo, a fé dos antepassados de ambos
os ramos familiares (talvez com o objectivo de proporcionar uma
YLGDPHOKRUjÀOKDSHUPLWLQGROKHRDFHVVRjHGXFDomRPLQLVWUDda nas escolas russas).
Sobre uma coisa, no entanto, parece haver algum consenso: os
Lachmann não seriam judeus típicos. Ou, pelo menos, não respeitavam escrupulosamente as tradições hebraicas da Europa de Leste,
que impunham que as raparigas já deveriam estar casadas quando
atingissem os 13 anos (16 no caso dos rapazes). Em 1827 e 1835,
na sequência de várias informações segundo as quais o czar iria
aumentar a idade mínima dos casamentos – para assim limitar o
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crescimento populacional entre os judeus –, o pânico espalhou-se
entre as comunidades judaicas, tendo-se então celebrado (à pressa)
uma série de casamentos (não foi assim com os Lachmann, visto
TXHHPTXDQGRMiWLQKDDQRVDÀOKDFRQWLQXDYDVROWHLUD
(P$EULOGH1LFRODX,LQÁXHQFLDGRSHODOHJLVODomRDXVWUtDFDHSUXVVLDQDDVVLQRXXPQRYRFyGLJRHPTXHÀFDYDHVWLSXlado que as mulheres e os homens só poderiam casar-se depois de
cumpridos, respectivamente, os 16 e os 18 anos. Essa normativa
autorizava alguns comerciantes judeus a deslocarem-se a São Petersburgo e a Moscovo, bem como a alguns portos marítimos e a
algumas feiras da Rússia – como as de Nizhny Novgorod e Carcóvia, entre outras cidades – ou do estrangeiro, como a feira anual de Leipzig, para comprarem mercadorias e exportarem os seus
produtos (por exemplo, peles). Martin Lachmann terá feito algumas viagens desse género, uma das quais, pelo menos, a Moscovo
HDFRPSDQKDGRGDÀOKDMiTXHIRLQHVVDFLGDGHTXHDIXWXUD0DUquesa de Paiva se casou, em 11 de Agosto de 1836, com um alfaiate
francês de nome François Hyacinthe Antoine Villoing, então com
26 anos (mais nove, portanto, que a noiva). Nascido em Paris em
1810, ninguém sabe como apareceu na Rússia, tão-pouco se coQKHFHDVXDÀOLDomRDSHQDVTXHVHHVWDEHOHFHXHP0RVFRYRRQGH
de resto a presença de franceses era vulgar e em grande número (o
francês era o idioma mais utilizado entre as classes altas). Casaram
QXPDLJUHMDRUWRGR[DRTXHVLJQLÀFDTXHDQWHVGLVVR(VWKHU/Dchmann teve de se baptizar e de se converter ao cristianismo, altura em que aproveitou para mudar de nome, passando a chamar-se
Thérèse. Um ano depois, em 1837, tiveram um rapaz, a quem deram o nome de Antoine, e em 1838, com 19 anos, a rapariga fugiu
SDUD3DULVGHL[DQGRSDUDWUiVRPDULGRHRÀOKR
Fascinada pela cultura francesa – a Rússia era então profundamente permeada pela cultura francesa –, viver em Paris era um
sonho forjado no íntimo, em silêncio. Há anos que qualquer coisa
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fermentava dentro dela, que a imaginação acordara nela o desejo de ir para a capital de França, conhecida em toda a Europa, e
HPSDUWLFXODUQD5~VVLDFRPRXPDFLGDGHVRÀVWLFDGDHHOHJDQWH
a mais inteligente das cidades, a mais divertida e a mais animada,
uma cidade em constante movimento, a cidade ideal, o paraíso das
cidades (além de um sítio onde os judeus tinham oportunidades de
sucesso e de gozar uma vida boa). Era, digamos assim, a expressão
máxima do progresso da civilização europeia. Depois, o contacto com os livros e as revistas franceses fertilizara o seu espírito de
imagens do tumulto da vida parisiense, inoculara nela a obsessão
SRU3DULVVXJHVWLRQDUDDHLQÁDPDUDDFRPRGHVHMRGHRXWUDYLGD
um horizonte de visão muito mais amplo. Em suma, apoderara-se
dela uma enorme vontade de abandonar Moscovo.
$VVLPTXDQGRDÀOKDGRV/DFKPDQQVHFDVRXFRPXPIUDQFrV
mais a mais nascido na Cidade Luz, já ela levava dentro a semente
da vida parisiense e luxuosa. Esse fora o primeiro passo, o seguinte seria convencê-lo a irem viver para ali. O marido, porém, não
se mostrou inclinado a regressar a França, queria estabilizar a vida
em Moscovo, por ora estava satisfeito como alfaiate, como homem
casado e como pai de um rapaz que iria perpetuar o seu apelido.
Tão cedo, portanto, não pensava abandonar a Rússia. Esse cenário
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acordada na cama, de olhos fechados, a pensar nos anos incontáveis que iria viver naquelas circunstâncias; não devia ter casado,
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quotidiano, a uma vivência relegada ao anonimato e à mediania,
não conseguia imaginar-se morrendo sem ter feito nada digno de
registo, sufocada pela monotonia e a mediocridade.
Várias vezes sentiu a náusea desse destino: a ideia de que iria
passar o resto dos seus dias como mulher de um alfaiate, de que
iria vegetar a sua juventude numa cidade fria e cinzenta como
Moscovo (onde o ambiente era hostil mesmo para os convertidos)
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