UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE TORÁ – MAIS QUE

Propaganda
1
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
TORÁ – MAIS QUE UMA LEI1:
Significado e uso nas Escrituras, para os judeus e para a Igreja.
Wesley de Almeida Franco
RESUMO
O presente artigo se propõe a investigar o significado da palavra torá nas
Escrituras e no Judaísmo, objetivando resgatar seu verdadeiro sentido que se
perdeu para a ideia comum de lei. Para tanto, iremos averiguar algumas formas de
uso e seu contexto no Antigo Testamento e como ela é empregada e reconhecida no
Judaísmo, bem como suas implicações no Novo Testamento e para a Igreja.
Este estudo consistiu em uma pesquisa a importantes obras e autores
disponíveis no meio acadêmico que analisam nas Escrituras e na Teologia muitos
aspectos da relação entre Lei e a Graça, Jesus e a Lei, a teologia de Paulo e a Lei, a
história da interpretação bíblica, a história do Judaísmo, etc. Nos pontos em que há
mais debates e divergências buscou-se fornecer diferentes opiniões acerca da
questão, procurando conciliar tais respostas com o objetivo deste trabalho.
Palavras-chave: Torá. Lei. Lei de Moisés. Instrução. Ensino. Direção. Significado.
ABSTRACT
This work aims to investigate the meaning of the word torah both in the
Scriptures and in Judaism by bringing back the original meaning that has deviated to
the common idea of law. For this purpose its usage has been investigated within the
context of the Old Testament and how it is acceptedly used in Judaism, as well as the
1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Educação, Filosofia e Teologia da
Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em
Teologia. Orientador: Prof. Dr. Jonathan Luis Hack.
2
implications
thereof
on
both
the
New
Testament
and
the
Church.
The material for this study was collected from renowned works and authors
available in the academic environment that thoroughly analyse Scriptures
and theology in many different aspects of the relationship between the
Grace, Jesus, the theology of Paul and the Law, as well as the history of
biblical interpretation, the history of Judaism etc. Where debatable and/or
controversial topics arise, different views have been provided on the issue
in an attempt to settle a common ground to match the overall objectives of
this work.
Keywords: Torah. Law. Law of Moses. Instruction. Education. Direction. Meaning.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Pentateuco ou Lei de Moisés são as expressões mais conhecidas no contexto
cristão para se referir à Torá, isto é, os cinco primeiros livros da Bíblia atribuídos a
Moisés. Estes livros, especialmente Deuteronômio, formam a base para a teologia e
historiografia do Antigo Testamento (AT). São tão importantes que, segundo explica
Lopes (2007, p. 36-38), a divisão do cânon hebraico do AT forma um edifício
hermenêutico, cuja base é a Torá, as demais partes, os Profetas e os Escritos,
repousam sobre ela, e o Novo Testamento (NT), sobre ambos. Deste modo, a Torá
influencia e determina todo o edifício.
Contudo, na história da Igreja, houve uma tendência, baseada no Novo
Testamento, especialmente nos escritos de Paulo, em generalizar todo o Antigo
Testamento sob a ideia de “Lei” em contraposição ao Evangelho, em termos de
“Graça”, e assim impondo uma relação dualista entre Torá (como Antigo Testamento)
e Evangelho, perfazendo uma dicotomia “lei/graça”. Entretanto, a palavra torá, no AT,
tem implicações maiores que a ideia de lei, sendo que tal relação é indevida.
Assim, iremos primeiramente buscar o significado etimológico do termo torá e
seu uso no AT, a fim de resgatar seu verdadeiro sentido. Posteriormente iremos
trabalhar o que o termo representava para o judaísmo do primeiro século depois de
Cristo e seu uso no NT, buscando um meio de conciliar aquela dualidade. E por fim,
verificaremos o que ele representa no judaísmo atual e para a Igreja brasileira.
3
1.
ETIMOLOGIA E USO NO ANTIGO TESTAMENTO
Entre as bibliografias consultadas neste trabalho, há certo consenso, embora
haja discussões quanto a isso, de que o substantivo ‫תורהה‬, conhecido na sua forma
transliterada “torá” ou “torah”2, pode ser derivado do verbo ‫( יהרהה‬yarah) que na sua
forma verbal qal significa: lançar, atirar, jogar; e na forma hifil significa: ensinar
(HARRIS, 1998, p. 660), apontar, guiar, instruir (PFEIFFER, 2006, p.1953). Ela é
encontrada em todos os períodos do idioma hebraico e também no ugarítico antigo
com o significado de “Atirar”. Ocorre cerca de 80 vezes no AT, sendo a primeira em
Gn 31.51, no qual o significado de “lançar” aparece: “[...] aqui estão este monte de
pedras e esta coluna que coloquei [lancei] entre mim e você” (NVI). Também está
relacionado ao tiro de flechas, como, por exemplo, em 1Sm 20.36,37. “O hebraico
moderno usa a palavra para expressar o disparo de uma arma” (VINE, 2007, p. 103).
Em Gn 46.26 aparece com o sentido de “mostrar a direção”, “guiar”: “ora, Jacó
enviou Judá à sua frente a José, para saber como ir a Gósen...”(NVI). Outra forma
interessante em que o verbo aparece está em Dt 11.14, “primeiras chuvas”, chuvas
que aconteciam entre outubro e dezembro, vistas como providência de Deus para a
colheita, águas que Deus lançava na terra para regá-la (HARRIS, 1998, p. 660).
Assim, os usos mais frequentes da raiz deste verbo são no sentido de atirar
flechas, enviar chuvas e ensinar. Há uma ideia de controle nesta ação por parte de
seu agente (HARRIS, 1998, p. 660), por exemplo, antes de atirar a flecha se faz
pontaria para a direção que se pretende atingir, ou ainda, Deus é aquele que
controla a chuva e a envia a seu tempo (Jl 2.23). Semelhantemente, aquele que
ensina, não só dá a direção, instruindo no caminho a seguir, na verdade e na vida,
como seu ensino lhe confere certo controle sobre aquele a quem ensina.
Os usos desta raiz no livro de Provérbios mostram a importância da instrução
que os pais devem manter sobre seus filhos e os mestres sobre seus alunos para
que eles andem na ”direção correta” (Pv 4.4,11). Do mesmo modo, os sacerdotes e
juízes tinham a responsabilidade de ensinar o povo nos estatutos e juízos de Deus,
2 Usaremos a forma “torá” quando em referência ao termo e “Torá” quando em referência ao
Pentateuco ou ao AT, salvo outras formas indicadas no texto.
4
de modo que as instruções dadas por eles deviam ser criteriosamente obedecidas
(Dt 17.10,11; 33.10). Entretanto, os profetas denunciaram as práticas corruptas
destes quando passaram a ensinar coisas falsas ao povo e a buscar lucros com
essa tarefa (Is 9.14,15; Mq 3.11).
O substantivo “torá” é geralmente traduzido como “lei”, mas este significado
está aquém de sua representação no contexto vetero-testamentário. Ele aparece
cerca de 220 vezes no AT (VANGEMEREN, 2011, v.4, p.868). Na literatura
sapiencial, na qual é usado sem o artigo definido, ele tem o significado de ensino.
Pode ser a instrução da mãe (Pv 1.8), do pai (Pv 4.1-2) ou dos sábios (Pv 13.14) a
fim de orientar os filhos em suas relações com a vida ou adverti-los sobre os perigos
que há no mundo. Era papel dos sábios e mestres instruir seus discípulos no temor
do Senhor (Pv 1.7):
A “instrução” dos sábios de Israel, que estavam encarregados
da educação dos jovens, era designada a cultivar nos jovens um
temor do Senhor, de forma que eles vivessem conforme as
expectativas de Deus. (VINE, 2007, p.165)
O dicionário Wycliffe (PFEIFFER, 2006, p. 1953) nos informa dos vários usos
de torá no AT:
O termo torá é usado no singular 172 vezes para se referir a
toda lei de Deus ou de Moisés, e no plural 11 vezes com o mesmo
significado. É usada em Levítico 15 vezes, em Números 7 vezes, e
em outras passagens 26 vezes para se referir a uma lei específica no
código. Em Provérbios ela é usada seis vezes para se referir às leis
ou regras dos pais (1.8; 3.1), ou aos traços de caráter, como, por
exemplo, a bondade (31.26).
Com isso, podemos começar a dizer que torá é um tipo de instrução,
orientação ou ensino daqueles responsáveis pela tarefa de educar e orientar o ser
humano na vida. E também podemos afirmar que ela é a Instrução dada por Deus a
seu povo Israel através de Moisés, para guiá-los num compromisso com Ele e com o
próximo. Foi esta instrução que passou a se chamar “a Lei” - neste caso, com o
artigo definido (ha-torah). Vários usos, neste sentido, são encontrados no AT, como:
“livro da lei” (sepher hattorah, Dt 28.61); “lei de Moisés” (torat mosheh,1Re 2.3);
“livro da lei de Moisés” (sepher torat mosheh, Js 8.31); “livro da lei de Deus” (sepher
torat elohim, Js 24.26); “lei do Senhor [Javé]” (torat Yahveh, Sl 1.2).
Contudo, este sentido não se limita a um conjunto de normas e
determinações expressas a fim de regulamentar a vida social e/ou religiosa:
5
Em termos gerais, torá designa um padrão de conduta divina
para o povo de Deus. O termo não se limita a questões culturais ou
cerimoniais, tampouco à lei civil/social e, em certas ocasiões, às
partes narrativas do Pentateuco. (VANGEMEREN, 2011, v. 4, p. 868).
O termo abrange tanto as determinações cerimoniais - sacrifícios, ofertas, as
festas, os rituais do templo, a páscoa, etc - quanto às determinações civis no âmbito
da vida comunitária - do juizado, do homicídio, do escravo, do estrangeiro, dos
pobres, etc. Apesar de haver essa diferenciação nestes aspectos, os quais podem
ser vistos como a esfera do sagrado e a do secular, isto é, das práticas que orientam
para um perfeito relacionamento com Deus, e das práticas que regulam a vida social
nas relações para com as pessoas da comunidade, não está se falando de nível de
importância ou de separação, pois ambos os casos estão sob o peso da mesma
autoridade que os instituiu, isto é, Deus. Além disso, o AT não faz essa
categorização. Ela é possível apenas para fins de análise.
O Salmo 78 fornece um exemplo importante do uso de torá no AT, no verso 1
o salmista convida o povo a escutar sua “torá”, isto é, sua instrução, seu ensino. O
que se segue é um relato, o qual o salmista informa ser algo que era transmitido de
pai para filho (v. 4-5) e refere-se a isto como “enigmas dos tempos antigos” (v.2).
Nos versos seguintes ele fala dos seus antepassados e do que Deus havia feito a
eles, ou seja, o conteúdo deste ensino que ele pretende passar é a história do povo
de Israel e de seu fracasso por não observarem a vontade de Deus. Neste uso,
portanto, percebe-se, que torá também inclui a história do povo, as narrativas que
contém a história de Israel.
Uma referência curiosa no uso deste termo é Gn 26.5, na qual ele é
empregado no plural (torot): “porque Abraão me obedeceu e guardou meus
preceitos, meus mandamentos, meus decretos e minhas leis" (NVI). O texto não
especifica o que são essas “leis” que Abraão obedeceu, e apesar de seu contexto
ser anterior à torá entregue a Moisés, pode haver relação entre ambos, como alguns
estudiosos sugerem, que o texto tenha sido escrito num período pós-mosaico
(VANGEMEREN, 2011, v. 4, p. 870). Entretanto, havendo está relação ou não, o
mais importante é termos em mente que o originador destas leis é o mesmo que
instruiu a Moisés, isto é, Deus, e sabemos que na sua imutabilidade tais leis ou
instruções que, entre outras coisas, orientam para um relacionamento com Ele, não
seriam diferentes em sua essência. Assim, o aparecimento do termo nesta
6
passagem é importante para demonstrar que seu significado e suas implicações
transcendem o contexto mosaico.
Fica evidente que, com todos esses usos, o termo vai além do significado de
“lei”, como geralmente é traduzido e entendido, ainda mais no conceito atual de lei
que temos (ver seção 3.2 abaixo) onde o componente de governo divino,
geralmente, está ausente. Mas no caso de torá, é algo que tem relação direta com
Deus, pois Ele é a finalidade, pela qual a torá (instrução, lei) foi dada.
Seguindo nesta busca do significado de torá, VanGemeren diz:
A fim de captar a essência de torá no AT, os termos “instrução”
ou “ensinamento” com suas conotações modernas particulares
podem ser mais apropriados para fazer jus à variedade de formas de
uso, torá é instrução, quer cultual ou civil, quer na forma de estatutos
legais específicos ou palavras menos formais de orientação de um
pai para o filho, quer um conjunto claramente definido de leis como
Deuteronômio[...] (VANGEMEREN, 2011, v. 4, p. 871).
Vine (2007, p. 103) expressa que o termo torá não trata de leis que se
resumem a restringir ou impedir o homem, mas um meio de se alcançar uma meta
ou ideal, ou seja, que a torá foi dada a Israel para capacitá-lo a permanecer o povo
especial de Deus. Contudo, ao invés de Israel usá-la desta forma, transformou-a
num legalismo que resultou na forma como era usada no período do NT, a qual
Paulo tenta combater em suas cartas. Assunto que trataremos mais adiante.
Assim podemos perceber que o termo torá tem um significado bem mais
abrangente que a ideia de lei entendida num sentido normativo e regulamentar
apenas. Embora não seja confirmado, seus variados usos indicam, de fato, uma
forte relação com o verbo yarah, nos fornecendo a ideia de algo que é dirigido,
direcionado, lançado, como a flecha que aponta para o alvo, ou como o ensino do
mestre para seu aluno ou a orientação dos pais para os filhos, a fim de mantê-los na
meta, no objetivo.
Portanto, torá, mais do que lei, é ensino, instrução, orientação que Deus
dirigiu a seu povo para guiá-lo em sua vontade e mantê-lo como povo da aliança.
Ela também é a história do povo de Deus que serve de exemplo para ensinar e
instruir as gerações posteriores para uma vida de piedade. Para que conheçam
como seus antepassados reagiram a Deus e como Deus respondeu a eles, a fim de
que não cometam os mesmos erros.
7
Na divisão hebraica do cânon do AT, torá passou a ser o termo usado para
designar os cinco primeiros livros atribuídos a Moisés, isto é, o Pentateuco, de modo
que os judeus se referiam a eles como “A Torá”. Em um período mais recente, Torá
passou a ser usado para se referir a todo o Antigo Testamento, mas não somente na
sua forma escrita, pois para os judeus a Torá integral consiste também de uma
versão “oral”, criada e transmitida pela tradição, como veremos na próxima seção.
2.
TORÁ E O NOVO TESTAMENTO
2.1. Significado de torá para os judeus do período do NT.
Por muito tempo os judeus somente consideraram como Torá os escritos de
Moisés, mas no período do Segundo Templo houve a necessidade de traduzir as
escrituras para o aramaico, porque o uso do hebraico havia declinado em função do
exílio. Acontecia, que Após a leitura do texto em hebraico era feito um resumo
explicativo em aramaico (cf. Ne 8.8). A partir desta necessidade surgiu a chamada
Torá oral. Acreditava-se que Deus havia dado a Israel no Sinai uma lei escrita e uma
oral, ambas com o mesmo valor e importância, e ambas consistindo em uma só Torá
(LOPES, 2007, p. 50).
A partir da reforma de Esdras e Neemias, neste período, a Torá ganha nova
atenção do povo. A realidade em que Israel se encontrava em razão de sua
desobediência que o levou ao exílio, alertou para uma postura diferente em relação
à Torá, inclusive, elaboraram um acordo, assinado por seus líderes, no qual todo o
povo se comprometia com juramento a obedecer à lei do Senhor (Ne 9.38 – 10.39).
Assim, se foi pela negligência à Torá que Deus os relegou à servidão e perda da
terra prometida, então o que tinham de fazer como meio de manter a promessa de
Deus era observá-la de acordo com os preceitos que ela apresentava:
A partir do exílio na Babilônia, os autores da Torá reformulam a
História de Israel para ajustá-la à história da existência condicional
de seu povo. Tudo dependia da execução de um acordo articulado,
por exemplo, em Levítico 26 e Deuteronômio 32-4: faça isso, consiga
aquilo; não faça isso, não consiga aquilo. (NEUSNER, 2004, p. 64)
Surge daí um interesse em estudar e entender a torá para fins de aplicação,
e isto era feito por aqueles que tinham condições de ensiná-la e interpretá-la ao
8
povo (cf. Ne 8.13). A partir disto, essa prática tornou-se uma atividade exegética de
aplicação da lei que era passada adiante a cada geração, transformando-se numa
tradição. “Na parte aramaica de Esdras, o hebraico torah torna-se o aramaico dath
que significa “lei” (7,12.14.21.26)” (DUNN, 2003, p. 171).
Assim, a Torá oral consistiu das interpretações feitas por aqueles que ficavam
incumbidos de ensinar as Escrituras ao povo, semelhante aos sacerdotes e levitas
antigos, e que foram transmitidas oralmente pela tradição rabínica. Os rabinos
passaram a acreditar que eram sucessores dos sacerdotes na tarefa de ensinar e
interpretar a lei para o povo (LOPES, 2007, p. 50). Com o tempo, essas
interpretações foram se expandindo a ponto de ganhar uma versão por escrito
depois da revolta de Bar Kochba, no segundo século depois de Cristo. Falaremos
dela na terceira parte deste trabalho, abaixo.
Este modo tradicional de interpretar e aplicar a lei de acordo com as
necessidades e desafios do momento é mencionado no NT como a “tradição dos
anciãos” (Mt 15.1; Mc 7.3). Jesus, de certo modo, demonstra uma rejeição a essa
tradição, ou parte dela, porque seu ensino invalidava a lei do Senhor (Mt 15.6; Mc
7.13) (DUNN, 2009, p. 141).
Como o uso do hebraico declinou em função do exílio, com o advento do
império grego de Alexandre e sua política helenista, o uso do aramaico também
declinou em muitos centros helenísticos em favor do grego. Nestes centros, muitos
judeus tiveram a dificuldade de ler as Escrituras hebraicas, assim, no terceiro século
antes de Cristo, em Alexandria, a Torá, isto é, o Pentateuco, fora traduzida para o
grego, versão que ficou conhecida como Septuaginta (LXX). O restante do AT, assim
como os apócrifos, foram traduzidos no século seguinte (PFEIFFER, 2006, p. 1994).
Na LXX, o termo torá foi traduzido pelo grego nomos (νόμος), cujo significado
principal é “lei”. Acerca do termo nomos, Vine (2007, p.743) nos diz:
Significava primariamente “aquilo que é prescrito”; por
conseguinte, “uso, costume”, e, portanto, “lei, lei prescrita por
costume ou por estatuto”; a palavra ethos, “costume”, foi retida para
designar “lei” não escrita, enquanto que o termo nomos tornou-se o
nome estabelecido para apontar “lei” decretada por estado e
estabelecida como padrão para a administração da justiça.
Coenen (2000, v. 1, p. 1153) nos informa que na antiguidade não havia
distinção entre os significados jurídico, ético e religioso de nomos. Acreditavam que
toda lei tinha relação com os deuses que regiam o universo. Inclusive, a acusação
9
contra Sócrates que resultou na sua morte partiu daí: violou o nomos do Estado
quando deixou de reverenciar os deuses de acordo com o costume. Ele coloca ainda
(p. 1154) que o termo foi muito usado na literatura extra-canônica do período
intertestamentário, indicando a importância da lei no pensamento judaico nos três
últimos séculos antes de Cristo. Além disso, como Dunn (2003, p.171) nos informa
que em textos da época do Segundo Templo, torá, assim como nomos, “continuam a
ser usados para denotar ordens divinas que devem ser 'cumpridas'”, por exemplo:
Salmos de Salomão 14.1-2; Eclesiástico 45.5; Baruc 4.1.
Com essas definições e o que vimos acima acerca da tradição iniciada a partir
do período do Segundo Templo, com o advento do helenismo, da LXX e mudanças
tão drásticas que aconteceram no mundo, sobretudo para os judeus, podemos
começar a entender o que torá passou a significar para os judeus no período do NT.
Fica evidente que o AT já não era a única fonte de autoridade para o judaísmo do
primeiro século depois de Cristo, mas também a tradição que emergiu do
desenvolvimento histórico do pensamento e dos costumes judaicos a partir do
Segundo Templo. Como resultado dela, surgiram as sinagogas e o Sinédrio, além
dos partidos religiosos como os fariseus e saduceus, e também festas que não
constam no AT como a Hannukah (Festa da Dedicação). Josefo nos conta que esses
partidos tinham maneiras diferentes de encarar a Torá. Segundo ele a tradição oral
fora difundida pelos fariseus, sendo que ela era rejeitada pelos saduceus que
compreendiam que a únicas leis válidas são as escritas por Moisés (JOSEFO, 2004,
p.611).
Além disso, o mundo contemporâneo ao NT era fortemente influenciado pela
cultura helênica, marcado pela unidade da língua e tolerância à diversidade cultural
e religiosa herdadas da política grega, o que, no passado, por um lado, forçou a uma
reação judaica como no caso da resistência macabeia, cujo “zelo pela Lei” foi marca
da identidade do povo da aliança (DUNN, 2011, p.222), e por outro, tal reação foi a
razão de ser dessas instituições e celebrações de que falamos acima.
Portanto, a partir do período do Segundo Templo a Torá foi se tornando um
conjunto de regras rígidas, embora não estritamente num sentido legal, mas em um
modo de vida judaico orientado pela tradição, porém como norma divinamente
outorgada e, consequentemente, absoluta. Como Schlesinger (1985, p. 16) coloca:
“A Lei contém os fatos passados, o código de vida material e espiritual, a
organização da vida e, enfim, a tradição”. O significado de torá para o judeu da
10
época do NT deve ser compreendido nesses moldes. A Lei, então, era uma espécie
de mediadora entre eles e Deus que devia regular toda a vida, que lhes conferia
identidade como povo da aliança e distinção dos demais povos. Os ritos quais se
apegavam com rigor eram tudo que lhes denominavam (DUNN, 2011, p. 200 ss.).
Em outras palavras, não há Judeu, no sentido mais religioso e étnico da palavra,
sem a Torá.
2.2. Torá no Novo Testamento
No ministério de Jesus e nos primórdios da igreja o modo como a Torá era
usada e aplicada foi um tema muito debatido. Como vimos na seção anterior (2.1),
as autoridades religiosas judaicas tinham seu modo próprio de lidar com a Lei do AT,
herdado de séculos de tradição e de dominação política e cultural greco/romana.
Para a maior parte deste público, os ensinamentos de Jesus, principalmente aqueles
que faziam referência à Lei, eram bastante heterodoxos, deixando-os extremamente
ofendidos e ameaçados (por exemplo, Mt 12; Mc 7.1-23), assim diversos confrontos
foram inevitáveis, de modo que a única solução para os líderes era matá-lo (Mt 21 26; Mc 11-14; Lc 20-22). Mais tarde, a igreja, em sua própria esfera, também
enfrentou problemas relacionados ao modo de encarar as exigências da Lei de
Moisés mediante a Graça, a qual contemplara também os gentios. Em resumo,
tiveram que responder à questão: os cristãos, sobretudo os gentios, devem observar
a Lei do AT? O capítulo 15 de Atos é um dos principais exemplos de como
enfrentaram este problema.
Só com isso, podemos ver que o pensamento neotestamentário referente à
Torá era bastante contrastante em relação ao tradicional. Contudo, sabe-se que o
NT foi, originalmente, escrito em grego e que a principal fonte de conteúdo do AT
para os primeiros cristãos era a Septuaginta (HALE, 1983, p. 24), assim, o termo
usado para se referir à Torá é o substantivo nomos.
Mounce (2013, p. 430) nos dá exemplo de referências dos usos de nomos no
NT e o que representam: “lei, Rm 4.15, 1Tm 1.9; a lei mosaica, Mt 5.17; as escrituras
do AT, Jo 10.34; um vinculo legal, Rm 7.2,3; lei, regra, norma, Rm 3.27; uma regra
de vida e conduta, Gl 6.2, Tg 1.25”. Vemos que o termo é usado tanto para
representar à Torá ou Lei de Moisés quanto o AT como um todo. No exemplo de Jo
11
10.34, onde Jesus diz: “não está escrito na vossa Lei... vós sois deuses?”, trata-se
de uma referência que se encontra no livro dos Salmos (82.6).
Nomos é usado 191 vezes no NT, das quais, 119 só nos escritos de Paulo,
com mais frequência na Carta aos Romanos, onde é empregado 72 vezes, seguido
por Gálatas, 32 vezes e 1ª aos Coríntios, 9 vezes. Nos demais livros ocorre 17 vezes
em Atos, 14 em João, 14 aos Hebreus, 10 em Tiago, 9 em Lucas e 8 em Mateus
(COENEN, 2000, p.1157).
Essa predominância do uso de nomos por Paulo indica que o apóstolo teve
que enfrentar em grande escala os problemas relacionados à questão colocada no
primeiro paragrafo desta seção, visto que seu ministério era direcionado aos gentios,
e por isso, forçado a fazer apologia contra a doutrina dos chamados judaizantes.
Antes de falar sobre isto, vamos verificar o que a Lei representa no ensino de Jesus.
Holwerda (2005, p. 89), em sua discussão sobre Jesus e a Lei, coloca a
seguinte questão: “que acontece com a lei quando Jesus vem?”.
Embora, para alguns, possa haver a noção de que Jesus descartou a Lei do
AT, a verdade não é bem esta. Logo no capítulo 5 de Mateus e versos 17 e 18,
Jesus declara que não veio abolir a Lei (refere-se à Lei de Moisés), mas cumpri-la, e
que o menor traço dela não deixaria de se cumprir. E no verso 20, adverte aos seus
ouvintes que a justiça deles deveria exceder em muito a dos fariseus e mestres da
Lei. Trata-se de uma reorientação acerca da compreensão e aplicação da Lei
naquela época. Isto é indicado pelos versos seguintes onde a fórmula "ouvistes o
que foi dito aos antigos... eu porém vos digo” é usada contrastando o ensino que
fora difundido naquela época com a nova realidade da revelação de Deus em Jesus.
Como exposto na primeira seção deste trabalho, Deus é a finalidade, a meta da
Torá, e essa meta se cumpre em Cristo, concordando com Romanos 10.4, que
trataremos um pouco mais adiante.
Jesus não apresenta outra Lei, antes faz uma radicalização da mesma,
contudo, não em termos de observância ritual, mas de uma atitude mais elevada
baseada naquela justiça que devia exceder a dos fariseus. Justiça que consistia de
uma observância à Lei com base no amor, cuja inclinação é para a misericórdia e
para o bem. É para esta “direção” que ele aponta no final do capítulo quando diz
para amar até aos inimigos e orar pelos perseguidores (v.44), porque assim eles
seriam identificados como pertencentes (filhos do) ao Pai (v.45), concordando com
as bem-aventuranças do início do discurso (v.3-10). Na compreensão dos fariseus e
12
mestres da lei, os filhos do Pai eram os “filhos de Abraão”, ou seja, os judeus, os
descendentes de Abraão (Jo 8.33-42). E ser judeu naquela época, como vimos na
seção 2.1, era observar meticulosamente a Torá. Contudo, quando Jesus diz que a
“justiça devia exceder a dos fariseus e mestres da lei”, se referia a isto, a ser judeu
na forma como aqueles homens estavam sendo, isto é, meticulosos cumpridores da
Lei que, no fundo, não amavam verdadeiramente nem a Deus nem ao próximo.
Nos versos 39 ao 42 do capítulo 8 do Evangelho de João, Jesus esclarece
que a mera descendência étnica não os tornavam verdadeiros filhos de Abraão, nem
de Deus, pois os verdadeiros filhos de Abraão fazem a obras que Abraão fez. E que
obras são essas? Talvez estivesse se referindo a Gênesis 26.5, como vimos acima
em Etimologia e uso no AT, Abraão cumpriu as torot de Deus, mas sabemos que
estas “leis” não podiam ser as “Leis de Moisés”, porque seria anacrônico, então, fica
evidente nas palavras de Jesus, que as obras de Abraão consistiam no amor que ele
demonstrou a Deus, uma vez que deu ouvidos e obedeceu ao Senhor. É incrível o
paralelo que Jesus faz aqui: ele contrasta a resposta de Abraão a Deus com a
resposta daqueles homens a ele, “vocês querem matar-me, sendo que falei a
verdade que ouvi de Deus; Abraão não agiu assim” (v.40). Aqui, Jesus se coloca na
posição de Deus, tendo em vista o fato que Abraão respondeu com fé ao Senhor,
mas aqueles homens responderam com ódio a Jesus. Assim, ele prossegue: “vocês
estão fazendo as obras do pai de vocês”, mas eles afirmavam que Deus era o Pai
deles, então Jesus completa: “se Deus fosse o Pai de vocês, me amariam, pois eu
vim de Deus” (v.42). A ideia agora fica clara, os verdadeiros filhos de Abraão amam a
Jesus e obedecem às suas palavras, mas os filhos do diabo adoram a mentira e o
homicídio (v.44). A obediência sem amor é obra externa, a fim render o louvor dos
homens (Mt 6, cf. Rm 2.28,29).
Devemos recordar o caso do jovem rico (Lc 18.18-29). Obediente a Torá, mas
seu amor estava direcionado ao seu status, o que é sugerido pelo fato de ter-se
entristecido, talvez pensando em tudo que perderia, sem considerar o que ganharia
diante Deus. Visto de outra forma, “um verdadeiro filho de Abraão” teria dado suas
riquezas aos pobres quando Jesus pediu, teria olhado para a recompensa divina
futura (Hb 11). Assim, Jesus nos revela que a obediência à Lei não deve ser fruto
meramente de alguma ação externa, antes, deve partir do coração, dos sentimentos.
Para os mestres judeus a finalidade da Lei consistia de cumprir, a rigor, certas
13
práticas, mantendo uma pureza ritual. Até mesmo Paulo, antes de sua conversão,
assumia este zelo judaico, como Dunn (2011, p.76) aponta:
O "zelo" pré-cristão de Paulo estava orientado para preservar o
status "imaculado" dos judeus, inclusive uma santidade não
maculada pelo contato com outras nações, e para perseguir as
pessoas que ameaçavam essa separação sagrada (Fl 3.4-6).
Contudo, Jesus enfatizou o lado altruísta da Lei (Mt 7.12; Lc 10.25-37), além
da misericórdia e amor, que culminou no seu excepcional resumo em dois grandes
mandamentos, dos quais dependem toda a Lei e os Profetas: o amor a Deus e ao
próximo (Mt 22.34-40; Mc 12.28-34). Entretanto, é errado concluir daí que o amor
invalida a Lei, como se, havendo amor, tudo se torna aceitável. Antes, a obediência
deve ser motivada pelo amor, não pelo orgulho ou interesses escusos como aponta
Jesus no restante do sermão do monte (Mt 6-7).
Na igreja primitiva do livro de Atos o centro do pensamento agora é Cristo,
todavia, algumas ideias acerca da Lei são confrontadas, como, por exemplo, no
discurso de Estevão a ênfase no Templo, que era crucial para o judaísmo, sobretudo
para o farisaico, é enfraquecida (7.47-50). Na visão de Pedro sobre os alimentos
impuros, concluiu que alimentos e pessoas não devem mais ser considerados
impuros (10.9-16,28 cf Mc 7.19). Ainda, o Concílio de Jerusalém decidiu que os
gentios não precisavam observar os rituais da Lei (At 15.1-29).
Na Carta aos Hebreus vemos que o sacerdócio levítico, com seus sacrifícios
de animais, é revogado em função do sacrifício e sacerdócio eterno de Cristo (7.1118; 9.11-14).
Percebe-se com tudo isso que há certa tendência em prescrever aqueles
elementos da Lei que consistem de rituais, que no meio judaico se tornaram obras
vazias, despidas de sentido e de verdadeira piedade (Is 29.13; Ez 33.31; Mc 7.6-7),
pois faltava-lhes o elemento misericórdia (Mt 12.7). Colocavam sua pureza acima de
coisas mais importantes como fazer o bem (Mt 12.10-13; Lc 13.10-17), algo que até
um samaritano demonstrou, na ocasião em que um sacerdote e um levita deixaram
de fazer (Lc 10.30-37). Em resumo, esqueciam de praticar o amor, a maior obra e o
principal dos mandamentos a cumprir, como um próprio escriba judeu declarou:
“Amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de todas as forças, e amar ao
próximo como a si mesmo é mais importante do que todos os sacrifícios e ofertas”
14
(Mc 12.33). Sendo que ao dizer isto, Jesus lhe respondeu: “Você não está longe do
Reino de Deus” (v. 34).
Portanto, o amor deve ser a base de toda obra, pois dele depende toda a Torá
(Mt 22.40). Semelhantemente, Holwerda (2005, p.96) nos afirma:
Qualquer interpretação de qualquer mandamento que não seja
informada pelo mandamento do amor deixa de lado a vontade de
Deus expressa no mandamento específico. O cumprimento da lei
deve ser avaliado pela conformidade com essa “ideia-raiz”.
Mas já que a verdadeira justiça somente pode ser alcançada através de
Cristo, uma vez que, como afirma Paulo aos Romanos 8.2-4, as exigências da Lei
foram plenamente satisfeitas em nós através do sacrifício dele, será que, para
Paulo, a Lei nada tem a ver com o Evangelho? Paulo escreve aos Gálatas dizendo:
“Vocês, que procuram ser justificados pela Lei, separam-se Cristo; caíram da graça”
(5.4) e aos Romanos 6.14: “Pois o pecado não os dominará, porque vocês não estão
debaixo da Lei, mas debaixo da graça”. Foi refletindo em textos como estes que
muitos chegaram à conclusão de que a Lei se opõe ao Evangelho, surgindo daí uma
dicotomia Lei/Graça.
James Dunn (2011, p. 387), no capítulo 11 de seu livro “A Nova Perspectiva
Sobre Paulo”, se dedica a responder a questão: “Paulo era contra a Lei?”. Em nível
primário, a questão é fácil de ser respondida, ele não era contra a Lei, ele a
considerava santa e seu conteúdo justo e bom (Rm 7.12); também afirmou que ela é
espiritual (7.14) e boa (7.16); disse que a fé não anula a Lei mas a confirma (3.31);
colocou que ela é a expressão da vontade de Deus para a vida (8.4,7); Paulo
também resumiu a Lei no mandamento do amor, concluindo que este é o
cumprimento da Lei (13.8-10; Gl 5.14).
Com isso, podemos perceber que Paulo não era contra a Lei, pois de algum
modo atribui valor a ela. Contudo, a maior parte das suas declarações a respeito da
Lei é num sentido negativo. Para ele a Lei era, de certo modo, temporária (Gl 3.1925); Também frisou que ela era incapaz de salvar (Rm 8.3), antes ela criou
oportunidade para o pecado e a morte (7.7-13); e por ela ninguém será justificado
diante de Deus (Gl 3.11).
Há um ponto conflitante neste ultimo texto acima. Ele afirma aos gálatas que
ninguém é justificado pela Lei, mas aos Romanos 2.13 ele diz que não são os que
ouvem a Lei que são justificados, mas os que obedecem a ela que serão declarados
15
justos. Será que Paulo estava se contradizendo? Ambos os versos são melhores
compreendidos à luz de outros dois textos nas mesmas cartas, Rm 3.20 e Gl 2.16,
nas quais o apóstolo declara que ninguém será justificado pelas “obras da Lei”. Em
todo conteúdo de ambas as cartas fica evidente que Paulo quer eliminar o equívoco
introduzido entre os crentes daquelas regiões em se conceber a justificação por
meio das obras, quando ela é só possível mediante a fé em Cristo.
Mas o que quer dizer “obras da Lei”? Podemos compreender o que isto
significa considerando o que temos falado até aqui acerca da observância tradicional
judaica da Torá. Em relação a isto, Dunn argumenta:
"Obras da Lei" denota tudo que a Lei exige do judeu devoto.
Contudo, exatamente porque se trata aqui da Lei como identidade e
marcadora de fronteiras, a Lei como a Lei de Israel enfoca naqueles
ritos que expressam da maneira mais clara a distinção judaica [...]
Por causa do fato de desempenharem um papel tão crucial em definir
o "ser judeu", a participação no povo da aliança, a circuncisão e as
leis alimentares são tão proeminentes na discussão sobre as obras
da Lei e sobre a justiça. (DUNN, 2011, p. 200)
Assim, explica que aquilo que Paulo tinha em mente quando usava esta
expressão era a circuncisão e as regras alimentares, embora certamente tivesse
outras, mas principalmente estas se sobressaiam, porque elas eram fundamentais
para a prática do judaísmo, pelo menos, desde o período dos macabeus. E podemos
concordar com ele tendo em vista a quantidade de referências que Paulo faz a elas
em suas cartas, principalmente em Romanos e em Gálatas. Também aponta que o
contexto da passagem em Rm 2.13 é escatológico, é acerca do Juízo Final,
reforçado por 3.20 que afirma que “nenhuma carne será justificada diante de Deus”.
Assim, não há contradição em Paulo nestes pontos. Não é a Lei que ele quer
eliminar, mas o equívoco da justificação com base nos méritos, pois reforça em
muitos pontos de suas cartas que é pela fé em Cristo que o crente é justificado (Rm
4.16, 9.32; Gl 5.5; Fp 3.9).
Que ideia de Lei Paulo tem em mente quando escreve sobre ela? A palavra
aqui é, mais uma vez, nomos. VanGemeren, na obra organizada por Gundry sobre
cinco pontos de vista sobre a Lei e Evangelho, sustenta que a ideia que Paulo
trabalha quando fala de nomos é a legislação sinaítica, mas há ocasiões que se
refere ao AT, ao Pentateuco ou até a “princípio” (GUNDRY, 2003, p. 43). Coenen
(2000, p. 1158) concorda com essa postura, ressaltando que Paulo emprega o termo
especialmente para a Lei Mosaica.
16
Ao longo da história da interpretação bíblica muitos entenderam que a
declaração de Paulo aos Romanos 10.4: “Cristo é o fim [telos] da Lei”, expressa que
o “fim”, neste caso, significa término, encerramento ou revogação.
O grego τέλος, de acordo com o Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento, significa “fim, conclusão, término, alvo” (COENEN, 2000, p. 94), e
ocorre nesta forma 41 vezes no NT, sendo que em Rm 10.4 tem o significado de
cessação, isto é, “em Cristo, a Lei cessou de ser o caminho da salvação” (p. 96);
Mounce (2013, p. 590) apresenta uma ideia diferente para telos nesta passagem:
“plena performance, perfeita execução”; já Vine (2007, p. 868) diz que o verso é
melhor explicado a luz de Gálatas 3.23-26, o que concorda com Coenen.
Mas a interpretação que parece fazer mais justiça à passagem é a de
Holwerda, que nos orienta para um entendimento de telos no sentido de “alvo” com
base em duas perspectivas da Lei em Paulo, na mesma carta, uma no capitulo 6,
cuja ideia se expressa em que “estar livre do pecado em Cristo, é estar livre da lei”,
uma vez que o crente morreu para o pecado, e neste sentido apenas, o termo
significaria cessação. Porém, chama a atenção para a outra perspectiva baseado no
capitulo 8.2-4:
Em Romanos 8, depois de focalizar mais uma vez o que a lei
não podia realizar por causa do pecado, o apóstolo ensina que a
obra de Cristo e a vida no Espírito têm como sua meta o
cumprimento das justas exigências da lei (Rm 8.2-4). Para o apóstolo
Paulo, há um real sentido em que a justiça exigida pela lei não foi
terminada pela morte e ressurreição de Cristo. Ao contrário, essa
justiça articulada e requerida pela lei realizou cumprimento em Cristo,
e, agora, em Cristo e por meio do Espírito, essa justiça descreve e
modela a vida cristã (HOLWERDA, 2005, p.123).
Ele explica que “alvo” nos dá condições de falar tanto do que cessa,
pensando em termos do alvo sendo atingido, como do que continua, tendo em vista
a harmonia essencial que há entre o que aponta ou prepara para o alvo e o próprio
alvo. Assim, Holwerda coloca que o sentido disto é porque o apóstolo Paulo não
admitiria uma ideia de observância da Torá que não tivesse relação com a obra de
Cristo.
Kaiser, participando do debate sobre a Lei e o Evangelho, concorda com a
ideia de “alvo”:
O termo telos em Romanos 10.4 significa “alvo” ou conclusão
propositada. A lei não pode ser adequadamente compreendida a não
ser que aponte para o grande alvo ao indicar o crente para o
17
Messias, Cristo. A lei permanece a lei de Deus, não a lei de Moisés
(Rm 7.22; 8.7). Ela ainda é santa, justa, boa e espiritual (Rm
7.12,14), tanto para o israelita quanto para o gentio crente (GUNDRY,
2003, p. 202).
Vemos, portanto, que assim como demonstrado sobre o ensino de Cristo
acima, Paulo não dá a Torá por encerrada, mas aponta para o seu cumprimento e
seu valor enquanto vontade de Deus a ser perseguida pelo crente em Cristo, não
pelas obras, mas pela fé; não para justificação, mas por amor.
Então, se a Torá ainda tem valor para o crente, de que forma isto se dá? Que
aspectos da Lei o crente deve observar? Todos eles? Como seria então no caso da
circuncisão ou sacrifícios, que inclusive Paulo e o autor aos Hebreus rechaçaram?
A teologia reformada fala sobre três aspectos da Lei: moral, civil e cerimonial.
Meister, em seu artigo: “Lei e Graça: uma visão reformada”, explica cada umas
delas:
(a)Lei Civil ou Judicial – representa a legislação dada à
sociedade israelita ou à nação de Israel; por exemplo, define os
crimes contra a propriedade e suas respectivas punições. (b) Lei
religiosa ou cerimonial – representa a legislação levítica do Velho
Testamento; por exemplo, prescreve os sacrifícios e todo o
simbolismo cerimonial. (c) Lei moral – representa a vontade de Deus
para o ser humano, no que diz respeito ao seu comportamento e aos
seus principais deveres (MEISTER, 1999).
Assim, explica que o aspecto civil da lei não é aplicável a nossa sociedade,
pois foi dada para regulamentar a vida na sociedade teocrática de Israel. A
cerimonial também não é aplicável, uma vez que foi cumprida em Cristo. Por outro
lado, coloca que a Lei moral é aplicável a qualquer época, porque ela é uma
expressão da graça de Deus e revela de forma objetiva a sua vontade. Os dez
mandamentos são o resumo da Lei moral. Estudiosos como Willen VanGemeren e
Walter Kaiser defendem essa divisão. Kaiser defende que a Lei moral tinha
precedência sobre a civil e cerimonial porque ela é “baseada no caráter de Deus”
(GUNDRY, 2003, p.204). Sendo baseada no caráter de Deus, é imutável, por isso,
nunca perde o valor. Assim, é o aspecto moral da lei que tem aplicação e que é
obrigatória para o crente.
Contudo, outros estudiosos argumentam que essa ideia é moderna, pois tal
divisão não é encontrada nas escrituras. Defendem que a Torá é uma unidade
indivisível, e mesmo Paulo quando pensa em nomos não enxerga essa divisão.
18
Estudiosos como Wayne Strickland e Douglas Moo colocam que essa divisão carece
de argumentos bíblicos mais sólidos, pois nem Cristo, nem Paulo, nem os judeus da
época, faziam essas distinções quando falavam da Lei, sendo que um dos
argumentos diz que Cristo não cumpriu somente a Lei cerimonial na cruz, ele
cumpriu toda a Lei. Assim, se a crucificação encerrou o aspecto cerimonial da lei,
também encerrou o moral (GUNDRY, 2003, p. 228-245).
Longe de chegarmos a uma conclusão 3 acerca desses aspectos da Torá aqui
neste trabalho, podemos considerar que, de fato, a Bíblia não faz nenhuma dessas
categorizações, contudo, elas são proveitosas para delinear as bases para uma
compreensão acerca de elementos da Lei que diferem entre si em nível de
aplicabilidade, sobretudo para o cristão. Elas nos permitem enxergar que a Torá,
verdadeiramente, tem elementos que o cristão não pode desprezar, cujo resumo é o
amor. Não cometer idolatria, não tomar o nome de Deus em vão, honrar pai e mãe,
não roubar, não matar, e muitos outros preceitos, são plenamente atuais para todo e
qualquer cristão.
3.
A TORÁ HOJE
3.1. A Torá para os judeus atuais
Antes de se verificar o que a Torá é para o judeu nos dias atuais, é importante
tentar definir o que é um judeu ou o que é ser judeu. Chegar a esta definição não é
tão fácil como o é, por exemplo, o brasileiro. O artigo 12 da Constituição Federal de
1988, em resumo, define que são brasileiros os: “natos” – nascidos no país ou de
pais brasileiros no estrangeiro – e os “naturalizados” – sob determinadas condições
e enquadramentos legais. Neste exemplo, a definição é uma questão de
nacionalidade, conferida pelo lugar de nascimento, pela ancestralidade ou pelo
Estado.
No caso do judeu, a questão vai além da nacionalidade, pois há também o
caráter religioso. Pode se pensar que o judeu é aquele nascido no Estado de Israel,
3 As discussões acerca destes pontos são extensas, para aprofundamento consulte as bibliografias
citadas, em especial a obra organizada por Stanley Gundry: “A Lei e o Evangelho: 5 pontos de vista.”
19
mas como afirma um site judaico4, em toda história do povo judeu, com poucas
exceções, “a esmagadora maioria dos judeus não viveu ou sequer colocou os pés
no país judaico”. Outro equívoco é pensar que os judeus são uma raça. A própria
Bíblia, no livro de Rute, por exemplo, desmonta essa hipótese, visto que Rute era
uma moabita da qual descendeu Davi e Cristo. Há judeus de diversas cores de peles
e línguas e em diversos países. Quando olhamos para a Bíblia identificamos os
judeus com o “Israel de Deus”, o povo que recebeu a promessa. Mas hoje, que
relação há entre o Israel de Deus e os judeus?
O rabino Neusner (2004, p. 282) nos explica que há três tipos de “Israel” nos
dias atuais: um é o “Estado de Israel”, nação política e secular, outro é o “povo de
Israel”, o povo judeu como um grupo étnico de ancestralidade judia, e o terceiro é a
“comunidade sagrada de Israel”, os praticantes do judaísmo. É este último que nos
interessa neste trabalho. O rabino ainda explica que “nem todos os judeus, do
Estado de Israel ou os étnicos, praticam algum tipo de Judaísmo” ou vivem de
acordo com a Torá. Há inclusive judeus ateus ou confessos de outras religiões (p.
282-283). Porém há muitos Israelenses que praticam o Judaísmo, e também há
pessoas que não são de nenhum dos dois primeiros casos, mas fazem parte do
terceiro. Estes são aqueles que se converteram ao Judaísmo.
Pra resumir, há dois meios pelos quais alguém pode fazer parte da
comunidade sagrada de Israel, isto é, ser um judeu praticante do judaísmo e que
observa a Torá: por nascimento e por conversão (ASHERI, 1995, p. 3). No caso de
nascimento, somente aqueles que nasceram de mãe judia é que são considerados
judeus de nascimento. No outro caso, qualquer pessoa pode se tornar um judeu,
convertendo-se ao judaísmo e seguindo a Torá.
Assim, a definição que buscamos e que importa para este trabalho quanto a
ser judeu, está na palavra Judaísmo, ou seja, a religião judaica. Há diversos
aspectos de caráter nacional, étnico e secular do povo judeu, mas é no aspecto
religioso que buscamos o que a Torá representa.
Michael Asheri explica que no judaísmo a Torá constitui-se de duas partes: a
Torá Escrita (Torá Shebiktav) e a Torá Oral (Torá Sheb´al peh), ambas tem o mesmo
valor e autoridade. A Torá Escrita é o que conhecemos por Pentateuco, ela contém
4 PT.Chabad.ORG, disponível em: http://www.pt.chabad.org/library/article_cdo/aid/2229172/jewish/Oque-ser-judeu.htm (acessado: 20/11/2014)
20
613 mandamentos (mitzvot) identificados pelos rabinos, o primeiro, por exemplo, em
Gn 1.28 (“multiplicai-vos e enchei a Terra”), o último em Dt 31.19 (tem a ver com a
obrigação de todo judeu possuir um rolo da Torá). A Torá oral são interpretações
legais de sábios e rabinos judeus, transmitidas oralmente pela tradição desde o
Segundo Templo. No segundo século depois de Cristo essa tradição foi compilada e
depois expandida.
Essa transcrição da tradição oral, terminada por volta do ano 219 d.C,. é
chamada de Mishiná. Posteriormente recebeu um complemento elaborado das
discussões dos rabinos acerca de seu conteúdo, consistindo numa espécie de
jurisprudência, e é chamada de Guemará. Ambas formam “a fonte básica para todas
as decisões legais que afetam a existência de um judeu”, conhecida como Talmud,
este foi completado no século quinto (ASHERI, 1995, p. 31).
Até o século XIX predominou o judaísmo rabínico, no qual os judeus se
consideravam completamente separados das nações onde viviam. Era como uma
nação entre as nações, um grupo que se distinguia por suas práticas religiosas,
vestes e dieta diferenciada. A Torá era tida como de origem divina e de validade
eterna (tanto a escrita quanto a oral), era a regra de fé de todo judeu. Mas a partir do
século XIX outros sistemas de judaísmo surgiram como resultado de uma
emancipação política do povo judeu no ocidente: o judaísmo reformista, o ortodoxo e
o conservador5. Estes sistemas discutiram questões acerca de ser judeu no mundo
moderno e sua relação com a Torá. Passaram a defender a ideia de judeus como
comunidade religiosa, não mais como nação. Começaram a se integrar
politicamente nas sociedades onde viviam e inserir seus filhos na educação secular.
Passaram a ter direitos de cidadãos das nações onde se encontravam, isto é, sem
aquela distinção de povo estranho à nação, mas como compatriotas. Assim,
passaram também a ser alemães, americanos, holandeses, etc (NEUSNER, 2004,
p. 250 ss.).
Com esse envolvimento secular, surgiram questionamentos acerca de quais
princípios da Torá eram válidos. Os reformistas, por exemplo, defendiam o
cumprimento somente das leis morais e os rituais que podiam ser adaptados à vida
moderna. Também rejeitaram a ideia de revelação e validade eterna da Torá, algo
que os ortodoxos mantiveram, expressando reação ao reformismo, assumindo uma
5 Para aprofundamento, veja o capitulo 11 da obra de Jacob Neusner, “Introdução ao Judaísmo”.
21
tendência ao tradicionalismo. O conservador assumiu uma posição central entre a
tradição e a mudança.
Assim o conceito de Torá sofreu alterações no meio judaico, contudo ela
continua sendo a instrução, o ensinamento de Deus a seu a povo, embora
reinterpretada e aplicada ao contexto de cada grupo e região. Para a maior parte do
judaísmo hoje, o fiel deve observar todos os 613 mandamentos dela. Asheri explica
que a Torá funciona como uma lei jurídica de muitos países:
Em certo sentido, a Torá escrita pode ser comparada à
Constituição do país. Ela é o esqueleto do corpo da lei judaica, tal como
a Constituição é o esqueleto do corpo da lei civil. E assim como muitas
das decisões das cortes de justiça – o direito casuístico – adicionam
carne ao esqueleto da Constituição, assim também o Talmud dá carne
aos ossos da Torá Escrita. É a Torá Oral, tal como encontrada na
Mishiná e nas decisões dos rabinos sobre a aplicação exata das leis,
tanto na Mishiná como em sua conclusão, a Guemará, que nos fornece
a lei judaica, tal como é hoje observada (ASHERI, 1995, p. 32).
Assim, além desse aspecto normativo, prevalece também o entendimento de
que ela contém a história do povo escolhido de Deus, de modo que aqueles que
seguem o Judaísmo se identificam com ela, acham sua história na Torá.
Consideram-se parte do povo que foi livre da escravidão do Egito e que fez aliança
com Deus no deserto e recebeu a Torá através de Moisés.
3.2. A Torá e os Cristãos
O que os cristãos de hoje pensam acerca da Torá? Certamente, a grande
maioria não compreende todo o significado e implicações das quais falamos até
aqui. Além disso, geralmente, seu contato com o termo torá se dá na forma de “lei”
(ou “Lei”), presente em todas as traduções mais correntes. Por que será que tais
traduções, invés de usarem “lei”, não usaram “Instrução” ou “ensino”, como
demonstramos? É claro que “lei” também é um dos significados do termo, mas,
como vimos, às vezes não faz justiça a ele. Por que não “Instrução de Moisés” ou
“Ensinamento do Senhor”? Talvez seja por causa do caráter coercitivo dos
mandamentos que impunham punições à sua não observância. Além disso, é
provável que a opção por “Lei” seja influenciada pelo fato do judaísmo, tanto na
época do NT, quanto hoje, dar uma aplicação profundamente normativa a ela. Outra
22
possibilidade é seu uso no NT, a exemplo de Paulo, que expressa a liberdade cristã
em contraposição às obras da Lei. Os reformadores foram acusados de
antinomistas, porque enfatizaram sobremodo a Graça e a justificação pela fé em
resposta ao entendimento da igreja medieval de uma justificação meritória. Embora
os reformadores tenham tido a preocupação de expressar certa continuidade da Lei
no
Evangelho
(MATOS,
[200-]),
principalmente
Calvino
(outrora
acusado
injustamente de legalista), surgiram daí muitos movimentos que criaram uma relação
antagônica entre a Lei e a Graça, como o dispensacionalismo, no qual a Lei é o
método de salvação ou dispensação do AT, e a Graça a do NT. (MEISTER, 1999).
Deste modo, no entendimento de muitos cristãos atualmente é que a Torá, ou
Lei, só tem a ver com o Antigo Testamento, e a Graça somente com o Novo.
Entretanto, como demonstrado nas seções acima, há uma evidente
continuidade entre o AT e o NT, entre a Torá e o Evangelho, e por que não, entre a
Lei e a Graça? Jeremias profetizou: “porei a torati (subst. fem. construto + sufixo
pron. 1ªp sg: “minha lei”) no seu interior e a escreverei no seu coração” (31.33b).
Apesar do substantivo torá estar presente, não se pode ter certeza que essa torá é a
Torá de Moisés. Contudo, alguns argumentam que não há razão para considerar
outra lei neste texto, primeiro porque a expressão “minha lei” aparece em outros
textos do discurso de juízo de Jeremias (6.19; 9.12; 16.11), ressaltando a
desobediência do povo (GUNDRY, 2003, p. 310). E segundo, pelo fato de que Deus
prometeu escrever a “minha lei”, não uma “nova lei”. Significa que ao ter dito “minha
lei” a audiência de Jeremias não pensaria em outra lei, senão a Lei de Moisés (p.
319). Além disso, a interiorização da Lei nos corações, no contexto de Jeremias, é
importante porque ele denunciou insistentemente a rebeldia e desprezo por parte do
povo pela Lei do Senhor (3.17; 7.24; 11.8; 13.10; 23.17).
Assim a promessa dessa Nova Aliança (Jr 31.33a) envolve, de algum modo, a
Torá. Sua relação com a Graça, como vimos anteriormente, se expressa como
vontade de Deus revelada, embora não aplicável em todos seus pormenores, mas
sempre válida para os cristãos, ao menos em seus aspectos morais.
Deus sempre quis que sua vontade estivesse no íntimo de seu povo e esta
seria a sua Nova aliança, diferente da antiga, que seu povo invalidou (v. 32). Se a
Antiga Aliança pudesse fazer isso, não haveria necessidade de uma Nova (Hb 8.7).
Considerando o advento de uma Nova Aliança, espera-se que a Antiga seja
suplantada e esquecida, como faz o autor aos Hebreus (8.13). Cristo é o mediador
23
da Nova Aliança que é superior à Antiga (v. 6) que estabeleceu por meio do seu
sangue, como ele próprio confirma na ocasião da Ceia (1Co 11.25). O autor aos
Hebreus ensina que foi a morte de Cristo que estabeleceu a Nova Aliança (Hb. 9.15;
12.24).
Apesar
disto,
ele
quer
mostrar
tanto
uma
continuidade
quanto
descontinuidade entre ambas. Continuidade porque Deus, em ambos os casos, é
quem toma a iniciativa, e também ambas as Alianças são baseadas no sacrifício. A
descontinuidade se da no fato de que o sacrifício de Cristo foi definitivo e não seria
repetido. Assim, como Cristo mesmo afirmou, ele não encerrou a Lei, a cumpriu. E
se ele a cumpriu ela permanece nele através de seu cumprimento integral (Rm 8.4)
e sacrifício eterno (Ef. 5.2; Hb 9.12; 10.10,12), tendo em vista que ele vive
eternamente e é Sumo-Sacerdote desta Nova Aliança (Hb 6.20; 7.24).
Mas ainda falta responder se a tradução “lei” é a melhor opção para o cristão
brasileiro. Que entendimento o cristão brasileiro tem de torá neste sentido de lei?
Um dicionário da língua portuguesa pode nos dar o significado inicial de lei no
contexto brasileiro. O dicionário Michaelis define lei da seguinte forma:
sf (lat lege) 1 Preceito emanado da autoridade soberana. 2
Prescrição do poder legislativo. 3 Regra ou norma de vida. 4 Relação
constante e necessária entre fenômenos ou entre causas e efeitos. 5
Obrigação imposta. 6 Preceito ou norma de direito, moral etc. 7
Religião fundada sobre um livro [...] L. antiga: o código de Moisés.
[...] L. mosaica: a registrada no Pentateuco. [...] L. nova: a doutrina
do Evangelho de Jesus Cristo.6
Vemos que o conceito abarca significados ligados ao Direito (1,2), à ética
(3,6), à natureza (4) e à religião (7 ss.). Interessante como a designação “mosaica” e
a dicotomia antiga/nova aparece na definição apresentada por um dicionário laico.
Isto demonstra como a influência desta relação entre a Lei e o Evangelho está
presente no cotidiano. Lima, sintetiza uma definição:
Lei designa a norma ou causa exemplar a que as coisas se
devem conformar em todos os domínios: físicos, da arte e dos
costumes. Significa, portanto uma ordenação da razão destinada a
assegurar a realização da ordem. De uma parte, visa um
procedimento a realizar; de outra, emite um mandado. Em ambos os
sentidos é obra da razão (LIMA, 2006, p. 100).
6 Dicionário eletrônico on-line, disponível em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=lei
(acesso: 21/11/2014)
24
Iamundo (2012, p. 99-103) nos explica a relação e a diferença entre norma,
direito e lei na sociologia. A norma, diferente da lei, não expressa o caráter
coercitivo, mas o “dever-ser”, limites que refletem o comportamento esperado e
desejado socialmente, e sofrem alterações na medida em que a sociedade se
transforma. O direito é uma estrutura que constitui instrumentos de controle social, e
exerce este controle por meio de lei, e a efetivação deste controle se da porque
antes de ser lei, é uso, costume, prática social. No caso da lei, ela se apresenta de
duas formas: das ciências naturais e do direito. Das ciências naturais são as
generalizações que descrevem os fenômenos naturais, como a física, a matemática,
química, etc. A lei do direito é uma prescrição de padrões de comportamento que, de
certo modo, expressam as demandas de valores sociais e culturais, e tem caráter
coercitivo.
Percebemos, com isso, que o papel que a lei exerce numa sociedade Estado
como a do Brasil, com suas estruturas jurídicas, sociais e educativas, é o de
regulamentar, impor e controlar a dinâmica social, além de proteger a estrutura
social contra violações, em outras palavras, para manter a harmonia social.
Embora não seja possível determinar o que torá significa para cada cristão do
país, podemos concluir pelo que vimos que aquele significado de Instrução,
orientação, ensino, não se enquadra nas características gerais de lei neste contexto.
Mesmo que as leis possam ser encaradas como orientações quanto ao modo de
agir, é o sentido de norma, regra, que prevalece.
A partir daí, podemos refletir o porquê de algumas denominações cristãs
empregarem como regra de fé, por exemplo, o uso do véu, a guarda do sábado,
costumes alimentares, etc. Pois levam esse entendimento de lei para a leitura do
texto das Escrituras. Assim, o significado de Torá, quando traduzido por lei, fica
comprometido. Contudo para que esta opção não fosse usada nas traduções, a LXX
não poderia apresentar nomos em lugar de torá, pois o NT acaba por ressaltar esta
característica normativa da Torá com seu uso de nomos, pela influência do judaísmo
da época e da LXX, embora não a descarte, como vimos.
25
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho tentamos mostrar que o significado da palavra torá possui
outros sentidos além daquele presente nas traduções desde a Septuaginta,
geralmente, aparecendo na forma de “lei”. Mostramos que seu significado ultrapassa
esse sentido, pois também significa instrução, ensino, direção e história do Povo de
Deus. Entretanto, a partir do período do Segundo Templo, seu sentido ficou
resumido numa ideia de regras, normas ou prescrições práticas. Também foi usado
para designar o Pentateuco, o Antigo Testamento ou parte deles.
No Novo Testamento e no Judaísmo da época, esse significado resumido já
estava presente na sua forma grega nomos e nas práticas ritualísticas dos judeus.
Havia a tradição oral que também foi chamada de Torá. Jesus demonstrou certa
rejeição à esta tradição, mas não às Escrituras do Antigo Testamento, revelando ser
seu cumprimento e dando continuidade a ela no mandamento do amor. A igreja
discutiu acerca do uso da Torá em seu contexto dando ênfase à morte e ressurreição
de Jesus. Semelhantemente, Paulo rejeita as práticas dos judaizantes que queriam
impor a Lei aos gentios, observando-as na forma da tradição, todavia ele não
descartou a Lei, mas reorientou-a, focalizando-a em Cristo.
No contexto atual, vimos que nem todo judeu é observador da Torá, mas que
todo, ou quase todo, praticante do Judaísmo precisa atentar para as suas regras,
consistindo não só da parte escrita da Torá entregue a Moisés, como das
transcrições orais da tradição rabínica, da Mishiná ao Talmud, e nela encontram sua
história e se identificam com o povo escolhido por Deus.
Por fim, vimos que a igreja brasileira, de certa forma, emprega a dicotomia
Lei/Graça na relação entre a Torá e o Novo Testamento, e que o conceito que ela
tem de lei obscurece a amplitude do significado de torá, não permitindo uma
compreensão mais assertiva da sua relação com a Torá.
Assim, aprendemos que a “flecha” atingiu seu “alvo”, mas ela não foi
removida. Ela continua em Cristo, e através dele, também nos atinge e continua com
seus efeitos de instrução, ensino e direção, pelo menos em seus aspectos morais,
por meio do Espirito Santo. Torá, neste sentido, se expressa na vontade revelada de
Deus para todo aquele que crê. E devemos responder com fé a essa vontade, a
exemplo de Abraão, pois é a Graça de Deus e está presente na Nova Aliança.
26
REFERÊNCAIS BIBLIOGRÁFICAS
ASHERI, Michael. O Judaísmo Vivo: As tradições e as leis dos judeus praticantes.
2.ed. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
BIBLE HUB, Online Bible Study Suite. Em Http://biblehub.com. Acesso em: 01 nov.
2014.
BÍBLIA de Estudo Pentecostal. Trad. João Ferreira de Almeida – Revista e Corrigida.
Ed 1995. Rio de Janeiro: Cpad, 1999.
BÍBLIA Edição Pastoral. 33. Ed. São Paulo: Paulus, 1999.
BÍBLIA Nova Versão Internacional. 2.ed. São Paulo: SBI, 2001.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 20
nov. 2014.
BRUEGGEMANN, Walter. Teologia do Antigo Testamento: Testemunho, disputa e
defesa. Santo André – SP: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2014.
COENEN, Lhotar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. 2.ed. 2 v. São Paulo: Vida Nova, 2000.
CRUSEMANN, Frank. A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo Testamento.
4.ed. Petrópolis – RJ: Vozes, 2012.
DUNN, James D. G. A teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003.
______. Unidade e Diversidade no Novo Testamento: Um estudo das características
dos primórdios do Cristianismo. Santo André: Academia Cristã, 2009.
______ A nova Perspectiva sobre Paulo. Santo André – SP: Academia Cristã; São
Paulo: Paulus, 2011.
GUNDRY, Stanley. N. (Org.) et al. Lei e Evangelho: 5 pontos de vistas. São Paulo:
Vida, 2003. (coleção Debates Teológicos)
GUSSO, Antonio Renato. Gramática Instrumental do Hebraico. 2.ed. São Paulo:
Vida Nova, 2008.
27
HALE, Broadus David. Introdução ao Estudo do Novo Testamento. Rio de Janeiro:
Juerp, 1983. (E-book)
HARRIS, R. Laird et al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento.
São Paulo: Vida Nova, 1998.
HOLLADAY, William L. Léxico Hebraico Aramaico do Antigo Testamento. São Paulo:
Vida Nova, 2010.
HOLWERDA, David E. Jesus e Israel: Uma aliança ou duas? São Paulo: Cultura
Cristã, 2005.
IAMUNDO, Eduardo. Sociologia e Antropologia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2012.
JOSEFO, Flavio. História dos Hebreus. 8.ed. Rio de Janeiro: Cpad, 2004.
KESSLER, Rainer. História Social do Antigo Israel. São Paulo: Paulinas, 2009
(Coleção cultura bíblica)
LIMA, Máriton Silva: A Lei na Filosofia, na Teologia e no Direito. São Paulo: Livro
Pronto, 2006.
LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e Seus Interpretes: Uma breve história da
interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
MACHADO, Marcelo S. A Noção de Lei e Sua Eficácia: Uma análise empírica internacional a partir de esclarecimentos doutrinários. 2006. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul,
Porto
Alegre,
2006.
Disponível
em:
http://www3.pucrs.br/portal/page/portal/direitouni/direitouniCapa/direitouniGraduacao
/direitouniGraduacaoDireito/direitouniGraduacaoDireitoConclusaoCurso/direitouniGra
duacaoDireitoConclusaoCursoPublica. Acesso em: 31out. 2014.
MATOS, Alderi Souza. Os reformadores e a Lei – Valores, semelhanças e
diferenças. [200-]. Disponível em: http://www.mackenzie.com.br/6968.html. Acesso
em: 20 nov. 2014.
MEISTER, Mauro Fernando. Lei e Graça: Uma visão reformada. Artigo. Fides
Reformata
IV:2,
1999.
Disponível
em:
http://cpaj.mackenzie.br/fidesreformata/visualizar.php?id=64. Acesso em: 04 nov.
2014.
MOUNCE, William D. Léxico Analítico do Novo Testamento Grego. São Paulo: Vida
Nova, 2013.
28
NEUSNER, Jacob. Introdução ao Judaísmo. Rio de Janeiro: Imago, 2004.
PFEIFFER, Charles F et al. Dicionário Bíblico Wycliffe. Rio de Janeiro: Cpad, 2006.
RICHARDS, Lawrence O. Comentário Histórico-Cultural do Novo Testamento. Rio de
Janeiro: Cpad, 2007.
SCHLESINGER, Hugo. Os Evangelhos e os Judeus. São Paulo: Paulinas, 1985.
VANGEMEREN, Willen A. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do
Antigo Testamento, 5 v. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
VINE, W. E. et al. Dicionário Vine: O significado exegético e expositivo das palavras
do Antigo e do Novo Testamento. 7.ed. Rio de Janeiro: Cpad, 2007.
Download